SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número27Auto-revelação na Internet: um estudo com estudantes universitáriosFenomenologia da queixa depressiva em adolescentes: um estudo crítico-cultural índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.27 Canoas jun. 2008

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Recordação autobiográfica: reconsiderando dados fenomenais e correlatos neurais

 

Autobiographical recollection: reconsidering phenomenological data and neural correlates

 

 

Gustavo GauerI,*; William Barbosa GomesII,**

I Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de Psicologia
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Investigações recentes sobre memória humana têm retomado a relevância dos dados fenomenais da experiência consciente de recordar. Essa tendência tem encontrado aceitação sobretudo no estudo da memória autobiográfica. Neste trabalho são revisadas soluções metodológicas adotadas no estudo de correlatos neurais desses processos. São apresentados dois modelos explicativos dos fenômenos da memória autobiográfica: o modelo de monitoramento de fonte e o modelo de processos componentes. No monitoramento de fonte, qualidades do estado de recordação determinam os julgamentos concernentes ao evento e à lembrança. Em contraste, o modelo de processos componentes não requer uma ordem serial para esse processamento, a percepção das qualidades e os julgamentos podendo ocorrer paralelamente. Argumenta-se que os dois modelos convergem por enfatizar os processos conscientes característicos da recordação. No contexto desses estudos constitui-se uma fenomenologia experimental, definida como o estudo empírico e sistemático de dados da experiência fenomenal, tomados como correlatos de processos cognitivos subjacentes.

Palavras-chave: Memória autobiográfica, Recordação, Fenomenologia, Neurociências.


ABSTRACT

Recent inquiries on human memory have recovered the relevance of phenomenal data in understanding recollection. This trend has been consistent especially in autobiographical memory research. This study reviews some recent methodological approaches to the relationship between those processes and their neural correlates. Additionally, we review two frameworks for investigating autobiographical memory: source monitoring and component processes. In source monitoring, qualities of recollection determine judgments concerning the event and the memory itself. In contrast, the component process framework imposes no serial order for those processes, accepting that perception of qualities and judgments may occur in parallel. We argue that both models converge in stressing the implicit processes of recollection. Finally, both frameworks are ascribed to a common approach to the phenomenal qualities of experience. In that sense, they constitute an experimental phenomenology, understood as systematic empirical inquiry into conscious experience, with phenomenal data as correlates of implicit cognitive processes.

Keywords: Autobiographical memory, Recollection, Phenomenology, Neuroscience.


 

 

Introdução

A investigação dos fenômenos de recordação de eventos pessoais baseia-se grandemente em relatos da experiência consciente. Tais relatos se caracterizam por articular um conjunto de qualidades, entre as quais: a revivência da experiência passada original; a imaginação em múltiplas modalidades; a recuperação de pensamentos e afeto da experiência original; a atribuição de lugar e tempo específicos; e a crença de que o evento original foi efetivamente experimentado (Greenberg & Rubin, 2003). A crença de que o evento original realmente ocorreu é baseada em atributos e conteúdos da memória, e em marcadores fenomenais de passado. Especialmente no caso das memórias pessoais, a descrição dos aspectos fenomenais que acompanham uma determinada tarefa cognitiva pode colaborar com a explicação das habilidades investigadas da mesma forma que a identificação das regiões cerebrais ativadas durante as tarefas tem ajudado a explicar os respectivos sistemas cognitivos (Brewer, 1995). Dados de qualidades fenomenais da experiência de lembrar clarificam o papel das características de memórias na identificação da sua origem, no julgamento da sua realidade, e na influência seletiva do tempo e do ensaio sobre a manutenção de memórias de eventos pessoais (Johnson, 1988).

Entende-se por memória autobiográfica a recuperação de eventos específicos na história de vida de uma pessoa (Rubin, 1998). Esse processo vem sempre acompanhado de um estado subjetivo denominado de recordação consciente, característico da memória autobiográfica em contraste com outros processos de memória (Greenberg & Rubin, 2003). As experiências pessoais relevantes constituiriam um repertório de eventos com significados pessoais, considerando que nem todos os eventos que aconteceram e acontecem com um indivíduo fazem parte da autobiografia dele. A história de vida em que consiste a autobiografia é composta por alguns eventos pessoais &– aspecto episódico da memória &– mas apenas por alguns deles, selecionados por terem significado pessoal &– aspecto semântico da memória (Dall´Ora, Della Sala & Spinnler, 1989).

O fato de a memória autobiográfica ser definida pela presença de um estado consciente específico coloca desafios metodológicos importantes, sobretudo para o seu mapeamento em modelos neurocognitivos. Existem pelo menos três níveis de evidência relevantes à modelagem de processos cognitivos: o comportamental, o anatomo-fisiológico, e o fenomenal/experiencial. A evidência comportamental é amplamente reconhecida nas práticas da pesquisa experimental em psicologia cognitiva. Trata-se de evidência diretamente observável e quantificável, aferida na forma de medidas de desempenho na tarefa - tradicionalmente tempo de reação e proporção de acertos.

A aceitação do segundo nível, da evidência neural, tem conhecido um grande crescimento em virtude dos avanços tecnológicos em técnicas de neuroimagem funcional. São indicadores diretos de processos biológicos claramente observáveis durante o desempenho em tarefas cognitivas. Eles são passíveis de observação direta e quantificação, e apresentam a vantagem de uma representação gráfica de forte apelo. Assim, as áreas do Sistema Nervoso Central (SNC) são identificadas como correlatos neurais dos processos cognitivos engajados quando da realização de tarefas de conhecimento, por exemplo codificação, armazenamento e recuperação de informação na memória.

