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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Emergência e conexionismo como hipóteses suplementares ao Entwurf einer Psychologie de Freud

 

Emergency and connectionism like supplementary hypothesis in Freud Entwurf einer Psychology

 

 

André Sathler Guimarães*

Universidade Federal de São Carlos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo aborda a arquitetura do aparelho nervoso, apresentada por Freud no Entwurf einer Psychologie, notadamente sua proposição de três sistemas neuronais distintos &– φ, ψ e ω. Demonstra como Freud ficou insatisfeito com suas próprias explicações ontológicas para a estrutura apresentada e propõe que existe uma compatibilidade entre as abordagens da emergência e do conexionismo e a postulação freudiana.

Palavras-chave: Freud, Cérebro, Aparelho nervoso, Emergência, Conexionismo.


ABSTRACT

The paper work with Freud’s proposal for an architecture of the nervous system, in his book Entwurf einer Psychologie, giving emphasis to his distinction among three systems of neurons &– φ, ψ e ω. It seeks to show how Freud was not completely sure about his own ontological explanations for the proposed structure and try to show that there is compatibility between Freud’s work and the emergence and connectionism perspectives.

Keywords: Freud, Brain, Nervous System, Emergence, Connectionism.


 

 

Introdução

Na primeira etapa de sua carreira, Freud era um médico neurologista e estava mais preocupado, notoriamente, com as questões fisiológicas do aparelho nervoso do que com o inconsciente e a metapsicologia. O ápice dessa etapa é o Entwurf einer Psychologie (“Projeto de uma Psicologia”, daqui para frente referido simplesmente como Entwurf) uma obra na verdade apenas rascunhada, em manuscrito.

Muitos autores defendem que o Entwurf pertence à primeira fase da carreira de Freud e é incompatível com o desenvolvimento posterior da metapsicologia. Abordagens mais recentes, entretanto, têm mostrado o papel fundamental do Entwurf na obra freudiana e, como não há na realidade, uma ruptura do pensamento do autor, mas sim uma continuidade.

Um dos pontos interessantes do Entwurf é a formulação de Freud (1895/1995), ao tratar da arquitetura do aparelho nervoso, de três sistemas neuronais distintos &– φ, ψ e ω. O próprio Freud, contudo, revelou sua inquietação diante da necessidade de justificar ontologicamente esses sistemas.

O presente artigo pretende analisar a proposta freudiana e cotejá-la com as abordagens da emergência e do conexionismo, buscando identificar uma possível compatibilidade entre essas vertentes explicativas.

O Entwurf e a arquitetura do aparelho nervoso

O Entwurf, publicado postumamente e inacabado, representa um momento especial na obra freudiana, quando o autor tenta “deduzir uma psicologia científica e naturalista, segundo um mínimo de pressupostos”, segundo Gabbi Junior (2003, p. 8). Freud (1895) adota uma perspectiva definida por três características: se referenciar no modelo da Física; supor a inexistência de diferenças essenciais entre fatos físicos e fatos psicológicos; e buscar a explicação dos processos pela sua origem. Para Gabbi Junior (2003, p. 19), o “Entwurf é a tentativa de descrever empiricamente o funcionamento da mente humana, de acordo com causas naturais”.

O Entwurf se articula em torno de dois postulados: neurônio e quantidade. O neurônio é apresentado como expressão da unidade material na qual ocorre uma diferença entre repouso e movimento. Sobre o neurônio, Freud (1895/1995) argumenta: “O conteúdo principal do novo conhecimento (histológico) é que o sistema nervoso consiste em neurônios distintos, de mesma arquitetura, em contato por mediação de massa alheia, acabando uns nos outros como partes de tecido diverso, onde estão prefiguradas certas direções de condução, na medida em que recebem pelos prolongamentos celulares e entregam por meio dos cilindros do eixo” (p. 177).

