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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.25 Canoas jun. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

De como as práticas do conselho tutelar vêm se tornando jurisdicionais

 

About how the tutelary council practices have become jurisdictional

 

 

Maria Lívia do NascimentoI,*; Estela ScheinvarII,**

I Universidade Federal Fluminense
II Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Neste trabalho problematizamos práticas presentes nos conselhos tutelares com o objetivo de discutir sua jurisdicionalização. O debate aqui empreendido aponta para um funcionamento do conselho tutelar distante do movimento social e marcado por práticas cotidianas que vêm sendo atravessadas por discursos e procedimento típicos do Poder Judiciário. A pergunta colocada é: como um órgão proposto para ser não jurisdicional vai assumindo tal postura? Ou seja, como os modelos de atuação característicos do Poder Judiciário vão sendo adotados num espaço que não detém tal poder, mas que, por ser revestido da autoridade da lei, assume tais formas para o seu exercício. O artigo aponta a articulação com o movimento social como forma de deslocar a prática de jurisdicialização e potencializar movimentos reivindicativos e participativos.

Palavras-chave: Conselho tutelar, Produção de subjetividade, Infância e juventude, Judisdicionalização.


ABSTRACT

In this article we aim at discussing the practices that are present in the tutelary councils, to point out its jurisdictionalization. The debate that we unroll about the tutelary council practices shows that its functioning is far away from the social movement and marked by everyday practices crossed by characteristic discourses and procedures of the Judiciary Power. The question we pose is: how does an organism that is proposed to be not jurisdictional arrive to this attitude? In other words, how the characteristic model of action of the Judiciary Power begins to be adopted in a space that has not such power, but assumes this model, since its practice is based on the law authority. The article points out the articulation with the social movement as a form of dislocating the jurisdictionalization practices and also as a form of potentiation the demanding and participating movements.

Keywords: Tutelary council, Production of subjetivity, Infancy and youth, Jurisdictionalization.


 

 

Introdução

O presente artigo parte de nossas experiências de trabalho e pesquisa junto a conselhos tutelares (CT) do estado do Rio de Janeiro. Nesses espaços temos realizado supervisão de estágio1 e desenvolvido pesquisas em arquivos, buscando analisar as demandas recebidas e os encaminhamentos dados aos casos. A convivência quase diária com estes equipamentos sociais nos tem permitido acompanhar seu cotidiano, a partir do qual nos propomos formular algumas análises sobre o que vimos chamando de jurisdicionalização de suas práticas.

O conselho tutelar é um órgão público proposto pela Lei 8069 de 1990, “Estatuto da Criança e do Adolescente” (ECA) (Brasil, 1990), composto por cinco conselheiros indicados pela sociedade civil organizada e eleitos pelo voto popular. É um órgão municipal autônomo, vinculado aos movimentos sociais que participam da luta pelos direitos da criança e do adolescente e, portanto, juridicamente não é subordinado ao Poder Executivo ou Judiciário. Esta autonomia política, de fato, redimensiona o papel do Estado no que se refere às medidas protetivas dirigidas a crianças e jovens, pois sua estrutura passa a estar vinculada ao movimento social. Porém, percebe-se que o funcionamento do CT tem estado distante do movimento social, marcado por formas de atuação cristalizada, cujas práticas são atravessadas por discursos e procedimento típicos do poder judiciário. Entendemos como práticas cristalizadas aquelas adotadas de forma naturalizada, sem pensar nem nos movimentos que as produziram, nem nos efeitos que produzem e, nessa medida, inibindo novos espaços de atuação.

São comuns casos em que a atuação do conselho visa definir: o valor de pagamento de pensão, qual dos pais deve ficar com a guarda dos filhos, que situações de violência sexual devem ser encaminhadas à justiça e quais serão dirimidas dentro do conselho, o julgamento sobre o comportamento sexual dos jovens e a forma como este deve ser. Acrescente-se que muitas vezes, além de definir essas condutas, os conselhos apontam aos pais a possibilidade de perderem a guarda dos filhos, caso não obedeçam aos encaminhamentos propostos, chegando a formular ‘contratos’ em que as partes assinam um compromisso de se comportarem ‘adequadamente’.

