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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.29 Canoas June 2009

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Pela transitoriedade (a temporalidade da psicanálise e sua relação com a feminilidade)

 

Via transience (the temporality of psychoanalysis and its relation to femininity)

 

 

Sandra Niskier Flanzer

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud (1972/1915) propõe, de forma poética, algumas questões fundamentais, em seu texto Sobre a transitoriedade. Serão abordados alguns aspectos dali retirados relacionados à temporalidade própria da psicanálise, trazendo aproximações com outros textos, principalmente O mal-estar na civilização (Freud, 1972/1930). A temática da temporalidade será aqui apresentada naquilo que ela traz de paralelos com a feminilidade. Proponho que a transitoriedade seja entendida como báscula de acesso (uma passagem) à feminilidade, na medida em que, pela sua efemeridade, aponta para um lugar fálico ao mesmo tempo em que indica um lugar de vazio.

Palavras-chaves: Psicanálise, Tempo, Feminilidade.


ABSTRACT

In his text On Transience, Freud (1972/1915) addresses certain fundamental issues poetically. I intend to examine points drawn from that text relating to the temporality proper to Psychoanalysis, and to suggest some approximations with other texts, particularly Civilization and its Discontents (Freud, 1972/1930). The issue of temporality is presented here in terms of the parallels it offers with femininity. It is proposed that transience be understood as a means of access, a passage, to femininity in that, by its ephemerality, it points to a phallic place, at the same time indicating a place of emptiness.

Keywords: Psychoanalysis, Time, Femininity.


 

 

Introdução

Passou a diligência pela estrada, e foi-se;
E a estrada não ficou mais bela, nem sequer
mais feia.
Assim é a ação humana pelo mundo afora.
Nada tiramos e nada pomos; passamos e
esquecemos;
E o sol é sempre pontual todos os dias.
Fernando Pessoa (1980)

Sobre a transitoriedade (Freud, 1972/1915) é um texto psicanalítico primoroso. Trata-se do diálogo entre Freud e um poeta, enquanto caminhavam em um dia de verão, no qual o poeta afirmava-se triste pela constatação de que toda aquela beleza natural que observava, assim como toda a beleza criada pelos homens, estaria fadada à extinção. O desalento, oriundo desta percepção, nos remete à noção de desamparo (que desenvolverei adiante), tão fundamental para o entendimento do conceito de sujeito, especialmente no que tange à sua constituição.

Tudo aquilo que o poeta, em alguma circunstância, teria amado e admirado, parecia-lhe despojado de valor por estar fadado à transitoriedade. Freud (1972/1915) o contesta, alegando que, num caminho oposto, podemos atribuir valor àquele objeto que, justamente por sua efemeridade, nos parece mais privilegiado. Diz ele: “O valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor desta fruição” (p. 345).

Assim manifesta-se o sujeito. Na clínica, o escutamos queixar-se de seu sofrimento por não sorver de forma definitiva seus amores, seus investimentos, os frutos de seus desejos. Sua relação com o tempo – sempre efêmero – evoca a mais ampla fonte de angústia, por não poder apreendê-lo, e por – ao compreendê-lo – fazê-lo passado.

Hoje em dia temos notícias, principalmente entre os adolescentes, do quanto estes primam por rapidez, pressa. Sua relação com o tempo é fundamentada na mais pungente urgência. A moeda corrente é a imediatez dos fatos e notícias. Mas o que interessa ressaltar é que, estruturalmente, para o sujeito, a relação com a temporalidade, imperativa, deriva-se fundamentalmente do que Freud (ano) chamou de experiência de castração: o tempo é aquilo que instala para o sujeito o antes e o depois, pontuando, a partir do eixo temporal, uma instância delimitadora. A partir do referencial da castração, o sujeito passa a representar-se temporalmente, apresentar-se como dividido, deixando para trás de si algo perdido, algo a que Freud (ano) irá referir-se como a sustentação de uma ilusão.

Mas, dirá Freud (ano) em resposta ao poeta, a beleza sobrevive enquanto a significação que damos a ela existe, não sendo necessário seu caráter de eternidade. Enquanto imbuída de atribuição, a beleza se sustenta no tempo. Visão otimista para aquele que, mais adiante, revelará em seus textos o desamparo e o mal-estar.

Frente ao imperativo da castração, a delimitação do tempo se faz valer, impondo ao sujeito, num tempo presente, a constatação de sua condição de mortalidade. Mesmo atribuindo-lhe significação, os investimentos apresentam-se para o sujeito como estando fadados ao término, colocando-o permanentemente face à castração.

A exigência de imortalidade, produto de seus desejos incita então o sujeito à idealização do perfeito e do eterno, desde então inserindo no eixo do tempo a relação estabelecida com seus objetos. O que ficara relegado ao passado é tido como ideal, alcançado (sempre por substituição e sempre a posteriori), entre outras formas, através de seus sonhos, suas realizações desejos.

