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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.27 Canoas jun. 2008

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

A toxicomania enquanto doença incurável e sua relação com um tratamento possível

 

The drug addiction as an incurable disease and its relation with a possible treatment

 

 

Amanda Schreiner Pereira*

Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo investigou qual a influência da nomeação doente incurável naqueles que buscam um tratamento para a toxicomania. Para isto foram realizadas quatro entrevistas semi-estruturadas com indivíduos do sexo masculino que estão em tratamento e examinadas através de análise qualitativa de conteúdo. Conforme os resultados, a assunção do significante doente proporciona um novo lugar de resposta ao sujeito, o que constitui um início de mudança. Esta nomeação tem uma significação social que situa o sujeito em valores inseridos na cultura. Porém, não há significação pessoal para esta nova condição, visto a inexistência da vinculação deste novo nome à história individual dos entrevistados.

Palavras-chave: Toxicomania, Doença incurável, Tratamento.


ABSTRACT

This study investigated which is the influence on denominating incurable disease those patients who look for drug addiction treatment. Four semi-estructured interviews were conducted with male individuals that were undertaking treatment and the results were assumption of the significant sick person offers a new position to the subject, which constitutes a beginning of changes. This denomination has a social signification that situates the subject in values inserted in the culture. However there is not a personal meaning for this new condition, considering the nonexistent link for this name with the individual story of those who were interviewed.

Keywords: Drug addiction, Incurable disease, Treatment.


 

 

Introdução

A toxicomania tem sido um assunto intensamente abordado por autores de diversas disciplinas. Tamanha importância designada a este tema atualmente, que a Organização das Nações Unidas (ONU) adotou um Dia Internacional Contra o Uso e o Tráfico de Drogas (26 de junho). No Brasil, muitas campanhas e a necessidade de medidas sociais contra o uso são encabeçadas por entidades governamentais, como a Secretaria Nacional Antidrogas (Senad). Estas entidades diferenciam o dependente químico do traficante e consideram o dependente químico como um doente.

O termo dependente químico também é utilizado pelas instituições que se apropriam da possibilidade de tratamento de usuários de drogas. Na medicina, a dependência química é designada como estado de intoxicação periódico ou crônico gerado pelo consumo repetido de uma droga e que é acompanhado de um invencível desejo ou de uma necessidade (obrigação) de continuar a consumir a droga e de procurá-la por todos os meios. Segundo Manuila, Manuila e Nicouli (1997), trata-se de uma farmacodependência com tendência a aumentar as doses.

Porém, este indivíduo não possui apenas uma dependência química do produto &– droga &– mas também uma dependência psíquica, chamada pela Psicologia de Toxicomania.

Dentre as características do indivíduo toxicômano, inclui-se a representação da droga para o sujeito. Para o usuário, a droga é apenas mais um objeto, enquanto o toxicômano faz da droga seu objeto exclusivo (Torossian, 1997).

Porém, o limite entre eles é tênue e segundo Melman (2000), qualquer um pode tornar-se toxicômano. O encontro com a droga provoca uma transformação psíquica, construindo uma nova história (Nogueira Filho, 1999).

Para Ribeiro (1997), quando a droga é o principal objeto de desejo, as relações de alteridade perdem importância e eficácia, estabelecendo-se um curto-circuito narcísico, proporcionando uma ilusão de auto-suficiência (e conseqüente retraimento de investimento no mundo exterior). O constante re-uso é uma forma de refazer a cada dia o preenchimento narcísico, que salva o toxicômano de um desaparecimento subjetivo.

Para Melman (1992), a prática da interdição, através da intenção de assistir, de cuidar, participa da manutenção e do entretenimento da toxicomania, pois a abstinência é necessária ao ciclo, uma vez que o objeto se destaca por sua alternância com a falta. A interdição introduz uma erotização suplementar que faz com que todos os argumentos sejam derrubados para privilegiar o que havia sido interditado. Assim, diz que a melhor saída para a toxicomania seria medicalizar a droga (torná-la um medicamento, ao qual o toxicômano pode ter acesso de forma legal), deserotizando a relação do sujeito com esta.