Quanto a este último aspecto, podemos trazer um caso em que a mãe de um adolescente chega ao conselho tutelar reclamando do comportamento de seu filho tanto na escola como em casa. Depois de conversar com ambos, o conselheiro redige um termo em que o jovem se compromete a se portar ‘bem’. Tal documento é firmado pelo jovem, sendo anexado ao seu prontuário. Na compreensão da família atendida, há um termo formal assinado pelo rapaz, o que implica num compromisso visto como um ato jurídico.

Cabe, então, perguntar, como um órgão proposto para ser não jurisdicional vai assumindo tal postura? O que chamamos de jurisdicionalização das práticas é a presença de modelos de atuação característicos do Poder Judiciário, que acabam sendo adotados, mesmo em espaços que não detêm tal poder, mas que, por serem revestidos de certa autoridade e terem como fundamento para a sua prática o termo da lei, assumem tais formas como as adequadas para o seu exercício. Do nosso ponto de vista, é esta a lógica que tem pautado algumas das práticas dos conselhos tutelares. No presente texto, visamos colocar em análise como se dá a produção dessa lógica. Para tanto, partiremos dos discursos/práticas dos conselheiros registrados em prontuários de atendimento2 e aqueles construídos ao longo de intervenções realizadas nos conselhos por estagiários de psicologia3.

Nosso percurso metodológico pauta-se nas referências da Análise Institucional, segundo a qual a instituição “não é uma coisa observável, mas uma dinâmica contraditória construindo-se na (e em) história ou tempo” (Lourau, 1993, p. 11). Assim, tendo o método sócio-histórico como perspectiva (Foucault, 1982), observa-se a forma como as práticas nos Conselhos Tutelares foram se constituindo e as colocamos em análise, produzindo um processo de desnaturalização. Dentre as ferramentas da Análise Institucional podemos destacar a de implicação, por referir-se “..ao conjunto de condições da pesquisa” (Foucault, 1982, p.16) e não a modelos pré-definidos que centram os estudos em padrões de normalidade. O presente texto, portanto, apresenta possibilidades analíticas produzidas ao longo de alguns anos de trabalho nos conselhos tutelares, visando abrir o debate sobre algumas das práticas constitutivas das políticas sociais.

 

A emergência do poder judiciário e o atravessamento das práticas judiciárias na área de assistência social

Estudando e colocando em análise as práticas do poder Judiciário, entendemos que no mundo ocidental, historicamente, este tem se caracterizado por ser plenipotente, pois não atua sobre uma área da vida das pessoas, mas acaba por extrair toda e qualquer possibilidade de autodeterminação &– em um mundo que prega como princípio maior a liberdade. O juiz julga e seu poder é tamanho, que com esse julgamento passa a definir o sentido e as possibilidades da vida da pessoa sob seu poder. Assim, quando um ato é considerado uma transgressão, não é o ato que fica qualificado, mas a pessoa, a sua vida. Da mesma forma, quando uma medida é aplicada, ela incide na forma de vida, na possibilidade física e afetiva, como ocorre, por exemplo, quando se define quem pode ficar com uma criança, julgando, inclusive, os afetos implicados nas relações. O juiz exerce tutela na medida em que suas ordens determinarão as possibilidades de relacionamento do réu ou de qualquer pessoa implicada no julgamento. Ou seja, estabelece-se uma situação de tutela ao definir sentimentos, possíveis espaços físicos em que se poderá circular, possibilidades de vida, potencialidades e virtualidades daqueles que ficam sob o seu poder.

Conceitos, como o de proteção, serão fundamentais para a prática tutelar, visto que a intervenção do judiciário é assumida na sociedade moderna como um dever do Estado em favor do ‘bem comum’ e “em benefício” das partes sob júdice. Independentemente dos efeitos das práticas judiciárias, estas foram produzidas historicamente como benéficas e sempre inquestionáveis, verdadeiras. Claro está que tudo tem uma história e a história da prática judiciária é fundamental para se compreender a força e a enorme abrangência com que este poder opera na constituição do Estado Nação. Para instrumentalizar a prática judiciária, o arcabouço legal compreende normas universais a serem aplicadas sem considerar as condições diversas em que vivem os sujeitos alvo das leis. Trata-se de um instrumento de disciplinarização, de homogeneização do que não só é diverso, mas sobretudo, politicamente contraditório, como no caso das classes sociais que, como largamente expõe Karl Marx (1998), para a existência de uma é condição a existência da outra. Dito de outra forma, a burguesia só pode ser burguesia com a existência do proletariado, que por sua vez existe como classe explorada e, logicamente, vivendo em condições absolutamente diferentes das de sua opressora. Contudo, apesar da clareza de tais premissas, as leis são universais. Não só universais, mas criadas pela classe dominante e propostas como comportamento genérico, universal, certo e necessário para se ter o direito à condição de liberdade.

