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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.28 Canoas dez. 2008

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Contornando as grades do manicômio: histórias de resistências esculpidas na instituição total

 

Circumventing the asylum metal bars: resistance stories molded in the total institution

 

 

Monique Araújo de Medeiros Brito*; Magda DimensteinI,**

I Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse trabalho trata de uma experiência de estágio em um hospital psiquiátrico. O manicômio é uma instituição total, isto é, instituições fechadas em regime de confinamento, responsáveis pela gestão total da vida de seus pacientes. Nossa proposta objetivou olhar através dessa instituição total e buscar possíveis linhas de fuga que atravessam esse espaço. Apresentamos aqui os resultados dessa imersão no manicômio e algumas histórias de resistências esculpidas na instituição total. Os contatos diários foram o campo privilegiado de observação dos movimentos, da tensão entre diferentes forças, dos afetos que circulavam, enfim, do plano micropolítico em operação. Buscamos conhecer como se estabeleciam as relações e identificar os aspectos instituídos, cristalizados e segregadores aí presentes, bem como a forma como lidavam com isso, as vias de escape dessa estrutura, por meio de observações e conversas informais com profissionais e pacientes do hospital.

Palavras-chave: Instituição total, Reforma psiquiátrica, Loucura.


ABSTRACT

The study deals with the practicum experience at a psychiatric hospital. The asylum is a total institution, that is, a closed institution with a confinement regime that is responsible for the total life management of its patients. We proposed to look at the total institution and to search for the possible avoidance axes that cut cross that space. We present the results of that asylum immersion and the stories of resistance formed. The daily contacts were observed for movements, force-tensions and the surrounding affections, that is, for the micro-political plan in operation. Through observation and informal conversations with the patients and hospital staff, we managed to understand how relations are molded and the segregate aspects that are established in the institution, as well as the means by which they deal with them and escape from the structure.

Keywords: Total institution, Psychiatric reform, Madness.


 

 

Introdução

A história da humanidade é perpassada por um projeto de formação de instituições1 como a família, a religião, o exército e os saberes científicos, dentre os quais a psiquiatria. As instituições tendem a se materializar em dispositivos concretos, em organizações e estabelecimentos tais como escolas, fábricas, prisões e hospitais. Estes últimos nasceram originalmente com uma função religiosa e filantrópica, de internação geral de pessoas pobres. No contexto imediatamente anterior à Revolução Francesa, os hospitais gerais cumpriam um papel muito importante, pois auxiliavam a ordem pública, excluindo do meio urbano considerável parcela dos inimigos do rei ou do Estado, assim como os segmentos mais indesejáveis que ameaçavam a ordem pública e o bem-estar das classes dominantes. Eram destinados àqueles cujos crimes não os levavam à prisão, aos calabouços, aos suplícios públicos. Isto fazia com que fossem instituições verdadeiramente requisitadas pelas autoridades do regime (Foucault, 1979).

Até o século XVIII os hospitais tinham o intuito, primeiramente, de “higienizar” o espaço urbano público, retirando das ruas prostitutas, doentes, bêbados, mendigos, loucos e qualquer pessoa que fosse considerada uma ameaça à ordem social. Eles eram depositados em abrigos superlotados e insalubres, sem condições mínimas de higiene. A esta estrutura institucional, Foucault (1979) denominou de Grande Internação ou Grande Enclausuramento, por sua natureza semijurídica de controle e segregação social. A partir desse momento surgem críticas à organização da estrutura hospitalar forçando mudanças no sentido de transformar o hospital de uma hospedaria de indigentes para uma instituição médica, tornando-se lugar de exame, tratamento e cura.

Pinel foi convidado em 1793 para ser o médico-chefe do hospital de Bicêtre em Paris com o objetivo de reformá-lo. Segundo Castel (1978), essa transformação correu a partir de um conjunto de estratégias desenvolvidas por Pinel que, por sua importância, foi denominado por esse autor de tecnologia pineliana. As estratégias que a compõem são o isolamento, a organização do espaço asilar e a constituição de uma relação terapêutica baseada na autoridade. Com o surgimento da Psiquiatria e das disciplinas a ela relacionadas, o confinamento dessas pessoas passou então a ser legitimado cientificamente, por seu objetivo de conhecimento e tratamento, bem como medida de segurança frente à periculosidade do louco.

Assim surgiram os hospitais especializados – os hospícios – separando os loucos dos demais, a fim de tratá-los através da reeducação disciplinar da mente alienada, impondo normas de conduta e desencorajando comportamentos impróprios. A isso se deu o nome de tratamento moral. Dada a inexistência dos psicofármacos, a alienação mental era tratada com convulsoterapias, camisas-de-força, amarras, cadeiras giratórias, hidroterapia, castigos corporais e, mesmo, lobotomias, estratégias ‘terapêuticas’ que acarretavam grande sofrimento e até morte (Amarante, 2003).

Como podemos perceber através da história, os hospitais psiquiátricos trazem consigo a marca da repressão e do extremo controle sobre indivíduos considerados incapazes de serem responsáveis por sua própria vida. No Brasil, o primeiro hospital psiquiátrico foi inaugurado em 1852 no Rio de Janeiro – Hospício D. Pedro II – o qual foi profundamente influenciado pela psiquiatria francesa e pelo tratamento moral (Amarante, 2003). A partir de então, vários outros foram criados, principalmente nos grandes centros urbanos, levando consigo uma característica em comum: a função de isolar, conter e tratar a loucura, agora considerada doença mental, visto que se passou a buscar explicações biológicas para essas alterações psíquicas/comportamentais, dedicando a elas uma especialidade médica encarregada de descobrir novos métodos terapêuticos e químicos para curar tais ‘disfunções’.