A representação social da droga também é evidenciada por alguns autores. Torossian (1997) expõe o fato de vivermos em uma sociedade "adicta" em relação aos ideais e aos imperativos propostos por ela. O toxicômano, nesta sociedade, consome a droga e chega até ela através da busca por um lugar de exceção.

Considerando-se que nossa sociedade possui uma cultura de consumo, na qual para "ser" é preciso "ter", o uso de droga constitui-se em uma das formas de produção de identidade, é uma alternativa frente à fragilidade das referências simbólicas hoje encontradas. Esta busca por referências é uma busca por um lugar social. O toxicômano toma como resposta o lugar de dependente.

Pode-se referir ainda, a representação da dependência. Tomando-a como uma doença incurável, a dependência remete a algo que nunca será curado. Assim, o único tratamento possível é o do autocontrole, uma constante abstinência da droga, e o toxicômano passa a ser visto como um doente.

Velho (1978) salienta que a doença na nossa sociedade é a categoria mais abrangente que classifica os comportamentos perturbadores, permitindo o mapeamento e o controle dos desvios. Fazendo uma análise social, diz que a categoria drogado é uma acusação moral e médica que assume explicita e implicitamente uma dimensão política, sendo, também, uma acusação totalizadora. A acusação totalizadora é aquela que contamina toda a vida do indivíduo acusado, estigmatizando-os de forma talvez definitiva e atacando a identidade do toxicômano.

Nogueira Filho (1999) expõe que a identificação com o significante toxicômano, lê-se: doente, é um saber sem verdade, pois ele não consente em passar por seu romance familiar e pelos significantes que lhe marcaram na sua história, o que Melman (1992), chama de um significante sem significância.

Para Foucault (1968), a consciência do doente quanto à sua doença desdobra-se sempre numa dupla referência, quer ao normal e ao patológico, quer ao familiar e ao estranho, seja ainda ao singular e ao universal.

O doente reconhece e dá-lhe o sentido de uma diferença irredutível que o separa da consciência e do universo dos outros. A consciência da doença é tomada no interior da doença, está consolidada nela no momento em que a percebe (Foucault, 1968).

Conte (2002) referindo-se à nomeação doente, diz que essa se dá enquanto falta de um traço simbólico de identificação. Ocorre, assim, uma alienação a um significante produzido pelo social (doente). Frente a isto, o sujeito responde através daquilo que supõe que queiram dele. Supõe-se que queiram dele a Cura.

No dicionário da língua portuguesa a cura é definida como ato ou efeito de curar, ou seja, de restabelecer a saúde, livrar de doença. No próprio dicionário uma exemplificação com o alcoolismo. "Sabia que o rapaz era alcoólatra, mas não perdia as esperanças de curá-lo", tratando aqui a cura como fazer alguém perder efeito moral ou hábito prejudicial.

Pensa-se: o prefixo in, que remete a "não", salienta a não possibilidade de perder este efeito. O incurável é o irremediável, que não tem cura.

A proposição de duas terapêuticas &– medicina e grupos de auto-ajuda &– tem como ponto de partida o mesmo ponto de chegada, que é a frase "eu sou toxicômano". Ambos concordam em que o toxicômano, conhecendo o efeito das drogas, não deve nunca mais se aproximar dela. Não há alternativa, tem de se parar de usar drogas. "Uma vez toxicômano, toxicômano por toda a eternidade. E, interessantemente, passa a existir a toxicomania sem as drogas" (Nogueira Filho, 1999, p. 59).

A afirmação de que os grupos de auto-ajuda e a medicina acreditam que as chances de cura são nulas, conforme Nogueira Filho (1999) traz a pergunta: Como lidar com a cura neste caso?