A quantidade é uma soma de excitação ou montante afetivo, que diferencia atividade de repouso. Em “As neuropsicoses de defesa”, Freud (1894/1995, p. 74) qualifica a quantidade &– Q como “algo capaz de aumento, diminuição, deslocamento e eliminação e que se propaga sobre os traços de memória das idéias, algo como uma carga elétrica sobre a superfície de um corpo”. Já estavam lançadas as bases para a posterior concepção freudiana da excitação nervosa como Q em fluxo, feita no Entwurf. Na formulação do princípio da Q estão embutidos três pontos de vista da metapsicologia: a) a variação entre polaridades positivas e negativas; b) a possibilidade de Q ir de um lugar para o outro; c) a capacidade de Q se compor e interagir.

O aparelho nervoso1 tem como princípio fundante a busca da eliminação de Q. Freud chama de processos primários aqueles voltados diretamente para a eliminação de Q e processos secundários aqueles que buscam evitar o ingresso de Q no aparelho. No Entwurf, Freud (1895/1995) assume que a função do aparelho é eliminar a Q, enquanto que a arquitetura do aparelho busca afastar a Q.

Tratando da arquitetura do aparelho, Freud (1895/1995) concebeu a noção de três sistemas distintos de neurônios: φ, ψ e ω. Os neurônios do sistema φ são caracterizados por deixarem passar a Q livremente, como se não tivessem barreiras de contato. Por não oporem resistência, bem como não reterem Q são então, chamados por Freud de permeáveis. A adoção do símbolo φ &– physis (φυσισ) &– tem a ver com o fato de que esses neurônios processam Q exógenas, que vêm da natureza (mundo externo). Em φ, não há ‘percepção’ em seu sentido estrito, apenas ‘sensação’, ou recepção do estímulo externo.

O sistema φ fraciona a Q, comprimindo-a ao nível intercelular. Um aumento da Q em φ vai se traduzir em maior complexidade no sistema ψ, ou seja, não há um aumento da intensidade na passagem entre os sistemas neuronais, mas sim uma ocupação mais vasta de ψ. Como um primeiro filtro, o sistema φ evita que uma Q muito grande possa trazer efeitos disruptivos ao aparelho, como uma dor insuportável, por exemplo.

Já os neurônios do sistema ψ &– de ψυχη (sopro de vida, alma) &– são propostos por Freud (1895/1995, p. 179) como aqueles que restringem a passagem de Q, sendo impermeáveis, ou “dotados de resistência e embargantes de Q”. Ao passo que o neurônio φ é pensado como algo voltado para fora, o neurônio ø é concebido como voltado para dentro2.

Para Freud (1895/1995, p. 181), com a suposição de “dois sistemas neurônicos φ e ψ, dos quais φ consiste em elementos permeáveis e ψ em impermeáveis, parece dada a explicação de uma propriedade do sistema nervoso: reter e, no entanto, permanecer receptivo”. Toda aquisição psíquica consistiria, então, na articulação do sistema ψ mediante um cancelamento parcial e topicamente determinado da resistência das barreiras de contato, diferenciando φ de ψ. Com o progresso dessa articulação, o frescor receptivo do sistema teria encontrado, com efeito, uma barreira.

É mais fácil para a Q entrar do que sair no sistema ψ, o que causa uma ocupação permanente do núcleo de ψ&– a base material e condição de eficácia para o “eu”. Essa concepção do sistema ψ abriu caminho para que Freud, em 1895 pudesse substituir o princípio da inércia no aparelho pelo princípio da constância.

Posteriormente, no Entwurf (seção 7), Freud (1895/1995) se preocupa com a questão da qualidade, que, da forma como colocada pelo autor, aproxima-se muito do conceito de qualia. Haveria elementos da experiência humana que seriam inescrutáveis e incomunicáveis, mesmo entre seres humanos, os chamados qualia. A noção de qualia está muito vinculada a uma concepção dualista da relação mente e corpo, na qual, segundo Teixeira (2003, p. 96) “as experiências subjetivas são algo mais do que um conjunto de condições físicas que as proporcionam. Essas experiências subjetivas se sobrepõem a qualquer tipo de descrição física que possamos ter do nosso funcionamento cerebral, são sempre algo mais do que uma descrição completa do modo como as cores são processadas pelo cérebro”.3

O que Freud (1895) desejava era uma “explicação razoável para aquilo que conhecemos de forma mais enigmática por intermédio de nossa “consciência” (1995, p. 186). Após conjecturar sobre as impossibilidades teóricas de que a qualidade fosse produzida pelos ou nos sistemas φ ou ψ, Freud (1895/1995) postula a existência de um terceiro sistema neuronal, o sistema ω &– do W gótico da palavra Warhnemung (aproximadamente traduzida do alemão como “percepção consciente”).