As práticas de violência, segregação e exclusão social produzidas nessas instituições hospitalares ao longo da história são por demais conhecida. Esses hospitais estão classificados dentro do que Goffman (1961) denominou por instituição total, “local de residência e/ou trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada” (p.11). Nessas instituições, segundo o autor, todos os aspectos da vida e tarefas cotidianas bem como as necessidades básicas de dormir e se alimentar são realizadas no mesmo local por todas as pessoas e sob uma única autoridade, devendo obedecer rigorosamente a critérios e horários estabelecidos para atender aos objetivos oficiais da instituição, não levando em consideração diferenças pessoais.

No Brasil, especialmente a partir da década de 1980, sob a influência do movimento da reforma psiquiátrica iniciado na Itália anos antes, surgiram algumas tentativas de transformação buscando a reversão do modelo asilar caótico e segregador através da luta dos profissionais de saúde mental. As principais reivindicações nos projetos de reforma, que inclusive já se encontravam em curso em outros países, eram desde modificações para readequar o saber psiquiátrico até reformas de cunho mais amplo que defendiam a desconstrução deste saber. Temos, pois, propostas de reformas que visam à ‘humanização’ da estrutura hospitalar, da vida dos internos, e à prevenção das condições que resultariam em adoecimento e internação; propostas a favor da desospitalização; denunciando a internação como fator iatrogênico na constituição da doença mental; e outras propostas de reformas, por fim, que indicam a necessidade de desconstruir o paradigma psiquiátrico e reconceitualizar saúde e doença mentais segundo perspectivas que as alforriem do secular aparato médico-hospitalar (Barreto, 2003).

Nessa última perspectiva, baseada na reforma italiana iniciada por Franco Basaglia, passa-se a defender a desinstitucionalização, que, nas palavras de Rotelli Leonardis e Mauri (2001), significa um processo social complexo que deve envolver todos os atores sociais com o intuito de desconstruir o próprio saber psiquiátrico enquanto instituição que sustenta um modo de pensar e ‘tratar’ a loucura, limitando-a a sua dimensão biológica, esquecendo de considerar o indivíduo em sua dimensão humana, social, política e cultural. Isto requer, sem dúvida, a construção de uma nova política para a saúde mental no país e um outro modo de encarar a loucura por toda a sociedade.

As transformações ocorridas até agora, no entanto, ainda estão muito aquém desta proposta, como indicam Sadigursky e Tavares (1998), visto que têm encontrado uma série de obstáculos que vêm impedindo a sua efetiva implementação no território brasileiro, não sendo raro, ainda, a predominância de hospitais psiquiátricos nos quais o modelo asilar prevalece. Esses hospitais geralmente apresentam estruturas (mal)adaptadas, obsoletas, com um grande número de pacientes por unidade, elevada taxa de permanência hospitalar, favorecendo as muitas re-internações e pouca resolutividade. A assistência baseia-se numa terapêutica medicamentosa abusiva visando, sobretudo, ao lucro, mantendo a continuidade do sistema de afastamento e de segregação do louco da sociedade.

Esse é o panorama nacional das instituições psiquiátricas, não sendo diferente em nosso estado, o Rio Grande do Norte. O seu mais antigo hospital psiquiátrico, o Hospital João Machado (HJM), antigo Hospital Colônia, constitui-se como única referência em saúde mental de atenção terciária pública para o RN, sendo uma unidade reguladora das internações psiquiátricas para os hospitais conveniados ao SUS e contando atualmente com 169 leitos para internações. Estes, distribuídos entre o pronto-socorro e pavilhões de enfermarias, sendo 111 reservados para os pacientes do sexo masculino e 58 para pacientes do sexo feminino.

De acordo com sua página oficial na internet2 , o Hospital João Machado tem apostado em uma nova política de atenção aos seus pacientes, passando por um processo de reestruturação que visa uma mudança de paradigma embasada pelos atuais preceitos da reforma psiquiátrica, indo desde a atenção e cuidado humanizado ao abandono do modelo asilar. O hospital segue atualmente a perspectiva de garantia do direito básico de cidadania, concretizando-se com a experiência de projetos como a Residência Terapêutica, possibilitando aos pacientes retornar a um contexto familiar e comunitário através de relações sociais.

Apesar dessas importantes mudanças, ainda há muito a ser desconstruído tanto no aspecto físico – por sua semelhança com as instituições prisionais – quanto em algumas práticas institucionalizadas e obsoletas realizadas por profissionais de certa forma já cronificados em suas funções. Isto, contudo, não significa que estaria conquistada a Reforma Psiquiátrica. Como expomos anteriormente, a luta pela desinstitucionalização diz respeito não só à desospitalização ou reorganização do espaço hospitalar. Vai, além disso, isto é, busca desconstruir os conceitos e representações da loucura presentes na sociedade como o de doença, incapacidade e periculosidade e a construção de novas formas de acolhimento ao sofrimento psíquico. Trata-se de combater o “perigo que se anuncia em todas as instituições: fazer-nos acreditar que elas são invariantes e que através delas nos reconhecemos definitivamente” (Barros & Passos, 2001, p.151).

