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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.25 Canoas jun. 2007

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Inclusão e a difícil arte de amar o que (não) se vê

 

Inclusion: the difficult art of loving what it’s (not) seen

 

 

Sueli Souza dos Santos*

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é resultado de um pequeno recorte da investigação em andamento de minha tese de doutorado em Educação na UFRGS. Trata sobre as questões de inclusão, linguagem e subjetividade de cegos. Fundamenta-se na Psicanálise de Freud e Lacan, desenvolvendo os conceitos de narcisismo, o Outro e a pulsão escópica em suas implicações constitutivas no Estágio do Espelho. Analisam-se, através de um recorte do corpus de uma entrevista realizada, alguns enunciados sobre a subjetivação dos cegos. Apóia-se em sua construção metodológica na teoria da Análise de Discurso de Pêcheux em suas possibilidades de articulação com Authier-Revuz, priorizando os conceitos de linguagem, e heterogeneidade discursiva. O trabalho apoiado nessas duas teorias, ou seja, a Psicanálise e a Análise de Discurso, evidencia nos enunciados da entrevistada, algumas dificuldades no processo de inclusão dos cegos relativas a sua vida amorosa em relação aos videntes.

Palavras-chave: Discurso, Inclusão, Pulsão escópica, Narcisimo.


ABSTRACT

This article is the result of a small clipping of the on-going investigation of my doctoral thesis on Education at the Federal University of Rio Grande do Sul. It deals with inclusion, language and subjectivity of blind people. It´s based on the Psychoanalysis of Freud and Lacan, developing the concepts of narcissism, The Other and scopic pulsion in their constituent implications in the Mirror Stage. It is analyzed, through the clipping of the corpus of an interview, some statements about blind people´s subjectivity. The methodological construction is based on Pêcheux´s Discourse Analysis on its possibilities of articulation with Authier-Revuz, giving emphasis to the concepts of speech and discoursive heterogeneity. Based on these two theories, the Psychoanalysis and the Discourse Analysis, this paper shows, through the statements of the interview, some difficulties in the process of inclusion of blind people concerning their loving life in relation to the not blind.

Keywords: Speech, Inclusion, Scopic pulsion, Narcissism.


 

 

Introdução

“Não é uma igualdade”: algumas interrogações iniciais

A questão sobre a discriminação de minorias, quer por fatores raciais, religiosos, sexuais, de gênero, de imigração, ou portadores de necessidades especiais, sendo este último objeto específico de nossa investigação, convoca-nos a pensar em que medida a discussão sobre os temas da inclusão e exclusão, do ponto de vista da Psicologia Social e da Educação, enquanto campos de saberes que albergam inter-relações sociais, abrange muitos fatores constitucionais da subjetividade e da identidade, para além do que é visível.

Quando trabalharmos com os conceitos de inclusão/exclusão, é necessário estarmos atentos sobre as múltiplas possibilidades de deslizamentos de sentido que esses termos podem derivar. Pensando a educação inclusiva, é preciso reconhecer que a inclusão porta uma ambivalência. A formação grupal, em ambiente escolar, de trabalho ou de convivência, quando impõe o exercício do processo de inclusão, evidencia-se que alguém está excluído de um coletivo determinado. Nesse caso, a inclusão significa incluir este que está fora, por ser diferente, como igual ou como diferente? Qual é o diferente privilegiado, o do grupo ou do indivíduo? Qual identidade será incluída no quê?

Se pensarmos em como se constituem os laços sociais, que inserem o sujeito na cultura, pela linguagem e suas derivas, lembramos que em relação à questão de identidade, Bhabha (1998, p.80) afirma: “... testemunhamos a alienação do olho através do som do significante no instante em que o desejo escópico (olhar/ser olhado) emerge e é rasurado na simulação da escrita.”

A pulsão escópica, conceito psicanalítico, que representa o prazer de ver e ser visto, que tem o olhar como objeto de desejo, relaciona-se com o mito originário que envolve a relação imaginário que forja os processos identificatórios. Sob essa perspectiva, nos interessa aqui ressaltar a importância do olhar na estruturação do psiquismo, da subjetivação, da identidade e suas implicações no processo de inclusão. Tomamos como ponto de partida deste artigo um dos enunciados da entrevista realizada com Gisele1 , qual seja: “Não é uma igualdade. Não é de igualdade... há muito tempo que um homem que enxerga não me paquera. Há muito tempo. Por quê? Porque na verdade ele não vai tirar uma onda com uma guria cega.”

Seguindo o enunciado de Gisele1, ocorrem-nos algumas questões que podem interpelar tanto cegos como videntes, tais como: Como amar alguém que não nos vê? Como amar alguém que não se vê? Como amar alguém que não vê a si próprio?

O namoro pela internet, versão contemporânea do namoro por correspondência promovido pelas revistas femininas de décadas atrás (ou seria século passado?), supunha o possível encontro com uma pessoa idealizada, a alma-gêmea.

