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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

A identidade como grupo, o grupo como identidade

 

The identity as group, the group as identity

 

 

Claudio Garcia CapitãoI,*; José Roberto HeloaniII,**

I Universidade São Francisco
II Universidade Estadual de Campinas

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O propósito desse artigo é apresentar alguns aspectos das leituras realizadas sobre o indivíduo, as organizações e os grupos. Por meio de alguns autores, como Freud, Bleger, Ciampa e Dejours, enfoca-se o fenômeno grupal, a sua formação e seu funcionamento, como também a sua relação com o trabalho. Entende-se que o homem não só se vincula às organizações por laços materiais e/ou morais, mas especialmente por fatores inconscientes. A organização é o ideal de ego a ser alcançado e que é, ao mesmo tempo, inatingível. Assim, estados depressivos ou sentimentos de vazio, angústia e até mesmo a morte planejada são decorrências presentes. As questões relacionadas ao trabalho pertencem à qualidade do que é considerado essencialmente humano. Por esta condição, chegamos à conclusão da existência de certa dualidade em que o trabalho pode ser transformado em sofrimento e pura angústia ou ser objeto de investimento amoroso, representante das forças que atuam em favor da continuidade da vida.

Palavras-chave: Grupos, Identidade, Sofrimento.


ABSTRACT

The purpose of this article is to present some aspects of the subjects of the readings we did concerning to the person, the organizations and the groups. Some authors as Freud, Bleger, Ciampa and Dejours helped us to focalize the group phenomenon, considering its formation and performance as well as its relationship with the work. We understand that the individual besides attaching himself by material and/or moral ties also does it by unconscious factors. The organization is the ideal of ego that must be reached and which is, at the same time, unrealizable. Therefore, depressive states or feelings of emptiness, anguish and even the planned death (suicide) are present consequences of all these factors. The questions associated to the work belong to the quality of what is considered essentially human. By this condition we brought to the conclusion about the existence of a certain duality by which the work can be changed into suffering and complete anguish or, on the other hand, be the object of loving investment, a representation of the forces that act to the advantage of the continuity of life.

Keywords: Groups, Identity, Suffering.


 

 

Introdução

Quando fazemos um exercício retrospectivo na literatura psicológica que aborda os grupos, logo notamos que os ensaios sobre psicologia, os quais tinham como objeto de estudo os pequenos grupos e que levavam em consideração o comportamento individual dos membros neles contidos, não passavam, em média, de apenas um ao ano, atingindo, porém, a partir de 1950, um ritmo de aproximadamente três artigos por semana. Esse fato fez emergir na psicologia como ciência um novo campo de pesquisa e, em especial, para a Psicologia Social, que tem e teve a partir dessa época, um de seus objetos privilegiados de estudo, um de seus capítulos mais importantes (Penna, 1980).

Qualquer abordagem psicológica pode detalhadamente nos mostrar que, quando resolvemos encarar um indivíduo isoladamente, acompanhar seus passos ao longo da vida, logo vamos nos dar conta de que esse indivíduo tem uma trajetória abrangente e que não se limita a si mesmo. Existem formas de se frustrar, de se satisfazer, de conduzir-se que se relacionam, ou, até mesmo, dependem diretamente de outras pessoas. Assim, praticamente não existe quem encontre uma pessoa isolada de outros seres humanos, pois em algum nível ocorre alguma inter-relação com alguém à sua volta (Freud, 1921/1996).

Quando observamos uma classe de alunos, por exemplo, olhando para o professor, um campo não aparente estrutura e mantém atitudes e seqüências de comportamentos, inclusive a postura física dos alunos, que não depende só e exclusivamente de cada um, mas das relações estabelecidas intragrupo, intra-sala. Enfim, mesmo se um dos alunos do nosso exemplo estivesse sozinho, apartado um tanto dos outros, sentado em uma cadeira em silêncio, esse aluno estaria em algum nível se relacionando com outros e teria sua ação “controlada” por um campo invisível. Os grupos exercem uma influência preponderante no comportamento das pessoas. Não é nada estranho, quando mudamos de uma certa categoria grupal, apresentarmos paralelamente uma mudança considerável de mentalidade, enfim de atitude (Rattner, 1977).

