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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Psicologia social da saúde: tornamo-nos eternamente responsáveis por aqueles que cativamos

 

Social health psychology: we become responsible, forever, for those we have tamed

 

 

Adriane Roso*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse é um artigo de cunho teórico no qual foram exploradas algumas questões relacionadas à ética dos psicólogos, bem como suas responsabilidades frente à saúde coletiva. Contextualizou-se o mundo em que vivemos, sua filosofia e seus modos predominantes de pensamento. Desenvolveram-se algumas idéias sobre moral, ética e consciência, chamando a atenção para o fato de que esses conceitos estão relacionados à uma cosmovisão específica &– a cosmovisão individualista-liberal. Foi demonstrado que a psicologia social da saúde não construiu mudanças radicais no seu percurso, pois muitos psicólogos sociais da saúde ainda mantêm suas práticas focadas principalmente na mudança do comportamento dos indivíduos. Por fim, sugeriu-se um modelo de psicologia social da saúde crítica.

Palavras-chave: Psicologia social, Psicologia da saúde, Saúde coletiva, Ética.


ABSTRACT

This is a theoretical article in which it was explored some queries related to the ethics of psychologists, as well as their responsibilities towards public health. It was contextualized the world we live in, its philosophy and its predominant ways of thinking. It was developed a discussion on moral, ethics and conscience, calling attention to the fact that these concepts are related to a specific cosmovision &– the liberal-individualistic cosmovision. It was demonstrated that the Social Health Psychology didn’t constructed radical changes in its stream, because many social health psychologists kept focusing their practices mainly on changing individual behaviors. In the end, It was suggested a critical model of Social Health Psychology.

Keywords: Social psychology, Health psychology, Public health, Ethic.


 

 

Introdução

Cada vez mais, a atuação de psicólogos na área da psicologia da saúde vem sendo questionada nos últimos anos (Spink, 1992), e um número crescente de psicólogos tem se interessado em atuar nesse campo. De fato, essa especialidade vem se mostrando como uma das principais áreas de inserção do psicólogo no cenário latino-americano, sendo a especialidade que mais tem crescido neste subcontinente nos últimos 20 anos (Conselho Federal de Psicologia, 2005).

Felizmente, juntamente com a prática dessa especialidade cresce também a crítica a essa prática. Nos últimos tempos, tem-se refletido sobre a prática de psicólogos no campo da saúde (Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública, 2006 e I Oficina Nacional da ABEP, 2006). Podemos perceber que, embora todos demonstrem vontade de que a psicologia da saúde seja uma prática verdadeiramente emancipadora, ainda continuamos presos em modelos que priorizam a modificação de comportamentos, mesmo quando trabalhamos sob o prisma da prevenção.

É objetivo deste artigo ampliar a discussão sobre os modos de atuação do psicólogo da saúde. Pretende-se aprofundar algumas questões relacionadas à ética dos profissionais da saúde, mais em específico, dos psicólogos, e questionar sobre qual a responsabilidade dos psicólogos frente à saúde coletiva. A pergunta que vai nortear a discussão é: O que nos pode dizer a psicologia quanto à responsabilidade frente à saúde coletiva?

Entende-se que ter responsabilidade por alguém significa responder publicamente a isso; significa que não se está sozinho no mundo e que cada pessoa tem que prestar contas de seus atos; tem que cumprir seus compromissos assumidos frente à sociedade. Quando alguém recebe o título de psicólogo, assume a responsabilidade pública de cuidar do Outro. Então, parte-se do pressuposto de que os psicólogos e as psicólogas têm algo a dizer sobre isso.

Por primeiro, tentar-se-á mostrar que no mundo em que vivemos prepondera uma visão individualista-liberal, a qual estimula a produção de indivíduos sujeitados a uma ética liberal e desumanizadora. Será ressaltada a relação entre consciência, moral/ética e responsabilidade, e será pontuado que a psicologia e a psicologia social não conseguiram estabelecer práticas que se libertassem dessa cosmovisão. Ao final, será apresentada uma proposta de ação para a psicologia social da saúde, a qual se sustenta numa cosmovisão comunitária-solidária. Esta se apóia especialmente numa epistemologia crítica, propositiva e utópica, na análise das relações de poder e na ética do cuidado.

O mundo em que vivemos

Todas as pessoas elaboram, ao longo de suas vidas, uma visão de mundo. Entende-se que uma visão de mundo é como alguém enxerga, percebe, e interpreta as pessoas e as coisas que o rodeiam, ou seja, é como alguém dá sentido e significado àquilo que o cerca. Mas, ao mesmo tempo, essa visão de mundo é construída a partir de uma prática, de um “se colocar” no mundo; é uma construção dialética entre enxergar, perceber e agir.

O ser humano, ao buscar um sentido ao seu mundo vivido, constrói modos de conceber e de interagir com o Outro; constrói uma filosofia de vida que sustenta e justifica a concepção adotada. Vai adquirindo convicções no seu modo de agir e defendendo-as, consciente ou inconscientemente. Assim, o modo como alguém compreende o mundo vai delineando o modo como ele vai tratar as pessoas, como vai se comportar, como serão suas atitudes. O seu “eu” (as suas decisões, o seu posicionamento a outros ethos) vai ter como colchão o social, isto é, ele está sempre inserido em um contexto que é construído histórico-culturalmente. É algo que está colado ao social.