Imaginariamente, mesmo com a possibilidade de o(a) correspondente e, agora internauta, ser diferente da fantasia que se criasse em relação àquele(a) que não se via; sempre havia a possibilidade de, num futuro encontro presencial, se surpreender com aquilo que encontraria. Poderia emergir daí uma confirmação ou desilusão dessa fantasia de encontro, tendo como resultantes expressões tipo: “és bem como eu imaginava”, ou: “és bem diferente do que eu imaginava” ou: “não eras nada do que eu imaginava”. No último caso, como vemos, o verbo ser dá idéia de passado, ou seja, mais do que uma constatação pode se avizinhar, quem sabe, um desencanto, um desencontro. Será que se consegue conhecer aquele pelo qual se enamora? Que encontro haveria na correspondência da fantasia? O enamoramento seria pela fantasia?

 

O Outro que se encontra: um estranho familiar

A surpresa ou desilusão no jogo do enamoramento está em relação direta com o espelhamento narcísico. Reportando&–nos ao ponto de vista psicanalítico, enxergar é diferente de ver, além do que, ver é diferente de olhar. É preciso estabelecer que, voltando aos primórdios da constituição do psiquismo, os sentidos e sentimentos se desenvolvem na medida em que o bebê é investido afetivamente, ou seja, quando passa a significar para alguém, quer sejam os pais ou cuidadores.

É através do olhar do Outro que o bebê passa a ser confundido num ideal imaginário de espelhamento com a mãe, o que lhe dá não só um lugar, mas um sentido em relação a esse Outro. Cabe dizer aqui que o conceito de Outro, conceito lacaniano escrito com maiúscula, está referido a um lugar de significação que articula o inconsciente e marca a significação simbólica.

Para compreensão da estruturação do psiquismo, seguimos o referencial psicanalítico, que aponta o conceito de pulsão como fundante do aparelho psíquico. O conceito de pulsão, como inscrição de intensidades libidinais, inconscientes, marca as primeiras experiências de satisfação no psiquismo deixando pegadas, traços, como digitais únicas de prazer e de desprazer, oportunizando a criação das representações, inaugurando a possibilidade do pensamento e discriminação do eu e do não eu.

A pulsão escópica, ou seja, a pulsão do olhar como um dos primeiros investimentos do Outro em relação ao bebê, passa a ser um elemento constitutivo de valor fundamental na fundação psiquismo. Mas o que quer o Outro? Alguma coisa sempre indecifrável. O olhar não é compreendido mais como condição da consciência e do conhecimento, mas é uma marca pulsional, portanto, do inconsciente.

Essa formulação teórica da psicanálise rompe com a tradição filosófica que não distingue entre visão e olhar. Sendo assim, o olhar deixa de ser uma qualidade do sujeito como propunha a filosofia, mas, segundo Lacan, passa a ser o objeto específico da pulsão escópica, faz parte do objeto e não do sujeito; ao contrário, o sujeito é afetado pelo olhar, é subvertido por ele enquanto objeto (a), denominado por Lacan como objeto causa de desejo.

Em Freud, tal objeto tem a dimensão do objeto perdido, o qual está em jogo na repetição. Esse objeto torna-se aí ativo, e o sujeito, efeito. O objeto (a), diz Lacan, parece ser alguma coisa que implica estilhaços da pulsão, enquanto pulsões parciais. Sendo objeto parcial, o objeto (a) não pode ser representado, só pode ser identificado sob a forma de fragmentos parciais do corpo, sob quatro aspectos: objeto de sucção (seio), objeto de excreção (fezes), a voz e o olhar. Além disso, o objeto sendo parcial, não se pode nomear devido a não se ter idéia do que ele seja.

Um terceiro aspecto a ser considerado refere-se a um resto, ao mesmo tempo função e resíduo, implicado no centro do nó borromeano, em que se entrelaçam o simbólico, o imaginário e o real. O nó borromeano é uma figura topológica, um tipo de círculo flexível, que em psicanálise é usado para explicar as relações de pura significância, conforme definição de Kaufmann e Conte (1993, p. 68): “O nó borromeano são três termos que se estabelecem pela presença do terceiro, uma relação entre os outros dois. Na prática analítica, o resto de um dito se torna o que resta a dizer, o inacessível, o que remete ao recalcamento primário, sem que possamos dizer”.

A citação remete-nos diretamente ao texto “Projeto para uma psicologia científica”, em que Freud (1976-1895) postula a primeira experiência de satisfação como mítica, a qual o sujeito tentará em vão reconstituir. Essa tentativa de reconstituição é decorrente do desejo em relação à Coisa, o Isso em alemão “das Es”, que não pode ser nomeado. A Coisa é dada no campo escópico, é ela que confere a lei do desejo, ou seja, na visão da psicanálise, do desejo indestrutível, que se apresenta como esse abismo infinito do inalcançável, que opera por deslizamento em um plano de contigüidade, remetendo o sujeito sempre a uma falta.