Por sua vez, os dados fenomenais, aqueles relatados pelo indivíduo sobre sua experiência com uma tarefa, durante ou após a execução da mesma, são vistos com reservas por muitos pesquisadores. Pesquisadores refratários ao uso de evidência fenomenal argumentam que esses dados, coletados através de técnicas de introspecção, não atendem a critérios metodológicos de quantificação e fidedignidade (Jack & Roepstorff, 2002). Tem-se então a tradicional rejeição, em várias tradições de pesquisa psicológica, da experiência de primeira pessoa. As justificativas são conhecidas: a experiência em primeira pessoa é mediada pela linguagem sofrendo os sobressaltos das nuanças semânticas e sendo ainda influenciada por intenções e expectativas do pesquisador e do participante, comprometendo a interpretação do dado (Jack & Roepstorff). Até aqui nenhuma novidade para aqueles que reconhecem a importância dos dados fenomenais e já se acostumaram com o descaso para essa classe de evidência em estudos psicológicos. A grande novidade é que a situação começa a mudar, não por influência dos pesquisadores da fenomenologia qualitativa, mas pelo reconhecimento, por psicólogos experimentais, das limitações dos níveis comportamentais e anatomo-fisiológico para a compreensão e explicação da memória autobiográfica. As qualidades fenomenais têm sido ressaltadas em estudos experimentais dos processos cognitivos associados à memória autobiográfica (Brewer, 1995; Johnson, 1988; Johnson, Hashtroudi & Lindsay, 1993; Rubin, 1998; Rubin, Schrauf & Greenberg, 2003; Tulving, 1983; Wheeler, Stuss & Tulving, 1997) e aos fenômenos de recordação (Berntsen, Willert & Rubin, 2003; Rubin, Feldman & Beckham, 2004).

O objetivo do presente estudo é apresentar uma nova modalidade de fenomenologia experimental que vem articulando com sucesso a introspecção e a quantificação das qualidades fenomenais. Tal movimento, inicialmente postulado por Johnson (1988), atualiza-se em iniciativas como a da neurofenomenologia, que mais recentemente procura soluções de articulação entre dados comportamentais e fenomenais com evidência anatomo-fisiológica na modelagem de processos cognitivos (Lutz & Thompson, 2003). A presente exposição está organizada em quatro partes. A primeira analisa quatro estudos recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais. A segunda traz dois modelos para o estudo experimental de qualidades fenomenais da experiência de recordação: 1) monitoramento de fonte (Johnson e cols., 1993) e 2) processos componentes (Rubin, 1998). A terceira analisa as convergências e divergências dos dois modelos apresentados, destacando as contribuições e limites para o desenvolvimento da fenomenologia experimental. Por fim, a quarta parte define e justifica o uso do termo fenomenologia experimental para estudos de memória que articulam os níveis comportamentais, anatomo-fisiológicos e fenomenais.

Articulações de evidências comportamentais, neurais e fenomenais

A consciência autonoética é a principal propriedade definidora da memória autobiográfica (Greenberg & Rubin, 2003). O termo noética foi usado no passado para se referir ao estudo das leis fundamentais do pensamento, entre as quais se destacam a identidade e a contradição. Por proximidade, cabe lembrar que o termo noético refere-se à atividade intelectual e tem sido usado por autores de tradição fenomenológica como relativo à noese. A fenomenologia de Husserl recorreu aos termos noese e noema para diferenciar o ato do objetivo visado pelo pensamento: a experiência é composta não apenas pela consciência do seu conteúdo &– aspecto noemático &– mas também pelo conhecimento tácito, da própria consciência como processo em andamento &– aspecto noético (Ferrater-Mora, 1979; Lutz & Thompson, 2003). Essa distinção, embora não seja peculiar aos estudos experimentais da memória, ajuda a contextualizar a presente revisão e a especificar o uso do termo fenomenal. Em resumo, pode se dizer então que a consciência autonoética é o senso de estar revivendo o evento, incluindo a crença de que ele realmente aconteceu da forma como está sendo lembrado, e a capacidade de contextualizá-lo no tempo e no espaço (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997).

A demarcação da consciência autonoética, que é um dado fenomenal referente a uma experiência em primeira pessoa, tem sido operacionalizada nos termos de um julgamento sobre o caráter do conhecimento da memória que está sendo recuperada, conhecido como “lembrar versus saber”. Se efetivamente “lembramos” do evento, temos um estado autonoético, e trata-se de uma memória autobiográfica. Por outro lado, se apenas “sabemos” que o evento aconteceu, o estado é considerado noético, e a informação recuperada é de caráter semântico (Wheeler, Stuss & Tulving, 1997). Ainda que uma informação semântica recuperada possa ser referente a um evento pessoal, é somente na presença da consciência autonoética se pode afirmar que há recuperação de uma memória autobiográfica. O ponto de partida da presente exposição é o modo como tal problema metodológico vem sendo encaminhado em estudos experimentais da memória autobiográfica. Passaremos então à análise de quatro estudos recentes que articulam evidências comportamentais, neurais e fenomenais.

O primeiro exemplo é o estudo de Greenberg e cols. (2005), que identificou a co-ativação da amídala, hipocampo e giro frontal inferior durante a recordação autobiográfica. A pesquisa foi realizada em duas etapas. Na primeira etapa, solicitava-se aos participantes que recuperassem 50 memórias autobiográficas e indicassem pistas para que cada uma delas pudesse ser evocada posteriormente. Como pistas, podiam ser usadas algumas palavras ou mesmo uma sentença descritiva do evento. Cada memória recuperada era avaliada pelo participante, usando para tanto o Questionário de Memória Autobiográfica (QMA). O QMA contemplava uma série de aspectos fenomenais da experiência de recordação, como veremos adiante neste artigo. Na segunda etapa, os participantes eram submetidos aos procedimentos de escaneamento de Ressonância Magnética Funcional (RMF), quando eram apresentadas a eles as pistas por eles geradas sobre suas próprias memórias, as quais deveriam reconhecer como eventos pessoais (conhecimento episódico). Essas pistas autobiográficas eram entremeadas por descrições conceituais, às quais deveriam responder citando exemplos das categorias (conhecimento semântico). Os resultados que diferenciaram as duas situações apontaram para ativações, predominantamente lateralizadas no hemisfério esquerdo (HE), de amídala, hipocampo e giro frontal inferior. Os autores ressaltam que a validação dos dados de ativações neurais em conjunto com a análise da tarefa como efetiva recordação autobiográfica é possível somente mediante os dados de propriedades fenomenais aferidos através do questionário.