Conforme Nogueira Filho (1999), a Psicanálise não lança mão de procedimentos disciplinares, nem de medicamentos. E não vai repetir a resposta "nunca mais". Vai investigar a toxicomania naquele sujeito singular, sem punir recaídas e gratificar abstinências. A obrigação do psicanalista é prevalecer do simbólico e da palavra.

Nasio (1999) diz que em Psicanálise devemos entender a "cura" como um valor imaginário, um pré-conceito. Ele afirma que a demanda de cura parte de quem sofre e ela se alimenta de uma falsa imagem de cura. Porém, é indispensável no início do tratamento.

Ao longo do tratamento é que o paciente tem de deslocar o lugar erotizado da droga e poder falar de outros objetos e de outras questões (Torossian, 1997).

"Somente quando o tóxico é deslocado da posição de suposto objeto ideal na relação com o sujeito é que fica um buraco" (Conte, 2002, p.39). Para esta autora, é necessário que o paciente faça o luto de um objeto que nunca foi a droga, admitindo que sempre esteve perdido. A interdição desse objeto para sempre perdido deve se dar pela reconstrução de uma lei e não mais pela intervenção do tóxico, isto permitirá que o desejo ressurja, ocorrendo assim a transformação do dito toxicômano em um sujeito propriamente desejante.

Por fim, Nasio (1999) clarifica a cura em Psicanálise: a cura em Psicanálise é a produção de um novo ser psíquico.

 

Método

Delineamento

Foi realizado um estudo exploratório de abordagem qualitativa, desenvolvido a partir do método de Análise de Conteúdo. A Análise de Conteúdo, conforme Bardin (2006), tem como finalidade chegar, através da descrição, a uma interpretação da comunicação produzida.

Participantes

Participaram da pesquisa quatro internos da fazenda de recuperação de dependentes químicos Ivorá/RS, com idades entre 20 e 36 anos, todos do sexo masculino, designados como dependentes de drogas lícitas ou ilícitas, dispostos a tratar-se nesta instituição. Os mesmos foram escolhidos pelo coordenador terapêutico da instituição. Foram devidamente informados e esclarecidos quanto a suas participações no estudo através do Consentimento Informado, estando de acordo com os objetivos e procedimentos da pesquisa.

Segue-se uma breve descrição de características dos participantes:

 

 

Instrumentos

Ficha de Dados Demográficos: Foi utilizada uma ficha para levantamento de dados gerais dos participantes constando: idade, escolaridade, estado civil, profissão, religião, situação econômica, com quem residem e presença de outras pessoas da família com o mesmo problema.

Entrevista Sobre a Concepção Incurável: A qual continha questões norteadoras sobre tempo de internação e de uso de drogas ou álcool; sobre a dependência química (concepção de dependente, o olhar-se como um dependente e a consideração sobre a passagem de usuário para dependente); sobre o tratamento (número de tratamentos realizados, mudanças observadas durante o atual tratamento, diferença deste para os anteriores) e, ainda, questões sobre a concepção de cura (se consideravam a dependência incurável e os significados pessoais e acerca do tratamento a partir disto).

Procedimentos

As entrevistas foram gravadas em fitas cassete. Após a gravação, houve transcrição e análise através dos seguintes passos:

Descrição: Primeiramente, foi empreendido um tratamento descritivo, através do registro do discurso dos entrevistados (dados brutos transcritos).

Inferência: Após a transcrição das entrevistas, delimitaram-se unidades de registro e realizou-se escolha das categorias para a codificação. A partir deste material, possibilitou-se a categorização, utilizando-se em princípio o isolamento de elementos e, na seqüência, a classificação, por meio de um reagrupamento segundo semelhanças e diferenças.

Durante o processo de categorização, foram utilizadas regras da análise estrutural: Associação: análise da presença de objetos sempre juntos a outros; Equivalência: encontro de objetos e seus substitutos; Exclusão: percepção objetos substituídos por outros.

Interpretação: Da descrição e inferência, culminou a interpretação, na qual as entrevistas analisadas qualitativamente foram articuladas com o referencial teórico levantado.