Em função disso investimos em uma proposta de estágio e pesquisa que objetivou olhar através dessa instituição total e buscar possíveis linhas de fuga que atravessam esse espaço, pois, como defendeu Foucault (1979), onde há poder há resistência. Esse trabalho busca apresentar os resultados dessa imersão no manicômio e contar algumas histórias de resistências esculpidas na instituição total.

Linhas de Fuga é um conceito cunhado por Deleuze (1998). De acordo com Coimbra e cols. (2005), para Deleuze, “indivíduos ou grupos, somos feitos de linhas, e tais linhas são de natureza bem diversa” (p.145). Há a linha segmentária, de caráter molar que define segmentos duros que nos recortam em todas as direções; há também a linha flexível, sobre a qual passam os “devires, micro-devires” (p.145). A terceira linha é a linha de fuga, sendo considerada ainda “mais estranha”: como se alguma coisa nos levasse, através dos segmentos, mas também através de nossos limiares, em direção a uma destinação desconhecida, não previsível, não preexistente” (p.146). Como pensa Deleuze, essas três linhas convivem juntas, são produzidas juntas, não sendo estanques, como se vivêssemos em um plano e depois em outro. Essas linhas se entrecruzam, formando uma imagem, comparada a um rizoma, vegetação onde não se identifica começo ou fim, mas onde diversas linhas, diversos planos se constituem juntos e se atravessam, não podendo se distinguir um do outro e um e outro. Dessa forma, rompe-se também com a idéia de uma dicotomia, dureza/reprodução versus devir/escape .

Em outras palavras, a linha de fuga opera contra as potências fixas, o instituído, a ordem estabelecida, produz desequilíbrios, possibilita a criação. Podem ser entendidas como o pensamento que não se fecha sobre o reconhecimento de situações e saberes, mas, pelo contrário, questiona os modelos e se propõe a novos encontros nas relações em que foi produzido (Schuch & cols., 2003). Essas linhas de fuga caracterizam-se pelas relações que nascem nesse ambiente inóspito. Relações entre os pacientes internos, entre internos e pacientes do pronto-socorro, pacientes e técnicos, pacientes e familiares de outros pacientes, enfim, entre todos os sujeitos que transitam por esse espaço. As relações produzidas nesse espaço caracterizam modos de resistência a um modelo institucional panóptico3 , que visa separar os indivíduos para melhor controlá-los, e essa resistência vai além da simples idéia de reagir ou negar algo, é uma vontade ativa de resistir como nos aponta Oneto (2006): “voltar a ser no sentido de estar (o sistere latino) – estar de novo lançado na vida como devir, e nesse sentido também re-existir ou se projetar para fora novamente (re-ek-sistir). A aposta, portanto, não é na oposição a algo senão de maneira derivada, mas sim na ex-posição e na com-posição” (p.6).

É acreditando nisso que enxergamos em algumas atitudes humanas no hospital, uma vontade de resistir a esse modelo que visa separar os corpos e as subjetividades e, em um movimento contrário, desconstruir e reinventar relações que caracterizam encontros positivos, potencializadores de vida, mesmo em um espaço onde se produz a ‘morte de coisas ainda vivas’4 .

 

Método

Como referido anteriormente, esse trabalho refere-se à parte das atividades realizadas no estágio curricular de psicologia no ano de 2007 no Hospital Psiquiátrico Dr. João Machado (HJM) em Natal/RN5 . Trata-se de uma pesquisa intervenção concebida nos moldes indicados por Rocha (2003). Nossa inserção no hospital foi sendo construída desde o ano anterior por ocasião da realização de uma oficina de dança com pacientes da enfermaria feminina6 .

Nesse contexto, buscamos conhecer como se estabeleciam as relações e identificar os aspectos instituídos, cristalizados e segregadores aí presentes bem como a forma como lidavam com isso, se havia modos de escapar dessa estrutura, por meio de conversas informais com profissionais e pacientes do hospital. Além disso, com os pacientes, buscamos compreender como estava sendo o período de internação em termos de convívio social, que tipos de vínculos eles estabeleceram e que outros vínculos foram dificultados. Entrevistamos também alguns técnicos a fim de conhecer a opinião dos mesmos acerca das relações que eram produzidas nesse contexto institucional, além de suas experiências pessoais nesse sentido. Em decorrência de alguns acordos institucionais, os pacientes e técnicos entrevistados foram aqueles que atuam nas enfermarias femininas e no pátio, local onde há uma maior circulação de técnicos e pacientes de ambos os sexos e também daqueles que não estão nas enfermarias, que são os pacientes do pronto-socorro.

 

Resultados e discussão

Instituição total: o manicômio

Quando entramos num hospício, o cheiro insuportável dos pavilhões fechados (cheiro típico do manicômio), a balburdia das vozes, a baba e a saliva na boca dos internados as camisas cinzentas, as cabeças raspadas – são esses os elementos da paisagem da doença mental (Basaglia, 1985, p.16)

Essa paisagem descrita por Basaglia há mais de duas décadas não sofreu grandes transformações. O cheiro dos pavilhões – agora enfermarias – ainda é bem característico. As vozes ainda ecoam principalmente quando os olhos aflitos e úmidos vêem alguém de jaleco branco entrando pela porta; vozes trêmulas e embargadas a perguntar quando poderão rever seu marido e filhos pequenos que estão em casa, ou a mulher “em dias de parir”. As bocas e dentes sujos de quem acabou de saborear um prato de comida que, por pior que seja, às vezes inexiste em seu lar. As mesmas cabeças raspadas de sempre, homogeneizando as experiências com o desejo de fazer o mesmo com as almas. As roupas, não mais cinzas, agora azuis, com o símbolo do hospital estampado de um lado e o da instituição que os “patrocinou” do outro; sujas, muitas vezes rasgadas; quando as vejo, é como se estivesse vendo uma grade ao redor do corpo que as habita. Todo esse cenário faz parte do Hospital João Machado.