A visão de mundo é algo pessoal, intransferível e subjetiva, mas ela passa, ao mesmo tempo, pela subjetividade social. Isso significa que uma pessoa não é apenas o resultado de uma série de elementos biológicos, genéticos; ela é, também, o resultado de milhares de relações que ela estabelece com o mundo que a rodeia. Justamente por isso, no cotidiano das pessoas, surge, continuamente, uma série de desafios e problemas que precisam ser enfrentados ou resolvidos, que se expressam em perguntas desse tipo: Como devo agir em dada situação? Devo falar sempre a verdade? Preciso respeitar aquelas pessoas que não me respeitam? No caso da psicologia, por exemplo, posso me perguntar: É certo negar atendimento àquelas pessoas que não podem pagar? É certo sugerir o aborto? É certo uma análise interminável?

Todas essas perguntas têm a ver com o devo-ou-não-devo, com o certo e com o errado, têm a ver com o sentido prático da vida e temos que resolvê-las, de uma forma ou de outra. Aí, as pessoas se defrontam com a necessidade de pautar o seu comportamento por normas e regras que julgam serem mais apropriadas de serem cumpridas. No fundo, há uma busca constante de tentar encontrar a melhor maneira de se viver em sociedade, a melhor maneira de ser feliz. Nessa busca, as pessoas recorrem às normas, formulam juízos, criam argumentos para justificar o caminho seguido.

Essas normas e juízos de valores propiciam que as pessoas compreendam que têm o dever de agir desta ou daquela maneira e são aceitas no nível da subjetividade individual e também social. Quando isso acontece, dizemos que o ser humano está agindo moralmente.

A moral se caracteriza por sua dimensão social, isto é, parte de um conjunto complexo de princípios, valores e regras. Ela nos leva a considerar os usos e os costumes através dos quais procuramos codificar nossos comportamentos. Assim, de acordo com Da Silva (1996), a moral define-se por uma situação de bondade e de maldade, enquanto praticados por um ser humano como agente consciente: é uma situação do bem e do mal em si e na sua qualidade de tornar responsável quem a escolhe e a realiza voluntariamente.

Quando os seres humanos se vêem na condição de ter que refletir sobre essa prática moral, eles entram na esfera dos problemas éticos (Vázquez, 1999). A palavra ética vem do grego ethos, que significa “modo de ser”, “costume” ou “caráter”. Tanto a moral como a ética não são aquisições “naturais”, mas são adquiridas pelo hábito, costume. Uma pessoa não nasce com uma moral ou com uma ética; ambas são construídas. Então, uma pessoa não nasce preconceituosa, não nasce virtuosa, pois preconceitos e virtudes originam-se do conviver em sociedade.

A ética não se define pelo individual, pelo meu agir; ela é muito mais geral, mais ampla, o que é muito bem explicado por Vázquez (1999): Os problemas éticos caracterizam-se pela sua generalidade e os problemas morais são os que se apresentam nas situações concretas, no cotidiano. A função fundamental da ética é explicar, esclarecer ou investigar determinada realidade.

Na maioria das vezes, as pessoas não param para pensar sobre as implicações morais, sobre o tipo de postura ética que vigora no nosso mundo e sobre todo esse ethos que nos envolve. Nem sequer param para pensar e refletir criticamente sobre como vêem o mundo, como a moral interfere na sua vida e sobre qual o tipo de ética que respalda seu discurso/ação. Dizemos que algumas pessoas têm consciência disso tudo, outras parecem não ter.

A consciência tem sido bastante estudada no campo da psicologia e merece alguma atenção, para que se possa insistir e chamar a atenção para a responsabilidade da psicologia no campo da saúde coletiva. O tipo de consciência desenvolvido permite o florescimento de determinado tipo de ética, e tudo o que uma pessoa faz passa pela consciência (que está em constante construção), e essa não é descolada do ethos: a consciência e o ethos ocorrem simultaneamente; assim, por essência, o mundo é relativo à consciência.

Se o mundo é relativo à consciência, podemos assumir que todas as pessoas são responsáveis por suas ações, quer dizer, todas as pessoas têm que responder às suas ações. Só que as respostas não são todas iguais, já que a consciência tem níveis diversos, o que foi muito bem explorado por Freire (1983).

Como a consciência é uma construção e não é algo dado e único, ela pode ser transformada e manipulada de acordo com os interesses de algumas pessoas, ou grupo de pessoas, que são aquelas que se apropriaram de determinados capitais e os têm dominado sistematicamente no tempo e no espaço. Isto quer dizer que certos tipos de consciência &– que vão gerar posturas éticas &– são mais estimulados e reforçados do que outros e estão relacionados a uma determinada visão de mundo.