A produção de uma subjetividade hegemônica que entende todos como iguais, sem demarcar as diferenças sociais que de fato impõem limites na vida das pessoas, ou seja, que as homogeneiza, na sociedade moderna opera por meio da noção de direitos. Reza o ideário liberal que ‘todos são iguais perante a lei’, que ‘todos temos os mesmos direitos’, sem discutir as condições de acesso a estes. Este pensamento vai se afirmando através da prática dos equipamentos sociais, das políticas e incorporando-se nos afetos, no sentido da vida das pessoas, na produção de subjetividades que transpõem a noção de classe, tornando-se hegemônicas e passando a ser vividas e defendidas pela sociedade como um todo, como se todos tivessem condições de assumir certos modelos e que, por opção individual, estes não fossem seguidos. Conforme exposto por Scheinvar (2006), ainda é muito comum qualificar famílias como desestruturadas por não se enquadrarem dentro do modelo burguês, tido como correto. Pesquisas têm mostrado (Ayres 2006; Nascimento, 2002; Scheinvar, 2004) que, embora não todas as chamadas ‘famílias desestruturadas’ busquem serviços jurídicos ou assistenciais &– dentre eles os conselhos tutelares &–, quando estas chegam ao conselho, é colocado em destaque o seu modo de funcionamento interno e não suas condições de vida que, de fato, acabam por produzir as violações de direitos. Mesmo nos casos em que as chamadas ‘famílias estruturadas’ chegam com a mesma demanda que as denominadas ‘desestruturadas’, os dados apontam para a insistência nos conflitos intrafamiliares, como se estes fossem o grande problema social e não a falta de políticas públicas e a precariedade das condições de vida da maior parte da população.

No Brasil, o atendimento a crianças e jovens vem sendo tradicionalmente realizado por entidades de assistência ou pelo judiciário, sobretudo quando se refere a situações de abandono, adoção e falta de condições de convivência familiar. A justiça sentencia e os equipamentos sociais executam as políticas de assistência. Porém, o que se percebe é que o julgamento se dá em cima das pessoas, de sua forma de vida e não das condições sociais em que sobrevivem, embora de forma avassaladora a justiça, nesta área, lide com famílias pobres. O ideal igualitário desconsidera esse dado, como se fosse acessório.

O conselho tutelar é um equipamento social proposto não para desenvolver programas de assistência, mas para receber denúncias de violação de direitos e encaminhá-las aos serviços que possam ressarci-los, obedecendo à lei. Nesse sentido, ao se propor o conselho tutelar pensou-se não em uma ação julgadora, mas reivindicativa, a partir das violações de direitos, o que implicaria &– pensava-se à época &– o olhar mais atento às condições de vida da população cujos direitos não são garantidos. Isto supõe tanto a prestação de serviços imediatos, que muitas vezes não são providos, quanto o encaminhamento de demandas a serem supridas através da implementação de políticas públicas. Ou seja, o ECA propõe um novo ordenamento político, uma outra prática que não é fundamentada nem no atendimento sistemático nem na sentença jurídica, mas na leitura política dos casos de violação de direitos, a fim de que sejam oferecidas ou criadas condições para o cumprimento da lei. O ECA seria um instrumento que daria visibilidade às diferenças sociais e às condições particulares necessárias à aplicação da lei. No entanto, o instrumento no qual se pauta o conselho tutelar para intervir é a lei e, historicamente, a aplicação da lei, a sua implementação tem sido atribuição da justiça. No Conselho Tutelar os modelos que prevalecem quando da execução da lei têm sido os adotados pelo judiciário. Em geral, não se percebe que práticas diferentes das jurídicas, como as de reivindicação política, também se pautam em leis, sem emitir sentenças, sem encaminhar medidas particulares, mas intervindo na ordem pública.

Pensar em outras práticas supõe a construção de outros paradigmas. Se o ECA se baseia no movimento social para propor a construção de conselhos tutelares, ele supõe a existência de uma rede de atendimento ativa acompanhando os seus trabalhos. Entretanto, com o enfraquecimento do movimento social em tempos neoliberais, sem sustentação em um movimento ativo reivindicativo, as equipes dos conselhos tutelares acabam por se prender aos termos da lei, adotando as práticas que conhecem para fazer valer o que esta diz.