O segundo exemplo é o estudo de Cabeza e cols. (2004) sobre a atividade cerebral durante evocação episódica de eventos autobiográficos. Nesse experimento, os participantes utilizaram câmeras digitais para fotografar pontos específicos do campus universitário. A seguir, os pesquisadores recolhiam as fotografias de todos os participantes. As fotografias eram então embaralhadas e a reapresentadas aos participantes para reconhecer que fotos foram tiradas por eles ou por outros. Procedia-se à tarefa de reconhecimento no scanner do RMF. Foi possível então comparar reconhecimentos verdadeiros e falsos de itens “autobiográficos” &– expostos no contexto natural &– e itens-controle, apresentados na situação de laboratório. Os resultados mostraram uma ativação mais intensa em regiões associadas a processamento-autoreferente (córtex pré-frontal medial), memória visual/espacial (regiões corticais parahipocampais e visuais), e recordação episódica (hipocampo). É interessante notar neste experimento como a situação foi manipulada para poder alcançar os dados fenomenais. Em primeiro lugar, criou-se uma situação em que a recordação de eventos pessoalmente vivenciados pudesse ser comparada, em termos de acuidade da recuperação e controle de variáveis durante a codificação e recordação de outros itens. Note-se que no caso deste estudo não houve uma produção de dados de introspecção propriamente ditos. Contudo, a evidência fenomenal foi operacionalizada em termos do desemepnho na prova de reconhecimento: o reconhecimento correto da fotografia “autobiográfica” foi a medida da existência do processo de consciência autonoética.

O terceiro exemplo é o estudo de Kahn, Davachi e Wagner (2004) sobre os correlatos funcionais-neuroanatômicos da recordação. Este paradigma procurou controlar, na situação de reconhecimento, a presença do estado de recordação (episódica) e ausência do mesmo (fonológica). Participantes estudaram uma lista de adjetivos em duas condições de processamento. Em metade dos itens, a ordem da tarefa foi “episódica”: criar uma imagem mental de uma cena relacionada ao adjetivo. Na outra metade, a ordem foi “fonológica”: recitar a palavra de trás para diante. No scanner de RMF, os participantes responderam se os itens apresentados estavam na lista ou não, e se foram estudados na condição fonológica ou episódica. Na tarefa de decidir pela condição de estudo, independente da condição original em si, os resultados apontaram para múltiplas regiões do córtex pré-frontal (CPF) esquerdo, convencionalmente ligadas a processos de controle de recuperação. Por outro lado, ativações diferenciadas foram encontradas entre reconhecimento com recordação (regiões parahipocampais, bilateralmente) e conhecimento sem recordação (regiões pré-motoras posteriores ventrolaterais no HE), o que foi identificado pelos autores como um efeito de recapitulação.

Por fim, o estudo de Piolino e cols. (2004), utilizando Tomografia por Emissão de Pósitrons (TEP), procurou identificar regiões cerebrais envolvidas na recuperação de memórias autobiográficas recentes (menos de um ano desde o evento) e remotas (cinco a dez anos). Esperava-se mudanças na experiência fenomenal de recordação de eventos pessoais com o aumento do intervalo de armazenamento, traduzida em dois julgamentos: mudança no ponto-de-vista de campo (perspectiva de primeira pessoa na cena) para observador (perspectiva de terceira pessoa), e mudança no julgamento de “lembrar” do evento (experimentando um estado de recordação consciente) para “saber” do evento (conhecimento da informação do evento sem recordação consciente). No scanner, os participantes foram instruídos a mentalmente reviver episódios pessoais e posteriormente relatá-los em voz alta. Os resultados indicaram ativação em comum &– tanto memórias remotas quanto recentes &– em uma rede lateralizada no HE, extensa porém com grande concentração de estruturas do CPF. Quanto aos aspectos fenomenais das recordações, eventos recentes apresentaram-se com imagens mentais mais vívidas em detalhes, e acompanhados de um senso de consciência autonoética mais acentuado do que eventos remotos.

A apreciação deste conjunto de estudos demonstra um esforço em identificar os correlatos neurais dos processos de recordação autobiográfica. Dois aspectos principais podem ser ressaltados nesta análise. Primeiro, uma relativa concordância em torno das estruturas e circuitos cerebrais correlacionados com as tarefas de recordação. Segundo, a recentidade desta linha de investigação. Esta recentidade, embora possa ser provocada por um desleixo histórico pelo fator experiencial na explicação de processos cognitivos e psicológicos em geral (Jack & Roepstorff, 2002; Tulving, 1983), demonstra que o interesse e o reconhecimento da importância deste tipo de dado vêm crescendo a ponto de instigar a comunidade de pesquisadores a desenvolver paradigmas especificamente voltados a possibilitar a correlação entre dados neurais, comportamentais, e fenomenais.

