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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.25 Canoas jun. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Quem está apto? A prática da adoção e marcadores identitários

 

Who is apt? Adoption practice and identity markers

 

 

Neuza Maria de Fátima Guareschi*; Janaina Claudia Strenzel**; Thais Bennemann***

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva discutir a prática da adoção a partir de dados estatísticos constantes no site da Justiça da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul, referentes aos indicadores de idade, cor da cútis, particularidades e síndromes das crianças e adolescentes aptos à adoção. Além das estatísticas dessa população, o site informa a preferência das pessoas habilitadas a adotar em relação a estas características. A partir da análise estatística dos dados dos possíveis adotados e da preferência dos adotantes, problematizamos a produção da menor ou maior probabilidade à adoção das crianças e adolescentes aptos, utilizando, para isso, a compreensão teórica de Marcadores Identitários do campo dos Estudos Culturais. A discussão desses dados evidencia que, na prática da adoção, a aptidão refere-se a esta população estar mais ou menos próxima dos padrões estabelecidos pela sociedade.

Palavras-chave: Prática da adoção, Apto à adoção, Marcadores identitários.


ABSTRACT

This article aims at discussing the adoption practice from statistical data presented in the Web site of Justiça da Infância e Juventude do Estado do Rio Grande do Sul, concerning age, skin color, particularities and syndromes of children and adolescents who are considered apt to be adopted. Besides statistical figures of this population, the Web site also informs about preferences of people entitled to adopt in relation to those characteristics. From the statistical analysis of data on both prospect adoption children and adopters’ preferences, we have problematized the production of either lower or higher probability of adoption of apt children and adolescents. We have used here the theoretical comprehension of identity markers of the Cultural Studies. The discussion of these data has evidenced that, in the adoption practice, aptitude refers to the degree of proximity of this population to standards set by society.

Keywords: Adoption practice, Adoption aptitude, Identity markers.


 

 

Introdução

A Justiça brasileira ainda não possui um cadastro geral das adoções realizadas no país, nem das crianças e adolescentes atualmente aptos para serem adotados ou das pessoas habilitadas para adotar; apenas alguns Estados possuem esse tipo de cadastro, dentre eles, o Rio Grande do Sul. A Justiça da Infância e da Juventude do RS disponibiliza em um site1 dados estatísticos de crianças e adolescentes aptos à adoção e de pessoas consideradas habilitadas para adotar no Estado2 . As informações que identificam as duas populações e que serviram de fonte para os dados estatísticos estão disponíveis somente para os trabalhadores do Tribunal de Justiça, mediante senha que estes possuem.

As estatísticas disponíveis no site sobre os processos de adoção em andamento na Justiça da Criança e do Adolescente evidenciam dados sobre os pretendentes à adoção somente quanto ao seu estado civil e escolaridade. Entretanto, o site publica a preferência dessas pessoas quanto à idade, ao sexo, à cor da cútis, do cabelo e dos olhos, ao tipo de cabelo e aos indicadores de síndromes e particularidades físicas das crianças que desejam adotar. Correspondendo a esse desejo de preferências, o site possibilita o acesso sobre todas as informações dessas características em relação às crianças e adolescentes aptos para adoção.

De acordo com informações obtidas junto ao Tribunal de Justiça do RS, a criação do site da Justiça da Infância e Juventude foi uma iniciativa do Tribunal de Justiça de Porto Alegre no ano de 2001. Portanto, não possui relação direta com o Estatuto da Criança e do Adolescente ou com Políticas desse Estatuto. A partir do primeiro código de menores, em 1927, a adoção passou a ser processual, isto é, instalou-se a exigência de um cadastro de adotantes e adotados, porém não era especificado como, podendo ser na forma de fichas ou de processos em andamento ou arquivados. Porém, essa exigência não foi cumprida, e até meados da década de 60 a adoção acontecia através de simples Escritura Pública (Ayres, Carvalho & Silva, 2002). Por iniciativa da Justiça de Porto Alegre, em 2001, as informações sobre as adoções no Estado foram informatizadas a partir dos processos que são instalados para esse fim.