Se quisermos defender a responsabilidade das pessoas frente a alguma situação, precisamos conhecer a visão de mundo que tem preponderado na nossa sociedade, e ver que existe uma relação muito forte entre consciência, moral/ética e responsabilidade. Como a consciência, a moral e a ética estão sempre relacionadas a ações humanas, elas estão, também, ligadas aos costumes, ao habitus e ao modo como as pessoas experimentam seu “mundo da vida” (no sentido Habermasiano). No mundo da vida, encontraremos diferentes experiências, diversos saberes, divergentes pontos de vista em uma mesma sociedade. Agora, quando encontramos a instituição de práticas comuns e o incentivo de padrões de massa, precisamos perguntar quais são os fundamentos que estão por trás disso, quais são os fundamentos que constroem o mundo dessa ou daquela maneira.

Em algumas sociedades, por exemplo, há maior ênfase em relações comunitárias. O ser humano é entendido como alguém singular, único e sua subjetividade é solidária. No oposto disso, encontramos sociedades que enfatizam as relações de competição, resultando em subjetividades capitalistas.

De um modo classificatório, poderíamos denominar algumas dessas cosmovisões de cosmovisão individualista-liberal, cosmovisão coletivista-totalitária e cosmovisão comunitário-solidária. Nesse momento, será aprofundada a discussão sobre a cosmovisão individualista-liberal e a comunitário-solidária. Entende-se que a primeira tem predominado na nossa sociedade e nas práticas dos psicólogos da saúde; a segunda será apontada como uma alternativa às práticas na psicologia social da saúde.

Cosmovisão individualista-liberal: implicações à saúde

Quais são as características mais marcantes do mundo moderno calcado na filosofia individualista-liberal? Ao contrário do pensado pelos idealizadores do projeto da modernidade, a política do neoliberalismo prega que a liberdade do indivíduo está acima da liberdade da comunidade, o que justifica uma série de desigualdades sociais. A conseqüência deste desequilíbrio, infelizmente, foi que o Lebenswelt [Habermas] deixou de ter força e importância, e as subjetividades características de cada comunidade foram engolidas por uma teoria política liberal e transformadas em uma subjetividade individual e individualizante.

Com a soberania de uma política neoliberal, floresce um social híbrido, que é um social repleto de anomalias, onde tudo é permitido em nome da liberdade. Esta é a definição de democracia nesses tempos. Ela vira sinal de salvação para qualquer caos ou problema. Ser democrático é entendido como ser justo, imparcial e neutro, o que confere o direito de um grupo de pessoas decidir por outras. Só que a democracia assume uma forma interessante, pois ela se realiza, segundo Habermas (1997), exclusivamente na forma de compromissos de interesses e as regras de formação do compromisso são fundamentadas nos direitos fundamentais liberais. O nervo do modelo liberal consiste na normatização constitucional e democrática de uma sociedade econômica, a qual deve garantir um bem comum apolítico, através da satisfação das expectativas de felicidade de pessoas privadas em condições de produzir.

Os valores da liberdade, igualdade e fraternidade passaram a ser supremacia nesse modelo e tudo o que não se enquadrasse nisso podia, com direito, ser julgado. A alteridade é anulada para que, em seu lugar surja uma massa social na busca desesperada da cidadania social. Como alerta Santos (1996), este tipo de cidadania traz sérios conflitos e contradições no seu âmago, pois, se por um lado a cidadania enriquece a subjetividade e abre-lhe novos horizontes de auto-realização, por outro, ao fazê-lo por via de direitos e deveres gerais e abstratos que reduzem a individualidade ao que nela há de universal, transforma os sujeitos em unidades iguais e intercambiáveis no interior de administrações burocráticas públicas e privadas, receptáculos passivos de estratégias de consumo, enquanto consumidores, e de estratégias de dominação, enquanto cidadãos da democracia de massas.

Se todas as pessoas precisam ser vistas como iguais, as diferenças precisam ser mascaradas. As cidadãs e os cidadãos sociais têm que agir de forma solidária, mas, do mesmo modo que nasce uma nova cidadania, brota um novo tipo de solidariedade, que se baseia no silêncio. E o que acontece com a ética, quando temos uma solidariedade desse tipo? Germina-se um novo tipo de ética: uma ética liberal. A filosofia liberal engendrou práticas sociais liberais: solidariedade liberal, mascaramento nas relações ao invés de compreensão e autocompreensão das diferenças, e legalização ao invés de participação. Isto impediu a verdadeira emancipação das pessoas e, no lugar dela, emergiu uma cidadania liberal, reguladora, atomizante e estatizante.

A ética, ao invés de libertar, fica limitada à natureza do individual e o modo de viver foi construindo uma moral repleta de discriminações e moldando um mundo cada vez mais injusto. A democracia virou sinônimo de delegação de poderes: o Outro se vê no direito de decidir por mim, e quando alguém se vê no direito de decidir por outra pessoa, a questão da normatização, da necessidade de leis que garantam a vida em sociedade, propicia um terreno fértil para o florescimento de uma ordem social democrática baseada na burocratização. A democracia burocrática precisa ser valorizada já que o povo não consegue ter participação nas decisões.