Estudos que tentam “decifrar” a formação e o funcionamento dos grupos continuam sendo de urgente importância, especialmente quando nos defrontamos com uma nova ordem social, com problemas emergentes que passam, sem dúvida alguma, pela compreensão da mente grupal.

Algumas contribuições para o entendimento do fenômeno grupal

A relação com outros seres humanos, pela própria condição humana, é imposta desde o nascimento. Klein (1969) aponta que no desenvolvimento psíquico da criança, de sua personalidade, da sua identidade, os objetos que vão fazer parte constituinte de seu psiquismo serão objetos de relação.

De fato, a própria mente do ser humano vai se constituindo e se povoando a partir de outros humanos. Primeiro e possivelmente por “pedaços de gente”, “cheiro de gente”, “coisinhas de gente”, “cocô de gente”, e depois, evoluindo para pessoas inteiras, não mais em partes, mas grupos e funções organizadas em uma única pessoa, e por conseqüência, grupos de coisas e outras pessoas. Então, eis que a separação entre a identidade individual e a identidade de grupo, de uma certa maneira, não deixa de ser superficial, apenas representando, talvez, uma tática para melhor observar ou estudar fenômenos aparentemente isolados (Mezan, 1982).

A distância teórica entre a identidade individual e a identidade de grupo fica assim reduzida. Porém, ao mesmo tempo e na medida em que de fato uma pessoa é inserida em um determinado grupo, por essa condição, pode sofrer uma profunda alteração em seu funcionamento mental, como também, da sua identidade (Freud, 1921/1996).

Como vimos, o ser humano é formado por outros, por objetos que rodeiam sua vida, o seu grupo familiar, a escolinha que freqüenta os coleguinhas do bairro, etc. Enfim, a alteridade é uma condição de humanidade e é através dessa condição que um outro humano nos humaniza (Silva, 1988).

Responsável pela construção da identidade, o grupo é a célula-base por meio da qual o indivíduo adquire valores, introjeta normas, condutas, adquire necessidades. Estabelece-se assim um movimento dialético contínuo, que se desenvolve por toda vida da pessoa, só expirando com sua morte. Através de um processamento contínuo de intersubjetividades que passam a transformar-se em elementos socioculturais, o sujeito constrói sua identidade individual e grupal (Zimerman, 1993).

Dentro dessa estrutura sociocultural e histórica, os grupos reproduzem ideologias. Dependendo do grau de sua inclusão social, determinado grupo manterá sua identidade ou sofrerá transformação e, esta, por sinal, poderá determinar a manutenção ou não de seu status quo (Rouanet, 1983).

Se fôssemos pesquisar cada grupo humano em sua especificidade, passaríamos, com certeza, a vida toda, e não chegaríamos a finalizar o artigo proposto. São numerosos os grupos existentes na nossa sociedade, todos produzindo efeitos e situações psíquicas distintas e com características próprias, especiais, pertencentes, imanentes à identidade de cada um.

Uma pessoa se relaciona com seu inimigo, com sua irmã, com seu irmão, pai, mãe, médico e, com isso, podemos dizer que ela já não mais está sozinha, pois interage em algum nível com outros. Irmãos de uma mesma família, de um mesmo grupo, formam subgrupos que atacam e se defendem do pai, da mãe ou do irmão mais novo. Um membro da família pode aproximar-se da mãe e tentar isolar o pai. Formam-se assim pequenos grupos dentro de um grupo maior que, por isso, têm determinadas suas possibilidades pelo campo em que se dá sua organização e forma. A todas estas situações e tantas outras correlatas, poderíamos chamar de fenômenos inerentes à psicologia grupal (Bleger, 1992).

Um grupo tem uma identidade e um psiquismo próprios, uma mente grupal, uma mente que exerce uma influência sobre outros grupos, além de influenciar os seus próprios membros. Dessa maneira, uma pessoa pode sofrer uma profunda alteração identitária quando contagiada pela mente grupal, abandonar todas as suas características e assumir a identidade do grupo que exerce a influência (Bion, 1969).