Com base nos dados estatísticos disponibilizados no site acima citado, neste artigo, discutimos os marcadores identitários de idade, cor da cútis, particularidades físicas e síndromes das crianças e adolescentes aptos para adoção, com a intenção de problematizarmos como os adotados são inscritos em determinados discursos e como se produzem em uma população com menor ou maior probabilidade de ser adotada. Para isso, em um primeiro momento, situamos as Políticas Públicas da Infância e da Adolescência para evidenciar como estas se alinham ou não às práticas sobre adoção no Brasil, para, em um segundo momento, utilizarmos os dados estatísticos mostrados no site sobre idade, cor da cútis, particularidades físicas e síndromes das crianças e adolescentes aptas à adoção, a fim de discutirmos como esses marcadores identitários têm mobilizado as práticas da adoção na produção e no governo dessa população.

 

Políticas da infância e da adolescência e as práticas da adoção no Brasil

No Brasil, no final do século XIX e início do século XX, a preocupação em criar ações voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes vinculou-se especialmente à visibilidade de um grande contingente da população infantil e juvenil vivendo nas ruas das grandes cidades. Assim, os então chamados “menores” tornaram-se um problema para o poder público, pois passaram a ser vistos como uma população que poderia se tornar perigosa para a sociedade. No momento em que os “menores”, por estarem nas ruas, se constituíram em um problema para a sociedade, a preocupação com o sujeito infantil passou a instituir-se cada vez mais sob um ponto de vista econômico e político, tornando-se alvo de inquietações não só de autoridades civis, mas também de atenção médica e de ações morais e pedagógicas (Bulcão, 2002; Rizzini & Pilotti, 1995). Juntamente com a Medicina, o campo do Direito voltou-se para a infância, já que o grande número de crianças que perambulavam pelas ruas passou a ser entendido como causa do aumento da criminalidade. Em um estudo em que acompanha a produção da infância no Brasil, Bulcão (2002) realiza uma reflexão sobre os conceitos “menor” e “criança”, em que considera a gênese da diferenciação existente hoje entre esses dois termos. O primeiro designa crianças de famílias pobres que perambulam livres pela cidade, que são abandonadas e às vezes resvalam para a delinqüência, sendo vinculadas com instituições como cadeia e orfanato. Já o segundo termo, “criança”, está ligado a instituições como a família e a escola, não precisando de atenção especial.

Cunha e Cunha (2002) definem as Políticas Públicas como sendo construções participativas de uma coletividade que visam à garantia dos direitos sociais dos cidadãos que compõem uma sociedade humana. Assim, podemos pensar a construção de determinadas políticas da infância e da adolescência não somente como forma de garantir deveres e direitos dessas populações enquanto cidadãos, mas também de se estabelecerem os modos de a sociedade se relacionar com elas. Dessa forma, no momento em que a sociedade se deparou com um número elevado de crianças e adolescentes perambulando pelas ruas e que esse fato foi apontado por diferentes campos de saber e de poder como causa do aumento da criminalidade, essa população passou a ser o objeto central de Políticas Sociais e Educacionais. Tais Políticas visavam não só aos direitos dessa população, como também aos direitos de outras populações da sociedade que se sentiam ameaçadas em sua segurança física e incomodadas pela moral burguesa, pela ordem e racionalidade da modernidade.

A contribuição do conhecimento de diferentes campos de saber foi buscada pelos formuladores de Políticas sociais e educacionais no sentido de se ter maior eficiência na elaboração das ações e programas dessas Políticas. Em relação à forma como o saber da Psicologia contribuiu para as políticas da infância e da adolescência, podemos pensar através do que Ayres (2001) salienta como práticas de desqualificação realizadas pelos técnicos da Justiça, neste caso, psicólogos e assistentes sociais. De acordo com esta autora, a prática psi hegemônica do período de 1985 a 1994 (transição entre o Código de Menores e o ECA) sustentava-se em determinadas ferramentas teóricas que entendem a perda do vínculo familiar como causa do problema de crianças e adolescentes de famílias pobres. Ainda segundo Ayres (2001), os Psicólogos e Assistentes Sociais legitimavam os motivos da família quanto à desistência do pátrio poder3 , supondo a pobreza como natural e imutável e associada à incapacidade para assistir os filhos. Assim, as práticas psicológicas, em consonância com os princípios teóricos dessa área, passaram a pensar os problemas da infância e da adolescência de forma individualizada, focalizando na interioridade do indivíduo e da família a origem destes e desconsiderando as produções sociais, culturais e políticas imbricadas nesses contextos.