No sentido desses desenvolvimentos, Jack e Roepstorff (2002) advogam pela atenção à evidência fenomenal aferida através de protocolos e relatos de introspecção na explicação de processos cognitivos. Os dados diretamente observáveis e aceitos como fonte de evidência na pesquisa cognitiva &– comportamental e anatomofisiológico &– têm sido cruciais para a formulação de modelos cognitivos de processos psicológicos. Os autores argumentam que a correlação entre dados neurais e comportamentais, embora tradicionalmente aceita desde os avanços nas técnicas de neuroimagem, baseia-se num procedimento que acaba demonstrando-se sujeito a julgamento relativamente subjetivo, a análise de tarefa (task analysis). É por meio da análise de tarefa que um pesquisador definirá qual processo cognitivo está em funcionamento quando se observa uma determinada resposta comportamental, concomitantemente à ativação de determinadas regiões cerebrais. Essa definição, que estabelece que uma área do SNC é a “sede” de um processo cognitivo, baseia-se em uma premissa que não é plenamente consensual no âmbito das neurociências. A premissa é de que um padrão de ativação de estruturas cerebrais depende de qual módulo cognitivo está ativo naquele momento, ou seja, a correlação é direta e causal entre ativação do substrato neural e processamento cognitivo. O problema é que a correlação entre os processos cognitivos envolvidos e a ativação cerebral depende do modelo de processamento cognitivo de que se trata, se paralelo ou serial. A idéia de processamento serial é tradicionalmente aceita em psicologia cognitiva, em virtude do modelo computacional corrente em que representações são transmitidas e transformadas de um módulo para outro de forma sequencial. Por exemplo, a divisão clássica de Atkinson e Schiffrin da memória em três armazenamentos &– sensorial, curto e longo prazo &– prevê um fluxo de informação serial, de uma estrutura para a outra, e de volta. Por outro lado, alguns autores têm apontado para a existência de processos em paralelo, conformando um modelo de processos componentes (Roediger, Buckner & McDermott, 1999; Rubin, 1998).

Como exemplo de papel crítico que os dados de relatos fenomenais podem exercer nesse contexto, os autores citam o problema das funções do córtex pré-frontal. Com base apenas na lógica de análise de tarefa, diversos estudos identificaram inúmeras funções para essas regiões, chegando-se a ponto de se considerar ser impossível distinguir quais as suas funções específicas (Jack & Roepstorff, 2002). Na realidade, o que acontece é que qualquer tarefa que visa a avaliar desempenho cognitivo ativa, em certa medida, áreas do córtex pré-frontal, simplesmente porque a execução delas envolve planejamento e controle cognitivo e comportamento direcionado a metas, em outras palavras, funções executivas. Uma solução para este problema é o método subtrativo. As áreas somente podem ser identificadas como efetivos correlatos dos processos de interesse na medida em que, das ativações durante a tarefa que caracteriza o processo, forem subtraídas as ativações de uma tarefa de comparação, muito próxima daquela, porém diferenciada num aspecto crítico que caracterize o processo de interesse. Por exemplo, no estudo de Cabeza e cols. (2004), a diferença crucial entre as respostas possíveis era o acerto no processamento auto-referente quando do reconhecimento da fotografia tirada por si mesmo, visto que, de resto os estímulos visuais, bem como os processos de recuperação episódica eram rigorosamente equivalentes. Daí a importância de uma atenta operacionalização da evidência fenomenal que define o processo de memória autobiográfica, como se verificou nesse e nos outros estudos de neuroimagem que analisamos.

As características do funcionamento do córtex pré-frontal estão entre os correlatos neurais cujo estudo mais pode se beneficiar da análise de dados fenomenais. Como exemplos de funções mais bem compreendidas com a análise de dados fenomenais provenientes de roteiros e relatos, podem ser lembrados o uso de metas e estratégias metacognitivas em comportamento executivo, memória de trabalho e resolução de problemas; o pensamento com recurso a representações na forma de imagens mentais; processos temporais e relação figura/fundo em tarefa atencionais; além das próprias capacidades de memória autobiográfica, e seus processos componentes, desde a codificação, retenção e recuperação, até o senso fenomenal de recordação consciente que caracteriza este em contraste com outros tipos de memória. Por fim, Jack e Roepstorff (2002) ressaltaram a importância do uso de evidência introspectiva, sistematicamente aferida na forma de relatos em que os participantes categorizam ou avaliam aspectos específicos da sua experiência. Tais evidências prestam-se à análise estatística e a procedimentos de controle fundamentais ao mapeamento por neuroimagem, tornando-se muito úteis para a explicação das funções cognitivas mais complexas.

Modelos utilizados na pesquisa de qualidades fenomenais da experiência de recordação

Paralelamente ao avanço dos estudos de neuroimagem, dois modelos vêm se destacando no campo da pesquisa de qualidades fenomenais de recordação com base em dados comportamentais e introspectivos: monitoramento de fonte e processos compomentes. O modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a função das características fenomenais (contextuais e perceptuais) de memórias na realização de julgamentos cognitivos sobre a realidade do evento e sobre a fonte da lembrança (Johnson & cols., 1993). Em contrapartida, o modelo de processos componentes tem enfatizado a relação entre características fenomenais da consciência autonoética e diversos processos cognitivos relacionados a memórias de diferentes tipos de eventos pessoais, especialmente memórias vívidas (Rubin, 1998). Esses modelos não são radicalmente discordantes, mas mantêm peculiaridades quanto à classificação de processos fenomenais, quanto à precedência causal da explicação, e quanto à caracterização de um estado distinto de consciência autonoética. A seguir, passa-se ao exame dos respectivos modelos.

Modelo de Monitoramento de Fonte (MMF)