Sem a articulação de uma rede, o conselho tutelar tem como uma de suas opções fazer alianças com os segmentos organizados que exercem o poder na área social, que hoje são, no Brasil, os órgãos de justiça ou policiais (Juizados, Ministério Público, delegacias). A aliança com esses órgãos confere um poder quase jurisdicional ao conselheiro quando ele próprio aciona o poder judiciário como maior aliado, haja vista a omissão de equipamentos sociais e, portanto, de outras abordagens. Tais omissões não são acidentais nem conjunturais, mas estruturantes de outra lógica de funcionamento do Estado, aquela que vem sendo chamada de Estado Mínimo por adotar as diretrizes neoliberais, segundo as quais quanto menos intervenção do Estado na área social mais espaço se abre para que as políticas sejam reguladas pelo mercado.

No ideário neoliberal, o Estado reduz seus investimentos sociais, instalando o chamado Estado Mínimo, em nome de uma maior liberdade de mercado. É importante assinalar que esse mínimo diz respeito ao social, posto que o Estado é forte, ‘máximo’ na esfera jurídico-policial, como indicam a chamada política de ‘tolerância zero’, o inchaço das prisões, o crescimento dos tribunais, etc. O mercado tem o maior espaço possível e a área social ocupa um espaço ‘mínimo’ na esfera do Estado, privilegiando as esferas do Poder Judiciário. No âmbito das relações sociais, tal lógica marcadamente jurisdicional, desconsidera a possibilidade do entendimento pessoal, da prática da conciliação entre os sujeitos como expressão de vida e de sua capacidade de luta reivindicativa, valorizando apenas o sujeito jurídico.

Certamente, tal lógica atravessa o conselho tutelar, criado para defender os direitos de crianças e jovens e, no entanto, vem se tornando uma instância disciplinar, o que Donzelot (1980) chama de uma polícia das famílias, trazendo as práticas jurídicas para o seu cotidiano. Um exemplo que ilustra esta relação é o caso de uma mãe que ao saber que teria sido denunciada por negligência, antes mesmo de qualquer comunicação ou convocação por parte do conselho tutelar se adianta, exigindo que a filha comparecesse ao conselho para ‘limpar a sua barra com o conselheiro’. Esta fala denuncia o peso que tem esse órgão junto à população pobre, na medida em que a mãe teme pela vinculação de seu nome a este equipamento social, buscando de forma reativa e rápida ‘limpá-lo’, não só para não sofrer sanções, mas para que, como ocorre com o registro de casos na delegacia de polícia ou nas instâncias jurídicas, o seu nome não fique ‘sujo’.

Este episódio faz lembrar o temor que a população pobre tem dos chamados órgãos de segurança e justiça, que tradicionalmente têm cuidado da segurança e da justiça dos ricos, ameaçando e punindo os pobres.

 

Práticas e exercício de poder no conselho tutelar

A lei é um instrumento poderoso. Quem a aplica exerce poder. A discussão que trazemos aqui tenta pensar essa forma de exercício de poder no caso específico do conselho tutelar. Para tanto, cabe analisar como este se organiza e opera; como exerce poder.

O que temos verificado em nossa experiência junto a alguns conselhos tutelares é que, embora sejam eleitos cinco conselheiros tutelares, é enorme a dificuldade de se fazer um trabalho coletivo. A maioria dos conselhos tutelares no Brasil tem adotado uma estrutura hierárquica sustentada na escolha que eles próprios fazem de um conselheiro-presidente, afastando-se, assim, da proposta de gestão colegiada. Isto faz parte de uma lógica de individualização das práticas, segundo a qual se o conselheiro tem um mandato que objetiva o ressarcimento dos direitos violados, cabe a ele, individualmente, resolver as denúncias de violação de direitos. Esta compreensão é diferente de se pensar que cabe ao conselheiro encaminhar o seu ressarcimento e, quando não houver recursos para tal, encaminhar a luta para que estes recursos sejam criados, tendo como aliada a sociedade civil que o elegeu. Entretanto, o viés reivindicativo do conselho tutelar defendido por aqueles que propuseram o ECA, com base na concepção gramsciana de sociedade civil4 , pouco aparece em sua prática cotidiana.