Conforme Ayres, Carvalho e Silva (2002), somente em 1979 ocorreram reformulações da legislação para a infância e adolescência. Até então, o Serviço de Assistência ao Menor era o principal órgão estatal que lidava com as questões das crianças abandonadas, por não existir a necessidade irrevogável de outros dispositivos do Estado que o complementassem. Contudo, o aumento da pobreza e da exclusão social que se configurou a partir da ditadura militar impulsionou a necessidade de outros dispositivos a fim de aumentar a participação do Estado nas questões das crianças abandonadas. Nesse sentido, equipes de especialistas debruçaram-se sobre a vida e o destino dessa população pauperizada. Os primeiros procedimentos focalizaram a necessidade de fortalecimento da instituição família, pois, sendo esta considerada como a principal responsável pela desagregação e abandono dos filhos, o objetivo passa ser o de mantê-la integrada.

Somente a partir do ano de 1965 a adoção começou a ser uma prática incentivada pelo Estado, tornando-se extremamente presente nas políticas de assistência à infância pobre, tentando regular, em grande medida, suas formas de estar no mundo (Ayres, Carvalho & Silva, 2002). A prática da adoção então passa a ser tomada como um atendimento preventivo à população de crianças excluídas socialmente. Com base no discurso de que a família é o melhor lugar para o desenvolvimento físico e psicológico de uma criança, diversos especialistas esquadrinhavam a família candidata à adoção, buscando a mais próxima daquela tida como modelo ideal. Ela deveria possuir algumas características invariáveis, como patriarcalismo, heterossexualidade e monogamia, modelo que, no decorrer da história, já vinha se configurando como hegemônico. A escolha da família dava-se através do levantamento de dados sobre sua vida, como educação, instrução, hábitos, atitudes, localização e higiene de sua moradia.

Entretanto, em um primeiro momento, a adoção era permitida para casais que não possuíam filhos, pois este também poderia ser um modo de manter a família integrada. Somente mais tarde, com o aumento da população disponível para ser adotada, é que a adoção passou a ser realizada por casais que tinham filhos, mas que se mostravam dispostos a fazer caridade. Com relação à criança, era traçado seu perfil psicológico e social para informar a futura família quanto aos procedimentos necessários para sua adaptação. Contudo, antropólogos de diferentes países têm dirigido análises provocadoras ao espírito mercadológico da adoção plena, em que a criança é destituída de qualquer traço de sua história anterior para ser entregue “limpa” a uma nova família, garantindo formas de colocação na nova família que previnam contra uma ruptura de relações sociais e assegurando a continuidade na identidade pessoal da criança (Fonseca, 2004).

Com o desenvolvimento de diferentes procedimentos sobre a prática da adoção, esta se torna, com o passar do tempo, um tema presente em todos os espaços que defendem os direitos da criança e do adolescente no Brasil. Concebida pelo Estatuto da Criança e do Adolescente como mais um meio de proteger a criança é determinado que a adoção seja vista no conjunto dos vários recursos de uma política integrada de proteção à infância e juventude. Atualmente, parece haver uma naturalização da prática da adoção e, conseqüentemente, da perda e/ou reformulação do vínculo familiar. Assim, cabe questionarmos quem são os atores desses processos e em que cenário se sustentam.

Como o Brasil possui tantas crianças à espera de serem adotadas se há muitas famílias querendo adotar? Quem são as crianças consideradas como inadotáveis, que “sobram” nos abrigos? A prática da adoção é desenvolvida para ser uma solução ou pode constituir-se em um problema para a sociedade? Não podemos pensar sobre essas questões como sendo simples relações de causa e efeito, mas devemos problematizar, por exemplo, a busca de crianças perfeitas como um princípio para atender a um modelo ideal da sociedade: branco, bebê, saudável e menina. Se essas práticas procuram responder a esse modelo, a adoção pode, sim, constituir-se em uma problemática social, principalmente na medida em que se considera a desproporcionalidade entre o número de crianças e adolescentes que aguardam adoção e as pessoas que aguardam para adotar. Atualmente, o Estado do Rio Grande do Sul possui cinco vezes mais casais habilitados do que crianças e adolescentes aptos para serem adotados.

