SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número26Perspectivas no estudo do brincar: um levantamento bibliográficoAprendizagem na ação revisitada e seu papel no desenvolvimento de competências: Learning in action revisited and its role in the competences development índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.26 Canoas dez. 2007

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A utilização do Consentimento Informado em psicoterapia: o que pensam psicoterapeutas psicanalíticos

 

The use of the informed consent in psychoanalytic psychotherapy

 

 

Rita Petrarca TeixeiraI,*; Maria Lucia Tiellet NunesII,**

I Universidade Luterana do Brasil - ULBRA Gravataí. Curso de Psicologia
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Faculdade de Psicologia. Pós-Graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a atenção aos princípios da Bioética já são obrigatoriamente aplicados na pesquisa com seres humanos, mas pouco utilizados na área de atendimentos psicoterápicos, mesmo sendo estes considerados a expressão de uma atitude ética correta que deve estar presente nas relações entre psicoterapeuta e paciente. Assim, através da análise de conteúdo de cinco entrevistas semi-estruturadas com psicanalistas e psicoterapeutas de orientação psicanalítica foi possível compreender que o TCLE é considerado apenas um documento formal, sendo sua utilização percebida como desnecessária e até prejudicial para a relação psicoterapêutica, apesar de considerarem os princípios bioéticos de Beneficência e Respeito fundamentais para a prática psicoterápica.

Palavras-chave: Ética, Bioética, Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, Psicoterapia psicanalítica.


ABSTRACT

The use of the informed consent in psychoanalytic psychotherapy and the attention to the bioethics’ principles are mandatory in the research with human beings, but they are rarely used area of psychological therapies and counseling, even thought these are considered a correct ethical attitude expression that must be present in the relations between the psychotherapist and the patient. Thus, through the content’s analysis of five semi-structured interviews performed with psychoanalysts and psychoanalytic psychotherapists, it was possible to understand that the TCLE is considered only a formal document, and its use is seen as not only unnecessary and but also even harmful to the psychotherapy relation, although the interviewers consider bioethical principles of Beneficence and Respect essential to the psychotherapist practice.

Keywords: Bioethics, Informed consent, Psychoanalytic psychotherapy.


 

 

Introdução

O processo de consentimento é uma condição indispensável da relação profissional-paciente e da pesquisa com seres humanos, sendo este a expressão de uma atitude eticamente correta como referem Clotet, Goldim e Francisconi (2000).

A literatura descreve o consentimento como um ato de decisão voluntária, realizado por uma pessoa competente, embasada em adequada informação e que seja capaz de deliberar tendo compreendido a informação revelada, aceitando ou recusando propostas de ação que lhe afetam ou poderão lhe afetar (Baú, 2003; Clotet & cols., 2000; Fortes, 1998;)

Como resultado do processo de consentimento, o uso do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) já é obrigatoriamente aplicado na pesquisa e na experimentação com seres humanos. Na área assistencial, é menos utilizado e, por vezes, tem apenas a finalidade de registrar que o paciente recebeu informações sobre os procedimentos e as condutas que serão realizadas. Para muitos, como referido por Clotet e cols. (2000) tem apenas o significado de gerar prova deste processo de informação, na tentativa de eximir o profissional de futuras conseqüências. Contudo, existem profissionais que consideram o TCLE uma parte integrante e fundamental da relação profissional-paciente.

O TCLE é fundamentado pelo Princípio bioético do Respeito à pessoa nos seus valores fundamentais. De acordo com Clotet (1995), o reconhecimento da autonomia do outro &– seja este sujeito de pesquisa ou paciente &– e a insistência para que isto seja respeitado representam um aperfeiçoamento da prática médica e de outras profissões da área de saúde que têm interesse pelo diálogo e pela relação com o paciente, tendo por linha mestra o princípio fundamental do respeito pelo outro.

Clotet (1993) refere ainda que o Princípio do Respeito às pessoas, exige que o profissional aceite que o paciente se autogoverne, ou seja, que ele seja autônomo, quer nas suas escolhas, quer nos seus atos. Deve respeitar a vontade do paciente ou de seu representante, assim como seus valores morais e crenças, reconhecendo o domínio do paciente sobre a própria vida e o respeito à sua intimidade.