Um dos efeitos da prática individualizada é o surgimento de um processo de culpabilização das equipes que atuam nos conselhos tutelares. A impossibilidade de atender às famílias por falta de recursos públicos passa a ser vista por elas próprias, como também pela população em geral e até mesmo pelos conselheiros que fazem os atendimentos e as equipes que com eles trabalham como falta de engajamento e/ou incapacidade pessoal do conselheiro, sendo fato raro ser referida a ausência de políticas públicas eficazes. Assim, ao mesmo tempo em que se desconsidera a falência dos projetos e das políticas públicas em vigor, acentua-se o paradigma identitário, impondo ao profissional uma solução individual e à família uma responsabilidade maior na resolução de (por resolver) “seus” problemas. É a afirmação do que é chamado por Barros (1994) “modo-de-ser-indivíduo”, ao discutir a forma hegemônica de ser, estar e existir da burguesia, baseada no ideário liberal que apregoa o desempenho individual. A família tem se afirmado como espaço privado, individual, em nome da defesa de seus direitos e, nessa medida, tem se convertido em um importante dispositivo para a retração da presença do Estado nas problemáticas sociais. Como diz Donzelot (1980, p.82), “quanto mais esses direitos são proclamados, mais se fecha em torno da família pobre a opressão de uma potência tutelar. O patriarcalismo familiar só é destruído em proveito de um patriarcado do Estado”. Dessa forma, quando não se tem como foco de ação a luta por políticas públicas, vão sendo fortalecidas subjetividades impotentes, faltosas e culpabilizadas, construídas por processos de individuação.

Tal produção de subjetividade segue os moldes das práticas do judiciário, onde as decisões, determinações e sentenças são centralizadas na figura do juiz que, de forma individualizada, mesmo contando com uma equipe técnica, pode desconsiderar as análises, os estudos, as ponderações e opiniões da mesma e impor suas decisões. Também no conselho tutelar, é o conselheiro ou o técnico quem geralmente toma as decisões, já que, na maioria das vezes, elas não passam por discussões mais coletivas. Nas situações em que os casos são encaminhados para a equipe técnica, deposita-se nela a competência para a tomada de decisões. Ou seja, o conselho tutelar pode se constituir em mais um território da ação personalizada. De maneira geral, os casos não são objeto de análise em grupo, tornando cada atendimento uma sentença individual. De maneira geral, os casos não são objeto de análise em grupo, tornando-se atendimentos estritamente individuais. Os encaminhamentos tendem a ser definidos apenas pela pessoa que atende o caso, que o faz sem contar com os recursos necessários e, portanto, a partir de circunstâncias inadequadas para assegurar a garantia de direitos e a condição cidadã. Essa tendência às práticas individualizadas é tomada como a mais adequada, muitas vezes tidas como inquestionáveis, não se tornando um veículo para denunciar as omissões das políticas públicas.

Assim, podemos citar casos em que não havendo estruturas adequadas para a garantia de direitos não resta ao conselheiro mais do que lançar mão dos recursos à sua volta, sabendo-os distantes do ressarcimento dos direitos violados. Podemos trazer como exemplo o caso da oferta de cursos livres, como os de manicura, informática ou da prática de algum esporte, para jovens não motivados para fazê-los. Temos percebido que embora a equipe do conselho tutelar saiba que o que tem a oferecer não é o ideal, por falta de opções só pode propor atividades que não preenchem os interesses da pessoa atendida. Tal prática, ao impossibilitar a manifestação dos interesses das crianças e dos jovens, reafirma a compreensão de que, sendo pobres, não lhes cabe escolher, mas aceitar e agradecer. Por outro lado, ainda, busca ocultar a tensão provocada entre os desejos dos atendidos e as condições de trabalho do conselheiro, naturalizando tais encaminhamentos, sem problematizar a impossibilidade de reverter as situações de violações de direitos apresentadas.

Com estas práticas, o atendimento passa a depender da forma de atuar de cada conselheiro, de suas características pessoais, dos recursos que consegue agilizar por esforço próprio e pressupõe o entendimento de que as questões chegam ao conselho tutelar destituídas de suas conexões sociais e políticas, podendo ser tratadas de forma pontual. Assim sendo, o conselheiro se torna um especialista em soluções imediatas e localizadas de “problemas particulares”, levando ao aconselhamento, à filantropia, à vigilância das famílias, práticas muitas vezes apoiadas em crenças moralistas. Não dispondo de políticas públicas que consignariam processos mais coletivos de funcionamento, essas práticas se restringem ao espaço da competência técnica ou do olhar caritativo.

