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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  n.29 Canoas jun. 2009

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

As dimensões do corpo e a topologia cultural

 

The dimensions of the body and the topology cultural

 

 

Leonardo Danziato

Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Considerando o desenvolvimento lacaniano das dimensões do Real, Simbólico e Imaginário, este trabalho busca realizar uma leitura dessas dimensões do corpo, situando-as numa topologia que se pode encontrar no espaço cultural. Para tanto, desenvolve uma analogia entre a estrutura de linguagem, suas funções e variáveis com essa topologia. Objetiva demonstrar que essas dimensões se encenam num espaço que transcende o individual, ou mesmo o estrutural, alterando-se conforme as mutações históricas próprias de uma época. Fundamenta, assim, suas conclusões, considerando os efeitos subjetivantes das atuais condições topológicas e discursivas em nossa cultura, assim como suas consequências para uma economia de gozo do sujeito e sua relação com o corpo. Trata-se de um trabalho teórico-clínico que busca articular conceitos e formular proposições que possibilitem uma leitura da clínica em seus pontos de articulação com o espaço cultural.

Palavras-chaves: Corpo, Cultura, Topologia.


ABSTRACT

Considering the development dimensions of the Lacanian Real, Symbolic and Imaginary, the job search hold a reading of these dimensions of the body, placing them in a topology that could be found in the cultural area. For both develops an analogy between the structure of language, its functions and variables with this topology. It aims to demonstrate that these dimensions are encenam in an area that transcends the individual, or even the structures, changing itself as the historical change of an era. Fundamental thus its conclusions, considering the effects of current conditions subjetivantes topological and discursive in our culture, and its consequences for an economy of enjoyment of the subject and its relationship with the body. This is a theoretical and clinical work, which seeks articulate concepts and make proposals to promote a reading of the clinic in its points of articulation with the cultural area.

Keywords: Body, Culture, Topology.


 

 

Introdução

Para falar um pouco sobre corpo e cultura, gostaria de interrogar as vias pelas quais podemos dizer que a cultura atinge o corpo, altera seu funcionamento ou mesmo o constitui. Pode parecer estranho interrogar como a cultura constitui o corpo, já que há no imediatismo da concepção uma tendência a confundir o corpo com um organismo. Obviamente que o corpo é também um organismo, mas gostaria de dirigir minhas proposições numa direção que acompanha os achados teóricos da psicanálise que acolhe e pesquisa esses dados. Trata-se de um ponto de vista que considera o corpo como o que há de mais fundamental na constituição do sujeito, de maneira que não se confundem corpo e psique, ou seja, não se fundamenta nessa dualidade, mas os compreende em suas dimensões de real, simbólico e imaginário.

Parto de uma tese primeira, que retiro da obra de Lacan: o corpo se constitui na relação com o outro, um outro que se apresenta exatamente nessas dimensões de real, simbólico e imaginário. Essa tese perpassa toda a obra de Lacan, desde seus textos inaugurais, como “Função e Campo da Fala e a Linguagem” (1998d), e permanece em seus últimos seminários, modificada pela topologia dos nós borromeanos (Lacan, 2000). Essa forma de conceber a constituição do corpo deverá me ajudar a articular o aparente substrato orgânico que é o corpo com a estrutura simbólica e imaginária que é a cultura. Busco, assim, demonstrar que essa lógica estrutural que perpassa o campo da psicanálise não deixa de se ancorar com as funções e variáveis dimensionais no espaço sociocultural. Pelo contrário, desde que Freud (1972) abriu suas discussões “clínico-antropológicas” com o “Totem e Tabu” que se busca compreender como essa articulação topológica se viabiliza.

Vou rapidamente, a título de introdução, esclarecer a forma como a psicanálise entende a constituição do sujeito e seu corpo no laço como outro, em cada uma dessas dimensões, para depois introduzir uma discussão sobre o corpo e sua economia de gozo na cultura contemporânea. Talvez tenha que insistir um pouco em proposições já suficientemente debatidas, mas tal repetição tem o intuito de fundamentar algumas discussões posteriores.

O corpo imaginário

No campo do humano, um corpo não se constitui senão através de um laço com outro humano, que se personifique em sua pregnância de imagem; o infans – termo com o qual Lacan (1998a) nomeia a criança que ainda não ascendeu à condição de sujeito – necessita de um outro, como acontece com esse outro humano que em nossa cultura chamamos de mãe.

Lacan (1998b), desde o início de sua obra, preocupou-se com esse laço imaginário entre a criança e o outro, tanto que seu texto de abertura diz respeito ao “Estádio do Espelho” como um momento fundante deste laço com o outro.