A postulação que Freud, em 1895, faz de ω segue um encadeamento com os sistemas anteriores. “Os aparelhos de terminações nervosas eram uma proteção para que se efetivassem apenas frações de quant[idade] externa em φ, enquanto que φ ao mesmo tempo cuidaria de eliminar o grosso da quant[idade]. O sistema ψ, que já estava protegido contra ordens maiores de quant[idade], teve de lidar apenas com grandezas intercelulares. Cabe conjecturar em continuação que o sistema ω seja movido por quant[idades] ainda menores (1995, p. 188).

A seqüência φ, ψ, ω só faz sentido em relação à Q exógena e envolve as condições de funcionamento de ω, ou seja, operar com o mínimo de Q. Os aspectos físicos da percepção ocorrem em φ e os aspectos cognitivos em ω. Na sua intenção de adotar o ponto de vista biológico e naturalista, Freud (1895/1995) propôs essa estrutura do aparelho, restando-lhe encontrar explicações ontológicas para a mesma. Para tanto, em alguns casos ele vai recorrer a uma perspectiva evolucionista, e, em outros, vai simplesmente deixar a questão em aberto, como no tocante ao sistema ω.

Após propor os sistemas φ e ψ, no Entwurf, Freud começa a se colocar uma série de interrogações e esboça algumas tentativas de respostas. “De onde mais se deve retirar um fundamento para essa divisão em classes?”. Recorrendo à hipótese evolucionista, Freud (1895/1995, p. 182) argumenta que o aparelho tinha inicialmente suas duas funções primordiais: receber estímulos exteriores e eliminar excitações internas; por conseguinte, os sistemas φ e ø seriam “aqueles que teriam tomado para si cada um desses compromissos primários” (1995, p. 182).

“Por meio de que caminho ψ chegou à propriedade de impermeabilidade?” Ainda seguindo uma linha darwiniana de pensamento, isso se daria pela “indispensabilidade dos neurônios impermeáveis e, com isso, à sua sobrevivência” (Freud 1895/1995, p. 183).

Entretanto, em seguida, Freud apresenta uma proposta alternativa, no seu entender mais frutífera e modesta: a diferença não estaria nos neurônios, mas na Q com que eles têm de lidar &– “no curso excitativo, quanto maior a Qη, maior a facilitação, ou seja, maior a proximidade, por outro lado, com as características dos neurônios φ”.4 Assumindo-se essa hipótese, necessariamente admite-se que um neurônio φ poderia se tornar um neurônio ψ, e vice-versa, caso fosse possível se alterar sua tópica e ligações. Portanto, para Freud “a diferença de essência é substituída por uma de destino e de localização” (1995, p. 183).

Contudo, ao tratar dos neurônios ω, Freud (1895/1995, p. 183) deixa a questão em aberto e assume que “não se consegue indicar qual teria sido o valor biológico originário dos neurônios ω”. Ou seja, Freud se sentiu incapaz de apresentar o sistema ω como resultante de uma evolução desde ψ.

Emergência e conexionismo como respostas às inquietações freudianas

Postulamos que Freud poderia ter assumido a mesma linha de argumentação para o sistema ω, quer seja, tratar seu surgimento em uma perspectiva evolucionista e como questão de destino e localização. Para tanto, recorremos aos conceitos de emergência e conexionismo.