 

A visibilização das características da população e oferta: quem são os adotáveis?

Conforme já mencionado, ainda não há um registro oficial das adoções realizadas em nosso país, nem sobre as crianças e adolescentes atualmente aptos para serem adotados ou das pessoas habilitadas para adoção. No entanto, em reportagem de capa, a revista Época (Mendonça & Fernandes, 2004) traz dados do CECIF (Centro de Capacitação e Incentivo à Formação de Profissionais &– SP) que revelam que, em nosso país, existem em média 36 pretendentes à adoção para cada criança de zero a dois anos, enquanto que o número passa para 66 crianças de dez anos de idade para cada pretendente a uma criança nessa faixa etária. No site da Justiça da Infância e Juventude do Rio Grande do Sul, consta que atualmente, do total de 529 crianças e adolescentes aptos para adoção, algumas faixas etárias são inversamente proporcionais à preferência de idade no total de 3.626 pessoas aptas para adotar.

O site da Justiça da Infância e Juventude traz uma categorização, uma classificação: há aqueles que estão classificados como habilitados para adotar uma criança ou adolescente; há as crianças e adolescentes classificados como aqueles facilmente adotáveis e também as crianças e adolescentes classificados como dificilmente adotáveis. Essa questão pode nos levar a pensar a adoção mais como um dispositivo do Estado a serviço da desqualificação dos modelos de família e de crianças não-hegemônicos do que como uma possibilidade de assistência/proteção à população infanto-juvenil. Trazer à tona essas questões pode contribuir para desnaturalizá-las, uma vez que são construídas histórica, social e discursivamente.

Abaixo, demonstramos os principais dados estatísticos que são apresentados no site sobre algumas das características de crianças e adolescentes aptos para a adoção e a preferência por parte dos adotantes já habilitados quanto a essas características.

 

 

 

 

 

 

 

 

A construção dessas categorias sobre crianças e adolescentes aptos à adoção pode remeter a uma série de outras classificações que, quando naturalizadas, essencializam identidades ou diferenças, tornando invisíveis suas condições de emergência e as relações de poder que se dão no campo da cultura, implicadas em sua constituição. Por outro lado, ao tornarmos visíveis essas categorias, naturalizamos a destituição de sujeitos classificados, diminuímos as possibilidades de ação para a prática da adoção, ao mesmo tempo em que também facilicitamos essa prática para outros, legitimando um modelo de adoção. Universalizamos marcadores identitários e a eles reduzimos os sujeitos, tendendo a engessar determinadas características sobre a facilidade ou a dificuldade da adoção. Portanto, não se trata de pensar que essa demarcação de marcadores identitários seja boa ou ruim, mas de que se dá por relações culturais e relações de poder, ou seja, pelas políticas e práticas da adoção que constituem aqueles que são os mais ou menos prováveis à adoção.

 

Idade, cor da cútis, particularidades e síndromes: marcadores identitários e os discursos que produzem os adotáveis

A partir das estatísticas sobre as preferências por habilitados à adoção e sobre as características da população apta para adoções, discutimos os marcadores identitários &– idade, cor da cútis, particularidades e síndromes &– com a intenção de problematizarmos como são produzidos modos de ser adotante e adotado pelo site em questão.

Idade

A idade é entendida aqui como um marcador identitário que dá visibilidade a um corpo vivido dentro de uma representação biológica. Nessa perspectiva, uma vez que a idade dos adotados é marcada como importante por parte de quem quer adotar (Quadro 1), definindo maiores ou menores probabilidades de adoção, pode-se pensar que essa visibilidade produz determinados sentidos sobre os adotados, reforçando determinadas práticas da adoção da Infância e da Adolescência.