 

Resultados

A seguir serão apontadas as categorias temáticas obtidas através do processo de categorização e, após, descritos e comentados trechos ilustrativos das falas dos entrevistados.

Categorias Temáticas: Aprendizado &– A toxicomania enquanto doença é aprendida durante o tratamento; Limite &– O incurável possibilita uma limitação; Diferenciação &– O incurável provoca uma diferenciação; Continuidade &– A nomeação doença incurável sustenta uma continuidade no tratamento; Fantasma &– A toxicomania existe sem a droga.

Aprendizado &– A toxicomania enquanto doença é aprendida

A concepção de que a dependência de drogas lícitas ou ilícitas é uma doença é aprendida durante o tratamento, a procura pelo mesmo não é realizada pensando em uma busca por cura, mas sim visando cessar o uso. Vejamos os excetos:

A1: "aqui dentro da fazenda eu vim saber que é um, que a dependência química é uma doença sabe?".

C3: "Quando eu entrei aqui eu também pensava: usar drogas de sem vergonha, mas depois o cara aprende que é uma doença, né?"

A1: "Sabe, é uma doença que não tem cura, mas que eu posso ter uma vida uma vida tranqüila mesmo sendo um doente, é só tomar os cuidados que eu tenho que tomar, fazer o que eu aprendi aqui dentro que tem que fazer".

B2: "Hoje em dia eu me considero, eu era um dependente químico, eu sou, eu vou viver, não tem cura, ? É uma doença que não vai ter cura, ? Tem que tar sempre buscando e eu aprendi tudo isso".

Toda esta compreensão da doença mostra algo que aprendido começa a exercer sobre os indivíduos uma função de mudança. Adotando a nomeação doente, eles passam a regrarem-se para assumir tal condição. Parece que a primeira função deste significante é barrar o sujeito. Ou seja, limita-lo.

Limite &– O incurável possibilita uma limitação

O significante "doença" barra, limita o sujeito, ele não é mais aquele que tudo pode ou aquele pelo qual tudo se faz. A cadeia narcísica na qual estava preso parece abrir-se. Adquirindo limites o sujeito passa a encontrar a alteridade, encontrar o outro. Esta limitação é demonstrada nas palavras de D4.

D4: Respondendo à questão sobre o que seria a cura &– "Saber, entender que não pode mais. Não pode, que tem um limite, bastou, bastou".

Percebe-se que os indivíduos que passam por esse processo atravessam um período depreciativo de seu "eu", culpam-se, arrependem-se, desculpam-se. Assim como um momento de solidão, a partir do qual reconhecem um "eu" impotente, que assume a condição de espelhar-se em outros para sustentar sua própria imagem, é neste momento que a função do grupo aparece.

B2: "eu fui obrigado a vim aqui pra dentro e aí aqui dentro eu conheci, né? Eu vim me conhecer, que sozinho eu não era capaz de largar da droga, né"?

Considerar-se um doente, então, permite uma mudança de lugar, de posição.

Diferenciação &– O incurável provoca uma diferenciação

O termo utilizado pelos sujeitos da pesquisa para designarem sua condição é "doença". Salienta-se todo o peso que esta carrega quando confrontado com o social, com a dita "normalidade". É constante a comparação entre seus comportamentos com a loucura.

A1: "Como eu disse antes, não é normal. Eu tenho consciência hoje de que eu não sou uma pessoa normal. Sabe?".

A1: "...porque quem cuidava dos negócios era eu, sei lá eu, com tudo as minhas loucura, sabe, tinha umas coisas que eu trazia em dia sempre..."

C3: "No começo eu ah, tava aqueles louco gritando, ali rezando, bah, dava risada dos cara..."

Ao mesmo tempo, parece não haver um comprometimento maior com esta condição, no sentido de provocar uma verdadeira transformação psíquica no sujeito. Podemos observar no discurso de B2 que é bastante difícil responder sobre seus sentimentos em relação a esta condição de doente incurável:

B2: "ai, não tem como te explicar, sabe?...na verdade eu não... acho que eu não ligo muito, eu sei que eu sou um doente, sabe, mas eu não sei como te explicar assim como eu me sinto sendo um doente, sabe? Bem dizer é normal eu acho. Normal, normal de repente pra outras pessoas não seja, né? Mas pra mim é, normal, né?"