Dizendo de outra forma, a Coisa (das Ding) é o que do real não acessa ao significante, é barrada do significante da lei, vem no lugar do significante, mas não pode nomeá-lo. Esse significante que barra a Coisa é chamado de “nome-do-pai”, enquanto referido ao Édipo. Aqui nos ocorrem outros interrogantes: o Outro é sempre estranho e familiar porque traz a marca do desejo edípico? Busca-se, no amor, o primeiro amor, novamente?

 

O Estágio do Espelho: Narciso não vê o que não é espelho

A partir das primeiras experiências, na relação de espelhamento com a mãe, partimos da metáfora lacaniana do estágio do espelho, apontando dois momentos constitutivos desse aparelho. Seguindo esse autor, nos primeiros meses do bebê, a própria incompletude do aparelho visual impõe-lhe uma total dependência perceptiva, pela impossibilidade de o cérebro interpretar os estímulos visuais que recebe. Assim, o estágio do espelho funciona como o primeiro organizador da angústia do corpo fragmentado, fundindo a imagem ao objeto, mãe e bebê são uma só coisa.

Essa fusão dá uma forma, uma contenção em que, pela fascinação do olhar, cria-se um jogo de júbilo, de gozo. Nessa completude, não há possibilidade de falta, mãe e bebê, se completam mutuamente. Esse estado idílico, fusional, num segundo momento, já não basta, não satisfaz a mãe, que insatisfeita demanda outras coisas ao bebê, rompendo a plenitude.

Como um retorno a esse estado idílico é impossível, o bebê tenta agora ser o eu ideal, ou seja, o que imagina através do olhar da mãe (A); tenta ser o que supõe que a mãe deseja. O jogo de olhares, buscando no espelho um reflexo que lhe dê sentido, nos leva a pensar sobre a diferença entre ver e olhar.

O que vemos está marcado pelo pulsional, apreendido pela fascinação do objeto. Há um estado de fascinação que nos liga e provém do Outro; quando isso se dá, não estamos somente na dimensão do eu imaginário, mas no plano da pulsão escópica, que prende desde fora. Neste sentido é que Nasio nos diz (1995, p.35): “(...) a fascinação é uma experiência limite, é uma experiência limite porque se produz no limite do imaginário. O eu já não é eu porque lhe faltam as imagens em que ele se reconhece, todo esse mundo imaginário desaparece, não há mais reconhecimento.”

As marcas do investimento inicial do Outro no infans, no entanto, deixa indelével o pulsar de que aí, em algum momento, isso existiu, esse encontro profundo e indissolúvel, que a todos nós constituiu enquanto um significante para um outro significante.

Com isso queremos evidenciar que antes de qualquer possibilidade de enxergar e discriminar os estímulos visuais que lhe oferece o contato com o mundo, o bebê será estimulado e tirado de seu isolamento narcísico pelo apelo da mãe ou daquele que o cuida, que o investe afetivamente, que lhe dá sentido, ou seja, que o investe pulsionalmente.

Esse é um poder que a mãe ou quem cuida exerce sobre seu bebê. Esse Outro é que pode ter um saber sobre ele, dizer coisas sobre ele, antecipar sentidos que ele, até então, desconhece. Isso está dado para além da capacidade de enxergar de cada um. O espelho é o olhar da mãe, que diz: “tu és isso para mim, para meu desejo, eu te vejo e te quero assim”. Para Kehl (2003, p. 415): “A liberdade humana é limitada, ou pelo menos delimitada, por fatos que antecedem a própria existência individual. Nossa vida psíquica, o que é muito mais grave, depende do inconsciente das pessoas que cuidam de nós”.

Nesse jogo de troca de lugares entre imaginário e simbólico, está a fonte de toda incerteza relativa à vida, na qual o narcisismo, que se pensa sabedor e seguro do seu lugar, é lançado na evidência de que tudo o que é pode vir a não ser. Jogo presente no dominador e no dominado pela ilusão do amor.

A troca de lugares se dá pelo estranhamento da língua. Parece haver um pedido por parte da mãe que o bebê a compreenda em sua demanda, que fale sua língua, uma língua estrangeira, pois é inapreensível em sua totalidade, jogando o infans, cego ou vidente, na gangorra da inclusão/exclusão com relação à língua materna e sua sobredeterminação interdiscursiva. Talvez possamos pensar que o Outro nunca é exatamente o que pensamos.

 

Linguagem e subjetividade: algumas inter-relações possíveis entre Análise de Discurso (AD) e Psicanálise

A dimensão propriamente significante, sob a qual o sujeito está submetido na fala, implica a subjetividade em uma relação fundadora com a linguagem. Assim, a linguagem, via o cenário familiar, na relação com o Outro, é o meio no qual o indivíduo é mergulhado desde o nascimento. A proposição de Lacan (1998) que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, proferida no chamado relatório do Congresso de Roma ([1953]), possibilita-nos fazer alguma aproximação com o campo da Análise de Discurso, que tem um modo de olhar em que a relação da criança com a linguagem não é definida como conhecimento constituído de categorias e estruturas, mas daquilo que produz estranhamento no processo na constituição desse olhar.