Embora a política de assistência no Brasil tenha uma história de coação aos pobres através da criminalização das famílias (Nascimento, 2002), o esvaziamento da máquina pública na área de assistência social obedece, conforme já referimos, às propostas neoliberais utilizadas pelo Estado na administração da estrutura política nacional. Atendendo à lógica de mercado, a área social passa a ser entendida como um gasto e não um investimento. Transfere-se para o âmbito privado todo investimento na área social. Esta prática não é uma novidade no mundo capitalista, faz parte de sua constituição. A novidade está em transferir para redes privadas moleculares os efeitos que estruturalmente vão sendo produzidos pela política econômica globalizada. Como evidenciado por Passetti (1999), tal situação favorece a ampliação do número de organizações não governamentais

É o tempo de uma nova administração restrita a um patamar mínimo de atendimento estatal, norteada por uma nova política de tributações facilitadora do investimento de impostos de empresas em organizações não-governamentais (...). Volta-se a acreditar no atendimento privado e abre-se um novo tempo para a acomodação dos técnicos, tanto nas organizações governamentais como nas não-governamentais, selecionando áreas e grupos a terem prioridade de atendimento. (p. 366/367)

Atualmente as ONGs têm funcionado como potentes aliadas dos conselhos tutelares, ocupando lugar de destaque aquelas ligadas aos movimentos filantrópicos das diferentes igrejas. Em sua dissertação de mestrado Lemos (2003), ao discutir a questão de direitos que aparecem como favores ou doações, nos apresenta um exemplo em que a solução de um caso feita com o auxílio da filantropia minimiza a ausência de políticas públicas adequadas.

... uma mãe, ao não conseguir retirar medicamentos receitados por um médico à sua filha, na farmácia da Secretaria Municipal da Ação Social, procura o Conselho Tutelar. A Conselheira a encaminha à Sociedade Beneficente de Assis para conseguir os remédios.... O Conselho não questiona o fato dessa mãe não ter sido atendida pelo Poder Público, mas a encaminha a uma instituição filantrópica. (p.137/138)

Assim como no exemplo acima, observamos a prática sistemática da doação de dinheiro próprio por parte daqueles que trabalham nos conselhos tutelares, seja comprando comida, pagando passagens e/ou trâmites burocráticos necessários ao encaminhamento dos casos e providenciando materiais fundamentais à resolução de problemas imediatos apresentados pelas famílias atendidas. Enfim, observamos um movimento solidário intenso de enfrentamento das necessidades dos que chegam ao conselho. Trata-se de aposta filantrópica, sem ressonância em ações mais orgânicas, coletivas e reivindicativas frente ao poder público.

Essa associação com a filantropia, muitas vezes, torna o atendimento das situações de violação de direitos um espaço de barganha, esvaziando um possível caráter reivindicativo que ele poderia ter. Ao mesmo tempo em que se depende da vontade e das particularidades da pessoa que atende o caso, o encaminhamento também passará pelos interesses privados de um equipamento social que estabelece de forma autônoma seus critérios de funcionamento, não se submetendo a análises políticas das questões sociais. Muitas vezes o recurso filantrópico serve para atender uma demanda urgente que não encontraria respostas nos serviços públicos. Na urgência, não se produz um movimento reivindicativo, de denúncia, de pressão, de transformação. Considera-se que o atendimento foi concluído por entender que este se esgota no momento particular em que a família consegue o objeto específico pelo qual chegou ao conselho, como no caso de remédios, por exemplo. Não se percebe que a demanda maior que chega ao conselho tutelar não é a ausência de remédio para uma família, mas a inexistência de espaços públicos de saúde, de garantia de direitos. Esta abordagem fortalece a figura do conselheiro, que se torna uma pessoa ‘superpotente’, da qual se passa a depender individualmente para se ter acesso ao que estabelece a legislação brasileira como direito público.