Esta nova nomeação não consolida a mudança, o que acontece é o aparecimento de um nova designação na cadeia significante. Ou seja, é o significante em si que aparece. Porém, observa-se que isto é suficiente para que surja a possibilidade de um novo olhar sobre si:

A1: "Olha, ser um dependente químico pra mim é ser uma pessoa especial, não sou uma pessoa normal, sabe... pra mim seria isso, especial porque eu sou diferente".

Continuidade &– A nomeação doença incurável sustenta uma continuidade no tratamento

Esta nova forma de existir do sujeito é o que sustenta alguma continuidade do tratamento. Antes de existir a concepção doente, existia um indivíduo cujo tempo era irreal, ou melhor, era um ser que vivia permanentemente em tempo presente. Esta nova condição parece representar uma noção de futuro. Justamente por limitar, por determinar, possibilita que se enxergue além, possibilita a utilização de novos sonhos futuros.

B2: "A, hoje eu vejo o futuro, né? Viver feliz, não, feliz que eu assim é viver sem ela, sem a droga, sem o álcool, trabalhar, viver uma vida normal, como todo mundo vive: trabalho, casa, família, saí, passear, se divertir, mas sempre com sobriedade".

A idéia de cura que acompanha o "doente" é bastante controversa. Acreditando que é uma doença incurável, estará curado.

B2: "No momento eu acho que um dependete químico achar que ele tá curado ele vai recair, porque daí ele não vai buscar mais, ele vai parar..."

Fantasma &– O toxicômano existe sem a droga

B2: "Vou ser um eterno doente, né"?

Empreender um sentido para uma doença incurável é pensar para quais possibilidades ela aponta, e esta parece levar para uma eterna busca de controle pessoal.

A1: "Um tratamento, eu acho que força de vontade, sabe, tu saber que tu não vai sair curado, sabe, porque a tua doença não tem cura, mas nem por isso tu vai desistir. Sabe. Nem por isso eu vou desistir de pelo menos tentar sabe, se eu sei que eu tenho uma doença que ela é progressiva, é fatal. Se eu conseguir me curar, se eu conseguir... se eu conseguir tomar os cuidados que eu sei que eu tenho que tomar hoje, posso ter uma vida tranqüila, sabe".

D4: "Eu falei que é uma constante, dia após dia, um tratamento não tem, tem todo dia, só por hoje eu não vou beber, só por hoje eu não vou usar drogas, é uma busca diária".

É no momento em que mesmo sem a presença da droga ela está constantemente presente para o sujeito, que ela aparece ainda como o objeto ideal.

C3: "é eu sei que eu tenho essa doença assim, né, tentei sair fora sozinho e não consegui, sei que eu vou carregar pra sempre isso aí".

 

Discussão

Como Ribeiro (1997) coloca, o consumo de drogas hoje é representado no campo científico. Campo do qual a Psicologia participa. Esta é uma tentativa de situar uma temática determinada, a temática da cura. A discussão baseia-se no conceito de cura da Psicanálise, trazida por Nasio (1999): produção de um novo sujeito psíquico. A terminologia "toxicômano" é utilizada conforme conceito aplicado por Torossian (1997) onde a droga aparece como objeto exclusivo.

O termo "doença" é o que remete ao incurável, terminologia apreendida como objeto de estudo deste trabalho em referência ao tratamento da toxicomania dos entrevistados. Estamos aqui tratando de sujeitos. Melman (2000) advém ao fato de que é a droga quem faz o toxicômano. A história que inicialmente se propõe ao uso de drogas é a que Torossian (1997) salienta como busca por um lugar de exceção, encontrado na droga. Melman, (1992) diz que nesta tentativa é ultrapassada a borda da própria vida. Aí se pode pensar na doença, no significante doença: ele está barrando o objeto droga?