Freud (1921/1996), em sua tentativa para entender o fenômeno grupal, afirma que as relações libidinais determinam os fenômenos grupais, e também, são e estão na base do enigmático processo sugestivo existente nos grupos. Não se trata de relações sexuais estabelecidas entre os membros do grupo. Muito pelo contrário, se houvesse, no sentido comum da palavra, relações sexuais, o grupo não funcionaria enquanto tal. A libido, por ser energia sexual, pode, contudo, sofrer inibição, desvio das suas finalidades, permitindo amizades dessexuadas, garantindo a existência do grupo. Assim, as relações amorosas são aquelas que tendem a fazer com que as pessoas se aproximem, vinculando-se por meio de laços emocionais, amorosos, por que não dizer. Então, está neste fator, para Freud (1921/1996), a essência da mente grupal e da maneira em que o grupo se forma.

É por meio do investimento, ou melhor dizendo, do desinvestimento libidinal que poderemos compreender melhor a formação da identidade de uma pessoa. A identificação pode ser considerada como o resultado do processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo dessa pessoa. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações (Laplanche & Pontalis, 1983).

Desde que a criança nasce, ela se identifica com os objetos, já que ela não consegue estabelecer a diferenciação dela própria, de seu ego e dos objetos que estão a sua volta. Em resumo, o bebê é o leite que engole e o mundo é, por assim dizer, comido pelo bebê. Neste exemplo bastante concreto da alimentação, o objeto ingerido passa a ser parte, a ser idêntico a quem o devora. É o primeiro laço que a criança estabelece e, na medida em que ela se vai desenvolvendo, outros objetos servirão para o processo de identificação. Porém, dialeticamente, na medida em que o objeto passa a fazer parte da criança, torna-se idêntico ao seu ego, o mesmo é destruído enquanto algo independente da sua existência. Identificar-se é tornar-se igual, e isto implica certa destruição do objeto identificado (Petot, 1988).

Com essas hipóteses teóricas expostas acima, conclui-se que quando existe uma corrente sexual explícita ela se torna contrária à formação de grupos. Pensamos que o mesmo ocorre com a existência do narcisismo, já que para que um grupo exista, torna-se necessário ocorrerem investimentos libidinais, sexuais, com a inibição em sua finalidade.

Caso contrário, sem essas condições, não teríamos como tecer a delicada trama da formação grupal. Pensamos que para existirem laços afetivos, deve, como observamos, existir um afrouxamento da dinâmica narcísica, além da redução da ambivalência. Um outro fenômeno interessante e que podemos observar, ocorre a partir da identificação entre as pessoas, possibilitada por um certo ideal comum existente entre elas. Diríamos ser essa uma das condições, necessária e suficiente para a formação grupal.

Resumindo às idéias de Freud, Laplanche e Pontalis (1983) assinalam que o ideal do ego pode ser compreendido como a existência da personalidade resultante da convergência do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais culturais. Enquanto instância diferenciada, o ideal do ego constitui um modelo a que o indivíduo procura adequar-se.

Nosso ideal de ego é muito variável. Algumas pessoas o têm muito próximo da sua realidade, das suas condições, o que não exige quase nada delas mesmas. Um estado pouco crítico, no qual quase nada pode ser exigido. Já em outros indivíduos, esse ideal é muito elevado, exigente, crítico em relação às conquistas, às coisas das suas vidas. Nesse último caso, podemos dizer que, se as exigências não forem paralisantes, teremos a possibilidade das buscas ininterruptas de crescimento e de conquista. Aplicando tais formulações à formação de grupos, perceberemos que uma pessoa inserida num grupo sente-se forte, resolve todas as coisas, pode enfrentar o mundo. De certa forma, substitui o seu ideal de ego por um outro objeto, o líder, por exemplo, e identifica-se com os outros membros, por terem eles também substituído o seu ideal de ego pelo mesmo objeto. Assim, os ideais do grupo passam a ser os ideais do sujeito e o sujeito não mede esforços para cumprir com as exigências do grupo, que passaram, também, a ser suas.