Veiga-Neto (2000) chama a atenção para a forma como são inventadas as diferentes idades do corpo e, ao mesmo tempo, atribuídas tais idades a diferentes corpos. Assim, podemos pensar na preferência das pessoas habilitadas à adoção por crianças com idade inferior a um ano como forma de apagar qualquer marca de um corpo vivido, de evitar correr riscos ou de garantir que este corpo não traga marcas biológicas, sociais, culturais em sua história que não possam ser administradas ou equacionadas dentro de padrões de comportamentos hegemônicos. Entretanto, as marcas culturais, sociais ou biológicas do corpo vivido das pessoas habilitadas à adoção não são colocadas em questão ou administradas por essa prática no sentido do que elas poderiam significar para quem vai ser adotado.

Santos (1997) fala que, se o corpo for analisado como uma escrita, este se faz texto por meio de processos de dobra, de encarnação, que nele inscrevem histórias que “invocam” a memória de tais inscrições. Fala do corpo biológico e também de um corpo da cultura, pois sobre este “se inscrevem modos de ser e sentir que são incorporados e que se expressam (se traduzem) naquilo que somos” (p.86). Assim, há uma intencionalidade ou até mesmo uma necessidade de apagar as “inscrições”, a história das crianças e adolescentes que estão para ser adotados.

Cor da cútis

Sabemos que, ao longo da formação histórica brasileira, marcada pela colonização, escravidão e autoritarismo, o imaginário social construído sobre os negros não foi vivido sem discriminações, lutas e resistências. Gomes (2000), ao falar dessa questão, lembra que esse imaginário possibilitou a incorporação de teorias raciais repletas de um suposto cientificismo que durante muito tempo atestaram a inferioridade do negro, a degenerescência do mestiço, o ideal do branqueamento, a primitividade da cultura negra e a democracia racial. Diante da demonstração sobre raça colocada no site, conforme o Quasdro 2, indicando a preferência da cor da cútis por quem quer adotar, podemos pensar que essas idéias, imaginários em relação ao negro se fazem presentes ainda hoje nas práticas das adoções.

Raça é entendida aqui como um conceito relacional que se constitui histórica, política e culturalmente. Assim, ser negro, branco, amarelo, é bem mais do que um dado biológico. E a cor da cútis, nesse sentido, o que é? O Brasil é um país marcado pela diversidade cultural e racial. Dessa forma, possuir uma identidade racial é constituinte da formação humana, ou seja, uma construção social e histórica. No entanto, a visibilização das características raciais como marcadores identitários de quem vai ser adotado vem através da “cor da cútis”, dissociando o contexto histórico-racial das crianças e adolescentes aptos para adoção e naturalizando as questões raciais como meramente biológicas.

Determinadas identidades sociais hegemônicas, fundadas a partir de normatividades culturais e biológicas, como, por exemplo, branquitude, heterossexualidade e jovialidade, se apresentam como parâmetros a partir dos quais se vêem os demais grupos e pessoas como diferentes, sendo, inclusive, atribuído um valor social a essa diferença. O site não menciona raça, mas sim cor de cútis, ou seja: branco ou preto. Há vários significados atrelados a essas palavras. Branco: paz, luz claridade, vida, enquanto que o preto ou negro remete para escuridão, luto e morte. Logo, o branco é melhor, superior, ou seja, há a supremacia branca. Santos (1997) fala da “posição de prestígio” naturalizada de ser branco, mas lembra que as posições são construídas historicamente. Conforme este autor, “embora haja uma série de movimentos de valorização, ou de “resgate” da cultura/identidade negra no Brasil, em suas mais diferentes instâncias, os negros e as negras continuam sendo falados/as e tratados/as a partir daquelas representações que os constituem em oposição ao branco. Melhor dizendo, a branquidade ainda é definida como parâmetro...” (p. 96). Assim, podemos pensar que a exigência por parte de mais de 90% dos adotantes por uma criança branca é atrelada a estas questões de um ideal de padrão da cor da cútis branca4 e reforçada pelas práticas da adoção da Infância e da Adolescência.