Na Análise de Discurso, o processo de significação estaria vinculado a “um duplo movimento de restrição e ampliação do que vai sendo construído sob a forma de unidades de ordem vária”, como diz Lemos (1994). Nessa medida, a autora segue a Pêcheux (1983), quando afirma que cada unidade abre pontos de deriva, produzindo efeitos de ressignificação em relação a outras unidades.

Os processos metafórico e metonímico produzem esse movimento e seus produtos, sendo que, para Lacan (1998), a relação metafórica implica o elemento substituído por aquele elemento que está em ausência, mostrando sua ligação indissociável com a metonímia. A metonímia, como figura de linguagem, é a representação da parte pelo todo e do todo pela parte, a partir do que se pode entender a relação entre um termo manifesto e um termo latente presentificado em uma cadeia discursiva.

Pensando a aquisição da linguagem, Oliveira (2004) entende que o enunciado da criança é ouvido e ressignificado pelo enunciado do adulto, pois seus significantes se apresentam como formas isoladas. Os processos metafórico e metonímico cristalizam-se em redes de relações, mas, a partir de seus próprios enunciados, a criança passa a escutar e ressignificar, arriscando então interpretar a si mesmo e ao outro.

Voltando à questão relativa ao desenvolvimento do sistema simbólico de crianças cegas, fazendo uma relação ao desenvolvimento da linguagem e da subjetividade dessas crianças, podemos pensar nesse mergulho na linguagem, e na língua materna, desde seu nascimento, nesse meio em que o sujeito virá a subjetivar-se, estruturando sua própria história.

A linguagem exerce uma função que possibilita e permite a identificação do sujeito no reconhecimento de seu lugar de ser, no qual o sujeito alienado ao Outro, imaginariamente, se define pelas leis do significante, determinando o sujeito como dividido por seu próprio discurso. As mudanças de sentidos, produzidas na equivocidade do sujeito dividido, são constitutivas da língua. Seguindo o pensamento de Oliveira (2004, p.102): “Isso permite trabalhar, como uma concepção de sujeito, discurso e língua dentro de uma teoria que não reduz o sentido à reprodução, mas contemple as descontinuidades, os deslocamentos, as falhas que se operam sobre o sentido”.

 

Discurso e produção de sentidos

Pêcheux prioriza a problemática da Análise de Discurso2 em torno do trabalho de interrogação-negação-desconstrução de sentido, ressaltando que a própria produção de sentido vem a ser um lugar de formação de um novo sentido, e não somente de afirmação ou captura de sentido. A concepção desse lugar de formação de sentido fundamenta-se nas mediações interdisciplinares da lingüística e da psicanálise, para explicar os fenômenos discursivos.

O conceito de discurso é tomado por Pêcheux (1997) como o objeto teórico da AD, no sentido de objeto-histórico, que se produz socialmente, por sua materialidade específica, ou seja, a língua. Sabemos que é na regularidade da prática social que a língua pode ser apreendida, a partir da análise dos processos de sua produção, e não dos seus produtos. Essa produção social nos remete ao conceito de interdiscurso, que, segundo o autor, está diretamente relacionado ao pré-construído.

A linguagem se assenta em uma relação dissimétrica entre dois elementos do pensamento, como se esses elementos já se encontrassem aí. Todo conteúdo de pensamento existe na linguagem, sob a forma do discursivo.

Pêcheux (2002) define o real como um tipo de saber que não se reduz à ordem das coisas-a-saber; há uma independência do objeto em relação a qualquer discurso que se possa fazer a seu respeito. Em Estrutura ou Acontecimento (2002, p.29), o autor defende que “(...) no interior do que se apresenta como o universo físico-humano (coisas, seres vivos, pessoas, acontecimentos, processo...), “há real”, isto é, pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser “assim”. (O real é o impossível que seja de outro modo).

Assim, o real da língua é tomado por Gadet e Pêcheux (2004, p. 51) como “um sistema de valores e diferenças, pelo registro do reconhecimento sistemático do equívoco, onde sempre há um resto, algo que não se pode dizer, marcando alíngua [lalangue]”; ou seja, o que apresenta na língua como não-idêntico e, ao mesmo tempo, por repetição do significante de outra forma.

Ao significar, no uso da língua, a descrição de objetos de que se fala ou de acontecimentos está exposto ao equívoco da língua, o que equivale dizer que, as propriedades discursivas da forma-sujeito, do “ego-imaginário”, como diria Pêcheux (1997), como sujeito do discurso, aponta que o sujeito se constitui pelo esquecimento daquilo que o determina. O esquecimento, ligado ao sistema inconsciente, é duplo. Melhor dizendo, devem-se considerar dois esquecimentos desde as zonas em que operam: o pré-consciente para o esquecimento número dois, o inconsciente para o esquecimento número um.

Será chamado de esquecimento número um aquele em que o sujeito-falante não pode se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina, interpelado ideologicamente, o que lhe dá a ilusão de ser dono de seu próprio dizer. Dizendo de outra forma, no esquecimento número um o sujeito “esquece” que é determinado ideologicamente. Por estar ligado ao sistema inconsciente, o esquecimento número um, para Pêcheux, se aproxima daquilo que é análogo ao recalcado.