Alan Turing, considerado um dos inventores do computador digital, estudou a chamada morfogênese, ou a capacidade de todas as formas de vida de desenvolverem progressivamente corpos mais elaborados a partir de estágios iniciais simples. Do trabalho de Turing sobre morfogênese, segundo Johnson (2003, p. 12), foi “delineado um modelo matemático em que agentes simples, seguindo regras simples, eram capazes de gerar estruturas surpreendentemente complexas”. Na verdade, Turing estava tratando de comportamentos emergentes e da ciência da auto-organização. Os sistemas auto-organizados definem a forma mais elementar de comportamento complexo:

“Um sistema com múltiplos agentes interagindo dinamicamente de diversas formas, segundo regras locais e não percebendo qualquer instrução de nível mais alto. Contudo, o sistema só seria considerado verdadeiramente emergente quando todas as interações locais resultassem em algum tipo de macrocomportamento observável” (Johnson, 2003, p. 15).

Teóricos da emergência e da auto-organização, como Humberto Maturana e Francisco Varela, definem os seres vivos como redes e interações moleculares que produzem a si mesmas e especificam seus próprios limites, portanto emergentes e auto-organizados. Para Maturana e Varela (2001, p. 52), “os seres vivos se caracterizam por &– literalmente &– produzirem de modo contínuo a si próprios, o que indicamos quando chamamos a organização que os define de organização autopoiética”. Ao longo desse processo, ainda segundo esses autores, “foi necessário contar com moléculas capazes de formar membranas suficientemente estáveis e plásticas para serem, por sua vez, barreiras eficazes e de propriedades mutantes que permitissem a difusão de moléculas e íons por longos períodos, em relação às velocidades moleculares” (Maturana & Varela, 2001, p. 57).

Seguindo essa linha de argumentação, pode-se transplantar o princípio auto-organizador e emergente para o cérebro [aparelho nervoso] humano. Marvin Minsky (1985) foi um dos que enxergaram emergência e auto-organização nas redes distribuídas [sistemas neuronais] do cérebro, entendendo-o como uma maciça rede de neurônios, conectados por axônios e dendritos. Como componentes unitários de uma unidade autopoiética orgânica, os neurônios estão dinamicamente relacionados, em uma rede contínua de interações. O comportamento cerebral é francamente emergente. Um estímulo [ou uma Q, na terminologia freudiana] dispara uma sucessão de circuitos neuronais: cada nova Q é o gatilho para um novo arranjo da rede.

O comportamento de sistemas emergentes depende fortemente de suas partes componentes (no caso do cérebro, seus neurônios) e como elas se juntam (φψω?). A tipificação neuronal em φψω seria resultante do local que esses neurônios ocupavam e passaram a ocupar ao longo do processo evolucionário, sendo que os neurônios mais externos ficaram sujeitos a Q maiores, tendo se tornado permeáveis. Essa permeabilidade seria menor em ψ, e ainda menor em ω, por serem sistemas mais “internos”.5 Considerando-se que as atividades do cérebro são constituídas pelo deslocar de Q entre os neurônios, que não dispõem individualmente das qualidades globais do cérebro, afirmamos que a tipificação em φ, ψ ou ω se deu a partir desses bilhões de transações interneuronais, que originaram a dimensão organizacional do aparelho, em uma perspectiva emergente.

Raízes para esse tipo de argumentação freudiana podem ser encontradas em John Stuart Mill (Gianotti, 1964, p. 32): “Em vez de descrever os fatos mentais à procura dos mais primitivos, deve-se proceder ao exame de seus modos de formação, a fim de que não se corra o perigo de tomar por simples o fato composto cujos trâmites de produção foram perdidos. Portanto, todo fenômeno redutível a elementos mais simples, por estes modos de produção já estabelecidos, não será tomado como simples, ainda que a intuição assim no-lo apresente”.6

A “busca da explicação dos processos pela sua origem”, característica da perspectiva naturalista freudiana aproxima-se do “exame dos modos de formação” de Mill. Ao sinalizar que a mera redução de um fenômeno de múltiplas dimensões a seus elementos mais simples poderia ser insuficiente para sua explicação, caso seus “trâmites de produção” estivessem perdidos, Mill se colocou em sintonia com o ‘pensamento emergente, que advoga a possibilidade de produção de fenômenos complexos a partir de interações de elementos simples’.