Empiricamente posso dizer que rapidamente se estabelece uma relação imaginária, especular entre o infans e seu outro cuidador, de maneira que a imagem do outro passa a ser uma referência fundamental na abertura que o sujeito produzirá para o mundo. Freud (1974) propõe um momento autoerótico na criança, anterior ao narcisismo, que se caracterizaria por um fechamento do circuito pulsional em torno da zona erógena, ou seja, um momento no qual a criança ainda não manifestaria nenhuma abertura orificial e pulsional para o outro. Fechar-se-ia num “prazer de órgão” (Freud, 1974), numa atividade autoerótica, que necessitaria sofrer uma abertura. A clínica informa que caso não haja uma intervenção do outro e a criança se mantenha nesse fechamento, as consequências serão nefastas; desde o autismo às psicoses precoces.

A interrogação pertinente seria então: quem produz essa abertura? Quem ou o que intervém trazendo efeitos orificiais na criança? A psicanálise não está disposta a aceitar uma explicação meramente neuromaturacional para a constituição desses laços iniciais entre a criança e o outro, mesmo que considere a importância da função neurológica neste momento. Isto porque o próprio processo maturacional depende de uma “estimulação” deste laço com o outro, que não passa de uma “estimulação significante”, ou seja, proveniente da linguagem, e mais especificamente da “lalíngua”1  da mãe. Todos os “traços” que envolvem o bebê, organizados na forma de um discurso, que não são apenas as palavras, mas também o que não se diz, os olhares, os fantasmas familiares, as entonações da voz materna, entre outros, constituem esse “entorno” que enoda a criança numa dimensão simbólica – no campo da linguagem – e constitui a imagem do seu corpo. Assim, trata-se de uma constituição do corpo cujo substrato orgânico parece fundamental, mas que não pode ser definido como o único fator determinante. Sem esse laço com o outro, a constituição do corpo poderá ser comprometida.

A constituição da imagem do corpo do humano, portanto, depende estruturalmente da presença imaginária de um outro humano que possa funcionar como baliza desta pregnância imaginária para o infans. Veremos, contudo, que esse outro não se caracteriza apenas por sua função especular de imagem, mas fundamentalmente por ser um outro atravessado pelo simbólico, ou outro desejante, que goza narcisicamente do corpo encantado e falicizado do seu bebê.

O corpo simbólico

Do “Estádio do Espelho” (Lacan, 1998b) ao “Esquema Óptico”2 (Lacan, 1998c), Lacan vai desenvolver a função do simbólico na determinação deste laço imaginário entre o sujeito e o outro; ou seja, ele se dá conta de que o campo da linguagem, com seu efeito significante, é o que faz diferença neste laço.

Se os animais também têm imaginário – aproximação que encontramos no texto sobre “O Estádio do Espelho...” – porque se comunicam por imagens – mesmo que estereotipadas – no caso dos humanos esse imaginário encontra-se perpassado pelos efeitos da linguagem. Efeitos de desencontro, de buracos no laço com o outro. Portanto, não se trata apenas de uma imagem do outro estimulante, como se descreve numa visada cognitivista, mas da imagem de um outro situado no campo do simbólico, abalizado pelos “ideais fálicos” da linguagem, um outro desejante que exige demanda e espera da criança uma posição ativa, fálica de sujeito, determinando, assim, uma “estimulação” por parte do outro. O laço imaginário entre humanos está, portanto, abalizado por determinadas funções significantes, especificamente a função fálica e o significante nome-do-pai (Lacan, 1999), que norteiam o discurso e o desejo do outro, e ancoram ideais narcísicos e fálicos, formulados pela cultura. Sem eles a constituição imaginária do corpo e a própria posição subjetiva do sujeito ficam comprometidas.

Desta forma, é a linguagem que estrutura o campo do humano, assim como o laço simbólico e imaginário entre o sujeito e o outro. Os ideais fálico-simbólicos – tais como o “Eu – Ideal” e o “Ideal-do-Eu” – formulados inicialmente por Freud (1974) – são as balizas que viabilizam esses laços.

O campo da linguagem produz um efeito de simbolização do corpo da criança, inscrevendo uma trama significante que vai determinar a possibilidade da criança constituir seu corpo imaginariamente – a imagem do corpo – assim como a localização subjetiva do sujeito no mundo sexuado, ou seja, uma localização da criança na lógica da diferença sexual. Isto porque o infans, desde o inicio, sofre os efeitos do discurso e do desejo do outro, que vem encravado de significantes narcisicamente escolhidos, mas que já estão abalizados pela diferença sexual. Caso seja um menino ou uma menina, os significantes escolhidos os situam – ou pelo menos deveriam situá-lo – no campo humano sexuado.