Chama-se de esquecimento número dois, quando o sujeito-falante seleciona formas, seqüências ou enunciados estabelecidos já em uma trama de sistemas enunciados como paráfrase, esquecendo que não é a fonte de seu dizer.

Tanto o esquecimento número um quanto o esquecimento número dois se fazem presentes na produção de sentido. Podemos dizer, ainda, que a produção de sentido se dá na tensão constante em que coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação, descrição de objetos, de acontecimentos, ou do que se produz de forma discursivo-textual.

Seguindo esse raciocínio, pensamos que diante de qualquer objeto simbólico, somos obrigados a interpretar, atribuir-lhe sentido. A interpretação é a leitura que fazemos dos fatos, sendo através da linguagem que se produz significação. No entanto, a interpretação, por efeito ideológico, sofre um apagamento, dando-nos a ilusão de que é transparente, pelo equívoco da língua. Deste modo, a produção de sentidos está ligada à interpretação. Conforme Pêcheux (2002, p. 54):

É neste ponto que se encontra a questão das disciplinas de interpretação: é porque há o outro nas sociedades e na história, correspondente a esse outro próprio ao linguageiro discursivo, que aí pode haver ligação, identificação ou transferência, isto é, existência de uma relação abrindo a possibilidade de interpretar. E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes.

O outro, próprio do linguageiro discursivo, aponta para “as coisas-a-saber” questionadas por Pêcheux, e devem ser tomadas em redes de memórias por filiações identificatórias e não como aprendizagens por interação. Nessa medida, as práticas de análise de discurso precisam determinar o lugar e o momento da interpretação, discriminando a descrição e a interpretação de forma discernível. A descrição de um enunciado ou seqüências enunciativas põe em jogo o discurso-outro, posto que desvela lugares vazios, de elipses, de negações e interrogações, de discurso relatado, entre tantos outros elementos.

Marcado na presença virtual da materialidade descritível, o discurso-outro revela a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, que para Pêcheux (2002, p. 55); é o “próprio princípio do real sócio-histórico.” É a isso que o autor nomeia de disciplina de interpretação, a propósito das disciplinas que trabalham neste registro. Na análise do “corpus” que faremos a seguir essas marcas do espaço social e da memória histórica poderão ser evidenciadas.

Os espaços de transferências identificatórias, que produzem uma pluralidade de filiações históricas, pelas palavras, imagens, narrativas, discursos, textos, etc; as “coisas-a-saber” revelam que não se pode saber com segurança do que se fala. Os objetos estão inscritos em uma filiação e não são o produto de uma aprendizagem particular, quer no âmbito privado ou no nível público das instituições.

Buscando aprofundar as intersecções possíveis entre a AD e a psicanálise, trabalhamos ainda com as noções teóricas de heterogeneidade propostas por Authier-Revuz (2001-1998). Essa autora problematiza o conceito de heterogeneidade, não deixando de reconhecer a língua como sistema de diferenças e como espaço de equívoco. O campo da enunciação é marcado por uma heterogeneidade teórica, fazendo parceria com a psicanálise, relativamente ao sujeito do inconsciente e à sua relação com a linguagem.

Entendemos que toda língua é perpassada pela heterogeneidade, pelas não-coincidências. Authier-Revuz (2001-1998) vai deslocar a análise para a seqüência atravessada pelo discurso do Outro, lugar heterogêneo das rupturas.

O conceito de heterogêneo está ligado a um Outro radical que afeta a enunciação, onde as formas de representação que os enunciadores têm de seu próprio dizer não podem ser tomadas como uma totalidade autônoma, ou seja, todo discurso está atravessado por outros discursos. A heterogeneidade discursiva evidencia a constante tensão que se estabelece entre relações de contradição, dominação, confronto por alianças e/ou de complementação dos discursos, destituindo o sujeito do domínio de seu dizer.

Authier-Revuz (2001-1998) trabalha no enfoque da enunciação com quatro campos de “não-coincidência” ou de heterogeneidade nos quais o dizer se representa e será confrontado produzindo desdobramentos, quais sejam:

a) A não-coincidência interlocutiva entre dois co-enunciadores; essa concepção apóia-se, na concepção pós-freudiana do sujeito descentrado, não coincidente consigo mesmo, mas que remete ao artifício da “comunicação” como produção do “um” entre os enunciadores.

b) A não&–coincidência do discurso consigo mesmo, colocada como constitutiva, fundamentada no dialogismo bakhtiniano, considerando que toda palavra é habitada pelo discurso outro, pelo já dito dos outros discursos, em outras enunciações. Para Pêcheux (2002), algo fala em outro lugar, antes e independentemente, revelando outras palavras, assinalando uma “interdiscursividade representada”. Isso aponta para oposições que delimitam tipos de fronteiras entre si e o outro.

c) A não-coincidência entre as palavras e as coisas é considerada como constitutiva da oposição de sistemas acabados de unidades discretas, e o contínuo, ou seja, as infinitas singularidades do real a nomear de um lado, pelo jogo inevitável na nomeação, e, do ponto de vista lacaniano, o real como radicalmente heterogêneo à ordem simbólica.

d) A não-coincidência das palavras consigo mesmas, apontando para o equívoco jogado nas próprias palavras, sendo estes equívocos de quatro tipos: (1) respostas de fixação de um sentido; (2) figuras do dizer falseando o dizer pelo encontro com o não-um; (3) o sentido estende o não-um e, finalmente, (4) o dizer reafirmando o não-um, buscando a palavra mais certa, tentando romper ambigüidades.