Particularidades e síndromes

Do mesmo modo como os marcadores identitários de idade e cor da cútis, o site também veicula determinadas características físicas e orgânicas das crianças e adolescentes aptos à adoção (Quadro 6 e 7), junto às preferências das pessoas habilitadas em relação a essas características. Esses dados indicam as condições de crianças e adolescentes em relação à “particularidades”, conforme a nomeação do site, como os que apresentam HIV e aqueles com necessidades especiais (identificados como “deficientes”). A outra categoria é denominada “síndromes”, sendo que o site não define nem explica o que entende por essa nomeação, apenas a classifica em síndrome orgânica, neurológica, infecto-contagiosa e psiquiátrica.

No momento em que o site indica que existe essa população com estas características, podemos supor, então, que há outras crianças e adolescentes que não apresentam tais particularidades e síndromes. Em relação a essa comparação, podemos pensar em pelo menos três questões que remetem a um padrão/modelo de condições para viver na sociedade. Essas três questões dizem respeito às condições de saúde, às condições de ser diferente, ou diferença, e às condições de maiores ou menores possibilidades de competir, ou competitividade.

Tais condições podem ou não ser consideradas como problemáticas e, talvez, discriminatórias em uma sociedade, dependendo das oportunidades de acesso a outras condições sociais, culturais, econômicas e políticas que permitem ou não as situações necessárias para que a população apta à adoção com as particularidades e síndromes apontadas esteja exposta a situações de vulnerabilidade. Em relação às crianças e adolescentes com particularidades ou síndromes, não significa, necessariamente, que apresentem uma condição de saúde instável ou menor por isso, se tiverem as condições de acesso às situações que não os coloquem em vulnerabilidade, pois, conforme a concepção do SUS, saúde não significa ausência de doenças.

Assim, seria interessante analisar se quem vai adotar uma criança ou adolescente teria possibilidades de promover as condições de vida desse sujeito; condições de vida no que tange a possibilitar que ele seja atendido e cuidado de acordo com suas singularidades (físicas, orgânicas ou psíquicas). No entanto, quando essas síndromes são apontadas em crianças e adolescentes disponíveis para a adoção, esta população já está colocada em um contexto que foge a uma normatividade da sociedade &– não se trata de uma criança que nasce numa família nuclear, de classe média, com certas condições; é uma criança ou adolescente que está abandonado ou com condição de vida que não pode ser sustentada pela família por razões diversas, de acordo com uma avaliação jurídica, psicológica e social. Ou seja, é uma população de diferentes em uma situação diferenciada. No momento em que são apontados como crianças e adolescentes diferentes por pertencerem a uma população que está para ser adotada, esses sujeitos são ainda mais diferentes porque também apresentam características que os diferenciam daqueles que não possuem essas particularidades ou síndromes.

Essa é a segunda condição de diferença e é a que indica uma não-performatividade em relação às oportunidades, não somente em relação às maiores ou menores probabilidades para a adoção, mas às chances de adquirir as condições que lhe forem proporcionadas até poder igualar-se a outros, sejam os outros que também estão para ser adotados, ou os outros que não são adotados. Será sempre um “diferente”, um estranho, “mais diferente” que o diferente e que, provavelmente, se tornará mais “ex-estranho” às condições regulares que proporcionam os modos normais de viver da sociedade (Uricoechea, 2003). Essas condições regulares são as de poder competir, pois só competindo se consegue um viver normal, ou seja, pode-se igualar aos outros. Possuir as condições para competir significa, então, estar apto para viver de acordo com padrões de normalidade estabelecidos pela sociedade.

Desse modo, essas classificações sobre as estatísticas das características de crianças e adolescentes apontadas pelo site, que analisamos como marcadores identitários que inscrevem essa população em determinadas relações de poder e saber, representam para Bauman (1999), na sociedade atual, as realizações do projeto da modernidade e indicam que: “classificar consiste nos atos de incluir e excluir. Cada ato nomeado divide o mundo em dois: entidades que respondem ao nome e o resto que não” (p.11). Não se trata de negar a existência das diferenças que são perceptíveis ao olhar, como raça ou idade, mas sim de interrogar sobre o modo como falamos delas, de que lugares falamos e o que tomamos como parâmetro para estabelecer comparações de normalidade, superioridade. Em relação à adoção, a partir de determinadas características, dá-se uma classificação de crianças e adolescentes. Por exemplo, a idade é um fator decisivo para ser “classificado” como uma criança possível de ser rapidamente adotada, ou seja, quanto menor a idade, maior a chance de ser escolhido por uma nova família. O que o site em questão faz é visibilizar essa classificação de crianças e adolescentes que estão aptos para serem adotados. Mas o que quer dizer estar apto? O que representa estar apto para ser adotado?