Desta feita, num grupo a pessoa do líder não diz “olha eu sou a sua parte idealizada, vocês passarão a admirar-me, como a um Deus, como alguém que vocês gostariam de ser”. Nesses casos, tudo acontece de uma maneira sub-reptícia, quase que imperceptível, baseada no fenômeno da identificação. No caso dos grupos, o líder, normalmente, é aquele que foi eleito e tem uma certa autonomia de ação que o restante não possui; mas, por ser a figura que substitui o ideal de todos, faz com que todos se identifiquem, a partir de seu ideal, uns com os outros.

Não é sem razão que as organizações hipermodernas incentivam as inúmeras formas de liderança e o trabalho grupal, este, por sinal, execrado pelo taylorismo por ser tido como inadequado e potencialmente subversivo, ou melhor, a lógica afetiva dos grupos nem sempre se identifica com a da organização. Aliás, Barnard (1956) e Mayo (1968) já haviam intuído isso nas décadas de 1930 e 1940, ao privilegiarem o estudo das organizações informais.

Uma das conseqüências dessa atitude, especialmente no que se refere ao trabalho e a aquele que exerce uma atividade laboral, está no processo de alienação, especialmente quando ocorre a fragmentação entre mente e corpo, fragmentação esta que tem por finalidade uma despersonalização do indivíduo no trabalho. Dessa forma, conseqüentemente, a pessoa aliena-se, também, em amplos aspectos da sua vida.

Ora, com o trabalho parcelado e repetitivo, não existe um espaço para a intercomunicação entre os trabalhadores, e, menos ainda, para os relacionamentos interpessoais, boicotando assim, as interações humanas e a formação grupal. Com isso, a resultante é a impossibilidade de uma elaboração de uma ideologia defensiva, pois essa ideologia defensiva, afinal, também depende do grupo para ser elaborada, assim como de inúmeras variações individuais (Dejours, 1992).

Nos grupos, em geral, a identificação através do desejo por um mesmo objeto também parece ser um fator comum, mesmo naqueles que não apresentam nenhuma organização ou estrutura. É o caso dos fãs, por exemplo, do U2, Oásis, etc., que formam um grupo cujo desejo é dirigido para um mesmo alvo, e com isso, passam a identificar-se, a se aglutinar por terem um mesmo objeto alvo. Neste caso, o que se observa entre seus integrantes é a existência de uma forte identificação em torno de uma característica, um desejo comum. A partir da presença dessa condição, a formação de laços poderá ter, como produto final, a formação de um grupo.

Para Bleger (1989), o ser humano, antes de ser indivíduo, é sempre um grupo, mas não no sentido de que pertence a um grupo e sim no de que a personalidade é um grupo. De uma certa forma, concorda com Freud (1927/1996) quando divide a personalidade em Id, Ego e Superego, além do fato de que o Ego, como instância psíquica, pelo processo de identificação, vai ser “povoado” pelos objetos ou pelos humanos que estão mais próximos. O mais interessante nesse modelo é a sua forma antropomórfica. É um modelo que fornece aos estudos do homem, da sua mente, a metaforização das relações humanas existentes fora da mente. Achamos, por conseqüência, que só poderíamos encontrar fora, como produção da subjetividade humana, aquilo que foi constituído “do lado” de dentro. Por correlato, se a personalidade em si já é um grupo, conseguimos compreender também que os grupos e as alterações que eles propiciam na identidade de uma pessoa, por mais estranhas que possam parecer à primeira vista, poderão ser partes inerentes e correspondentes, pois, em nossa opinião, o grupo possui uma identidade e a identidade, por seu lado, já é um grupo.