Seguindo a teoria enunciativa de Authier-Revuz (2001-1998), que trabalha com os quatro campos de “não-coincidências”, juntamente com a teoria do discurso de Pêcheux (2002), buscamos sinalizar um lugar de constituição de um sentido que escapa à intencionalidade de um sujeito produzido pela linguagem. Tanto para a AD como para a psicanálise, o sujeito tem, imaginariamente, a ilusão de que é senhor de seu discurso, e não apenas um efeito, um produto deste. Essa semelhança de concepção entre psicanálise e AD, no entanto, não as torna semelhantes, porque cada saber tem sua especificidade relativa a seus objetos.

O discurso não se reduz a um dizer explícito; o dizer não corresponde ao enunciado de quem fala, ou seja, o Outro fala através do falante, e o dizer não corresponde ao enunciado de quem fala.

 

Aspectos metodológicos e apresentação do “corpus”

O “corpus” que se segue é um pequeno recorte da gravação de uma entrevista realizada com uma pessoa cega, sendo o material empírico de base para análise de minha tese de doutorado que trata sobre as questões de inclusão, linguagem e subjetividade de cegos. A entrevista semi-dirigida foi concedida pela entrevistada, com a assinatura de um termo de consentimento informado, sabedora de que seria gravada e transcrita podendo ser utilizada na integra ou parcialmente para estudos e publicações.

Após ser comunicado o objetivo da entrevista, foram colocadas duas questões sendo a primeira relativas a entrada na Escola e sua trajetória até a Universidade; a segunda questão com respeito as relações que foram se construindo ao longo dessa trajetória. A partir daí a entrevistada fez sua narrativa histórica sem mais intervenção da entrevistadora. A realização da entrevista foi em uma sala privada, no local de trabalho da entrevistada. A partir do material gravado e transcrito na íntegra, foi feito um pequeno recorte que apresentamos aqui para análise especifica desse artigo.

O “corpus”: Apresentamos aqui enquanto “corpus” de análise alguns enunciados produzidos em uma entrevista realizada.

(1) Não é uma igualdade. Não é de igualdade... há muito tempo que um homem que enxerga não me paquera. Há muito tempo. Porque? Porque na verdade ele não vai tirar uma onda com uma guria cega.

(2) É... sabe? então assim oh, então não é bom namorado cego porque aí nós vamos ser dois. Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?... agente chama atenção em dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro.... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.

(1) É, é interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que enxerga, ela... sabe?... Agora Gisele, tá certo ...

 

Sobre a análise do “corpus”: uma leitura possível sobre alguns efeitos de sentido que se produzem

Retomamos aqui os primeiro enunciados da entrevistada, que nos possibilitam fazer algumas relações teóricas entre a AD e a psicanálise. Quando Gisele aponta que não é paquerada por um homem que enxerga, atribuindo esse fato à sua diferença, por ser cega, podemos pensar que esse enunciado está atravessado pelo interdiscurso, relacionado diretamente ao pré-construído, ou seja, há um saber sobre as diferenças entre cegos e videntes que vem de outro lugar, talvez marcado pelo social, pelo que é dado intersubjetivamente no que apreende em suas relações de convivência de seu meio.

Ela afirma que: (1) “Não é uma igualdade”. A que igualdade será que se refere? Sabemos que a linguagem se inscreve em uma relação dissimétrica entre dois elementos de pensamento. Retomando o que dizíamos anteriormente, a dimensão propriamente significante, sob a qual o sujeito está submetido na fala implica a subjetividade em uma relação fundadora com a linguagem.

Submetida à fala, ao discurso Outro, Gisele se “vê” como diferente, mas atribui ao Outro ser tratada como diferente, eis aí a dimensão dissimétrica em seu pensamento. Além disso, ser paquerada, ver e ser vista, é tratado como se ela pudesse vislumbrar o olhar do outro. Um olhar que não a enxerga enquanto mulher paquerável, desejável.

Seguindo o pensamento de Pêcheux (2002), quando define o real como um tipo de saber que não se reduz à ordem das coisas-a-saber; há uma independência do objeto em relação a qualquer discurso que se possa fazer a seu respeito. Como Gisele sabe que não é paquerada? Em que se sustenta essa afirmação, no que ela ouve ou não ouve dos homens que enxergam? Como sabe que não é vista e desejada, embora não se dirijam a ela?

Gisele faz essa constatação de sua invisibilidade para o desejo de um vidente, ou seja, um homem que enxerga; existe aí um dado do real que não pode ser outro, ela não vê, ela não se vê, conseqüentemente, não é vista. Esse parece ser o pontos de impossível, determinando aquilo que não pode não ser “assim”. (O real é o impossível...que seja de outro modo), como diria Pêcheux (2002, p.29).