A autonomia é um conceito fundamental para o Princípio do Respeito às pessoas. Etimologicamente, o termo autonomia significa a condição de quem é autor de sua própria lei; de um modo geral &– independência, ausência de imposições ou condições externas. A partir desse significado, Cabral (1996) afirma que a autonomia prescreve o respeito pelas escolhas e decisões autônomas e livres. Na prática, implica promover, quanto possível, o comportamento autônomo por parte do paciente, informando-o convenientemente, assegurando a correta compreensão da informação e a livre decisão.

Sendo assim, pode-se afirmar que é o paciente quem de forma ativa deve autorizar as propostas a ele apresentadas e não meramente assentir em um plano terapêutico, por meio de uma atitude submissa às ordens do profissional.

Outro princípio bioético que reforça a importância da utilização do TCLE é da Beneficência. Esse princípio afirma, de modo geral, que sejam atendidos os interesses legítimos dos indivíduos e que, na medida do possível, sejam evitados danos. Ocupa-se, portanto, da procura do bem-estar e interesses do paciente, e está fundamentado na tradição hipocrática.

Fortes (1998) aponta que a corrente utilitarista considera que o Princípio da Beneficência justifica que, em certas circunstâncias, a informação possa ser sonegada ao paciente ou, mesmo, que a ele seja ocultada a verdade. Legitima que o profissional de saúde maneje qualitativamente ou quantitativamente as informações a serem fornecidas e, ao mesmo, esteja isento de revelá-las caso possam conduzir a uma deterioração do estado físico ou psíquico do paciente, afetando a tomada das decisões.

Também para a ética das conseqüências (consequencialismo), há casos em que a mentira pode trazer benefícios ao paciente. Sua justificativa fundamenta-se na tese de que para reparar a desintegração produzida pela enfermidade, é preciso violar até certo ponto a autonomia da pessoa, objetivando restaurá-la.

As dificuldades existentes em assegurar a transmissão dos conhecimentos técnicos às pessoas leigas parecem justificar a impossibilidade da existência de um consentimento totalmente esclarecido. Rebatendo essa tese, Fortes (1994) afirma que não há eticamente necessidade de que as informações prestadas sejam tecnicamente detalhadas. É suficiente que sejam leais, compreensíveis, aproximativas e inteligíveis para que a manifestação autônoma do indivíduo seja garantida.

Para Vieira (1998), a obtenção do TCLE é um processo de negociação que exige respeito aos direitos e à dignidade do paciente. Exige ainda que o profissional esteja convencido de que, embora tenha competência para tratar de seu paciente, não tem o direito de decidir por ele.

Dessa forma é possível afirmar que para que o paciente tenha liberdade para consentir, é preciso que a práxis dos profissionais de saúde esteja imbuída da noção do respeito ao princípio da autonomia individual, pois, em razão do domínio psicológico, conhecimento especializado e habilidades técnicas do profissional, é possível que inviabilizem a real manifestação da vontade do paciente.

As informações contidas no TCLE, contudo, devem ser adaptadas às circunstâncias do caso e às condições sociais, psicológicas e culturais, utilizando-se um padrão orientado para cada paciente. O padrão subjetivo requer uma abordagem informativa apropriada a cada indivíduo. A discussão sobre cada situação deve ser feita adaptando-se aos valores e expectativas psicológicas e sociais de cada pessoa, sem ater-se a fórmulas padronizadas.

Os pacientes devem, segundo essa linha de raciocínio, ser considerados como únicos, não padronizáveis, e o consentimento, com adequada informação, deve se basear, não na escolha de uma suposta alternativa científica ou tecnológica, mas sim na melhor para aquela pessoa.

Esse padrão obriga o profissional de saúde a ser realmente respeitador da autonomia individual e requer que descubra, baseando-se nos conhecimentos e na arte de sua prática, o que efetivamente cada pessoa gostaria de conhecer e o quanto gostaria de participar das decisões (Fortes, 1998).

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Cesarino (1998) aponta que em psicoterapia o paciente deve ser informado de maneira suficientemente clara sobre o tratamento que se propõe de forma a poder tomar com independência e conhecimento a decisão de se submeter ou não a esse procedimento.

Mas a relação entre psicoterapia e TCLE é ainda incipiente em nossa cultura. Um estudo examinou a opinião e a prática do TCLE entre psicoterapeutas. Duzentos e trinta e um profissionais responderam a seis escalas evidenciando que os psiquiatras não usam e têm uma opinião negativa sobre o TCLE (p = 0,005). Entre os psicoterapeutas não médicos, foram os de orientação psicodinâmica que obtiveram o menor escore (p= 0,003), revelando também uma opinião negativa sobre a prática do consentimento (Croarkin, Berg & Spira, 2003).