As práticas na psicologia também terminaram por se enquadrar nesse processo de burocratização, e uma das conseqüências em tratar a saúde como um “objeto burocrático” é que a saúde das pessoas, em geral, na modernidade, vem se deteriorando em um galopar progressivo e, a cada dia que passa, parece mais difícil para as pessoas se manterem saudáveis no mundo moderno.

Acontece que o direito à saúde tem sido um direito garantido para aquelas pessoas que têm condições de pagar pela saúde, ou seja, garantem seus direitos aquelas que podem pagar (e muito caro) por um plano privado de saúde. Direito à saúde e capital são interdependentes. Aqueles que não têm condições de pagar por um plano privado de saúde, enfrentam inúmeras dificuldades para receberem atendimento digno e, por que não dizer, humano. Aquelas pessoas que possuem certo capital econômico têm que abrir mão de muitas outras coisas para poderem financiar um plano privado de saúde.

Violações à saúde como a tortura física ou psicológica, assassinatos, estupros, fome e doenças fatais são mais fáceis de serem percebidas e colocadas à distância por quem não as sente na pele. Agora, violações como o hábito de esperar horas na fila para o atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS), ter uma consulta médica de cinco minutos, ter vergonha de sorrir por causa dos dentes cariados, ser proibida de sair de casa pelo parceiro, e fazer aborto em condições perigosas são alguns dos muitos exemplos de violações que as pessoas excluídas suportam todos os dias. Nessas “pequenas misérias” a saúde coletiva também se enliou e as responsabilidades dos psicólogos também.

Trajetórias da psicologia da saúde: psicologia social psicológica ou psicologia social sociológica?

Nesse momento, tentar-se-á mostrar que, a psicologia, como um todo, se constituiu seguindo a mesma linha de pensamento de uma sociedade excludente e apoiada em uma ética liberal.

De acordo com Fonseca (1995), a psicologia instalou-se dentro dos limites da modernidade, construindo concepções capazes de dizer que espécies o universo contém como as que não contém. Ela tem se revelado como prática discursiva sintonizada com as ideologias de dominação, com a ânsia de padronização e homogeneização, como fonte legítima para instaurar o desvio e o desviante.

O curso do desenvolvimento da psicologia social não foi muito diferente. Sabemos que a psicologia social foi influenciada por eventos como o Facismo e a Segunda Guerra Mundial (Farr, 1996; Moscovici, 1972), e que as pesquisas na psicologia social foram estimuladas pelas necessidades do mercado, nas quais o centro da discussão é a motivação, o indivíduo, e os aspectos interacionais são postos de lado. De fato, a questão toda tem a ver com a resolução de conflitos. O que se quer da psicologia social é que ela dê conta disso e, dessa maneira, possa servir aos interesses da sociedade capitalista.

Mas será que essa é a única forma de psicologia que encontramos? Não teria havido resistências ao enquadramento dessa disciplina na cosmovisão liberal? Segundo Farr (2000), desde que Durkheim fez a distinção entre representações individuais e representações coletivas, ele separou a sociologia da psicologia, criando, como conseqüência, uma crise de identidade para os psicólogos sociais, levando à coexistência de duas formas de psicologia, na atualidade: a forma psicológica da psicologia social e a forma sociológica da psicologia social.

Em resumo, a psicologia social psicológica está marcada por explicações centradas no indivíduo, em sua conduta e comportamento. Ao lado oposto disso, temos a psicologia social sociológica, que se desvincula da perspectiva cartesiana e sugere a construção de um espaço de intersecção onde o indivíduo e a sociedade são vistos como relacionais e interdependentes (Farr, 1996, 2000). Baseados nessa forma, encontramos o construcionismo social, os estudos culturais e a teoria crítica.

A forma psicológica tem sido evidente nos últimos tempos na psicologia da saúde. Por muitos anos, o que se referia à questão da saúde era tratado dentro do corpus maior da psicologia. Não havia uma subárea que tratasse especificamente da saúde. O surgimento da subárea da psicologia denominada psicologia da saúde foi, de certo modo, uma tentativa de modificar ou corrigir as carências nesse campo de ação (Evans, Sexton & Cadwallader, 1992).

Uma breve revisão de conceitos sobre psicologia da saúde pode trazer indicadores da forma de psicologia da saúde praticada e, também, que fundamentos éticos permeiam as ações da mesma.

Talvez um dos primeiros registros escritos de uma conceituação de psicologia da saúde foi na revista científica American Psychologist (Oregon), em 1980: “Psicologia da saúde é um agregado das específicas contribuições educacionais, científicas e profissionais da disciplina da psicologia à promoção e manutenção da saúde, à prevenção e ao tratamento das doenças, e à identificação dos correlatos etiológicos e diagnósticos da saúde, da doença e disfunções relacionadas” (Matarazzo, 1980, p.815). Alguns anos mais tarde, foram adicionados ao final da conceituação, o seguinte: “e à análise e melhoramento do sistema de saúde e à formação de políticas de saúde” (Matarazzo, 1982, p.4).