Isso nos remete ainda, às noções teóricas de heterogeneidade propostas por Authier-Revuz (2001-1998) que vai deslocar a análise para a seqüência atravessada pelo discurso do Outro, lugar heterogêneo das rupturas no que diz respeito a “A não-coincidência entre as palavras e as coisas, no que diz respeito ao acesso que Gisele tem ao real. Ela atribui uma impossibilidade de ser paquerada, mas nada no real pode ser comprovado posto que ela fala de um lugar em que se coloca como excluída, mas sem saber do Outro.

Seguindo essa autora e fazendo uma ligação com a psicanálise no que se relaciona ao estagio do espelho, Gisele não enxergando, não pode sentir que um Outro, estranho, diferente da mãe, tenha dirigido seu desejo investido pulsionalmente em relação à ela; além do que esse Outro, estranho, não é acessado visualmente por ela. Diríamos que o “amor a primeira vista” tem outra via, quem sabe o “amor à primeira fala”, enquanto pulsão evocante, como possibilidade de primeiro encontro.

Voltando a Análise de Discurso, o outro, próprio do linguageiro discursivo, aponta para “as coisas-a-saber”, e devem ser tomadas em redes de memórias por filiações identificatórias e não como aprendizagens por interação. A descrição de um enunciado ou seqüências enunciativas põe em jogo o discurso-outro, posto que desvela lugares vazios, de elipses, de negações e interrogações, de discurso relatado, entre tantos outros elementos.

Marcado na presença virtual da materialidade descritível, o discurso-outro revela a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, como próprio princípio do real sócio-histórico. Pensemos em outro enunciado de Gisele em que ela afirma: (2) É ... sabe? então assim oh, então não é bom namorado cego porque aí nós vamos ser dois. Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?... agente chama atenção em dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro.... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.

A posição da mãe, segundo Gisele, revela a insistência do outro como lei do espaço social e quem sabe, da memória histórica. Ao mesmo tempo que afirma o dito da mãe, fala por si mesma enquanto discurso-outro.

No que tange ainda à proximidade com a psicanálise que propõe o sujeito clivado, dividido, atravessado pelo discurso do Outro, marcando o inconsciente como uma cicatriz. Podemos pensar na desilusão de Gisele quando se refere aos conselhos da mãe aponta que de certa forma, a mãe quer que alguém a cuide, ao invés de priorizar que seja amada.

Querer que alguém a proteja, não é o mesmo que alguém a deseje como ela é. A cegueira é vista como um problema duplo, Gisele tem que buscar alguém que pertença ao mundo dos videntes onde está imersa, como se esse sim, fosse o mudo ideal. Ideal da mãe.

Como dizíamos anteriormente, a surpresa ou desilusão no jogo do enamoramento está em relação direta com o espelhamento narcísico. Através do olhar do Outro é que o bebê passa a ser confundido num ideal imaginário de espelhamento com a mãe, o que lhe dá não só um lugar, mas um sentido em relação a esse Outro.

Gisele diz: (1)... “Há muito tempo. Porque? Porque na verdade ele não vai tirar uma onda com uma guria cega.” Parece também que essa queixa está marcada pelo desejo da mãe quando afirma que: (2)“... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá.” Ou ainda: (3)”... É, é interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que enxerga, ela... sabe?... Agora Gisele, tá certo ...

Do ponto de vista da AD, todo enunciado é suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, derivando em um outro como efeito definido pelas condições da produção em que se dá o movimento interpretativo. O que Gisele atribui às suas impossibilidades na conquista amorosa, de certa forma marca o discurso outro, determinado no chamado esquecimento número um, aquele em que o sujeito-falante não pode se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina. Podemos dizer que Gisele é interpelada ideologicamente, o que lhe dá a ilusão de ser dono de seu próprio dizer.

Esquece que é determinada ideologicamente por estar ligado ao sistema inconsciente, ou seja, daquilo que é análogo ao recalcado e que está repetindo o mandato materno, quando afirma: (2)“... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue”. Seu discurso sobre o sonho de sua mãe revela, como num gesto de interpretação, segundo Pêcheux (2002, p. 54): “atos que surgem como tomadas de posições, reconhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos e não negados”.

Falando sobre os desígnios da mãe que espera ou aconselha que ela arrume um namorado que enxergue, mesmo que pareça se contrapor, Gisele está exposta ao equívoco da língua. Isso equivale a dizer que, as propriedades discursivas da forma-sujeito, do “ego-imaginário”, apontam que ela formula em sua afirmação a inscrição ideológica, interdiscursiva, marcada pelo esquecimento daquilo que determina seu discurso. Isso fica evidenciado em duas marcas lingüísticas que insistem, quais sejam, a interrogação e as reticências : (2)É...sabe? Dois pra servir, dois pra guiar, sabe?... agente chama atenção em dobro, ocupa o dobro de espaço na rua... tudo em dobro.... ainda o sonho da minha mãe é que eu arrume um homem que enxergue, pra ser o ... sei lá. Ou ainda: (3)É, é interessantíssimo, ela ... quando eu arranjo um namorado que enxerga, ela... sabe?... Agora Gisele, tá certo ...