O corpo real

Com o desenvolvimento de sua obra, Lacan vai retirar as consequências as mais radicais desta estrutura de linguagem, em seus efeitos na constituição do sujeito. Radicalidade determinada pela consideração inevitável de uma localização do real no centro da estrutura; ou seja, pela insistência repetitiva de uma “falha” (Lacan, 2004) na estrutura. Em outros termos, Lacan vai desdobrar os efeitos da descoberta de que o campo da linguagem, o campo do simbólico, se caracteriza por girar em torno de uma falha, de um buraco do real. O fato de que a linguagem não é completa determina que sempre fique algo por se simbolizar; esse “algo” funciona como uma incógnita na equação entre a função simbólica e o real do corpo, representando exatamente uma impossibilidade estrutural. Ou seja, se é o campo da linguagem que ancora a constituição do sujeito e do seu corpo, ela o faz fundamentalmente pelo fato de que não é completa, no lugar mesmo onde fracassa. Trata-se de uma função “positiva” da falha.

Em seu movimento de “literalização” dos conceitos, Lacan nomeou essa incógnita com a letra “a3. Esse objeto a passa a representar esse resto estrutural, essa impossibilidade própria de transliterar todo o real para o campo do simbólico, assim como de “tudo se dizer”, ou de todo o corpo se significar. Dizendo de uma maneira mais clara e situando essa questão no laço com o outro, isso quer dizer que a dimensão do real, especificamente o real do corpo, aqui definido como o real do sexo e da morte, é em torno dele que as dimensões do simbólico e do imaginário giram, ou seja, é em torno do real que o laço simbólico e imaginário com o outro se estabelece. O simbólico e o imaginário nos servem para tentar dar conta do real do sexo e da morte, assim como para legislar sobre o acesso ao corpo do outro, seja pela via do sexo ou do assassinato.

Aquele processo de simbolização do corpo, então, deve ser considerado em suas impossibilidades, ou seja, no fato de que nunca é completo, nunca alcança sua plenitude, estabelecendo um “fosso” na relação do sujeito com o outro. Esse “fosso”, então, deve ser considerado nesse processo de constituição do sujeito e do seu corpo, determinando a contabilização dos restos nesse processo. O fracasso, a falha deste processo deve ser considerada positivamente, no sentido de que o sujeito e seu corpo não se constituem sem ela. A própria vida sexual do humano está marcada por essa impossibilidade de encontro absoluto com o outro. É sobre essa impossibilidade que a vida sexual se monta, mesmo que seja também o maior motivo de queixumes do sujeito: a insatisfação estrutural do humano.

Assim, como não é possível simbolizar todo o real, da mesma forma não é possível capturar o outro completamente nas malhas dos laços imaginários e simbólicos. Por isso mesmo que as “relações humanas” e, consequentemente, a própria estrutura da cultura, enquanto uma ordem simbólica, giram em torno dessa impossibilidade, desse “desencontro fundamental”, que Lacan traduziu por seu polêmico axioma “a relação (rapport) sexual não existe” (Lacan, 2003).

Enfim, na constituição do corpo no laço com o outro, é necessário considerar os efeitos dessa impossibilidade e como conseguimos, apesar dela, fazermos laço social. Esse impossível do sexo e da morte, se bem bordejado pelo sujeito e pelo outro, é o que vai possibilitar a constituição dos orifícios pulsionais do corpo e, portanto, as aberturas do sujeito para o laço social com o outro: ai se inicia a gênese da cultura.

 

A cultura e suas funções

A partir do que disse vou agora tecer algumas considerações sobre como todo esse processo estrutural de constituição do sujeito como o outro pode ser também visualizado numa topologia cultural que lhe é determinante. Porque quando se fala do Outro(a) em psicanálise, não se refere unicamente a um outro encarnado na pessoa da mãe, do pai, ou um outro qualquer, mas também, e fundamentalmente, a uma estrutura discursiva, a um aparato simbólico e imaginário que serve de campo de significação, de grafia de tudo aquilo que mais nos aterroriza subjetivamente; a saber, esse desencontro estrutural, esse “fosso” ao qual me referia acima, que se manifesta no laço social e sexual com o outro: o real do corpo, o sexo e a morte.