Contudo, em função do crescente número de processos legais e éticos contra psicoterapeutas vem crescendo no Brasil (Hanns, 2004), a exemplo do que já ocorre na realidade norte-americana, percepção da imprevisibilidade e vulnerabilidade a qual os psicoterapeutas estão submetidos na atualidade (Hedges, 2001).

No entanto, o TCLE não deve ser confundido com uma tentativa de proteção legal, tanto para o paciente quanto para o psicoterapeuta; ele é acima de tudo a evidência de um comportamento eticamente correto.

 

Método

Como a metodologia escolhida é qualitativa, não se teve como objetivo estabelecer qualquer tipo de generalização estatística. Assim, a escolha dos participantes foi realizada de forma intencional, dirigida e por conveniência, em um total de cinco psicoterapeutas de orientação psicanalítica a partir dos seguintes critérios: Reconhecida representatividade e respeitabilidade na comunidade psi, evidenciáveis em suas titulações acadêmicas ou pela formação psicanalítica através de órgãos filiados a International Psychoanalytical Association (IPA); Produção científica acerca da psicoterapia de orientação psicanalítica (livros, artigos em periódicos ou resumos publicados em anais); Exercício de atividades didáticas em cursos de formação de psicoterapeutas ou de psicanalistas e por este motivo foram considerados formadores de opinião; Exercício de funções de coordenação de instituições formadoras de psicoterapeutas ou de psicanalistas; Tempo mínimo de 15 anos de experiência em psicoterapia de orientação psicanalítica como uma forma de garantir uma trajetória e uma identidade profissional plenamente estabelecidas, sendo, portanto, capazes de refletir, questionar e avaliar a prática da psicoterapia de orientação psicanalítica.

O grupo de participantes foi então constituído de cinco profissionais, sendo que três tem com formação original a Psicologia e dois a Psiquiatria.

A coleta de dados realizou-se através das entrevistas individuais, de natureza semi-estruturada, com o auxílio de um roteiro, constituído de cinco perguntas abertas sobre o tema da utilização do TCLE em psicoterapia psicanalítica.

As entrevistas foram gravadas e os dados obtidos a partir das transcrições foram trabalhados com base no método de Análise de Conteúdo de Bardin (1988), como forma de organizar o material produzido nas entrevistas, transformando-o de material bruto em categorias temáticas, passíveis de serem analisadas e interpretadas. A utilização do método, portanto, foi direcionada pelos objetivos e pelo de tipo de interpretação, visando à compreensão das categorias constituídas a partir do discurso dos participantes.

 

Resultados e discussão

As verbalizações decorrentes das entrevistas realizadas foram agrupadas em três categorias finais: Termo de consentimento e clínica; Termo de consentimento inócuo; e, Termo de consentimento, supervisão e publicação, sendo estas cotejadas com dados da literatura.

O TCLE é considerado desnecessário na psicoterapia de orientação psicanalítica, não tendo sido usado por nenhum dos psicoterapeutas entrevistados durante as suas vidas profissionais no consultório. O fato dos entrevistados não utilizarem o TCLE não significa que eles não informam o paciente sobre os procedimentos do tratamento psicoterapêutico. Parece, no entanto, que o TCLE e o processo de consentimento nem sempre andam juntos.

Os psicoterapeutas não usam o TCLE e têm uma opinião negativa a respeito, o que vai ao encontro dos resultados obtidos por Croarkin e cols. (2003), em cujo estudo também foi encontrada opinião negativa quanto ao uso do TCLE entre psicoterapeutas. Os entrevistados do presente estudo ainda referem, que não conhecem nenhuma experiência nesse sentido e não sabem de profissionais que fazem uso do TCLE em consultório.

A idéia de utilizar o TCLE no consultório privado causa desconforto e espanto. Pensar em apresentar para o paciente um documento que requer a assinatura de ambos e no qual estão estabelecidos alguns direitos e deveres da dupla é percebido como algo descontextualizado da cultura da clínica privada. Também, de acordo com os psicoterapeutas, a utilização do TCLE em consultório está vinculada a um contexto específico e a um tipo de sociedade, a saber, a norte-americana.