Voltando ao que postula Pêcheux (j2002, p.57), todo enunciado é suscetível de tornar-se outro. O dito de Gisele, parece apontar uma constatação sobre os designos maternos, aparentemente, se contrapondo, mas ao mesmo tempo, não parece um discurso muito diferente do seu mesmo, derivando em um outro como efeito definido pelas condições da produção em que se dá o movimento interpretativo, ou gesto de interpretação. Suas interrogações, dirigidas à entrevistadora, sugerem um pedido de confirmação de entendimento daquilo que está relatando, como se não tivesse certeza do sentido que se produz em seu dito; ou esperando uma afirmação ou negação de que o dizer da mãe faz sentido.

Dizendo de outra forma, ela diz que há muito que um homem que enxerga não a paquera; também afirma que o sonho da sua mãe é que arrume um homem que enxergue. Mas não se apercebe que o discurso materno não deixa claro para si mesma, como ela, Gisele, se “enxerga”? O que um homem deve “enxergar” nela? O que ela pensa que a mãe vê nela e espera que um homem enxergue ?

 

Considerações finais

Narciso não se vê, se não encontra seu olhar no espelho. Ou a difícil arte de amar o que (não) se vê

O jogo de enamoramento, fundador do aparelho psiquismo, está em relação direta com o espelhamento narcísico, dizíamos no início deste artigo. Retomamos aqui a afirmação de que é através do olhar do Outro que o bebê passa a ser confundido num ideal imaginário. Isso se dá na construção da subjetividade tanto de cegos como de videntes. Tomando os enuncidos de Gisele, aí se marca a certeza de que, em algum momento, em algum tempo, alguém que enxergava, um Outro, a desejou, a amou, mas que há muito tempo não re-encontra esse olhar em outra pessoa que recupere o primeiro amor supostamente incondicional do Outro. Narciso não se vê, se não encontra seu olhar no espelho.

Gisele por não encontrar no Outro esse olhar marcado escópicamente, não se supõe como objeto de interesse ou amor por alguém que não tenha seu olhar sobre si mesma. No entanto podemos pensar que, para além de qualquer falha perceptiva no real do corpo, todos, videntes e cegos, estão marcados pelo mesmo estrabismo do olhar amoroso. As dificuldades em amar e ser amado, a incerteza e o desejo de ser objeto de amor marca à ferro o psiquismo e as possibilidades de subjetivação, independente da visão, posto que o que dá visibilidade é o olhar enquanto investimento amoroso.

Essa afirmação nos faz pensar na dificuldade de amar o que (não) se vê. Na báscula da inclusão/exclusão, duas faces de uma mesma moeda se evidenciam. É’ difícil amar o que se vê, porque amamos o que não é visível, mas o que supomos encontrar em um outro como o ideal imaginário de completude.

A inclusão/exclusão, que se coloca nesse jogo de presença e ausência de visibilidade estará sempre marcada em todas as possibilidades de relação, quer de trabalho, de aprendizagem, de grupos de convivência, de laços amorosos. A pulsão do olhar, enquanto significante, a linguagem como possibilidade de encontro e equívoco por seus deslizamentos de sentido, são elementos constitutivo de valor fundamental na constituição do psiquismo.

A inclusão/exclusão para além das questões sobre a discriminação de minorias, seja qual for sua marca diferencial, nos convoca a repensar em que medida a discussão sobre esses temas, do ponto de vista do campo da Psicologia Social em suas várias abordagens e da Educação. Esses saberes que albergam inter-relações sociais podem trazer, uma releitura que não trata da adaptação dos excluídos ao meio em que se inserem, mas possibilitem além da reflexão teórica, contribuições para o entendimento das dificuldades de cegos e videntes no cotidiano da convivência, em sua forma de subjetivação e nos jogos relacionais, independe das limitações funcionais do campo perceptual.

Quando trabalhamos com os conceitos de inclusão/exclusão é necessário estarmos atentos sobre as múltiplas possibilidades de deslizamentos de sentido que esses termos podem derivar. Pensando a educação inclusiva, é preciso reconhecer que a inclusão porta uma ambivalência. Quando uma situação grupal, em ambiente escolar ou grupo de convivência, nos propõe a inclusão, porque alguém está excluído de um grupo determinado, isso significa incluir este que está fora, por ser diferente, como igual ou como diferente? Qual sua identidade? Que identidade será privilegiada? O que (não) se vê?

 

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Endereço para correspondência
E-mail: areiapa@terra.com.br

Recebido em setembro de 2006
Aceito em março de 2006

 

 

* Sueli Souza dos Santos é psicóloga pela PUCRS; Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); doutoranda em Educação (UFRGS)
1 Gisele é o nome fictício da entrevistada
2 Análise de Discurso, de agora em diante AD

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