Muitas vezes o relacionamento dos conselhos com as entidades filantrópicas ou ONGs é de dependência, evitando conflitos, já que se contrapor a elas significa a inviabilidade de seu trabalho. Ou seja, a precariedade da rede pública faz com que, por vezes, as parcerias com essas entidades ou grupos se apresentem como um dos poucos caminhos possíveis, impedindo posturas críticas aos seus modos de funcionamento. A outra aliança, já anteriormente referida, se faz com os aparelhos de justiça ou policiais, também a ser problematizada tendo em vista suas tradicionais práticas de punição dos pobres.

Ao nos determos sobre os modos de funcionamento dos conselhos tutelares destaca-se, dentre outras, uma preocupação: a quase ausência de ações reivindicativas entre suas práticas. Uma das atribuições do conselho tutelar deveria ser a de reivindicação de políticas públicas, podendo funcionar como um canal de pressão da sociedade civil, na medida em que é ele um receptor de denúncias de violações de direitos, que são registradas e encaminhadas para o seu devido ressarcimento. A diferença entre um departamento governamental da esfera do executivo e o conselho tutelar está em sua condição reivindicativa; está em sua estrutura, constituída por cinco membros eleitos pela sociedade civil para reivindicar os serviços, as garantias, as condições de vida que os órgãos públicos, o Poder Executivo, a despeito de suas atribuições, não está oferecendo.

Entretanto, no momento, não é isso que se vê. O que se tem constatado são conselheiros sobreimplicados em suas tarefas cotidianas de atendimento à população, trabalhando em regime de urgência para solucionar os casos do dia a dia, referindo que não lhes sobra tempo para práticas reivindicatórias5. Dessa forma, poucas vezes estabelecem parcerias, por exemplo, com o conselho de direitos de seu município, encaminhando demandas por políticas públicas ou por formas específicas de como executá-las, de maneira a transformar o cenário de violação de direitos presente no Brasil. Ou, ainda, parcerias com os movimentos da sociedade civil, para que lutem pela garantia de algumas das muitas políticas fundamentais, omissas em suas práticas.

Com o estabelecimento do ECA e a passagem de uma perspectiva de atendimento diferenciada daquela apregoada pelo Código de Menores (1979), propõe-se uma outra leitura da lei. A aliança com os movimentos sociais prevê uma maior mobilização reivindicativa, afastando a idéia de práticas normativas legalmente constituídas, tendo como horizonte maior não a ação judiciária, mas a ação política coletiva sustentada na participação daqueles cujos direitos são violados todos os dias.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: livianascimento@cruiser.com.br

Recebido em agosto de 2006
Aceito em março de 2007

 

 

* Maria Lívia do Nascimento é psicóloga; Doutora em Psicologia Social (PUCSP); professora da Universidade Federal Fluminense
** Estela Scheinvar é socióloga; Doutora em Educação (UFF/RJ); professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Socióloga do SPA, Universidade Federal Fluminense
1 Estágio para alunos de graduação do Curso de Psicologia da Universidade Federal Fluminense
2 Duas pesquisas temos desenvolvido sobre a relação entre o conselho tutelar e a escola. De um lado, foram levantadas informações contidas em prontuários, sempre que a escola tivesse sido referida. De outro, foram entrevistados agentes do movimento dos direitos da criança e do adolescente nos municípios estudados e freqüentadas reuniões de conselhos e fóruns participativos. As pesquisas foram realizadas no Primeiro Conselho Tutelar de Niterói e no Segundo Conselho Tutelar de São Gonçalo, ambos no estado do Rio de Janeiro
3 Há cerca de 6 anos temos realizado práticas de intervenção em conselhos tutelares do estado Rio de Janeiro, através de um projeto de estágio de psicologia. Tal intervenção pretende discutir os discursos/práticas existentes nos conselhos, as subjetividades ali construídas e as instituições que lhes atravessam. A experiência busca implementar práticas que tenham o grupo como dispositivo de trabalho. Dessa forma, temos levantado questões que debatem as atribuições, os atendimentos e os encaminhamentos do Conselho Tutelar
4 Para uma análise mais detida sobre a concepção de sociedade civil presente na formulação do Estatuto da Criança e do Adolescente, ver Scheinvar, 2001
5 O conceito de sobre implicação, desenvolvido por Lourau (2004), refere-se ao sobretrabalho, ao ativismo da prática. O profissional sobreimplicado responde a uma demanda instituída, sua forma de perceber como deve atuar no cotidiano se dá numa situação que produz urgência, ao mesmo tempo em que é atravessado pela ilusão participacionista, pela esperança depositada em seus ombros

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