Maturana e Varela (2001, p. 57), afirmam que “o ser e o fazer de uma unidade autopoiética são inseparáveis e isso constitui seu modo específico de organização”. Assumindo essa perspectiva, pode-se dizer que a organização do aparelho nervoso do ser humano, em geral, foi determinada pelo local [ser] e o fazer [intensidade de Q] dos neurônios. Essa perspectiva está em consonância com o pensamento de Morin (1999), quando esse trata do surgimento do aparelho nervoso: “Nosso tecido nervoso, como nossa pele, diferencia-se a partir de uma região da membrana externa do embrião ou do ectoderma. Significa que se formou, filogeneticamente, a partir das interações com o mundo exterior” (Morin, 1999, p. 63). No ser humano específico, a organização individual do aparelho vai determinar os estados de atividade neuronal deflagrados por diferentes estímulos &– Q.7

Morin (1999, p.63) prossegue afirmando que “é nessas condições que um circuito auto-eco-organizador, indo do sensorium ao motorium, ou seja, dos neurônios sensoriais aos neurônios motores, gerou o cerebrum. Este se constitui pelo desenvolvimento das redes intermediárias entre neurônios sensoriais (percepção) e neurônios motores (ação)”. Fica clara a correlação entre o sistema φ freudiano e o sensorium de Morin, e entre o sistema ψ e o motorium. Curiosamente, em seu texto, Morin (1999) só fala desses dois sistemas, porém, ao apresentá-los em uma figura, o faz no formato de um triângulo, cujo vértice faltante &– caspita! é o próprio sistema ω.

 

 

Observa-se que no vértice superior do triângulo foram colocadas as dimensões do conhecimento, da inteligência, afetividade e estratégia, todos elementos típicos do sistema ω freudiano, pos se constituírem estados mentais subjetivos, qualidades ou, em última instância, processos conscientes.

Para Teixeira (1998, p.83), o conexionismo ou, funcionalismo neurocomputacional ou, ainda, processamento paralelo distribuído, entende o cérebro humano como “um dispositivo computacional em paralelo que opera com milhões de unidades computacionais chamadas neurônios”. Essa perspectiva está em evidente sintonia com o ponto de vista emergente, conforme expresso por Morin (1999, p. 64): “O conhecimento cebrebral constitui, globalmente, uma megacomputação de microcomputações (neuroniais), de mesocomputações (regionais) e de intercomputações (entre neurônios e entre regiões)”.

Os neurônios se conectam em uma intrincada rede, com camadas hierarquicamente organizadas. O estado de um neurônio, em um dado momento, dependerá do estado de todos os outros neurônios com os quais estiver associado. A produção de um determinado estado mental depende, portanto, de um processo interativo de ajustamento mútuo entre neurônios (inibições e excitações). Segundo Teixeira (1998, p. 85), “este ‘processo de ajustamento’ é também denominado de ‘processo de relaxamento’, num ciclo que guarda muita semelhança com o modelo de prazer/desprazer e o princípio de constância que norteou o modelo hidráulico da mente proposto por Freud”.8

Em suma, o paradigma conexionista associa a cognição à emergência de estados globais em uma rede de componentes simples. Essa rede, por sua vez, é governada por regras locais, que determinam as operações dos neurônios individuais, e regras de mudança, que vão definir a conexão entre os elementos da rede. Portanto, o paradigma conexionista assume a premissa de um modelo auto-organizado e emergente de cérebro, o qual, por sua vez, é compatível com a postulação freudiana dos três sistemas neuronais.

 

Considerações finais

Ao propor os sistemas φ, ψ e ω, Freud antecipou conhecimentos que só viriam a ser possíveis com a evolução dos recursos tecnológicos, sobretudo as técnicas de neuro-imagem. Contudo, embora se mostrasse satisfeito com sua proposição em termos de sua justificativa funcional, Freud inquietava-se por não conseguir, ao seu juízo, uma hipótese ontológica adequada, tendo que recorrer a uma perspectiva evolucionista, em alguns momentos, ou simplesmente deixar a questão em aberto, em outros.