O lugar onde esse drama humano se encena não é um lugar transcendental, ou meramente psicológico, ou mesmo orgânico. Essa topologia estrutural da relação do sujeito com o outro se ancora numa topologia discursiva que podemos situar em cada época e em cada cultura. A forma como se estabelece e se subjetiviza esse drama é fundamentalmente determinado por essa topologia cultural.

A cultura, então, podemos dizer, é essa topologia discursiva, esse aparato discursivo estruturado como uma linguagem, ancorado no qual esse laço dramático do sujeito com o outro se estabelece. Ela tem a função de suportar uma topologia que permita instaurar o laço social com o outro, apesar das impossibilidades acima citadas – apesar do sexo e da morte. Tem também a função de possibilitar uma organização subjetiva desejante e identificatória do sujeito de maneira que ele não sucumba a uma melancolia diante desse inexorável dado do real. Serve ainda, para instaurar certas interdições ao funcionamento pulsional do corpo, sem os quais o corpo enlouqueceria. Gostaria, então, a título de sistematização, definir a cultura como uma topologia discursiva estruturada como uma linguagem, com funções fundamentais na constituição do sujeito e do seu corpo no laço com o outro, funções essas estabelecidas nas dimensões do real, do simbólico e do imaginário.

Como disse acima, essa topologia discursivo-cultural tem uma função fundamental de ativar uma posição fálica e desejante do sujeito, de maneira que mesmo considerando o dramático da vida e da morte, ainda assim o sujeito possa querer viver – pulsão de vida – desvencilhando-se de um fechamento narcísico originário e não sucumbindo a uma identificação melancólica com o objeto.

É necessário agora descrever essa analogia, essa ancoragem à qual me referi anteriormente, essa topologia estrutural com as funções e variáveis no espaço cultural.

As funções da cultura-linguagem

Funções imaginárias:

a) oferecer uma unidade imaginária ao corpo, um modelo de imagem para o sujeito, que acolhe o corpo real da criança estabelecendo uma ortopedia e uma unidade do corpo, a partir da relação especular com o outro; por exemplo: a forma como desenhamos ou como vestimos o corpo do menino ou da menina é determinada culturalmente;

b) oferecer uma unidade egoica e moral: por exemplo, as condutas imaginárias e morais que corrigem a “postura” da criança – nos vários sentidos da postura, a moral e a corporal – e determinam como a criança deve se comportar.

Funções simbólicas:

a) oferecer ao sujeito um campo de significação onde possa simbolizar seu corpo: o aparato significante que recai sobre o corpo do infans quando ele nasce, possibilitando uma simbolização do real do corpo: o real do sexo no corpo e o real da morte;

b) oferecer ao sujeito um campo identitário regido pela diferença sexual e pela anterioridade simbólica paterna; a criança se inscreve numa dimensão simbólica que é cultural e familiar, sofrendo os efeitos dessa “herança” fantasmática e desta tradição;

c) consequentemente, balizar a economia pulsional do sujeito determinando uma “economia fantasmática de gozo”, através das interdições, mas também pelos oferecimentos de “formas autorizadas de gozo” numa determinada cultura ou época.

Funções de real:

a) apresentar ao sujeito a impossibilidade de uma completude narcísica imaginária;

b) apresentar ao sujeito a impossibilidade de um encontro como outro, ou seja, a impossibilidade da proporção sexual;

c) causar o sujeito, a partir desse desencontro fundamental, propulsando-o em direção ao desejo, de forma a cerzir bordas neste buraco do real.

Essas funções assim dimensionadas, que sugiro encontrar nessa topologia discursiva – que tanto é estrutural como cultural – a psicanálise as descreve a partir da relação singular do sujeito com o outro, que podemos observar na constituição do sujeito e do seu corpo. Ou seja, essas funções se corporificam e se encarnam no laço com o outro determinando suas inscrições significantes. São elas:

Variáveis imaginárias

a) a “imagem do outro” que possibilita uma pregnância especular – olhar – no laço imaginário com o semelhante, assim como uma troca originária responsável pela economia narcísica primária do sujeito;

b) o “Eu-Ideal” como um Eu originário que possibilita uma experiência de completude narcísica originária com o Outro materno;

c) o “Phallus Imaginário” (-φ) que baliza o olhar materno e o campo de significação da criança nesta experiência narcísica.

Variáveis simbólicas

a) o “Ideal do Eu” como um ideal fálico que baliza a relação da criança com o outro e determina uma antecipação imaginária e simbólica do sujeito;

b) a “função fálica simbólica”(θ), que possibilita ao sujeito uma simbolização e erotização do corpo, uma posição ativa diante do outro, assim como o comércio sexual com o outro;

c) o “Nome-do-Pai” enquanto um significante que ancora as identificações primárias do sujeito e o situa no campo de sua sexuação, ou seja, na partilha entre os sexos; esse significante instaura uma função paterna, ou seja, uma função de lei, que inscreve uma série de interdições simbólicas e imaginárias na economia pulsional do sujeito, possibilitando a construção de uma posição desejante e de um laço social.