Como instituição racional criada para conter a irracionalidade, o manicômio é uma máquina modeladora de indivíduos, onde o poder atua, domina, se ramifica, produzindo saberes e práticas contaminadas de parcialidade e institucionalizando subjetividades: “Quando a pessoa fica presa dá o nervoso, mesmo que a pessoa não seja nervosa: ficar preso, ver que não se pode fazer isso e aquilo, e ter de fazer o que mandam...” (Basaglia, 1985, p.21).

Como já provocavam Benelli e Costa-Rosa (2003), em termos de efeitos técnicos, a experiência de internação em uma instituição total produz resultados muito distantes dos objetivos oficiais que costumam constar em seus estatutos e regimentos. Logo na entrada do HJM, um enorme cartaz diz: ‘Nossa missão: Tratar o cidadão acometido de transtorno mental agudo ou semi-agudo, com internação integral, com humanização e respeito aos direitos humanos no menor espaço de tempo possível’. Na realidade, muitas vezes um paciente tem sua alta adiada inúmeras vezes pelos motivos mais banais (leia-se meramente burocrático-institucionais), como o fato do médico responsável não ter tido tempo de passar na enfermaria durante a semana ou o paciente ser tão ‘invisível’ a ponto da equipe esquecer de discutir sua alta. Dessa forma, o hospital vai favorecendo o “processo de cronificação (= embotamento afetivo, isolacionismo, hábitos grotescos e dificuldade de realizar ações do cotidiano), justificando essa tutela e a submissão do portador de transtornos mentais a mecanismos de violência institucional” (Gradella Junior, 2002, p.89).

Modelo panóptico

Para cumprir sua missão de perpétua vigilância, o hospital psiquiátrico, como eficiente instituição total que representa, foi pensado e construído o modelo panóptico já comentado anteriormente, de modo a favorecer o controle dos corpos. De acordo com esse modelo arquitetônico, há uma distribuição dos indivíduos, de modo a quadricular o espaço ocupado, estando cada indivíduo no seu lugar; e em cada lugar, um indivíduo. Essa divisão vai facilitar aquilo que Goffman denominou “obediência visível e constantemente examinada” (1961, p.18);

No hospital, apesar de alguns pacientes circularem sem tantas restrições pelos ambientes abertos, sempre há pelo menos um técnico “escalado” para a vigilância, para ficar atento a tudo que ocorre, como se o perigo estivesse sempre prestes a surgir. No pátio, muitas vezes, há tantos técnicos quanto pacientes, pois, segundo a fala de um deles, ‘aqui tem que ficar sempre alerta, porque, como tem muito doido junto, qualquer hora pode acontecer um desmantelo, né?’. Dessa forma, se fabricam os corpos dóceis, submissos e exercitados, ao mesmo tempo se cria uma tática de antideserção, antivadiagem e antiaglomeração (Foucault, 1987). Separa-se para melhor controlar, vigiar e punir; para que as forças individuais jamais se encontrem e se mobilizem com um mesmo objetivo; para que os corpos dóceis não se tornem indomáveis.

As instituições totais funcionam para atender aos seus próprios interesses

Como Goffman (1961) apontou em seus estudos, as instituições totais funcionam dentro de uma lógica própria, onde seus interesses são os únicos que merecem ser atendidos, negligenciando qualquer necessidade ou desejo do sujeito institucionalizado. Geralmente este não tem conhecimento das decisões quanto ao seu próprio destino ou da forma como são estruturadas as atividades do cotidiano institucional. O diálogo abaixo aconteceu entre pesquisadora e uma técnica do hospital:

– Porque a música é só na quinta-feira?

– Porque tem que ser só um dia, né? Se não, eles não querem mais dançar, deixa de ser novidade. Tem que ser só um dia mesmo.

– E você não acabou de dizer que assiste televisão toda hora? Por que eles só podem ouvir música uma vez por semana?

– Mulher, você quer comparar? (referindo-se a uma incabível comparação entre ela e aos pacientes)

Fatores que contribuem para a manutenção do manicômio

Ainda existem muitos agentes mantenedores dessa instituição e eles possuem significativa relevância no nosso contexto social. Discutimos aqui alguns deles:

a. Lógica dos especialismos

Até mesmo nos locais onde supostamente o sujeito é visto de forma mais global, estando sob um cuidado multiprofissional, a lógica manicomial atravessa as ações da equipe, que não se diferencia de trabalhadores de uma “linha de montagem” (Costa-Rosa, 2000, p.153), onde as tarefas (aqui o sujeito) são fragmentadas e nenhum dos profissionais envolvidos tem a noção da dimensão do seu trabalho. É assim que acontece nessa e na maioria (por que não dizer em todos) das instituições psiquiátricas: ao chegar ao pronto-socorro, porta de entrada do hospital, o sujeito é separadamente atendido por médico, assistente social e psicólogo, como se fosse uma televisão, rolando na esteira para ser montada, cada profissional apertando um parafuso. E é isso mesmo que eles almejam: apertar os parafusos desse corpo subjetivo transmutado em corpo maquínico.