O significante doença barra sim, limita o sujeito, como bem podemos presenciar na segunda categoria temática levantada, o limite. Este significante traz consigo a marca de uma diferenciação, que sustenta uma alteridade. Alteridade que antes era perdida por causa de um curto circuito narcísico existente.

Este curto circuito narcísico aqui referido é o que Ribeiro (1997) aponta como o responsável pela perda da importância das relações de alteridade. Conte (1997) divide a mesma idéia dizendo que o preenchimento narcísico é refeito a cada dia.

Se pensarmos no termo freqüentemente utilizado pelos sujeitos da pesquisa e pelos usuários de drogas: "ativa", podemos associá-lo a uma questão temporal. Na " ativa" faz-se a cada dia um novo corpo, é uma ação diária, de atos. Para que suas palavras não tenham mais peso de atos é necessário que se instaure uma função Paterna, esta função é a que designa o sujeito enquanto ser social, proporcionando o limite e a referência.

Quanto à instância terceira (função Paterna), Melman (1992) propõe que o que se constrói a partir do significante produzido durante o tratamento é uma resposta, por parte do toxicômano, do que supõe que queiram dele. Isto explica o porque do aprendizado sobre a doença (primeira categoria). O indivíduo não vai procurar o tratamento pensando em uma cura, mas o que encontra dentro da fazenda é uma série de informações que necessitam de uma resposta sobre o que busca ali. O doente incurável parece ser o lugar de onde ele consegue responder durante o tratamento.

Se retornarmos à categoria Diferenciação pode-se observar claramente a tentativa de enquadre social proposta pelo significante "doença". Velho (1978) diz que a doença permite o controle dos desvios; a partir dela se constrói um discurso sobre anormalidade. Este mesmo autor coloca que esta concepção (doente) contamina toda a vida do sujeito, atacando sua identidade. A percepção obtida através deste estudo é a de que antes de um ataque, trata-se de uma nova possibilidade de identidade a ser construída.

Na mesma categoria podemos notar a dupla referência: do normal e da loucura, que Foucault (1968) diz implicar a doença mental. O reconhecimento do "doente", continua ele, dá sentido de uma diferença.

Esta questão da normalidade parece bastante significativa, há uma constante comparação com as coisas normais, há uma constante referência à loucura. Ao mesmo tempo em que tentam imitar homens que consideram "normais", querendo ter um cotidiano igualmente estável (B2 na primeira fala da categoria Continuidade), eles adotam o termo incurável, que lhes conota uma diferenciação. Querem ter comportamentos considerados normais e se nomeiam como anormais, a fim de conquistar um lugar diferente. É um lugar diferente do que antes possuíam no tempo da "ativa", mas ainda assim um lugar de diferenciação do sujeito. Ressoa uma transição: do louco, para o louco disfarçado de normal (extremamente perceptível quando C3 fala na terceira categoria sobre seus atuais "irmãos de caminhada"), até o normal.

O indivíduo parece apegar-se a esta nomeação como norma, norma que propicia um investimento em seu tratamento, em si. Este investimento aparece a nível comportamental. O indivíduo regra-se, instaurando um limite (já citado) para que consiga sustentar sua atual condição, de não uso de drogas. Isto é o que Conte (1997) salienta como uma lei que se presentifica no real, através de regras. É preciso controlar-se e adquirir a noção de doença.

Esta borda que se forma a partir da nomeação doente permite que o indivíduo atue no futuro, como se pode observar na categoria Continuidade, ou pense em relação ao futuro. O que antes se sustentava apenas como presente, agora provoca chances de continuidade. Há aí, a presente necessidade de significantes que digam quem são e para onde vão. Esta questão parece ser norteante no tratamento e encontra sua resposta na concepção incurável. Algo que eles possam ter certeza que sempre serão. Algo que não os façam distanciar-se bruscamente do que foram: drogados, pois permanecem sendo.