O presente artigo buscou demonstrar que Freud poderia ter se contentado com a hipótese evolucionista, porém com o ponto de vista da emergência e do conexionismo. Essas abordagens, mais contemporâneas, são claramente compatíveis com a proposta freudiana, podendo ser consideradas hipótese suplementares ao Entwurf e confirmadoras do caráter visionário e atual dessa obra seminal de Freud.

 

Referências

Freud, S. (1987) Die Abwher-neuropsychosen. Em Gesammelte Werke, Band I. Frankfurt: S. Fischer (Original publicado em 1894).        [ Links ]

Freud, S. (1895/1995). Projeto de uma psicologia. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Gabbi Junior, O. F. (2003). Notas a projeto de uma psicologia: As origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

Giannotti, J. A. (1964). John Stuart Mill: o psicologismo e a fundamentação da lógica. Boletim da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, 269, 15-18.        [ Links ]

Johnson, S. (2003). Emergência: A vida integrada de formigas, cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.        [ Links ]

Maturana, H. R., & Varela, F. J. (2001) A árvore do conhecimento: As bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athena.        [ Links ]

Mazlish, B. (1993). The fourth discontinuity &– The co-evolution of human and machines. New York: Yale University Press.        [ Links ]

Minsky, M. (1985). The society of mind. New York: Touchstone Book.         [ Links ]

Morin, E. (1999). O método 3 &– O conhecimento do conhecimento. Porto Alegre: Sulina.        [ Links ]

Teixeira, J. F. (2003). Mente, cérebro e cognição. Petrópolis, RJ: Vozes.        [ Links ]

Teixeira, J. F. (1998). Mentes e máquinas: Uma introdução à ciência cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: andre.sathler@gmail.com

Recebido em janeiro de 2006
Aceito em março de 2007

 

 

* André Sathler Guimarães: economista; mestre em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo; mestre em Gerenciamento de Sistemas de Informação pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas; doutorando em Filosofia da Mente pela Universidade Federal de São Carlos.
1 Opta-se por manter a nomenclatura utilizada por Freud, “aparelho nervoso”, em virtude da posterior qualificação que o autor faz dos “sistemas” neuronais.
2 Apesar dessa concepção, o neurônio ψ pode também transformar o interno em externo, como nos processos alucinatórios.
3 Interessante o fato de que o conceito de qualidade de Freud se aproxime do conceito de qualia, mais comumente associado a correntes dualistas, uma vez que a perspectiva naturalista do Entwurf o aproxima mais de correntes materialistas no tocante à discussão do problema mente&–cérebro.
4 Em determinados momentos do Entwurf, Freud usa o símbolo Qç, presumidamente para realçar os casos em que trata especificamente de quantidades endógenas.
5 O fato de dizer que alguns neurônios são mais internos não tem a ver com teorias localizacionistas, mas sim com diferenças causadas pela posição anatômica dos neurônios, considerando-se a hipótese de que houve uma alteração progressiva em certas partes do aparelho nervoso decorrente tanto da interação com o ambiente quanto de sua função básica de manter a constância no aparelho.
6 Para uma instigante relação entre o Entwurf e a filosofia de John Stuart Mill, recomenda-se a obra “Notas a projeto de uma psicologia &– as origens utilitaristas da psicanálise”, de Gabbi Junior, 2003.
7 Essa possibilidade tem como conseqüência uma impossibilidade material para a transponibilidade da experiência subjetiva, aproximando-se, também, de uma perspectiva dualista, similar à abordagem de Thomas Nagel.
8 O modelo freudiano no Entwurf é por vezes considerado uma concepção hidráulica da mente, em virtude, sobretudo, da forma adotada por Freud para explanar sobre os deslocamentos de Q. Segundo MAZLISH (1993), Freud “tended to regard the psyche as a closed energy system, na in his ‘Project for a Scientific Psychology, of 1895, treated it more like a steam engine, subject to the Second Law of Thermodynamics (the conservation of energy), than like a mental construct” (Mazlish, 1993, 92).

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