b. Corpo social: miséria e loucura

Creio que uma das principais prevenções da loucura e da doença mental é a luta contra a miséria. Quando entramos num manicômio temos à nossa frente a miséria. A primeira coisa que ele (paciente) faz quando nos vê é pedir esmola e perguntar: “Quando volto pra casa?” (consciência da prisão e consciência prática da miséria) (Basaglia, 1979, p.33)

Não foi à toa que essas palavras foram proferidas por Basaglia. O que vemos, no hospital, é que grande parte das pessoas que lá estão internadas, está, principalmente, porque representam uma sobrecarga financeira para seus cuidadores, ou já perderam seus empregos e não conseguem mais sustentar suas famílias. Muitos alegam não ter condições de manter essa pessoa em casa, custeando seu tratamento e sua própria sobrevivência. Grande parte dos conflitos familiares corre pelos trilhos da miséria e da escassez do necessário. Muitos internos, especialmente os considerados crônicos-residentes – crônicos porque residentes e não residentes porque crônicos – já receberam alta, mas permanecem no hospital pelo fato de não terem para onde ir, como podemos ver no caso abaixo:

– Eu tô que nem uma borboleta

– Como?

– A borboleta num passa o dia voando, sem ter onde posar? Eu to assim&333; De noite ela continua voando ao redor da luz, sem ter onde posar. Minha irmã vendeu a casa e agora eu não tenho pra onde ir. Vou morar aqui (hospital psiquiátrico). No Caps eu saio de 4 horas e não tenho pra onde ir.

Sabemos que a miséria não é causa – ou causa única – para a loucura, mas não podemos deixar de enxergar essa relação que teima em mostrar-se a todo instante. Como disse Basaglia,

Se eu pensasse que a loucura é apenas um produto social, estaria ainda dentro de uma lógica positivista (...) Eu penso que a loucura, como todas as doenças, são expressões das contradições do nosso corpo e, dizendo corpo, digo corpo orgânico e social. (Basaglia, 1979, p 79)

c. Mortificação do EU

Nas instituições totais, os processos pelos quais o eu da pessoa é mortificado são relativamente padronizados, levando o sujeito a uma situação de ‘desculturamento’ ou ‘destreinamento’, onde a pessoa, após algum tempo de vivência numa instituição total, torna-se temporariamente incapaz de enfrentar alguns aspectos de sua vida diária (Goffman, 1961). Muitos deles também estão presentes nessa instituição:

Cotidiano institucional

Uma das etapas de mutilação está na própria admissão, onde o paciente é, muitas vezes, despojado de seus bens pessoais, passa por processos como despir, dar banho, desinfetar, adquirir roupas da instituição e ser informado das regras da instituição. Ou seja, a partir desse momento, seus desejos e necessidades, desde as mais básicas, como comer e dormir, devem estar de acordo com aquilo que é estabelecido naquela instituição; uma conduta que não esteja dentro dos padrões será rapidamente repreendida, contida e/ou castigada.

“As instituições todas perturbam ou profanam exatamente as ações que na sociedade civil tem o papel de atestar, ao ator e aos que estão em sua presença, que tem certa autonomia no seu mundo” (Goffman, 1961, p.46). Nesse sentido, até mesmo as necessidades mais básicas e corriqueiras da vida cotidiana, como comer, dormir, tomar banho, assistir televisão, andar pelo pátio, devem ser feitas nos horários destinados às mesmas e da forma como foi determinada que elas fossem feitas.

Se um paciente toma banho mais vezes do que é considerado normal pela instituição, dorme mais durante o dia que à noite, quer andar pelo pátio em horário diferente dos demais, fala mais do que os auxiliares suportam ouvir, deseja comer menos ou mais que aquele montante depositado naquela bandeja suja, ele estará desobedecendo à ordem, sendo logo considerado em crise e terá sua medicação e seu tempo de internamento dobrado. Em decorrência de todo esse adestramento, muitos pacientes, principalmente aqueles que estão internados a mais tempo e aqueles outros que fazem visitas constantes a esse estabelecimento, vão internalizando esses hábitos instituídos, até como uma forma de adaptação, tentando escapar das tão temidas punições.

Certa vez, no pronto-socorro, tive o desprazer de ver uma jovem paciente ser contida pelo simples fato de estar circulando demasiadamente pelo ambiente e incomodando os profissionais que ali estavam. Vale salientar que ela não estava atrapalhando o trabalho de nenhum técnico, até porque a maior parte deles estava reunida, apenas jogando conversa fora; não estava agitada, nem falando alto, nem com nenhuma das condutas que muitas vezes são utilizadas para justificar esse tipo de prática – contenção física. A violência não ficou somente no plano físico, mas transbordou para a esfera moral, de desrespeito ao sujeito, pois essa paciente, além de tudo, foi apelidada de ‘barbie girl’ pelo fato de suas amarras serem cor-de-rosa. Esses técnicos demonstram, com essa conduta, que para eles o sujeito que está ali não passa de um objeto que pode ser ridicularizado e amarrado em um canto isolado quando se tornar ‘perturbador da ordem’.