Tentando conhecer melhor o que é entendido por psicologia da saúde, Rodríguez-Marín (1995), fez uma extensa revisão sobre as diversas definições da área, resumindo a postura atual sobre psicologia da saúde como aquela que estuda os fatores emocionais, cognitivos e comportamentais associados à saúde e às doenças físicas dos indivíduos. A psicologia da saúde integra conceitos de diferentes disciplinas psicológicas, colaborando com o delineamento e aplicação de programas de intervenções individuais, grupais e comunitários para a promoção e prevenção da saúde, para o tratamento e reabilitação da doença e para a qualidade de vida do doente.

Para Rodríguez-Marín (1995) e para Rodríguez e Garcia (1996), na psicologia social da saúde interessa o estudo da conduta da saúde/doença em interação com outras pessoas ou, igualmente, com produtos da conduta humana, técnicas diagnósticas e de intervenção, organizações de cuidado de saúde, etc. Todas as atividades que implicam as atividades no conceito de psicologia da saúde são resultado das interações entre os profissionais e os usuários do sistema de saúde e se desenvolvem em tal interação.

Remor (1999) também apresentou uma interessante revisão sobre as origens, objetivos e perspectivas em psicologia da saúde, descrevendo que ela é “a disciplina que explica o porquê de determinados hábitos de comportamento que favorecem ou prejudicam a saúde. É a encarregada de estabelecer estratégias de modificação do comportamento; a que pode ajudar ao doente a conviver com a doença ou com a dor; a que ensina o tipo de interações que devem dar-se entre o profissional da saúde e o paciente etc.” (p.216).

Observem que a palavra-chave nas definições de psicologia da saúde, apresentadas até aqui, é comportamento. Está relacionada diretamente à mudança de hábitos, atitudes, condutas e sintomas. O objeto é bem concreto e também é concreto seu objetivo: modificar o comportamento dos indivíduos de modo que os mesmos permaneçam, ou se tornem, saudáveis, com qualidade de vida.

Enfim, a psicologia social da saúde, como produto da modernidade, adota uma concepção de saúde pessimista (baseada na doença), limitada (visa mudar comportamento/atitude), individualizante e discriminatória (atende diferenciadamente as pessoas). Como conseqüência, infelizmente, ela não tem conseguido dar conta de produzir significantes mudanças na área da saúde já que, no geral, as psicólogas e os psicólogos não têm mais tempo de parar e refletir sobre que tipo de psicologia estão fazendo, sobre seus valores e postura ética, pois a primazia está na produção.

Por uma ciência utópica e crítica

Com sustento nas reflexões acima, será sugerido uma alternativa à psicologia social da saúde que tem preponderado nos dias de hoje e que ainda não tem dado conta de responder à demanda social. Serão delineados dois pressupostos básicos para que se possa pensar em alternativas para a psicologia social da saúde, e será sugerido um modelo de psicologia social crítica da saúde, que se sustenta na forma sociológica apresentada anteriormente. O primeiro pressuposto refere-se à noção de utopia e o segundo ao tipo de ciência que queremos e precisamos fazer.

O conceito de utopia deve ser reconstruído para melhor servir às realidades atuais. A noção de utopia que Santos (2000) desenvolveu parece bem apropriada, pois ela se refere à exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade, e a exposição da imaginação à necessidade do que existe, em nome de algo radicalmente melhor por que vale a pena lutar e a que a humanidade tem direito.

Trabalhar com o conceito de utopia significa acreditar que o ser humano tem um lado “bom”, “positivo”, muito forte, capaz de vencer aquele lado “ruim”, “negativo”. O próprio viver exige a utopia, demanda pelo sonhar e pela esperança em milagres. Se assim não fosse, o que seria da humanidade? Para que rumos escuros nos encaminharíamos? Pensar desse modo é rejeitar a existência de uma “essência de poder” ou “poderes inatos”. O poder não é palpável; o poder não existe; o que existe são práticas ou relações de poder. O poder é responsável por grande parte das assimetrias, mas ele não é, de modo algum, unilateral; ele age de cima para baixo, irradiando-se de baixo para cima. Se houvesse uma essência de poder não haveria campo para argumentações e negociações. Nem haveria possibilidade para a utopia.

O segundo pressuposto defendido é de que a visão de ciência, e a própria postura dos cientistas frente a ela, deve mudar com urgência. Deve haver um câmbio no nível de consciência, ou seja, a consciência crítica é o elemento fundamental para fazermos uma psicologia da saúde transformadora. Essa mudança é paradigmática; ela exige que se critique constantemente a ciência per se e alguns conceitos estanques que estão concatenados e amalgamados no tempo.

Isso exige uma postura de humildade frente às pessoas. Afinal, o que é a verdade senão a compreensão humilde de que não somos nada nesse universo infinito sem o Outro? A humildade exige que os psicólogos da saúde pensem e façam política via abertura de espaço para a discussão de uma nova ética, que é a ética crítica e propositiva. Ora, para pensar sobre saúde do ponto de vista dos processos de exclusão é necessário uma mudança de perspectiva principalmente daquelas pessoas que fazem ciência. Ser cientista dentro desta nova perspectiva pressupõe, ao invés de um especialista, um ser humano igual, mas plural, um ser humano racional (argumentativo), mas empático.