Variáveis do real

a) o “Real do Sexo no Corpo”: o corpo de “macho” ou o corpo de “fêmea”, sobre o qual devemos construir um “saber” – das dimensões do imaginário e do simbólico – sobre como ser “homem” ou “mulher”;

b) o “Real da Morte” como uma constatação – que a criança começa a lidar a partir do três anos – dos limites do real do corpo e da finitude do corpo própria do real;

Faço essas delimitações com certa facilidade, por conta de um artifício didático já que todas essas variáveis se articulam “borromeanamente”4  sem a possibilidade de serem desenodadas. Essas variáveis são os efeitos da movimentação da estrutura de linguagem na relação do sujeito com o outro, na constituição do corpo.

O que podemos ver, enfim, é que aquelas funções culturais se articulam com as variáveis significantes que a psicanálise descreve na constituição do sujeito e do outro.

 

Mutações culturais

Essas funções significantes que a estrutura de linguagem comporta e que a topologia discursiva e cultural sustenta devem ser interrogadas a partir da clínica, já que em não sendo naturais, sofrem os efeitos dos deslocamentos históricos e culturais. Ou seja, a forma como essas funções e variáveis são consideradas, valorizadas, investidas ou desinvestidas como determinantes na constituição do sujeito e do corpo dependem do que denominei em outro trabalho de uma “topologia de regulamentação cultural do gozo” (Danziato, 2006).

De forma geral, posso dizer que uma teoria da cultura na psicanálise se sustenta em um entendimento do laço social como uma “estrutura de distribuição e de censura do gozo inconsciente” (Bursztein, 1998, p. 16); ou seja, o laço social como o que gerencia, a partir de suas proposições, lugares simbólicos e discursivos, as trocas libidinais, e as formas autorizadas de gozo numa cultura. As formas como o corpo goza e entra num campo de significação parecem determinadas por essa autorização que numa determinada época, em seu campo simbólico, se favorece os “trilhamentos”, ou melhor, as formas de gozo do corpo. Essa forma como o corpo é constituído, investido imaginária e simbolicamente, depende de como numa determinada cultura ou época se consideram topologicamente as funções de real do corpo.

É possível e recomendável debater as consequências das mutações culturais na constituição de uma economia subjetiva de gozo do sujeito e, portanto, de sua relação com uma economia pulsional e corpórea, a partir das modificações na cultura contemporânea, que vem sendo constatadas e estudadas por vários campos, inclusive o psicanalítico.

Vivemos5 uma “cultura dos excessos”, num “mundo sem limites” (Lebrun, 2004) e sem fronteiras, organizado politicamente por uma lógica imperial globalizada (Hardt & Negri, 2001), e experimentado subjetivamente através dos excessos do consumo dos objetos oferecidos pelo capitalismo recente. Um tempo dos excessos não é outro senão um tempo onde uma “topologia de regulamentação cultural do gozo” parece ter sofrido uma alteração. Um tempo, pois, que aparenta ter rompido um limiar nas relações topológicas que o mundo simbólico estabelecia com o real. Os limites, por assim dizer, encontram-se “desterritorializados” (Deleuze & Guattari, 1976).

Constatam-se alguns efeitos subjetivantes dessas mutações culturais na clínica psicanalítica, onde cada vez mais se apresenta um sujeito que procura uma análise por motivos diferentes dos já tradicionais. A clínica informa sobre o que as discussões atuais confirmam; estamos nos deparando com um sujeito que não se manifesta subjetivamente mais da mesma forma como o sujeito com o qual Freud lidava. Mesmo que ainda encontremos os quadros clássicos em nossas clínicas, boa parte dos analisantes, contudo, não reclamam mais apenas de uma impotência em tudo saber, ou almejam saber o que não sabem – modelo por excelência do saber inconsciente e da neurose moderna. Os sujeitos contemporâneos, afetados pelo seu tempo, pelo descarado consumo do objeto oferecido pelo capitalismo recente, deprimidos pela maníaca conjuntura de gozo, não reclamam apenas de um não saber, mas de um descontrole em sua “economia de gozo” e de uma insuficiência subjetiva em recompô-la. Não se trata mais apenas de um gozo com os sintomas e seus benefícios secundários – como descrevera Freud sobre as psiconeuroses6 – mas de um gozo de morte por uma proximidade excessiva e destrutiva do objeto.