Padrão de deferência obrigatória e situações de humilhação

Inúmeras vezes ouvi a frase ‘respeite a doutora!’ quando algum paciente tentava tocar, abraçar, segurar as mãos ou ajeitar meus cabelos. Essa distância técnico-paciente é mantenedora das relações de poder que existem nas instituições. Para a maioria dos técnicos é inconcebível qualquer aproximação, seja por sentirem-se superiores, seja para manter a distância necessária à relação profissional ou mesmo para não entrarem em contato mais próximo com as texturas e odores da loucura.

Além disso, ser obrigado a pedir, importunar ou humildemente esperar por algumas coisas pequenas, como um cigarro ou um copo de café. Essas são atitudes comuns no hospital psiquiátrico. Muitas vezes foi possível observar técnicos dando restos de café para os pacientes, não no sentido de compartilhar aquilo que era seu, mas de dar o resto, aquilo que não lhe servia mais.

Esses são procedimentos que colocam o sujeito em um lugar inferior, além de enfatizar o seu estado despido de propriedade. Nesse tipo de ambiente, os poucos pertences pessoais que são admitidos não permanecem por muito tempo nas mãos do seu dono legítimo, sendo trocados, tirados furtivamente ou simplesmente perdidos. Outro exemplo da humilhação a que eles são submetidos é quando são observados em situações constrangedoras, expostos como meros objetos de estudo a estudantes que vêm conhecer o hospital psiquiátrico como uma criança que vai ao zoológico conhecer novas espécies animais. Muitos entram com medo; alguns saem com mais medo, outros sentindo piedade e pouquíssimos realmente sensibilizados e dispostos a serem homens críticos e atuantes no sentido de tentar mudar algo nessa estrutura.

Resistências

Mais uma vez trazendo a idéia de Foucault (1979) de que onde há poder, há resistência, abordaremos algumas formas de resistência produzidas nas instituições totais, bastante discutidas por Goffman (1961), a começar pelas estratégias de adaptação desenvolvidas pelos internos. Uma delas é o ‘afastamento da situação’, quando os sujeitos tornam-se alheios a tudo que não diz respeito ao seu espaço de existência mais imediato, o seu corpo físico. Muitas vezes é uma estratégia que se confunde com o estado de alienação atribuído aos transtornos mentais. Acrescentaria, ainda, que é um estado que pode ser provocado, inclusive propositalmente, pela medicação, visando ‘acalmar’ os pacientes mais agitados.

Uma outra estratégia de adaptação, que poderíamos colocar em um lado oposto ao afastamento, é a ‘tática de intransigência’, onde o sujeito recusa-se a cooperar com a equipe dirigente, intencionalmente desafiando a instituição. Nesse hospital que estamos acompanhando podemos ver vários exemplos como esse, mas há um caso que é o mais conhecido no hospital. É uma paciente, de 54 anos, dos quais 25 foram ‘vividos’ nessa instituição. Ela adora quebrar os óculos de quem passa por perto, de vez em quando bate em outra paciente, rasga e tira suas roupas, grita, enfim, ela faz inúmeras ‘provoca-ações’ à instituição que tenta normatizá-la. Falamos em ‘provoca-ações’ porque é isso que ela faz, ela provoca na equipe não somente ações, mas dúvidas, sensações como medo, raiva e também simpatia por parte de alguns técnicos. Ela faz-se notar, recusa a invisibilidade que é dada a muitos pacientes. Para Goffman (1961), fazendo isso, o sujeito obriga a instituição a uma “devoção tão especial quanto a que o rebelde manifestou com relação a ela” (p.60). É dessa forma que ela resiste; se não tem a possibilidade de viver lá fora, pelo menos vive aqui dentro,

A ‘colonização’ é uma outra estratégia de adaptação, através da qual o paciente faz da instituição o seu próprio mundo, construindo nele uma existência estável e satisfatória, relativamente até melhor que o seu mundo externo. Essa extrema adaptação à instituição não é considerada positiva por aqueles que lutam pela reforma psiquiátrica e extinção do manicômio, pois essa adaptação acomoda, atuando como um agente fortalecedor e mantenedor do hospital.

Os ajustamentos secundários são estratégias características desse último tipo de adaptação, descritos por Goffman (1961) como práticas que não desafiam diretamente a equipe dirigente, mas que permitem que os internados consigam satisfações proibidas ou obtenham, por meios proibidos, as satisfações permitidas. Para ele, os ajustamentos secundários “dão aos internados uma prova evidente de que ainda é um homem autônomo, com certo controle de seu ambiente; às vezes, um ajustamento secundário se torna quase uma forma de abrigo para o eu, onde a alma parece estar alojada” (1961, p.54). Nesse hospital é comum algum paciente mais “habilidoso” conseguir cigarro, café, balas, lanche na cantina, dentre outros objetos, seja fazendo acordos com outros pacientes, familiares destes ou mesmo com alguns técnicos.

Encontros e relações possíveis

O pátio foi um lugar que me proporcionou muitos encontros. Relações iniciadas, continuadas, às vezes encerradas. Muitas conversas são iniciadas no pátio, pois esse é um lugar onde as pessoas têm mais possibilidade de ver umas às outras, o que é muito dificultado pela estrutura física do hospital em outros ambientes como as enfermarias, bastante subdivididas e pensadas justamente para dificultar esse contato.