A obrigatoriedade na utilização do TCLE está ainda associada à regulação dos atendimentos psicoterapêuticos por Cooperativas de Saúde e Convênios. Dessa forma, os psicoterapeutas apresentam uma visão legalista do TCLE, descrevendo-o como um termo de isenção de responsabilidades e não como uma atitude ética.

A atitude expressa pelos entrevistados pode ser atribuída ao desconhecimento em relação às razões que levam à utilização do TCLE. Sabe-se, contudo, que o TCLE faz parte de um campo muito mais amplo: a Bioética.

A visão dos psicoterapeutas acerca da idéia de que usar o TCLE não faz parte da cultura psicoterapêutica evidencia que esta prática está atravessada não apenas pela cultura, mas principalmente pela moral da prática psicoterapêutica.

Entende-se, a partir das idéias de Goldim (1997) e Vàzquez (1999), que a Moral está ligada a costumes e hábitos aceitos de forma generalizada e que regulam as ações de um grupo de acordo, sendo assim não usar o TCLE é moralmente aceito e reforçado pela comunidade psi da qual fazem parte os entrevistados. Dessa forma, é possível inferir que não usar é moralmente aceito, mas não eticamente adequado.

Foi grande, por parte dos psicoterapeutas, o número de razões que expressam falta de necessidade do TCLE em psicoterapia. Um dos principais argumentos é a falta de benefícios que este documento traz para o paciente e para a relação psicoterapêutica, pois entendem o TCLE como apenas um documento e não como uma forma ética de conduzir as relações entre psicoterapeuta e paciente. Além de não oferecer benefícios, a utilização é percebida como algo que pode prejudicar a relação e o processo psicoterapêutico.

Sendo então, o TCLE um documento que não gera benefícios para o paciente e pode provocar danos no relacionamento psicoterapeuta-paciente, a não utilização estaria seguindo o Princípio da Não-Maleficência como conceituado por Loch, Kipper e Gauer (2003).

Além disso, o TCLE ainda é entendido como um obstáculo para a relação psicoterapêutica, pois poderia gerar no paciente a fantasia de que o psicoterapeuta estaria buscando se proteger.

O fato de considerar-se que existem aspectos do tratamento psicoterapêutico que não devem ser partilhados com o paciente, pois isto pode gerar efeitos negativos para o paciente e para o progresso do tratamento, evidencia-se uma atitude paternalista, na qual o profissional acredita poder decidir pelo paciente, como foi referido por Vieira (1998).

Pode-se, contudo, pensar que a não utilização do TCLE encobre uma atitude baseada no que Hävry (1998) define como paternalismo autorizado, pois o paciente, ao estar em tratamento, estaria autorizando implicitamente a assimetria de papéis e de poder.

Além de não trazer benefícios, as informações, contidas num TCLE para uso em consultório, já são fornecidas ao paciente, através do contrato terapêutico.

A partir dessas conceituações é possível inferir que o contrato e o TCLE podem ser sinônimos no que diz respeito ao processo de informação. Entretanto, o TCLE não é a apresentação de regras técnicas que fundamentam a relação entre as partes, mas a negociação de aspectos que fazem parte da psicoterapia e não são explicitados em um contrato terapêutico, como a supervisão, o uso de informações fornecidas pelo paciente em situações de ensino e na produção científica. Tal negociação só é possível a partir do encontro entre psicoterapeuta e paciente, tomando-se o conceito levinasiano de Ética. Para Levinas a Ética começa quando entra em cena a dimensão da alteridade, isto é, da aceitação e do respeito pelo outro (Souza, 2000, 2004).

Logicamente não está definindo neste estudo que o TCLE deva substituir o contrato terapêutico, até porque muitos dos termos de consentimento utilizados em situações de atendimento psicoterapêutico tendem a atender apenas o que estabelece a lei, como refere Goldim (1998) e nem que o TCLE retire do psicoterapeuta a autoridade necessária para o progresso do tratamento psicoterapêutico de seu paciente.

O fundamental é que o processo de consentimento livre e esclarecido possa fazer parte da psicoterapia como uma manifestação da atitude ética adequada, sendo assim, formalizando-a com um documento &– o TCLE.

A primeira idéia dos psicoterapeutas entrevistados é que o TCLE é um documento utilizado em situações jurídicas frente a processos legais contra psicoterapeutas, podendo dessa maneira, constituir-se numa proteção para o profissional. A concepção do TCLE como uma prova legal para eximir o profissional de possíveis conseqüências é bastante presente na área da saúde, como referem Clotet e cols. (2000).