Então, por ser a personalidade um grupo, o indivíduo, antes mesmo de nascer tem que corresponder a priori às expectativas de um grupo social e/ou familiar. Como nos aponta Ciampa (1997), a identidade pressuposta é aquela que é de fato esperada antes do nascimento do indivíduo para que ele a cumpra posteriormente. Freqüentemente os pais têm expectativas e outorgam atribuições sociais para que o filho, que está vindo ao mundo, as realize. Quanto ao seu meio social, valores morais, regras, etc., já estão prontos, esperando apenas que esse novo indivíduo venha a fazer parte do grupo que as criou e que ao mesmo tempo foi criado com bases nessas mesmas regras e valores; assim, cada posição que a pessoa ocupa a determina enquanto ser no seio da família e da comunidade, possibilitando que a existência material desta pessoa seja caracterizada pela multiplicidade, mais precisamente, diante dos vários papéis que vai desempenhar durante a sua vida como ator social.

Grupo de trabalho: sofrimento, identidade e alienação

Para a Psicopatologia do Trabalho não existe uma interação do sujeito com o trabalho que se constitua de modo estritamente técnico, físico ou cognitivo. Na abordagem psicopatológica, as relações com as pressões técnicas emergem como sujeitas a um contexto intersubjetivo no qual “a relação com a técnica é sempre secundária e mediatizada pelas relações hierárquicas, relações de solidariedade, relações de subordinação, relações de formação, relações de reconhecimento, relações de luta e relações conflituais” (Dejours, 1994, p.138).

As condições de trabalho podem produzir sofrimento mental, caso interfiram na saúde do corpo. Este sofrimento ocorre quando a relação homem-trabalho é bloqueada, isto é, quando alguém não consegue realizar sua tarefa consoante suas necessidades e desejos psicológicos. O sofrimento daí resultante é produto da articulação entre história individual e organização do trabalho, em que o grupo, principalmente na lógica toyotista, ou modelo japonês, constitui-se como elemento central.

Mas, em contrapartida, o trabalho pode possibilitar uma satisfação sublimatória, contanto que seja livremente organizado ou escolhido, desembocando, assim, em prazer e saúde mental. É o que Dejours (1994) denomina de sofrimento criativo. Na ausência dessas condições é que ocorre o sofrimento patogênico, segundo o autor, que consiste em uma desestruturação psíquica.

 

 

Sabe-se que a sintomatologia desses dois tipos de sofrimento, o criativo e o patogênico, manifesta-se consoante a estrutura da personalidade. Todavia, a organização do trabalho provoca e mantém os estados psicopatológicos, às vezes, por um longo período de tempo. O papel do grupo é de primordial importância nessa relação, como também a relação dialética entre indivíduo e sociedade, como já abordado anteriormente.

Como elemento coletivo intermediário na relação indivíduo-sociedade, o grupo absorve as redes de significados que ele introjeta, constrói e ressignifica em suas práticas sociais.

Mesmo Freud (1921/1996), podemos colocar, não admite haver uma forte oposição entre psicologia social e psicologia individual. Assim sendo, como pensar em organização do trabalho sem nos questionarmos a respeito da situação da saúde mental individual e coletiva, no seu sentido grupal? Podemos pensar então, que as conseqüências da organização da produção sobre o grupo de trabalho criam defesas psíquicas que têm por meta disfarçar, manobrar e esconder uma intensa ansiedade diante de perigos absolutamente reais, objetivos, perfeitamente identificáveis por terceiros, o que não ocorre com o sofrimento. Este, logicamente, mais difícil de ser observado. Vale a pena lembrar que a ideologia ocupacional defensiva, enquanto fantasia criada por um grupo ocupacional específico, possui uma cultura própria, rituais geralmente funcionais e, portanto, uma particularidade situacional, que não deriva simplesmente de conflitos intrapsíquicos de natureza subjetiva.

Para Dejours (1994), não é possível eliminar totalmente o sofrimento no trabalho, porém é possível termos ações capazes de alterar os destinos do sofrimento e favorecer a sua transformação. Se o sofrimento for metamorfoseado em criatividade, ele beneficia a identidade, pois amplia a resistência da pessoa ao risco de desestabilização psíquica e somática. O trabalho se transforma então em um mediador para a saúde. Ao contrário, teremos uma situação inversa, o trabalho funcionando como mediador da desestabilização e fragilização da saúde, se as escolhas gerenciais, as relações de produção e a situação geral de trabalho empregarem o sofrimento no sentido de sofrimento patogênico. Dependendo de como um sistema laboral é articulado, este pode propiciar tanto a saúde como a patologia. Serão as peculiaridades do sistema que irão definir o futuro do sofrimento.