O modelo de monitoramento de fonte, proposto por Johnson e colaboradores, procura dar conta dos processos envolvidos na realização de julgamentos sobre a origem de memórias, conhecimento e crenças (Johnson, 1988; Johnson, Foley, Suengas & Raye, 1988; Johnson & cols., 1993). Em termos de eventos específicos, o termo “fonte” se refere às condições em que a memória foi adquirida. Essas condições incluem os contextos espacial, temporal e social do evento; e o meio e a modalidade através dos quais o indivíduo recebeu a informação. Características qualitativas, ou fenomenais, que configuram a fonte de uma determinada memória incluem informação perceptual, contextual e afetiva, detalhamento semântico, e operações cognitivas &– por exemplo, registros de elaboração e recuperação prévia daquela memória. Esse conjunto de características que memórias autobiográficas apresentam são a base a partir da qual sujeitos fazem discriminações sobre a efetiva realidade dos eventos, como no caso de discernir memórias de pensamentos e imagens das memórias de eventos efetivamente percebidos; e sobre a fonte da informação, diferenciando entre várias possíveis fontes sensoriais e racionais, internas e externas. Em resumo, entende-se que a classificação que fazemos de eventos como reais ou imaginários, internos ou externos, resulta de processos de atribuição ou julgamento baseados em qualidades fenomenais e subjetivas da experiência (Johnson). Dessa forma, o modelo enfatiza a utilidade de se examinar características fenomenais de memórias de eventos complexos a fim de compreender a natureza do processo de recordação (Johnson e cols., 1988). O modelo de monitoramento de fonte (source monitoring) ressalta a função das características fenomenais de memórias na realização de julgamentos cognitivos sobre a realidade do evento e sobre a fonte da lembrança (Johnson e cols., 1993). Estudos nessa linha têm levantado evidências relevantes para o entendimento das relações entre memória e emoção (D’Argembeau & cols., 2003; Schaefer & Philippot, 2005), e entre a presença de informações perceptuais/contextuais e o discernimento entre eventos reais (percebidos) e imaginados (Destun & Kuiper, 1999; Johnson & cols., 1988; Kealy & Arbuthnott, 2003). A emoção é definida como a força afetiva que agrega significado a um determinado evento na forma de marcador somático (Damasio, 2003; McGaugh, 2003). Para uma revisão recente sobre a abordagem de memória e emoções em neurociência cognitiva, recomenda-se o trabalho de LaBar e Cabeza (2006).

O instrumento utilizado em estudos de monitoramento de fonte é o MCQ &– Memory Characteristics Questionnaire, desenvolvido por Johnson e cols. (1988). O MCQ consiste em 39 questões respondidas em relação a um evento produzido em algum tipo de tarefa de recordação ou imaginação. Estudos na linha do Modelo de Monitoramento de Fonte verificaram que eventos reais (percebidos) recentes relacionaram-se a maior quantidade de informação espacial, detalhes perceptuais, e respostas emocionais (Johnson e cols., 1988). Eventos imaginados, por sua vez, estiveram mais relacionados a raciocínio do que a vivacidade de imagens. Em outro estudo, Destun e Kuiper (1999) encontraram eventos prazerosos, tanto reais quanto imaginários, com escores mais altos no MCQ do que eventos estressantes. D’Argembeau e cols. (2003) compararam eventos positivos, neutros e negativos, concluindo pela relação entre a emocionalidade dos eventos e vivacidade do conteúdo perceptual das memórias. As memórias positivas foram recordadas com maior riqueza de detalhes &– mais informação sensorial e contextual &– que as negativas. Eventos positivos também foram mais elaborados, ensaiados e acessados com maior facilidade. Kealy e Arbuthnott (2003) compararam eventos percebidos, eventos imaginados livremente, e eventos imaginados de forma guiada pelos pesquisadores. Eventos percebidos tiveram maiores escores em praticamente todas as medidas do MCQ.

Modelo de Processos Componentes (MPC)

O Modelo de Processos Componentes (MPC) foi proposto por Rubin e colaboradores (Greenberg & Rubin, 2003; Rubin & cols., 2003; Rubin & Siegler, 2004; Talarico & Rubin, 2003) para o estudo da recuperação da memória autobiográfica, entendida como recordação consciente. O modelo toma as habilidades de memória autobiográfica como produtos da interação de três grupos de processos componentes: recordação e crença, processos cognitivos componentes, e propriedades atribuídas a eventos e memórias. Essas dimensões correspondem a aspectos fundamentais presentes nas principais definições de memória autobiográfica, memória episódica, e experiência de recordação, e estão embasadas em dados comportamentais e neuropsicológicos (Greenberg & Rubin, 2003).

Uma série de sistemas neurocognitivos têm sido identificados como processos componentes da lembrança autobiográfica, incluindo os processos centrais de codificação e recuperação: lembrança episódica; imaginação visual, auditiva e espacial-multimodal; emoção; linguagem; e narrativa (Greenberg & Rubin, 2003). Dados comportamentais indicam que esses componentes formam o conjunto fundamental de processos necessários para recordar memórias autobiográficas. Também nesse sentido, evidências de estudos neuropsicológicos apontam que problemas nesses processos, que têm seus próprios correlatos neurais, causam prejuízos específicos nas habilidades de memória autobiográfica.

A recordação de eventos passados implica em um estado de consciência específico que difere dos estados correspondentes à manifestação de outras habilidades cognitivas e perceptuais. Tal estado, reconhecido como crucial à memória autobiográfica e que constitui a dimensão de recordação e crença no modelo de Processos Componentes, corresponde às descrições de Tulving e seus colaboradores sobre a recordação episódica e a consciência autonoética (Tulving, 1983; Wheeler & cols., 1997). A dimensão de recordação e crença corresponde ainda de certa forma aos julgamentos heurísticos referidos no modelo de monitoramento de fonte (Johnson e cols., 1993). Essa característica permite a um indivíduo distinguir memórias de percepções, sonhos e fantasias, e assim comportar-se adequadamente à sua realidade ambiental. Para o modelo, a dimensão de recordação e crença dá conta de qualidades desse estado subjetivo que caracteriza a recordação de eventos únicos do passado: senso de revivência e de viajar de volta ao tempo do evento original, crença de que o evento de fato aconteceu como ele é lembrado (dito de outra forma, crença na acuidade da memória), e senso de lembrar do evento ao invés de apenas saber que ele aconteceu (julgamento lembrar vs. saber).

A habilidade de recordar, experienciar e relatar eventos autobiográficos implica em vários processos cognitivos, além da recuperação de informação de vários sistemas de memória (sobretudo episódica e semântica). Os principais processos componentes envolvidos na manifestação de memória autobiográfica são aqueles relacionados à imaginação em diferentes modalidades sensoriais. A recordação autobiográfica também envolve habilidades de linguagem, pois eventos podem ser lembrados em palavras, em imagens e em narrativas, desde que eventos podem ser lembrados como histórias coerentes ou fragmentos desorganizados dos acontecimentos. Ademais, a recordação autobiográfica inclui muitas vezes a revivência das emoções que o sujeito experimentou quando do evento original.