Conscientizar, na psicologia social crítica da saúde, deve ser, seguindo a proposta de Freire (1983), uma proposta dialógica no qual o psicólogo refaz, constantemente, seus atos cognoscentes, na cognoscibilidade da pessoa excluída. As pessoas, ao invés de serem recipiente dócil, devem ser investigadoras críticas, em diálogo com o psicólogo, investigador crítica também. Através da proposta dialógica, argumenta Guareschi (1973), tenta-se capturar sua Weltanschauung, sua visão de mundo. É um modo de ajudar as pessoas a preencherem sua vocação ontológica, engajar na construção da sociedade e ser orientadas para a mudança social, e substituir a consciência mágica por uma consciência mais crítica.

Isto é, humildemente pode-se problematizar, compreender e mediatizar a reflexão crítica do Outro e a nossa mostrando as contradições existentes nas falas, no cotidiano, no mundo como um todo. E para que esse processo se efetive dentro da psicologia social da saúde, precisamos abrir um canal por onde as pessoas oprimidas possam ter voz, possam falar. É através da fala das pessoas com menor capital social que pode-se assumir uma atitude de humildade e perceber que somos “todos os mesmos, isto é, humanos” e não deuses.

Ser visto e ouvido por outros, é importante pelo fato de que todos vêem e ouvem de ângulos diferentes. Somente quando as coisas podem ser vistas por muitas pessoas, numa variedade de aspectos, sem mudar de identidade, de sorte que os que estão a sua volta sabem que vêem o mesmo na mais completa diversidade, pode a realidade do mundo manifestar-se de maneira real e fidedigna (Arendt, 1999).

Assim, buscando respaldo em uma psicologia mais esperançosa e humilde, encontramos, em um lado oposto à cosmovisão individualista-liberal, o outro modo de entender saúde, que parte de uma cosmovisão comunitário-solidária, que vem constituindo-se em uma psicologia social crítica da saúde. Nesse modelo, entende-se saúde como uma construção social, que está intrinsecamente relacionada à ideologia dominante e à cultura de cada comunidade. Neste sentido, o corpo - como nos movimentamos, o que comemos, os medicamentos que ingerimos, os rituais de autocuidado cotidianos &– é visto como um agente da cultura.

A saúde pessoal (pessoa) precisa da saúde pública (sociedade) para se manter. A pessoa e a sociedade estão imbricados um no outro, não se pode entender a saúde a partir de dualismos. As conseqüências das epidemias e “pestes”, ao longo da história, mostram que sem uma ação (pública) efetiva, tanto o privado como o público podem adoecer. A doença, por sua vez, não é somente um evento isolado, nem uma infeliz colisão com a natureza; é uma forma de comunicação através da qual a natureza, a sociedade, e a cultura falam simultaneamente (Scheper-Hughes & Lock, 1987).

Também, a atenção primária (promoção da saúde) é fundamental numa psicologia social crítica da saúde. Fazer prevenção neste modelo não significa simplesmente objetivar a diminuição e erradicação da doença, mas facilitar o desenvolvimento da ação política das pessoas, de modo que o espaço público pertença efetivamente, também, às pessoas excluídas. Aqui se prioriza o trabalho em comunidade, a relação dialética entre as pessoas que trabalham diretamente com saúde e aquelas que não trabalham, e ação política das pessoas que vivem na comunidade. Busca-se conscientizar (no sentido Freiriano) as pessoas que vivem na comunidade para que elas batalhem pela sua dignidade. O investimento é intracomunitário e inter-comunitário, já que para desenvolver a reflexão crítica é necessário entender o contexto maior, que é histórico e culturalmente construído.

As psicólogas e os psicólogos sociais que buscam sustentação neste modelo devem basear suas ações em uma ética solidária, a qual assume o autocuidado juntamente com o cuidado do Outro, e a compreensão do Outro ou invés da simples tolerância. Procuram apresentar formas de eliminar a categoria excluído, ou seja maneiras de romper as relações assimétricas de dominação que perpassam a relação médico/paciente. Não há aquele que ensina e aquele que aprende, pois como lembra Freire (1983), ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa sozinho; os seres humanos se educam em comunhão, através da mediação do mundo.

Enfim, o modo como se dá a prática está calcado em uma perspectiva histórico-crítica, onde se entende saúde, e conseqüentemente a sociedade e as comunidades, a partir do conceito de “relação”. Neste sentido, a prática do psicólogo precisa ser feita não na solidão de um consultório, ou da instituição, mas em conjunto com outras pessoas.

Uma proposta de ação em psicologia social crítica da saúde

Como a categoria psicólogo e outras categorias que trabalham com saúde podem dar conta, ao mesmo tempo, do real e da utopia, particularmente em um mundo onde vigora a (in)tolerância, a falta de consciência crítica e a liberdade calcada em uma filosofia liberal?