Este significante, porém, parece não alterar os sentimentos destes indivíduos, ou então estes parecem ainda não querer se confrontar com a possibilidade de sentir. A doença é tratada como evento externo que se apossa deles, a qual devem responder em atos. Aí se encontra o que Nogueira Filho (1999) fala sobre a existência da toxicomania sem as drogas, perceptível na categoria Fantasma. Justamente isto parece acontecer quando o incurável se faz presente como resposta.

A nomeação incurável, assim como dependente químico, produz a possibilidade de que a droga exista permanentemente, como bem relata B2 em sua fala na quinta categoria temática. É o que Melman (1992) coloca como falta que é celebrada. Nela o objeto (droga) se destaca por sua alternância em estar presente ou ausente. Quando isto ocorre, tanto o objeto quanto o interdito tornam-se reais. Pensando-se no quanto nos sujeitos da pesquisa a mudança provocada pelo interdito `doença' é externa (comportamental), percebe-se que há uma simbolização pouco cristalizada, no sentido de que o sujeito não pensa em elaborar sua situação passada, nem as angústias que lida no hoje. Apenas as nomeia para que, sendo explicadas, possam ser externas a ele, ele ainda não se identifica como ser transformador.

A cura não é admitida. Há a percepção de que no momento em que ela for concebida como possibilidade, o momento atual se dilacera. Isso oportuniza o não envolvimento total do sujeito em seu tratamento. Entender e aprender que é um doente em recuperação e que esta recuperação atenta justamente ao fato de considerar-se um doente, mantém o indivíduo num estado limite, porém não leva este a desejar outra condição para si. Parece mais uma obrigação do que um desejo, é uma necessidade.

Nas palavras de A1, na primeira categoria há o verbo TER, que presentifica um dever e não algo assumido através da vontade. Na mesma categoria B2 busca uma afirmação, NÉ, para a doença, demonstrando uma busca constante para uma afirmação que está aprendendo.

Ao falar da nomeação toxicômano, Nogueira Filho (1999) diz que a identificação com este significante é um saber sem verdade, pois não consente em passar pelos significantes que marcaram a história.

Resta a questão: será que na concepção de toxicomania enquanto doença não há apenas um significante sem significância, como se refere Melman (1992) ao toxicômano?

Acredita-se que não, a questão da doença está contida na cultura, cultura que a reconhece, como diria Foucault (1968). Parece justamente que a nomeação doente é aceita culturalmente e a drogado não, o termo drogado acaba carregando consigo as designações de desprezo.

É imprescindível salientar o que Nasio (1999) fala sobre demanda de cura, que é algo indispensável no início do tratamento. É este valor imaginário da cura que parece sustentar a continuidade do tratamento, referido na categoria Continuidade.

Enfim, o significante carrega consigo uma representação social. Cabe ao toxicômano dar um significado individual à condição de doente, que acaba de assumir.

Retomando o tratamento psicanalítico, modelo teórico adotado nesta pesquisa, retrata-se o que foi colocado por Conte (1996) como fracasso frente a um ideal. É preciso que no tratamento do toxicômano o tóxico seja deslocado da suposição de suposto objeto ideal, como mais tarde Conte (2002) propõe. Isto proporciona o buraco, a falta, a renúncia ao objeto perdido. Será que este buraco não é encontrado quando os toxicômanos referem-se à "fissura pela droga"? Acredita-se que não porque ainda é pela droga. É a droga que impera.

É preciso que admitam que sempre estiveram perdidos. O momento depreciativo do eu talvez inicie esta admissão. A nomeação doente também, mas ainda assim ela está presa no objeto droga.