Assim sendo, torna-se impensável conceber qualquer tipo de cultura organizacional sem considerar os afetos dos indivíduos que as constituem, pois a tensão é constante. Ao vincular-se com um grupo, o sujeito está ao mesmo tempo afastando-se de outro, num contínuo movimento relacional de “ganhos” e “perdas” identitárias. Daí Dejours (1988) advogar um “espaço de palavra”, no sentido de espaço de discussão e, portanto, próximo à noção de “racionalidade comunicacional” concebida por Habermas (1991) que carrega em seu bojo um ideal de mútua compreensão argumentativa, o que objetiva um conviver pacífico.

Esse espaço público talvez mitigasse situações patogênicas amplamente corroboradas pela lógica estabelecida pelo pós-fordismo, lógica esta, por sua vez, fundamentada na ideologia neoliberal, que nos procura inculcar uma aparente normalidade, ou melhor, pela dissociação entre sintoma e trabalho, atribui distúrbios a causas exclusivamente pessoais.

Como vimos, tal proposição não se sustenta, já que um indivíduo não deixa de ser também um grupo e, portanto, causas individuais não podem descolar-se de um contexto grupal maior.

 

 

Ora, se a lógica taylorista-fordista caracterizou-se pela ampla cisão entre pensamento e atividade física, subjugando o corpo às regras da produção, “paralisando” suas pulsões espontâneas, aumentando o ritmo de trabalho de modo a ocupar todo o seu campo de consciência com atividades senso-motoras, as novas formas de produção privilegiam o grupo como elemento “integrador” daquilo que o taylorismo separou. Ou seja, o modelo pós-fordista de produção almeja um trabalhador criativo, pró-ativo, capaz de tomar decisões etc., enfim, um indivíduo física e mentalmente integrado à ideologia organizacional. E o grupo, paradoxalmente, propicia isto.

Aliás, Bion (1969) já havia formulado a hipótese de que inconscientemente o grupo funciona como função maternal, perpetuando o superego e o ideal de ego. Ketz e Vries (1992) tentam demonstrar como a busca da excelência, no que toca aos sentimentos de rivalidade e de competitividade, e, posteriormente, ao sentimento de reparação movido pela culpa, podem ser formas construtivas à inveja que, no nosso entender, propiciam condições para uma melhor motivação. Conseqüentemente, para um aumento significativo da produtividade.

Ademais, no nosso entender, o homem não só se liga às organizações por laços materiais (decorrência natural do pressuposto do homo economicus da abordagem clássica e científica organizacional) e/ou morais (presunção do homo social da escola de relações humanas), mas também e, quiçá, primordialmente por laços inconscientes.

Suas defesas e mesmo seus impulsos não estão presentes na organização pelo simples fato ontológico de ele, sujeito, estar lá. Dialeticamente falando, são por ela modelados e adornados, em um movimento em que a origem do poder está sobremaneira na relação sofrimento &– prazer (Rouanet, 2001).

A teoria psicanalítica nos ensina que, a partir da primeira relação objetal, que envolve obrigatoriamente identificação, projeção e introjeção, outras formas de relações se desenvolveriam e seriam sempre uma tentativa de reapropriação do objeto primário. Ademais, segundo a psicanálise, não há resolução do complexo edípico sem a devida internalização de leis e normas, o que nos autoriza a concluir que tal interiorização “nasce imperfeita” (Bonetti, Descendre, Gaulejac & Pagès, 1990) e, por este motivo, será fonte de uma ameaça constante, formando, de tal modo, o superego.

Faz-se mister realçar que não há ideação do ego sem que haja um rompimento na relação com a mãe. Em outras palavras, a ideação depende da perda, daí ser infatigavelmente procurada.