Dois caminhos podem ser iluminadores para o desenvolvimento da ação de psicólogos sociais: (a) Analisar as relações de poder imbricadas no campo da saúde; e (b) estimular a ética do cuidado.

A análise das relações de poder não se refere unicamente à análise do cientista, mas à análise do participante da pesquisa. O participante não apenas deve servir de fonte para enxergarmos as desigualdades, mas deve ser o “analisador” de seu processo, já que ele é possuidor de um saber vital. Entretanto, aqui há um movimento duplo por parte do pesquisador: ao mesmo tempo em que se deve respeitar o senso comum, como alerta Moscovici (1972), ele tem que desconfiar da sabedoria popular. Certamente, isso pode levar algum tempo, mas não devemos esquecer que ninguém é um receptor passivo de formas simbólicas; há sempre uma interação com o que é dito e produzido e não podemos desvalorizar o saber popular.

Dois podem ser os movimentos para realizar uma análise das relações de dominação: (a) preocupação com os macropoderes e (b) preocupação com os micropoderes. O primeiro movimento consiste em analisar o nível macro, das estruturas, ou seja, mostrar a ideologia que está atuando por trás das instituições que trabalham com a saúde, desvelando as relações de poder que são obscuras. A psicologia que se interessa por saúde de forma crítica precisa estar atenta à ideologia que reforça e cria os processos de exclusão de modo a compreender as premissas de “verdadeiro” e/ou “falso” e procurar desocultar as relações de dominação.

Para desvelar a ideologia, pode-se, por exemplo, sugerir que determinado grupo de moradores traga reportagens de jornais que versem sobre problemas na área da saúde relevantes àquela comunidade e discutam criticamente sobre elas. Pode-se começar por investigar “Quem fala o que para quem?” (lugar de onde se fala), “Como as coisas acontecem?” (modus operandi) e “Como os operadores de dominação constituem sua fala?” (modo de discurso). O psicólogo poderá estimular o debate fazendo perguntas do tipo “Quem escreveu?”, “Por quê?”, “Entrevistaram moradores?”; “Concordam ou não com a reportagem?”, “Em que momento histórico aquilo foi escrito?”, etc.

Ao analisar os diferentes discursos embutidos nas relações de dominação e ao questionar os métodos de subjugação ou de estratégias ideológicas apresentados nas diferentes culturas, as pessoas poderão encontrar alternativas às relações de dominação.

Thompson (1995) tem sido um dos autores que melhor tem desenvolvido uma proposta metodológica, denominada Hermenêutica de Profundidade (HP), que dá conta da interpretação desses métodos e estratégias. A partir desse enfoque, podemos interpretar as opiniões, crenças e compreensões, no que se refere à saúde e à doença, que são sustentadas e partilhadas pelas pessoas que constituem o mundo social. Também, devemos fazer uma análise das condições e contextos sócio-históricos de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, examinar as regras e convenções, as relações sociais e instituições, e a distribuição de poder, de recursos e de oportunidades.

O segundo movimento para a análise das relações de poder relaciona-se ao estudo dos micropoderes. Aqui se pode buscar apoio na obra de Foucault (1999). O autor propõe um método que possibilita mostrar como são as relações de sujeição efetivas que fabricam sujeitos.

Vale lembrar que adotar uma metodologia preocupada com o “micro” significa que se podem encontrar forças e somar esforços naquilo que, aparentemente, parece de menor força que são as técnicas e táticas de dominação. Para acabar com a dominação que massacra a saúde das pessoas não basta apenas descrever o aparelho “saúde” (macropoderes), como os hospitais, as clínicas, o Sistema Único de saúde, privilegiando a análise da ideologia subjacente a eles. É preciso estudar o corpo e os efeitos sobre ele; dissecar as relações de poder e a produção de saberes sobre a doença e a saúde (micropoderes). É fazer um estudo dos poderes-saberes que se apoiam em uma cosmovisão individualista-liberal.

Ao lado da análise das relações de poder, encontra-se a necessidade de se firmar a ética crítica e propositiva, ou seja, ao mesmo tempo em que se procura criticar o que está aí, buscam-se alternativas para transformar as relações injustas. Segundo Guareschi (1998), a ética crítica e propositiva significa que ela está sempre por se fazer, e à medida em que ela se atualiza, ela passa a sofrer suas contradições, e por isso deve ser questionada, criticada e deve propor algo novo. A ética é uma busca infinita, interminável, uma consciência nítida de nossa incomplitude, um impulso permanente em busca de crescimento e transformação.

É quando o Outro entra em cena que nasce a ética, pois é o outro, é seu olhar, que nos define e nos forma (Eco, 2000), e nos transforma. Propor uma ética baseada na relação e não no individualismo, pressupõe o diálogo, a argumentação; pressupõe que todas as pessoas tenham voz e sejam ouvidas. Sustenta-se através da racionalidade, ou seja, a partir de um filtro discursivo e do agir comunicativo, apontando para uma argumentação, na qual os participantes justificam suas pretensões de validade perante um auditório ideal sem fronteiras. Os participantes de uma argumentação partem da suposição idealizadora de que, no espaço social e no tempo histórico, existe uma comunidade comunicacional sem fronteiras e têm que pressupor a possibilidade de uma comunidade ideal “dentro” de sua situação social real.