Ocorre, precisamente, que a dependência de drogas, ao ser considerada uma doença, proporciona uma nova posição ao toxicômano, um novo lugar do qual possa responder. A simbolização de sua condição, por sua vez, parece não preceder a assunção desta condição. Desta forma, há um significante que nomeia, mas que não propõe ao sujeito novas significações, uma vez que estas são concebidas pelo peso simbólico colocado socialmente na palavra "doença". O toxicômano passa a sustentar uma nova imagem, imagem que constitui um lugar social bastante próprio, lugar de exclusão. Ao mesmo tempo em que o termo incurável leva a um lugar de exceção, ele trás embutido uma série de valores sociais e culturais. Cabe perguntar: É possível que este sujeito sustente este significante "doença" num lugar onde não é positivamente valorizado, mas sim onde lhe é atribuído valor oposto?

Considerando-se que a toxicomania aparece neste sujeito como sintoma e não como causa, e que fica evidenciada sua relação de dependência com os objetos, igualmente sua fragilidade diante destes, pode-se pensar que será bastante difícil para ele utilizar um lugar de exclusão o qual precise ocupar. Enquanto "drogado", este sujeito estava acompanhado de seu objeto: a droga, é a relação pura e "ativa", como costumam nomear. Diante da doença este sujeito parece sim se abster desta atividade e passar a outro pólo: a passividade, passividade diante deste "novo dizer", do outro, que o configura, o nomeia.

Estas repostas pedidas socialmente, pelo outro, são respostas que causam um buraco, uma fissura. Espera-se que a esta fissura ele não responda com o objeto droga, mas que encontre novas soluções. Espera-se que a busca de novas respostas esteja sendo realizada com desejo, ou seja, espera-se que as novas questões que lhe sejam colocadas suscitem a intenção de um benefício do próprio toxicômano. Com isto, diz-se que é necessário que as pessoas que compartilharão com o toxicômano deste novo significante o reproduzam desejando uma transformação do sujeito e não apenas pensando que esta condição lhe trará mais "tranqüilidade".

Isto preocupa no momento em que os participantes da pesquisa revelam estar praticando a mudança em função de seus entes queridos e não em razão própria.

Assim, não há significação dada pelo toxicômano que acompanhe o significante. Pode-se dizer que a cura, enquanto produção de um novo sujeito psíquico, não ocorre. É negada a afirmação dada pelos participantes da pesquisa de que a cura estaria na própria concepção de doente incurável. Pode ser que esta transformação posteriormente seja possível.

O significante assumido poderá ser a porta de entrada para esta produção. Basta pensarmos em um bebê recém nascido, um ser que acaba de chegar ao mundo e passa a ser nomeado. O significante, seu nome próprio, é o que dará a ele um lugar. A partir deste será possível que ocorram significação e a construção de uma identidade, a partir de sua troca com o mundo.

No toxicômano o significante doente igualmente lhe dará um nome, porém, este não é próprio, ele já existe. Enfim, essa existência é carregada de valores sociais que exigirão do sujeito uma nova postura. Ele terá de construir dois caminhos que se cruzarão: a representação desta nomeação dentro de sua história particular e o interlace desta com uma nova condição enquanto ser social, do qual serão esperadas respostas.

Enfim, este estudo avaliou as condições em que a consideração doente incurável influencia o toxicômano que procura um tratamento para livrar-se do uso de drogas.

O termo doença proporciona um novo lugar ao toxicômano, uma posição da qual poderá responder diferentemente, porém não parece haver uma mudança mais profunda, no sentido de culminar na existência de um novo sujeito. Esta terminologia pode ser sim uma porta de entrada para que isto ocorra.

Através deste estudo, está-se ciente de que não se esgotaram as possibilidades de análise sobre este tema. Alerta-se aos limites em termos de generalizações, devido a particularidades desta pesquisa quanto ao número e escolha dos sujeitos pesquisados e ao referencial escolhido.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: psico&–amanda@hotmail.com

Recebido em agosto de 2007
Aceito em janeiro de 2008

 

 

* Amanda Schreiner Pereira: psicóloga; especialista em Psicologia Clínica (CRP) e em Atendimento Clínico &– Ênfase em Psicanálise (UFRGS); mestre em Distúrbios da Comunicação Humana (UFSM); psicóloga do CAPS (Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS).

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