Para Bauman (2001), “buscar pela aptidão” é como garimpar à procura de uma pedra preciosa que não podemos descrever até encontrar; não temos, porém, meios de decidir que encontramos a pedra, mas temos todas as razões para suspeitar de que não a encontramos” (p.92). A busca da aptidão é um estado de “auto-exame minucioso, auto-recriminação e autodepreciação permanentes, e assim também de ansiedade contínua” (Bauman, 2001, p.93). Partindo de tais considerações, podemos pensar na busca pela “aptidão” de crianças e adolescentes adotáveis5 . Neste caso, são diversos especialistas (assistentes sociais, psicólogos, promotores, juízes) que nomeiam quem está apto e que fazem esse exame minucioso.

Bauman também faz uma distinção entre a conceitualização de saúde e aptidão. Fala que os dois termos são freqüentemente tomados como sinônimos; afinal, ambos se referem aos cuidados com o corpo, ao estado que se quer que o corpo alcance e ao regime que se deve seguir para realizar essa vontade. Já saúde, conforme o Bauman (2001, p.91), “é o estado desejável do corpo e dos espíritos humanos. Um estado que, em princípio, pode ser mais ou menos exatamente descrito.”

Dessa forma, aptidão significa estar pronto a enfrentar o não-usual, o não-rotineiro, o extraordinário &– e, acima de tudo, o novo e o surpreendente. “Quase se poderia dizer que, se a ‘saúde’ diz respeito à ‘seguir as normas’, a ‘aptidão’ diz respeito a quebrar todas as normas e superar todos os padrões” (Bauman, 2001, p. 92).

Refletindo sobre as questões para a adoção a partir das considerações desse autor, podemos pensar que quem é considerado apto para ser adotado deve ser mais que saudável; deve estar pronto para enfrentar o não-usual e ser capaz de superar todos os padrões, ou seja, deve estar muito bem preparado para “enfrentar uma adoção” ou para ser adotável.

Ainda para Bauman (2001):

“A volatividade das identidades, por assim dizer, encara os habitantes da modernidade líquida. E assim também faz a escolha que se segue logicamente: aprender a difícil arte de viver com a diferença ou produzir condições tais que façam desnecessário esse aprendizado” (p.204).

Em uma época em que a proliferação das diferenças tem sido um dos focos das discussões dentro do campo das Políticas Públicas com o objetivo de desenvolver processos de inclusão, podemos pensar que os marcadores identitários têm mobilizado os princípios dessas Políticas, inscrevendo populações como vulneráveis para poder governá-las, a fim de equacionar e administrar problemas sociais.

 

Considerações finais

Nessa perspectiva, uma vez que a idade, a raça, as particularidades e síndromes dos adotados são marcadas como importantes, definindo maiores ou menores probabilidades de adoção, pode-se pensar que a visibilidade desses marcadores identitários sobre adotados vem afirmar determinados discursos das práticas da adoção e de políticas públicas da Infância e da adolescência sobre quem são, nessas populações, os diferentes, os excluídos, os vulneráveis, e quais destes são os governáveis para as práticas da adoção.

Ao analisarmos as estatísticas referentes à idade, a divergência considerável entre a idade das crianças e adolescentes aptos à adoção e a preferência dos habilitados a adotar evidencia que, ao dar visibilidade para esta característica, o site também está afirmando quem é a população disponível para a adoção que está mais apta para ser adotada. Assim, o marcador identitário idade, bem como os outros marcadores, produzem o que podemos chamar de uma dupla diferença. A produção cultural sobre a idade é uma forma de marcar a identidade das pessoas na sociedade e que as diferencia. Porém, quando esta marca é utilizada em outros contextos culturais, como no caso da população apta para adoção, como uma característica que é utilizada para diferenciar esta população, este marcador identitário produz a diferença da diferença. A idade, além de ser uma marca que diferencia a pessoa, passa a ser uma marca que diferencia aquela pessoa, pelo fato de estar dentro de uma determinada população, neste caso, das crianças e adolescentes aptos à adoção.