Mas mesmo considerando o TCLE como um documento possivelmente com força legal, as opiniões são divergentes, pois, se por um lado o TCLE é um documento de proteção legal para o psicoterapeuta; por outro, ele pode fragilizar e coagir o paciente frente ao aumento de poder que representa, o que acarreta em prejuízo para ao processo psicoterapêutico. Nesse sentido, o TCLE é considerado inócuo, ineficaz ou prejudicial pelos psicoterapeutas.

Cabe ressaltar que o TCLE, conforme Zanini (2004), não isenta o profissional de eventuais processos legais, sendo facilmente desconsiderado, em juízo, na defesa do profissional, uma vez que o consentimento pode ser avaliado como uma arma de constrangimento ao paciente.

Chama a atenção o fato dos profissionais apontarem que o consentimento serve para proteger o psicoterapeuta, invertendo toda a construção histórica desse documento que surgiu em benefício do paciente.

Se o TCLE não é eficaz, do ponto de vista legal, para proteger o psicoterapeuta também não é, do ponto vista ético, para proteger o paciente. Assim os psicoterapeutas revelam a ineficácia do TCLE no que se refere ao caráter do profissional. Sabe-se que, se o psicoterapeuta quiser agir de forma inadequada com o paciente, não será o TCLE que irá impedi-lo, pelo contrário, ele pode servir para acobertar a má prática profissional. No entanto, tal limitação não justifica a ausência do TCLE.

É evidente que um grande número de situações pode ocorrer na prática psicoterapêutica sem que o psicoterapeuta tenha como prever. Portanto, estas não estariam contidas no TCLE. Como mencionado pelos psicoterapeutas, as perversões do setting existem e nenhum documento pode evitá-las, assim como, situações que envolvem atendimento de crianças e adolescentes, no qual o sigilo está sempre ameaçado pelos pais.

Essa noção dos entrevistados reduz o TCLE a uma questão deontológica, isto é, pensam o documento como se fosse um conjunto de normas capazes de prevenir condutas profissionais inadequadas, como é conceituado o código deontológico por Badéia (1999).

Ainda argumentando acerca da ineficácia do TCLE, os entrevistados expressam que também, do ponto de vista da Ética, o documento não garante uma conduta adequada por parte do profissional. Salienta-se que é o processo de consentimento que evidencia a conduta ética adequada, enquanto o TCLE apenas documenta esta atividade. Se existe portanto, o processo, por que não existe o documento?

 

Considerações finais

A não utilização do TCLE em clínica privada está, no entanto, muito mais relacionada à técnica do que a qualquer outro fator. A técnica apoiada fortemente na base teórica da Psicanálise adquire o papel de moral e passa a regular a prática psicoterapêutica. Sendo assim, não existe o costume de usar o TCLE e não existe o conhecimento do que seja efetivamente este documento.

Os aspectos que deveriam estar contidos no TCLE, na visão dos entrevistados, são contemplados no contrato terapêutico, que é verbal e ainda hoje, segue muitas das recomendações técnicas de Freud.

De acordo com os entrevistados, existem somente aspectos negativos na utilização do TCLE em clínica privada e nesse sentido não utilizá-lo estaria baseado no Princípio da Beneficência ou Não-Maleficência, mas que parece encobrir uma atitude paternalista.

Também em decorrência do desconhecimento do TCLE como uma atitude de respeito ao paciente, os entrevistados o conceituam como um documento de dominação, tanto do ponto de vista legal, a fim de proteger o psicoterapeuta, quanto do ponto de vista da relação psicoterapêutica, que por sua natureza, é assimétrica.

Ainda foi possível verificar que uma série de argumentos desqualifica o uso do TCLE em clínica privada. Ele é considerado um instrumento de poder do psicoterapeuta, um documento deontológico e por isso ineficaz em muitas situações, um obstáculo para a relação psicoterapêutica que é centrada na confiança e na palavra, enfim, desnecessário.

Num quadro de profundas modificações culturais não há como negar que também a psicoterapia exige de todos um esforço continuado de reflexão crítica. Tenho conhecimento que esse é um assunto amplo, complexo e se encontra fora das discussões atuais dos psicoterapeutas. Assim, este estudo propõe-se muito mais a questionar do que a oferecer respostas, apresentando-se como um convite para a reflexão acerca dos valores presentes no modelo teórico e na prática clínica da psicoterapia de orientação analítica.