O sujeito que recorda pode atribuir aos eventos autobiográficos e às memórias que a eles se referem, ou que os representam, certas propriedades por meio de julgamentos meta-cognitivos (Rubin & Siegler, 2004). As propriedades atribuídas a eventos ou memórias resultam de julgamentos que o sujeito faz com base em informação referente à memória. Por exemplo, a alta vivacidade das imagens que constituem uma lembrança pode levar ao julgamento de que o evento é recente, e a coerência da narrativa dos acontecimentos pode estar relacionada ao fato de se haver ensaiado a história freqüentemente. Incluem-se entre as propriedades atribuídas: 1) importância pessoal que o sujeito atribui ao evento, 2) freqüência com que o evento foi ensaiado (tanto em pensamento quanto em conversação interpessoal), 3) especificidade do evento (se ele foi único no espaço e tempo, estendido por um período mais longo, ou se trata-se de uma mescla ou resumo de eventos parecidos) (Rubin e cols, 2003); e 4) a idade do evento (a estimação pelo sujeito da data em que o evento ocorreu).

Os três processos componentes envolvidos na recordação correspondem aos três grupos de questões do Autobiographical Memory Questionnaire (AMQ). O AMQ consiste em um conjunto variável de itens na forma de afirmativas e é usado em estudos que abordaram aspectos da fenomenalidade da experiência de recordação. Por exemplo, Talarico e Rubin (2004) exploraram a vivacidade das memórias que indivíduos tinham da notícia dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 após diferentes intervalos de tempo, constatando que a característica principal dessas memórias que se preservava a longo prazo era a confiança na acuidade da memória em relação ao evento.

Uma das características dos estudos que utilizam o modelo de processos componentes é o interesse por memórias vívidas ou em lampejo. Essas memórias duradouras estão associadas a eventos como recebimento de uma notícia importante ou ao testemunho de um evento de grande impacto (McGaugh, 2003). A importância emprestada pelo sujeito a esses eventos pode estar relacionada a sua relevância coletiva e nacional (Brown & Kulik, 1977/2000), ou ao seu significado pessoal (Rubin & Kozin, 1984). Tais fenômenos foram operacionalizados por Kirkegaard-Thomsen e Berntsen (2003) num conjunto de cinco características, a saber: 1) vivacidade da memória; 2) presença de detalhes dos aconteciementos originais; 3) importância pessoal atribuída ao evento; 4) caráter incomum do evento; 5) intensidade emocional do evento; 6) conseqüências para a sua própria vida atribuídas ao evento pelo sujeito; e 7) freqüência de ensaio daquela memória em pensamento e conversação. Com base nos resultados de Rubin e Kozin (1984) e no resumo de dados de diversos estudos apresentado por McGaugh (2003), consideramos esta operacionalização como uma relevante adição ao entendimento das características fundamentais de memórias de eventos marcantes. Argumentamos ainda que as qualidades de memórias vividas, entendidas na perspectiva dos processos componentes, fazem parte da classe de propriedades atribuídas ao evento. Trata-se de um tipo de julgamento assemelhado, porém distinto dos julgamentos heurísticos referidos pelo monitoramento de fonte, constituindo possivelmente um tipo de julgamento sistemático sobre relevância pessoal de eventos (Johnson & cols., 1993). Esses julgamentos, de acordo com o modelo, também devem relacionar-se nas qualidades da recordação, porém tal relação pode ser distinta daquela encontrada por Johnson e colaboradores.

Convergências e divergências entre os modelos

O que há em comum entre as abordagens do monitoramento de fonte e dos processos componentes é a ênfase na fenomenalidade da experiência consciente desde a definição dos processos de memória autobiográfica e da descrição dos estados próprios. Em ambos os modelos, o auto-relato, e a afirmação ou avaliação que o sujeito faz do seu estado de reviver o evento e acreditar que ele realmente aconteceu, bem como de expressar se ele vem com imagens, e os julgamentos sobre o evento são a evidência primária e o parâmetro último de validade (Rubin & cols., 2003). Nesta abordagem, o auto-relato enquanto evidência é instrumentalizado pelos questionários, cujos itens refletem os vários aspectos de formulações que resultam da articulação dos modelos teóricos e dados empíricos experimentais. Afinal, os modelos de processos componentes e de monitoramento de fonte não são incompatíveis. As diferenças indicadas são basicamente quanto à precedência das qualidades fenomenais sobre os julgamentos no monitoramento de fonte, enquanto que em processos componentes essa ordem não é necessária do ponto de vista teórico. De resto, ambos os modelos concordam sobre a importância da evidência da natureza fenomenal da experiência de recordação e contribuem para tanto através ao operacionalizar essas qualidades.

Os questionários são concebidos como dispositivos de mediação que possibilitam a transposição de uma percepção subjetiva de estados conscientes para indicadores partilhados, em consonância com uma hipótese fenomênica da possibilidade de conhecimento de estados conscientes. Nesse sentido, aceita-se a hipótese fenomênica pela qual a introspecção refere-se a um fenômeno que ocorre na consciência imediata, mas implica em indicadores superficiais de consciência (por exemplo, relatos verbais ou gráficos) (Engelmann, 1997). Através dos indicadores de consciência, que podem ser conhecidos por muitas pessoas, a consciência mediata do observador assemelha-se a outros indicadores que servem de evidência em qualquer outra ciência empírica.

Fenomenologia experimental, introspecção e quantificação das qualidades

Segundo Johnson (1988), estudos de monitoramento de fonte e outros que se debruçam sobre as qualidades fenomenais da experiência caracterizam um tipo de fenomenologia experimental. O termo fenomenologia é usado no sentido de estudo sistemático das características qualitativas da experiência mental, no caso, da experiência de recordação autobiográfica. Talvez o termo mais próprio para essa afirmação seja fenomenalidade ao invés de fenomenologia (Engelmann, 2001), no entanto o termo fenomenologia da recordação é de uso corrente no contexto da literatura em psicologia cognitiva.