Como herdeiro do narcisismo primário, estado este que se dá no início da vida, logo após o nascimento, quando o bebê investe em si mesmo toda sua libido, o ideal de ego é ilimitado em desejos de perfeição e poder. Tais situações psíquicas, intrinsecamente vinculadas, acabam sendo reproduzidas e mesmo reforçadas nas inúmeras relações sociais, tal como Proteu, ambicioso e extremamente versátil (Laplanche & Pontalis, 1983).

Talvez isto explique ou pelo menos esclareça em parte a relação do trabalhador com a organização em que está inserido, como exemplo da relação sujeito-objeto em que, em “tempos modernos”, o primeiro é transformado em objeto, mediante a fusão destes dois elementos, fusão esta impulsionada pelo sentimento de culpa e insuflada pela “fraqueza do seu ego”, além da influência das condições propiciadas pelo grupo.

A organização é o ideal de ego a ser alcançado e que, paradoxalmente é, ao mesmo tempo, inatingível. Chegar até ela, fundir-se a ela, corresponde a engrandecer-se, a crescer e obter o seu amor, coisa característica de uma dinâmica infantil, por isso mesmo, inalcançável. O preço a ser pago para essa finalidade é a dedicação e a obediência exaustiva, irracional, mas bem-vinda, pela inigualável sensação de poder que disso resulta (Freud, 1921/1996).

Esta relação não deixa de ser caracterizada pela ambivalência e pela contradição, pois a mesma organização que ora é sentida como “mãe afetuosa”, às vezes apresenta-se como uma substituta perversa. Traços, por exemplo, parecidos com os de sadomasoquismo fazem-se presentes nas organizações, mormente na competitividade admitida e legitimada ideologicamente.

Para Pagès e cols. (1990), o sujeito tende a identificar-se com o poder conferido à organização ou a destruir-se por esse poder, quando a sensação de poder torna-se esvaziada.

 

 

Nesta dinâmica extremamente útil à lógica da produção, há uma tentativa de dominar os outros e a si próprio, em uma relação amorosa em que a organização funciona como um espelho, possibilitando condições para um estado, vamos assim dizer, narcísico, um estado ilusório, imaginário. Perder o emprego, ou melhor, desvincular-se da organização, equivale às vezes a perda de um objeto hipervalorizado e que não encontra substituto (Dejours, 1994).

Por conseqüência, temos os estados depressivos, ou seja, o sentimento de vazio, angústia, que chega até mesmo ao limite da morte planejada.

Desta maneira, Freud (1921/1996) com razão aponta que nenhuma outra técnica para a conduta da vida prende o indivíduo tão firmemente à realidade quanto à ênfase concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande quantidade de componentes libidinais, sejam narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que este indivíduo goza como algo indispensável à preservação e à justificação de sua existência em sociedade.

 

Conclusão

A organização do trabalho provoca e mantém os estados psicopatológicos, com bastante freqüência, por longos períodos de tempo. O papel do grupo é de essencial importância nessa relação, como também a relação dialética entre a pessoa e a sociedade. O resultado da organização da produção sobre o grupo de trabalho, permite a criação de defesas psíquicas, as quais têm por função controlar ou dissimular a ansiedade frente a perigos de fatos reais ou fantasiados. Com estas formulações, seria impossível conceber qualquer forma de cultura organizacional sem levar em consideração os afetos das pessoas que da organização fazem parte.

O mundo do trabalho pertence exclusivamente à qualidade do que é verdadeiramente humano, porém, por esta condição, transformá-lo em sofrimento e pura angústia, parece ser uma estratégia comparável à morte, às pulsões que jogam contra a continuação da vida. Trabalho também poder ser alvo de investimento amoroso, qualidade verdadeira de vida, cuidado e amor.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: cgcapitao@uol.com.br

Recebido em maio de 2006
Aceito em junho de 2007

 

 

* Claudio Garcia Capitão: psicólogo; doutor em Educação (UNICAMP); professor da Universidade São Francisco.
**
José Roberto Heloani: psicólogo; doutor em Psicologia Social (PUC/SP); professor da Universidade Estadual de Campinas.

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