O sujeito constituído e afetado pela cultura contemporânea padece de uma ultrapassagem da prudência na relação com os objetos que se apresenta de maneira clara na forma do que vem se denominando de “novas formas clínicas”, de uma “nova economia psíquica” (Melman, 2003), ou “novas doenças da alma”7, como nomeia Kristeva. São constatações objetivas que dizem respeito às afetações dos indivíduos no que tange as suas condutas, às suas dificuldades subjetivas – seja na configuração de seus sintomas ou na articulação discursiva de seus sofrimentos – assim como na disposição ética com relação ao outro nos laços sociais, ou em sua “economia de gozo” (Lacan, 2004) na relação com o objeto.

Referimo-me a fenômenos como as delinquências, os estados-limites, as depressões, as toxicomanias, as anorexias, as bulimias, a “anomia” (Melmam, 2003), quadros que estariam envolvidos com uma adição do “objeto” – na definição de Lacan o objeto pequeno a – cuja denominação “a-viciados”, sugerida por Souza (2004) é bastante pertinente. Em suma, quadros bastante contemporâneos, que passaram a interrogar a clínica, tal como foi constituída na experiência freudiana, produzindo uma preocupação significativa e importante para a leitura que a psicanálise faz do contemporâneo.

O sujeito contemporâneo afetado pela lógica cultural capitalista da adicção do objeto sofre os efeitos de uma alteração na sua economia de gozo, como consequência da descaracterização de algumas daquelas funções da cultura.

Talvez estejamos diante do que preocupava Melman (2003), ou seja, uma “desexualização” do inconsciente, em função de uma “liquidação da instância fálica” (p. 26), uma eliminação do sexo e, consequentemente da divisão subjetiva. Segundo o seu diagnóstico, “o gozo sexual não é mais o gozo que organiza os outros gozos orificiais do corpo” (p. 29). “Estamos passando por uma destituição do gozo fálico em função da prevalência dos gozos fabricados e artificiais” (p. 32).

Parece que nossa cultura vem estabelecendo um outro dispositivo que rege as relações sociais e sexuais, e que não se interessa muito mais pela instância fálica e sexual, já que esta não ocupa mais um lugar de dominância na regência cultural e simbólica dos gozos, um dispositivo que denominei de um “dispositivo de gozo” (Danziato, 2006).

Para esse novo dispositivo, um novo corpo, que não se encaixa completamente no corpo dócil e útil do diagrama da cultura industrial-disciplinar, mas um corpo plástico8, imaginário, cujo real está quase completamente encoberto, não só pelos objetos, mas também pelas tecnologias de “plastificação” do real do corpo, pelos saberes e práticas de intervenção no real em busca de uma melhoria da imagem ideal, inaugurando um “homem pós-biológico” (Sibília, 2002, p. 13). Concordo com o interessante diagnóstico de Sibilia ao afirmar que “o corpo humano parece ter perdido a sua definição clássica e sua solidez analógica: inserido na esteira digital, ele se torna permeável, projetável, programável” (Sibília, 2002, p.19).

O real do corpo e da morte passa a ser tratado de uma forma diferente do corpo produtivo, corpo-máquina da era industrial-disciplinar. O corpo narcísico-plástico é um corpo “céreo”, onde as impossibilidades determinadas pelos limites reais do corpo foram ultrapassadas pelas intervenções terapêuticas no real do corpo, tais como: as lipoaspirações, as cirurgias bariátricas, as próteses de silicone, as cirurgias transexuais, as alterações plásticas as mais diversas. Essas intervenções alteraram uma configuração do enodamento do real do corpo, com o simbólico e o imaginário. As bordas do real do sexo e da morte foram plastificadas; as imposições do real do corpo e do “sexo real” tornaram-se ultrapassáveis pelas cirurgias, hormônios e outras tecnologias da medicina atual. Essa ultrapassagem pode conferir ao sujeito uma impressão de potência – ou de “mania” – diante do real, que, no caso do seu fracasso, produz um efeito depressivo extremamente danoso ao sujeito9.

O “sujeito capitalista” não se submete mais de forma tranquila ou simbólica aos limites do real do corpo. A oferta dessas “próteses do real” anima o sujeito a delas fazer uso de maneira a expandir as fronteiras do real do corpo. Mas, como “o real sempre retorna no mesmo lugar”10, ou seja, no corpo – en corps (Lacan, 1985) – o fracasso desta expansão não pode produzir senão subjetividades deprimidas.