O conhecimento empírico das qualidades fenomenais da experiência (consciência), será então mediado, posto que a expressão pública pela qual alguém expressa algo sobre a sua própria experiência repousa sobre a possibilidade da mediação dos símbolos da comunicação. Extrapolando essa definição, é lícito assumir que, quando a consciência conhece reflexivamente os próprios estados internos do organismo, tais como as qualidades fenomenais da experiência de recordar um evento específico, o processo é um tipo de introspecção. Nesse sentido, os questionários direcionam o sujeito para as qualidades fenomenais do estado interno durante a recordação. Mais que isso, a resposta numérica às escalas oferece indicadores de consciência (Engelmann, 1997) que tornam possível compartilhar características do estado de consciência. De outra maneira, essas qualidades estariam restritas à privacidade do pensamento do sujeito.

Os dados fenomenais são hoje considerados fundamentais na explicação dos processos cognitivos. Embora se reconheça as dificuldades metodológicas, entende-se que novas propostas que abordem essa evidência de forma sistemática devem ser consideradas. A sistematização desses procedimentos colaborará para o manejo da fidedignidade de relatos, de forma que esses dados possam enriquecer o entendimento dos processsos cognitivos em apreço. Dessa forma, a modelagem neurocognitiva de uma capacidade como a memória autobiográfica postula desafios metodológicos importantes que têm sido atacados apenas recentemente.

 

Considerações finais

Para Brewer (1995), os dados fenomenais devem ser considerados sob a mesma lógica pela qual se procuram estruturas anatomo-fisiológicas ligadas aos processos cognitivos em geral. O argumento dá conta de que diferentes processos cognitivos e formas de atividade mental têm diferentes correlatos fenomenais. A relevância de se considerar a evidência fenomenal justifica-se pela tentativa de superar o que Roy e cols. (1999) chamaram de hiato explicativo. Segundo os autores, as relações entre mente e cérebro estão sendo exploradas na correlação entre modelos de processos cognitivos e padrões de ativação neural. O desenvolvimento das técnicas de neuroimagem popularizou a investigação destas relações. No entanto, a relação entre os aspectos computacionais e experienciais dos processos cognitivos tem sido negligenciada por razões de baixa credibilidade das soluções metodológicas disponíveis. Uma vez desenvolvidos métodos rigorosos e específicos para lidar com a evidência fenomenal, tais como aqueles apreciados neste artigo, entende-se que será possível uma abordagem de mútua demarcação (Lutz & Thompson, 2003). Por um lado, dados fenomenais impõem limites à análise e interpretação das evidências de processos fisiológicos, e dados referentes a estes últimos demarcariam o trabalho conceitual de maneira mais complexa que a simples análise da tarefa.

Concordamos com Lutz e Thompson (2003), sobre que o desafio a enfrentar é o de integrar 3 conjuntos de evidências na formalização de modelos explicativos dos processos pelos quais conhecemos o mundo: dados fenomenais de primeira pessoa sistematicamente aferidos através de métodos rigorosos; modelos formais de processos cognitivos derivados da análise de tarefas; e dados neurofisiológicos de processos cerebrais coletados por técnicas de neuroimagem. Visto que as técnicas de investigação dos dados neurais conhecem grande desenvolvimento e aceitação, e que o paradigma explicativo do nível cognitivo encontra-se relativamente estabelecido, cabe fomentar a evolução das abordagens da evidência fenomenal. Conquanto não haja notícias sobre estudos brasileiros que tenham articulado evidências comportamentais, neurais e fenomenais no estudo da memória autobiográfica, espera-se que as informações e reflexões veiculadas neste trabalho possam subsidiar um debate epistemológico sobre as peculiaridades de se lidar com tais níveis de evidência em futuros trabalhos nas áreas de neurociência e psicologia cognitiva.

 

Referências

Berntsen, D., Willert, M., & Rubin, D. C. (2003). Splintered memories or vivid landmarks? Qualities and organization of traumatic memories with and without PTSD. Applied Cognitive Psychology, 17, 675-693.        [ Links ]

Brewer, W. F. (1995). What is recollective memory? Em: D. C. Rubin (Org.), Remembering our past: Studies in autobiographical memory (pp.19-66). Cambridge: Cambridge University Press.        [ Links ]

Brown, R., & Kulik, J. (2000). Flashbulb memories. Em: U. Neisser & I. E. Hyman (Orgs.), Memory observed: Remembering in natural contexts (pp. 50-65). New York: Worth Publishers. (Original work published 1977).        [ Links ]

Cabeza, R., Prince, S. E., Daselaar, S. M., Greenberg, D. L., Budde, M., Dolcos, F., LaBar, K. S., & Rubin, D. C. (2004). Brain activity during episodic retrieval of autobiographical and laboratory events: An fMRI study using a novel photo paradigm. Journal of Cognitive Neuroscience, 16, 1583-1594.        [ Links ]

D’Argembeau, A., Comblain, C., & Van Der Linden, M. (2003). Phenomenal characteristics of autobiographical memories for positive, negative, and neutral events. Applied Cognitive Psychology, 17, 281-294.

Dall’Ora, P., Della Sala, S., & Spinnler, H. (1989). Autobiographical memory, its impairment in amnesic syndromes. Cortex, 25, 197-217.