A reflexão efetuada pelos participantes de uma comunidade deve culminar em um entendimento mútuo. Esta não é uma tarefa fácil, segundo Habermas (1998), pois, independentemente de seu background cultural, todos os participantes sabem muito bem que o consenso baseado na convicção não pode acontecer enquanto relações injustas existirem entre os participantes &– é preciso relações de reconhecimento mútuo, de perspectivas recíprocas, de se dispor a considerar as tradições do Outro com o olhar de um estranho e aprender com o Outro. Com base nisso, nós poderemos criticar as leituras seletivas, as interpretações tendenciosas, as aplicações de mentalidades estreitas dos direitos humanos, a desavergonhada instrumentalização dos direitos humanos que escondem interesses particulares por trás de uma máscara universalística.

Uma ética crítica na psicologia social da saúde, associada ao agir comunicativo, permitirá o desenvolvimento e o fortalecimento da virtude do cuidado, quer dizer, uma ética do cuidado. Estamos tendo cuidado um para com o Outro na nossa sociedade? Estão os psicólogos sociais preocupados em realmente cuidar do Outro ou estamos simplesmente mais interessados nos lucros? É tempo de parar e se perguntar: Estamos cuidando da saúde?; Que tipo de cuidado dedicamos a nós e aos Outros?; Qual a nossa responsabilidade enquanto psicólogos frente à saúde coletiva? O cuidado pode servir, como lembra Boff (1999, p.13), “de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador de um novo paradigma de conviviabilidade”.

Há aqui um aspecto importante a ser ressaltado. Uma ética baseada no cuidado, não consegue existir sem que venha acompanhada, ao mesmo tempo, do autocuidado e da responsabilidade pelo Outro. Os termos autocuidado e responsabilidade aqui relacionam-se diretamente a um conceito um pouco perdido no tempo e no espaço, que é o conceito de amor. Amor no mesmo sentido em que professou Martin Luther King, em 1963: “Quando eu digo ‘amor’ nesse momento, eu não estou falando sobre emoção afetuosa. (...). Não faz sentido instigar as pessoas, as pessoas oprimidas, a amar seus opressores em um sentido afetuoso. Eu estou falando de algo muito mais profundo. Eu estou falando sobre um tipo de entendimento, criativo, que resgata a benevolência para todos os seres humanos” .

Concluindo, através da análise das relações de poder e da adoção de uma ética do cuidado poderemos libertar a psicologia social (da saúde) da cosmovisão individualista-liberal e nos tornarmos verdadeiramente eternamente responsáveis por aquelas pessoas que cativamos.

 

Considerações finais

Existem diversos modos de compreender o mundo, que levam a diferentes práticas, as quais, por sua vez, são orientadas pela moral e pela ética. Por que a consciência sobre essas práticas é uma construção, ao mesmo tempo, individual e social, pode ser manipulada de acordo com certos interesses.

A psicologia da saúde nasceu apoiando-se numa cosmovisão individualista-liberal. Como uma alternativa ao que está aí, a psicologia social crítica da saúde nasce a partir de uma cosmovisão comunitário-solidária, baseando-se em uma forma sociológica de psicologia social. Epistemologicamente, assume uma postura crítica e propositiva, frente aos processos de exclusão e opressão, e frente às políticas públicas e aos documentos que pretendem garantir os direitos humanos.

Uma psicologia social crítica da saúde deve partir de uma visão crítica e utópica de ciência, na qual é fundamental que se construa uma ponte entre os direitos universais e os direitos de minorias sociais, se reelabore o conceito de saúde, se analisem as relações de poder e se estimule a ética do cuidado.

Para finalizar, salienta-se que não foi alvo desse artigo detalhar um projeto alternativo à psicologia da saúde que está aí, e nem se objetivou responder a todos os problemas da área da saúde. Também não foi propósito negar a importância da psicologia da saúde “tradicional”. A questão não é eliminar esse modelo que já conquistou muitas vitórias, mas questionar a hegemonia do mesmo, pois ele tem se mostrado incompatível com mudanças mais radicais nas estruturas sociais, já que não abala as estruturas que reforçam e promovem os processos de exclusão.

Em uma psicologia social da saúde crítica, ao lutarmos pelos direitos à saúde (através da análise das relações de poder, da ética do cuidado e da valorização da utopia), a esperança no milagre, ou no sonho, refloresce como pequenos brotos em uma terra aparentemente árida. O campo da saúde &– pelo qual somos eternamente responsáveis &– transforma-se em um jardim fértil repleto de botões de rosa, ávidos para serem cuidados, autocuidados, amados e respeitados por todas as pessoas.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: roso@fulbrightweb.org

Recebido em abril de 2006
Aceito em dezembro de 2006

 

 

* Adriane Roso: psicóloga; doutora em Psicologia pela PUCRS; especialista em Saúde Pública pela ESP/UFRGS/FIOCRUZ.

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