 

Referências

Badéia, M. (1999). Ética e profissionais da saúde. São Paulo: Santos.        [ Links ]

Bardin, L. (1988). Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70.        [ Links ]

Baú, M. K. (2003). Capacidade jurídica e consentimento informado. Bioética, 11 (1), 285-296.        [ Links ]

Cabral, R. (1996). Os princípios de autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Em L. Archer, J. Biscaia & W. Osswald (Orgs.), Bioética (pp.53-58). Lisboa: Editorial Verbo.        [ Links ]

Cesarino, A. C. M. (1998). Ética e psicoterapia. Em S. V. Betarello (Org.), Perspectivas psicodinâmicas em psiquiatria (pp. 33-46). São Paulo: Lemos Editorial, 1998.        [ Links ]

Clotet, J. (1993). Por que bioética? Bioética, 1 (1), 13-19.        [ Links ]

Clotet, J. (1995). A Bioética: Uma ética aplicada em destaque. Em Anais do I Seminário Internacional da Filosofia e Saúde (pp.115-119), Florianópolis, SC.        [ Links ]

Clotet, J., Goldim, J. R., & Francisconi, C. F. (2000). Consentimento informado e a sua prática na assistência e pesquisa no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS.        [ Links ]

Croarkin, P., Berg, J., & Spira, J. (2003). Informed consent for psychotherapy: a look at therapist´ understanding, opinions and practices. American Journal Psychotherapy, 57 (3), 384-400.        [ Links ]

Fortes, P. A. de C. (1994). Reflexões sobre a bioética e o consentimento esclarecido. Bioética, 2, 129-135.        [ Links ]

Fortes, P. A. de C. (1998). Ética e saúde: Questões éticas, deontológicas e legais, tomadas de decisões, autonomia e direitos do paciente, estudos de caso. São Paulo: EPU.        [ Links ]

Goldim, J. R. (1997). Manual de iniciação à pesquisa em saúde. Porto Alegre: Dacasa/PDG Saúde/PPGA.        [ Links ]

Goldim, J. R. (1998). Psicoterapias e bioética. Em A. V. Cordioli (Org.), Psicoterapias &– Abordagens atuais (pp. 119-133). Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Hanns, L. A. (2004). Regulamentação em debate. Psicologia: Ciência e Profissão, 1(1), 6-13.        [ Links ]

Hävry, H. (1998). Paternalism. Em R. Chadwock (Org.), Encyclopedia of applied ethics (pp. 267-274). San Diego: Academic Press.        [ Links ]

Hedges, L. E. (2001). O desafio das memórias recuperadas em psicoterapia. Em L. E. Hedges, H. V. W. Hilton & O. B. Caudill (Orgs.), Terapeutas em risco: Perigos da intimidade na relação terapêutica (pp. 37-96). São Paulo: Summus.        [ Links ]

Loch, J. de A., Kipper, D. J., & Gauer, G. J. C. (2003). Bioética, psiquiatria e estudante de medicina. Em A. N. Cataldo, G. J. C. Gauer & N. R. Furtado (Orgs.), Psiquiatria para estudantes de medicina (pp. 91-97). Porto Alegre: EDIPUCRS.        [ Links ]

Souza, R. T. de. (2000). Sentido e alteridade: Dez ensaios sobre o pensamento de Emmanuel Levinas. Porto Alegre: EDIPUCRS.        [ Links ]

Souza, R. T. de. (2004). Razões plurais: Itinerários da racionalidade ética no século XX. Porto Alegre: EDIPUCRS.        [ Links ]

Vàzquez, A. S. (1999). Ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.        [ Links ]

Vieira, S. (1088). Pesquisa médica: A ética e a metodologia. São Paulo: Pioneira.        [ Links ]

Zanini, M. (2004). Consentimento assinado ou informado &– qual a melhor opção? Em Anais Brasileiros de Dermatologia (pp. 367). Rio de Janeiro, RJ.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: psicogra@ulbra.br

Recebido em março de 2007
Aceito em junho de 2007

 

 

* Rita Petrarca Teixeira: psicóloga; doutora em Psicologia pela PUCRS; docente do Curso de Psicologia da ULBRA Gravataí.
** Maria Lucia Tiellet Nunes: psicóloga; doutora em Psicologia pela Universidade Livre de Berlim; docente da Faculdade de Psicologia e do Pós-Graduação em Psicologia da PUCRS.

Creative Commons License