Lugar de reencontros também é esse, além das despedidas, que também são inevitáveis, e até bem vindas... Eu mesma presenciei muitas delas. Familiares chegando para levá-los para o fim de semana, ou mesmo de alta definitiva, despedidas entre pacientes que, por alguns dias, semanas e até meses, compartilharam aquele ambiente que de acolhedor não tem nada e que, por isso ou apesar disso, possibilite ou talvez não consiga impedir que relações se desenhem, com as mais variadas formas e intensidades... Amizades, namoros, relações de carinho, preocupação, cuidado: ‘No começo eu tinha medo, mas depois comecei a cuidar dela; ela pede água, pede café... Ela não sabe vestir a roupa sozinha...’ e, ainda, ‘Eu lhe procurei para apresentar a minha princesa (filha), mas você tava dormindo. Aí eu mostrei a ela; fui lá na sua cama e disse ‘Ó, filha, mamãe queria que você conhecesse a amiga dela, mas ela ta dormindo’.

Também já me despedi... E que sentimento ambíguo o que senti! Um misto de alegria por ver aquelas pessoas retornando ao seu lar e uma pontinha de tristeza por saber que, provavelmente, não mais os veria... Muitos vivem no interior, distante da capital. O sentimento e a angústia tornam-se ainda maiores ao pensarmos que, saindo do hospital, não terão acesso a outros serviços, a precariedade do cuidado, o que resultará, provavelmente em uma nova internação e assim sucessivamente, dando início a uma cadeia de acontecimentos que só maltrata e desgasta física e psiquicamente tanto o sujeito quanto sua família. O sentimento de impotência diante de uma situação como essa é indescritível, assustador e angustiante.

Presenciei algumas vezes familiares fazendo acordos com outros pacientes para que estes cuidem de seus parentes, ou o contrário, pessoas que vêm visitar seus familiares e acabam ‘adotando’ naquele período um outro interno que não recebe visitas, que está sempre sozinho ou que fez algum laço de amizade com seu parente: ‘Cuide do meu filho, mulher, que eu trago um agrado pra você’ ou ‘Eu tenho pena de Luciano, porque ninguém da família dele vem visitar ele, nunca’.

A solidariedade em um ambiente como esse, muitas vezes torna-se vital e única fonte de apoio: Uma paciente chora, chamando por sua mãe, que não a visita e é consolada por uma outra paciente, que está com sua mãe e diz: ‘Tome, mulher, eu lhe empresto a minha (mãe)’.

Desinstitucionalização: desventuras de um caminho a ser percorrido

Poderíamos citar inúmeras definições para desinstitucionalização. No entanto, como estamos falando de dentro do manicômio, reavivamos aqui um desejo de Basaglia (1979, p.60), de “tentarmos transformar o doente mental morto no manicômio em pessoa viva, responsável pela própria vida”. Estamos falando do direito de um ser vivo a ter vida e não apenas uma (sub)existência, mas muitos obstáculos ainda se erguem nesse caminho. Goffman (1961), ao escrever sobre a dificuldade de se resistir às instituições totais cita dois desses obstáculos: a barreira dos técnicos e a barreira da cidade, uma força de dentro e uma de fora resistindo contra a reforma psiquiátrica.

Essa primeira força, a interna, está bastante explícita, sendo visível nas atitudes de muitos técnicos, engessados em suas práticas e cronificados em sua posição de saber incontestável. Muitos deles, além de não se moverem por caminhos diferentes há muito tempo, ainda atuam no sentido de dificultar a abertura de novas trilhas por aqueles que as desejam: ‘Olhe, eu tô aqui há muito tempo, já vi um monte de gente querendo inventar coisas diferentes e eles sempre se cansam, param, vão embora; porque aqui elas (pacientes) não colaboram, não querem participar de nada não’.

A cidade, por sua vez, tenta impedir com todas as suas forças, com todo seu poder, micro e macro, uma abertura do manicômio, as práticas que incentivam a circulação do louco por suas ruas e instituições sociais. Se o manicômio abre as portas da saída, a cidade fecha as portas da entrada, seja ridicularizando, proibindo o acesso dessas pessoas a muitos ambientes, tratando-as como seres abomináveis, perigosos ou, por outro lado, como incapazes, inferiores. Dessa forma, coloca-o “numa posição paradoxal, sendo esquecido como sujeito e lembrado como ser incapaz de realizar qualquer atividade que seria digna de um ser humano não-estigmatizado e, ao mesmo tempo, capaz de cometer atos ilícitos, perigosos, sendo, por esse motivo, encarcerado na liberdade do outro” (Brito, Dimenstein, Severo, Morais & Alverga, 2006, p.134).

Além dessas duas grandes forças, eu citaria, ainda, uma que me parece ser a mais alienante, que é aquela que parte do próprio sujeito estigmatizado. Muitos deles estão “curados da loucura, mas doentes da instituição”, como nos relata Basaglia (1979, p.90) e exemplifica Amarante (1996):

Uma fábula oriental conta a história de um homem em cuja boca, enquanto ele dormia, entrou uma serpente. A serpente chegou ao seu estômago, onde se alojou e onde passou a impor ao homem a sua vontade, privando-o, assim, da liberdade. O homem estava à mercê da serpente: já não se pertencia. Até que uma manhã o homem sente que a serpente havia partido e que era livre de novo. Então se dá conta de que não sabe o que fazer da sua liberdade: “No longo período de dominação absoluto da serpente, ele se habituara de tal maneira a submeter à vontade dela a sua vontade, aos desejos dela os seus desejos e aos impulsos dela os seus impulsos, que havia perdido a capacidade de desejar, de tender para qualquer coisa e de agir autonomamente. Em vez de liberdade ele encontrara o vazio, porque junto com a serpente saíra a sua nova essência, adquirida no cativeiro, e não lhe restava mais do que reconquistar pouco a pouco o antigo conteúdo humano de sua vida. (p.66)