Já os indicativos que classificam as crianças pela cor da cútis utilizam esta marca identitária também, em um primeiro momento, para diferenciar esta população. Entretanto, este marcador identitário, ao ser nomeado desta forma, não está somente diferenciando uma pessoa de outras. Neste caso, consideramos que além de diferenciar as pessoas, trata-se de desapropriá-las de uma condição histórica, a qual as constituiu enquanto sujeitos capazes de significar e se reconhecer no mundo em que vivem. A cultura racial não está restrita a uma condição biológica que determina a cor da pele, mas é a cultura que possibilita ao sujeito produzir os modos de significar a vida. No momento em que o site opta por nomear por cor da cútis ao invés de condição racial, isto pode representar um ato de querer purificar ou limpar desta população símbolos, signos e significações que construíram a condição humana desta.

Embora o fato de o site visibilizar as crianças e adolescentes com particularidades e síndromes possa aparentar uma política de transparência, bem como a concepção de que estas características não significam doença, evidenciando uma concepção de saúde como busca de promoção das condições de vida, a política da prática da adoção não apresenta programas que, caso esta população seja adotada, quais as condições e estruturas de cuidados que as acompanha. Se avaliarmos esta situação a partir dos serviços de acesso às condições de saúde da sociedade, podemos entender que mesmo que existam interessados em adotá-las, as chances destas crianças e adolescentes serem adotados, provavelmente, serão menores em relação àqueles que não possuem estas características. Desta forma, a população disponível à adoção com particularidades e síndromes também é duplamente diferenciada por marcadores identitários: a diferença de ser alguém que pertence a uma população disponível para a adoção e a diferença por possuir marcas físicas de particularidades e síndromes que as diferenciam dos demais desta população. Assim, na análise que empreendemos em relação a estas três situações de características da população de criança e adolescentes aptos à adoção, entendemos e assumimos que as marcas identitárias não são as que identificam ou que mostram o que existe de idêntico, mas sim aquilo que diferencia, o que é e o que possui de diferente, o outro.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: nmguareschi@pucrs.br

Recebido em novembro de 2006
Aceito em abril de 2007

 

 

* Neuza Maria de Fátima Guareschi é Doutora em Psicologia &– Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul &– PUCRS; Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS
** Janaina Claudia Strenzel é mestranda em Psicologia Social e da Personalidade &– PUCRS e bolsista CNPq
***Thais Bennemann é acadêmica de Psicologia e bolsista PIBIC/CNPq/PUCRS
1 O site da Infância e da Juventude do Estado do Rio Grande do Sul foi criado com o propósito de tornar ágil e precisa a coleta e o armazenamento de informações sobre as características e do número de crianças e adolescentes aptos à adoção e o número de pessoas habilitadas à adoção, bem como sobre a preferência destas em relação às características das crianças e adolescentes, além do controle do abrigamento desta população das várias regiões do Estado. De acordo com a Justiça, as informações sobre os processos em andamento são atualizadas pelos funcionários a cada nova entrada e saída de pessoas habilitadas à adoção ou crianças e adolescentes aptos para serem adotados. http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/jij_site.home
2 Perante a Legislação vigente, uma pessoa é considerada Habilitada ou Apta para adoção após ter passado por todos os trâmites legais do Judiciário exigidos para aqueles que são candidatos a adotar uma criança ou adolescente; uma criança é considerada Apta para adoção no momento em que passa a estar legalmente disponível para uma família substituta
33 A partir do Novo Código Civil (2002), esta expressão foi substituída por “destituição do poder familiar”
4 Não se sabe, pelo site, se quem quer adotar é branco ou negro; então, não podemos discutir aqui sobre a possível busca por uma similaridade física com as pessoas que desejam adotar
5 Que podem ser adotadas

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