Damasio, A. (2003). Looking for Spinoza: Joy, sorrow, and the feeling brain. New York: Harcourt.        [ Links ]

Destun, L. M., & Kuiper, N. A. (1999). Phenomenal characteristics associated with real and imagined events: The effects of event valence and absorption. Applied Cognitive Psychology, 13, 175-186.        [ Links ]

Engelmann, A. (1997). Principais modos de pesquisar a consciência-mediata-de-outros. Psicologia USP, 8 (2), 251-274.        [ Links ]

Engelmann, A. (2001). O meu-mundo e o resto-do-mundo. Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(1), 211-223.        [ Links ]

Ferrater Mora, J. (1979). Diccionario de filosofía. Madrid: Alianza Editorial.        [ Links ]

Greenberg, D. L., & Rubin, D. C. (2003). The Neuropsychology of autobiographical memory. Cortex, 39, 687-728.        [ Links ]

Greenberg, D. L., Rice, H. J., Cooper, J. J., Cabeza, R., Rubin, D. C., & LaBar, K. S. (2005). Co-activation of the amygdala, hippocampus and inferior frontal gyrus during autobiographical memory retrieval. Neuropsychologia, 43, 659-674.        [ Links ]

Jack, A. I., & Roepstorff, A. (2002). Introspection and cognitive brain mapping: from stimulus-response to script-report. Trends in Cognitive Sciences, 6, 333-339.        [ Links ]

Johnson, M. K. (1988). Reality monitoring: An experimental phenomenological approach. Journal of Experimental Psychology: General, 117(4), 390-394.        [ Links ]

Johnson, M. K., Foley, M. A., Suengas, A. G., & Raye, C. L. (1988). Phenomenal characteristics of memories for perceived and imagined autobiographical events. Journal of Experimental Psychology: General, 117(4), 371-376.        [ Links ]

Johnson, M. K., Hashtroudi, S., & Lindsay, D. S. (1993). Source Monitoring. Psychological Bulletin, 114(1), 3-28.        [ Links ]

Kahn, I., Davachi, L., & Wagner, A. D. (2004). Functional-neuroanatomic correlates of recollection: Implications for models of recognition memory. Journal of Neuroscience, 24, 4172-4180.        [ Links ]

Kealy, K. L. K., & Arbuthnott, K. D. (2003). Phenomenal characteristics of co-created guided imagery and autobiographical memories. Applied Cognitive Psychology, 17, 801-818.        [ Links ]

LaBar, K. S., & Cabeza, R. (2006). Cognitive neuroscience of emotional memory. Nature Reviews: Neuroscience, 7, 54-64.        [ Links ]

Lutz, A., & Thompson, E. (2003). Neurophenomenology: Integrating subjective experience and brain dynamics in the neuroscience of consciousness. Journal of Consciousness Studies, 10(9/10), 31-52.        [ Links ]

McGaugh, J. L. (2003). Memory and emotion: The making of lasting memories. London: Weidenfeld & Nicolson.        [ Links ]

Piolino, P., Giffard-Quillon, G., Desgranges, B., Chételat, G., Baron, J.-C., & Eustache, F. (2004). Re-experiencing old memories via hippocampus: A PET study of autobiographical memory. Neuroimage, 22, 1371-1383.        [ Links ]

Roediger, H. L., Buckner, R., & McDermott, K. B. (1999). Components of processing. Em: J. K. Foster & M. Jelicic (Orgs.), Memory, systems process or function? (pp. 31-65). Oxford: Oxford University Press.        [ Links ]

Roy, J.-M., Petitot, J., Pachoud, B., & Varela, F. J. (1999). Beyond the gap: An introduction to naturalizing phenomenology. Em: J. Petitot, F. J. Varela, B. Pachoud & J.-M. Roy (Orgs.), Naturalizing phenomenology: Issues in contemporary phenomenology and cognitive science (pp. 1-80). Stanford, CA: Stanford University Press.        [ Links ]

Rubin, D. C. (1998). Beginnings of a theory of autobiographical remembering. Em: C. P. Thompson, D. J. Herrmann, D. Bruce, J. D. Read, D. G. Payne & M. P. Toglia (Orgs.), Autobiographical memory: Theoretical and applied perspectives (pp.47-67). Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates.        [ Links ]

Rubin, D. C., & Kozin, M. (1984). Vivid memories. Cognition, 16(1), 81-95.        [ Links ]

Rubin, D. C., & Siegler, I. C. (2004). Facets of personality and the phenomenology of autobiographical memory. Applied Cognitive Psychology, 18, 913-930.        [ Links ]

Rubin, D. C., Feldman, M. E., & Beckham, J. C. (2004). Reliving, emotions, and fragmentation in the autobiographical memories of veterans diagnosed with PTSD. Applied Cognitive Psychology, 18, 17-35.        [ Links ]

Rubin, D. C., Schrauf, R. W., & Greenberg, D. L. (2003). Belief and recollection of autobiographical memories. Memory & Cognition, 31(6), 887-901.        [ Links ]

Schaefer, A., & Philippot, P. (2005). Selective effects of emotion on the phenomenal characteristics of autobiographical memories. Memory, 13(2), 148-160.        [ Links ]

Talarico, J. M., & Rubin, D. C. (2003). Confidence, not consistency, characterizes flashbulb memories. Psychological Science, 14 (5), 455-461.        [ Links ]

Kirkegaard-Thomsen, D. K., & Berntsen, D. (2003). Snapshots from therapy: Exploring operationalisations and ways of studying flashbulb memories for private events. Memory, 11(6), 559-570.        [ Links ]

Tulving, E. (1983). Elements of episodic memory. Oxford: Clarendon Press.        [ Links ]

Tulving, E. (2002). Episodic memory: From mind to brain. Annual Review of Psychology, 53, 1-25        [ Links ]

Wheeler, M. A., Stuss, D. T, & Tulving, E. (1997). Toward a theory of episodic memory: The frontal lobes and autonoetic consciousness. Psychological Bulletin, 121, 331-354.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: gauerg@fafich.ufmg.br

Recebido em março de 2007
Aceito em agosto de 2008

 

 

* Gustavo Gauer: psicólogo; doutor em Psicologia (UFRGS); professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais.
** William Barbosa Gomes: psicólogo; doutor pela Southern Illinois University &– Carbondale; professor do Instituto de Psicologia (UFRGS).

Creative Commons License