É por esse motivo que qualquer movimento baseado na perspectiva de uma efetiva desinstitucionalização deve ser pensado e construído com a participação de todos esses atores sociais. Se cada um de nós não estiver implicado na construção desse novo modo de pensar, sentir, cuidar e viver a loucura, estaremos sendo apenas mais um hospedeiro de uma nova serpente. É preciso abandonar o modelo de comunicação existente nos manicômios, estruturados a partir da forma “inter-loucos-sãos”, onde esse “inter” é apenas um espaço vazio, um fissura entre os loucos e os sãos, como sugere Costa-Rosa (2000, p.161).

A reforma psiquiátrica é um diagrama de forças em constante embate, em rearranjos provisórios, que tem como núcleo problemático a questão da alteridade, da diferença e da liberdade. Nesse sentido, ela é, de acordo com Fonseca (2007), “um analisador de uma crise maior, a crise que perpassa as próprias bases do humanismo moderno....e nos impulsiona a realizar uma dessubstancialização daquilo que temos praticado e daquilo que nos tornamos” (p.40). Podemos dizer que nesse embate somos chamados a encontrar saídas para o mal-estar produzido nas nossas relações com a alteridade que não sejam carcerárias, despóticas, ou de exclusão, que não seja a produção de “vidas rejeitadas por uma inutilidade decretada” (Engelman, 2007, p.76).

Vimos que mesmo nas instituições totais existem brechas pra isso ou pequenos arranhões que podem ser agigantados dependendo de quem os enxerga e de sua condução: se vai ser ‘consertá-los’, tapando-os, ou ‘desconsertá-los’, continuando cavando, seja sorrateira ou estridentemente...Para finalizar, um apelo à liberdade e à vida, que para mim são sinônimos...Quando perguntado sobre o que fazer enquanto não o manicômio não se abre, Basaglia responde: “Abrir a instituição!” (Basaglia, 1979, p.27).

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: monique_brito@yahoo.com.br

Recebido em março de 2008
Aceito em junho de 2008

 

 

* Monique Araújo de Medeiros Brito: bolsista de Iniciação Científica/CNPq e discente do Departamento de Psicologia da UFRN (Natal – RN).
** Magda Dimenstein: psicóloga, doutora em Saúde Mental (UFRJ), professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pesquisadora do CNPq.
1 As instituições, segundo Baremblitt (2002), “são lógicas, são árvores de composições lógicas que, segundo a forma e o grau de formalização que adotem, podem ser leis, podem ser normas e, quando não estão enunciadas de maneira manifesta, podem ser hábitos ou regularidade de comportamentos” (p.25). Lourau ressalta que as instituições são sistemas de regulação da vida humana que atravessam todos os seus níveis, individual, grupal, das relações. Assim, “é necessário definir a instituição como um “cruzamento de instâncias” (econômica, política, ideológica) e afirmar que a instituição deve ser definida necessariamente pela transversalidade” (Lourau citado por Altoé, 2004, p.76).
2 //www.saude.rn.gov.br/arquivos/jmachado.asp
3 O panóptico de Jeremy Bentham é uma composição arquitetônica de cunho coercitivo e disciplinatório: possui o formato de um anel onde fica a construção à periferia, dividida em celas tendo ao centro uma torre com duas vastas janelas que se abrem ao seu interior e outra única para o exterior permitindo que a luz atravesse a cela de lado a lado. Na torre central deve-se colocar então um vigia e em cada cela trancafiar um condenado, louco, operário ou estudante: através do jogo de luzes, torna-se impossível ao detento, escolar ou psicótico saber se naquele ponto central está ou não alguém à espreita. Isolados, os condenados ou doentes ou os alunos são hora após hora, dia após dia expostos à observação dos mestres do panóptico, mas sem saber se a vigilância é ininterrupta ou não, quem os vê ou o que vêem. A incerteza da vigilância intermitente adestra (http://blog.uncovering.org/archives/2007/06/panoptico_a_gen.html).
Foucault, em Vigiar e Punir (1987) indica que o efeito mais importante do panóptico é induzir um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático e desindividualizado do poder (p.166)....pois este tem seu princípio não tanto numa pessoa quanto numa certa distribuição concertada dos corpos (167).....assim, o panóptico é uma máquina maravilhosa que, a partir dos desejos mais diversos, fabrica efeitos homogêneos de poder (167).
4 Fala do Prof. Dr. Luís Antônio Batista da UFF, no IV Colóquio Internacional Michel Foucault, realizado em Natal em 2007.
5 Estágio curricular em psicologia da UFRN realizado pela primeira autora sob a orientação da segunda.
6 Nessa oficina nosso objetivo principal foi propor a utilização da dança como modo de expressão corporal da subjetividade e estratégia terapêutica a ser desenvolvida no contexto asilar. Vale salientar que essa experiência com a dança não teve o objetivo de ensiná-las a reproduzir técnicas ou a executar passos e coreografias. O que se pretendeu foi criar um espaço onde essas pessoas pudessem utilizar-se do seu corpo para expressar o que desejassem. Essa experiência foi apresentada e discutida por Liberato, Brito e Dimenstein (no prelo).

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