Se o gozo, enquanto estrutural, expandiu os limites do corpo humano para além das fronteiras da biologia, ele agora se vê retesado ao ponto de uma ruptura, como efeito de uma demanda sempre crescente de gozo apresentada pelo campo mercadológico do Outro em nossa sociedade de controle. O corpo plastificado, céreo e retesado, é um corpo manipulável pelo mercado e pelo marketing, de maneira que, tal como o corpo dos esquizofrênicos catatônicos, submete-se a uma forma e uma posição, sempre esculpida pelo Outro11.

Melman (2003) discorre sobre os efeitos da dimensão do real, através do que diagnostica um esvaziamento do simbólico na contemporaneidade. Estaríamos passando por uma “mutação cultural”, onde se opera um esvaziamento da autoridade e das referências simbólicas e históricas, produzindo uma “liquidação coletiva da transferência” (p. 17). Como efeitos dessa liquidação, estaríamos liquidando também a “instância fálica”, o que determinaria, como já afirmamos, uma deposição do gozo fálico-sexual da condição de organizador cultural dos outros gozos orificiais.

A deposição do gozo fálico, que se define como um gozo na linguagem, um gozo normatizado pela linguagem e normatizador do gozo do corpo, só pode ser pensado se considerarmos uma outra relação com o campo da linguagem – o simbólico. Estamos realizando uma planificação das assimetrias e das consequentes interdições que o campo do simbólico impõe. Com o fim dessas assimetrias, nos deparamos com o esvaziamento subjetivo do sujeito e do desejo; o que quer dizer que nossa cultura pós-moderna encontra-se abalizada não pela castração ou pela assimetria do lugar de exceção paterno – lugares do impossível – mas pelos gozos fabricados e artificiais, no imaginário da realidade (p. 32). Com o esvaziamento do Outro (a), das referências simbólicas, perde-se a alteridade da diferença sexual do par homem/mulher. Diz Melman: “Não há mais mestre, em nossas culturas, o patrão é o gozo” (p. 118).

Uma primeira consequência desse esvaziamento do simbólico é o comprometimento do processo de subjetivação e singularização, que se localiza fora da determinação da assimetria da linguagem, ficando sem seus lugares simbólicos subjetivantes. O sujeito contemporâneo não adere ao sistema da dívida simbólica e da troca, permanecendo numa atividade privada, autoerótica, sequestrada do espaço público-simbólico. O laço social fica assim comprometido, aprisionado numa virtualização do real que desfaz as possibilidades de uma posição ético-política, e de novas formas de subjetivação.

Diante dessa carência do simbólico, a operação subjetivante fica afetada, seus compromissos simbólicos também, de maneira que se encontra sem anteparo diante do real do corpo e da morte, que retorna diante de uma subjetividade esvaziada.

O corpo encontra-se, assim, a mercê de um gozo do corpo, sem balizamento do gozo fálico-sexual, instaurando uma posição de passividade do sujeito diante do gozo do Outro (a) – o que se assemelha a uma posição psicótica;

O sujeito fica sem instrumentos para fazer suas bordas no real do corpo, o que determina, por exemplo, as práticas de intervenção no real do corpo (piercings, escarificações, tatuagens, etc.).

O corpo do sujeito contemporâneo, portanto, é um corpo esvaziado do simbólico, um corpo plástico e plastificado – como dissemos – palco onde se encena uma conjunção das dimensões do imaginário e do real.

O sujeito encontra-se despossuído do seu instrumental simbólico, de maneira que padece de uma angústia constante e fina, de uma ameaça cotidiana da realização de uma catástofre simbólica, seja externa, seja interna: um “ato”12 terrorista...

Desta forma estabelecemos pelo menos duas formas de apresentação do real:

1. Uma imaginarização do real; uma invasão do imaginário no real, que produz como efeito uma “somatização do corpo”; ou seja, o corpo é concebido como estritamente somático; o que acompanha a lógica do biopoder e da biopolítica contemporânea. Encontramos essa fórmula também nas versões como o real retorna em nossa sociedade, através de uma espetacularização, retornando seja como “semblante” como sugere Zizek (2003), sejam nas escarificações, nos atentados espetaculares, nos realyts shows, na pornografia, na exposição nua e crua do real do corpo13  (p. 24-28).

2. Uma realização do imaginário: o real se apresenta de forma ameaçadora cujo modelo é o da angústia; sem um instrumental simbólico o sujeito parece disposto a uma ameaça “sinal” constante de um ataque externo, e interno. Nesta condição o sujeito encontra-se numa posição de objeto do gozo do Outro (A), numa passividade mortífera e gozosa; numa entrega monótona e melancólica à repetição do gozo.

Obviamente que este é apenas um modelo topológico que visa um entendimento conceitual das relações dimensionais com o real na contemporaneidade; ele não se pretende extensivo a uma lógica complexa do laço social, mas ele nos serve para dizer de certa escritura contemporânea, entre outras, de como se lida com o real da angústia, da morte e do corpo em nossos dias14.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: leonardodanziato@unifor.br

Recebido em junho de 2008
Aprovado em outubro de 2008

 

 

Leonardo Danziato: psicólogo, psicanalista, mestre e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), professor titular da Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
1 Lacan produz um neologismo para dizer de uma língua atrelada ao real do corpo, uma “linguisteria” (Lacan, 1985), que denomina com a contração “lalangue” (Lacan, 2003). Na falta de uma melhor tradução, optamos por “lalíngua”, que mantém uma homofonia com o francês.
2 Trata-se de um esquema óp ico, onde Lacan intenta esclarecer que a constituição da imagem da criança está perpassada pelo discurso do outro (A), ou seja, pelo simbólico e pela linguagem. Ele desenvolve essa construção topológica no seminário 1 “Os Escritos Técnicos de Freud” e em outros escritos. Ver Lacan, 1998c.
3 Lacan desenvolve pela primeira vez o objeto a, em seu seminário sobre a “Angústia” (seminário 10).
4 Refiro-me à topologia dos nós borromeanos que Lacan (2002) desenvolve em RSI, onde as três dimensões – Real, Simbólico e Imaginário – se articulam sem possibilidade de se desenodarem.
5 O trecho do texto que aqui se inicia retoma algumas considerações já elaboradas em outro trabalho. Ver Danziato, 2006.
6 O termo “psiconeuroses” era como Freud definia o que hoje nomeamos comumente de “neurose”. Trata-se de uma concepção diluída em toda a obra de Freud.
7 Várias são as produções atuais no campo da psicanálise sobre o assunto. As publicações mais citadas são: Kristeva, 2001; Lebrun, 2004; Melman, 2003; Roudinesco, 2000, 2003; entre outros.
8 Não utilizamos o termo plástico no sentido unicamente estético, mas concretamente fazendo referência ao plástico como matéria fundamental da pós-modernidade.
9 É o que se constata com a “pandemia” de depressão na atualidade, e os casos de suicídio decorrentes do fracasso dessas intervenções cirúrgicas, como, por exemplo, as cirurgias bariátricas.
10 Trata-se de uma frase “formula” de Lacan que se repete em vários pontos do seu ensino. Ver Lacan, 1992, 2004, 2002, 1988, entre outros.
11 Os pacientes acometidos pelo que os psiquiatras denominam de “catatonia cérea” se mantêm na posição na qual são colocados durante muito tempo; de maneira que parecem bonecos de cera.
12 Lembramos que Lacan, no seminário 10 sobre “A Angústia”, demonstra a estreita relação do ato, por ele denominado de acting-out e a “passagem ao ato”, com a angústia (2005).
13 Melman (2003) lembra a famosa exposição do Dr. Gunther von Hagens, que desenvolveu um processo fantástico de plastificação do corpo com acetona, e que fez disso uma exposição de cadáveres plastificados (p.18). Encontramos também em programas televisivos policiais uma exposição espetacularizada e crua do real do corpo, quando mostram os cadáveres, seja na realidade dos fatos, seja na ficção.
14 Podemos visualizar como essa relação topológica com o real se encena de maneira muito interessante no filme “A Vila”, onde um grupo de casais que tinham sido afetados pelo real da morte, com a perda de um “ente querido”, constituem uma vila medieval pré-capitalista artificial, dentro de um parque ecológico, com a intenção de escapar da violência da sociedade contemporânea. Ocorre que, para manter o segredo de um real do tempo, pois só os referidos casais sabem que habitam numa data atual, assim como para manter um controle sobre seus membros, e acomodá-los dentro dos limites da vila, para que não descubram o “engodo”, precisam lançar mão de ameaças de “seres do real”, que habitam a floresta ao redor da vila, aos quais se referem como “aqueles que não têm nome”. Trata-se de um real que retorna, mas de uma forma imaginarizada, já que os seres não existiam, mas funcionavam como uma ameaça de morte constante, onde a Lei e os limites não são simbólicos, mas imaginários, limites geográficos artificiais, e agentes reais imaginarizados através de uma fantasia. É uma curiosa construção: uma vila medieval pré-capitalista, mas com a lógica subjetivante contemporânea.

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