O caráter evanescente do objeto não o faz menos investido, nos diz Freud (ano). Ao contrário, podemos pensar, instiga e seduz. Observamos na sintomatologia da histérica a confirmação disto. Esta indignação frente ao instantâneo evoca a compreensão da temporalidade na obra de Freud (ano), que relegará ao sujeito a um lugar de trânsito: entre a feminilidade e a frequente tentativa de recobri-la.

 

Mal-estar: estar em trânsito

O desalento do poeta nos faz remeter à noção de desamparo. Estado inerente ao sujeito, é dele que Freud (1972/1930) nos fala em alguns trechos de O mal-estar na civilização. No início do texto, trazendo ainda resquícios de O futuro de uma ilusão (Freud, 1972/1927), Freud discorre acerca de um sentimento oceânico, ao qual a ilusão possibilita acesso. Uma sensação que poderia ser designada como sentimento de eternidade, de algo ilimitado, sem fronteiras. Freud diz a Romain Rolland não conseguir descobrir em si tal sentimento. A garantia de imortalidade aparece, a começar pelo próprio Freud, como algo impossível de ser alcançado, embora possamos compreender esta tentativa como o que mobiliza o sujeito às suas produções, uma vez implicado por sua insatisfação. “Originalmente, o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo. Nosso presente sentimento do ego não passa, portanto, de apenas um mirrado resíduo de um sentimento muito mais inclusivo – na verdade, totalmente abrangente –, que corresponde a um vínculo muito mais íntimo entre o ego e o mundo que o cerca” (Freud, 1972/1930, p. 85).

O conteúdo apropriado ao ego pelo sujeito seria exatamente o de ilimitabilidade, e o de um vínculo com o universo, como afirma em seguida Freud (ano), concordando com as ideias de seu amigo acerca do sentimento oceânico. Podemos observar nesta citação uma importante característica de sua formulação teórica, presente ao longo de toda sua obra: a lógica da estruturação do sujeito dá-se sempre a partir de um segundo tempo, que vem significar o primeiro. Desde A interpretação dos sonhos, Freud (1972/1900) afirma que “um aparato psíquico que possua unicamente o processo primário não existe” (p.546). Importantes conceitos são postulados sob a forma de dois tempos, a citar como exemplo os processos primário e secundário, obrigando-nos a dimensionar o lugar fundamental que a noção de a posteriori irá ocupar na teoria. Escreve Freud (1972/1896) a Fliess: “Os materiais presentes (no mecanismo psíquico) sob forma de traços mnésicos, sofrem de tempos em tempos, em função de novas condições, uma reorganização, uma reinscrição” (p. 254).

Freud irá associar o sentimento oceânico à fase primitiva do sentimento do ego. Se, originalmente, o ego inclui tudo, no a posteriori de sua estruturação só o que pode advir para o sujeito, ao defrontar-se com a reinscrição, é a frustração. É como perda que ele toma esta suposta totalidade, por ora restrita ao antes. Algo fica faltando e precisa ser resgatado, num tempo posterior, já tardio. Tempo em que o desejo impõe sua pressa, enquanto a neurose só faz adiar, lançando o sujeito em sua inevitável condição de conflito. A partir do desamparo e do anseio pelo pai que esta necessidade desperta, o sujeito parte, então partido, para seus investimentos.

No tempo presente, o sentimento do ego não é mais do que apenas “um mirrado resíduo”. Frente à constatação da condição de mortalidade, condição imponente, de finitude irreparável, o que sobra não pode ser inclusivo, nem tampouco totalizante. No entanto, seu legado aponta para o sentimento oceânico, sempre remetido à busca da restauração do narcisismo ilimitado. Dentre as diversas formas de entendermos a cultura, a situamos como derivada da operação do sujeito, frente às necessidades decorrentes da constatação de sua condição. Ao sujeito, passa a ser possível sonhar. Na intenção de um reencontro narcísico, a cada passo desloca seu ideal em atitudes apoiadas na cultura.

Estas atitudes podem ser remontadas ao sentimento de desamparo infantil. Freud (1972/1930) é claro ao dizer, em O mal-estar na civilização, que a origem da cultura advém do sentimento de desamparo, ao mesmo tempo em que esta termina por ser fonte dos maiores desconfortos para o sujeito. Privadora, ela o obriga a moldar-se, padronizar-se, enquadrar-se. O sujeito encontra-se atrelado a seu próprio paradoxo: é da cultura que advém suas limitações, mas é nela que ele recosta sua frustração de ter sido privado.

Este paradoxo encadeia-se na problemática da felicidade. A dificuldade do alcance da felicidade coloca-se de forma imperativa em O mal-estar na civilização. Vejamos, com Freud (1972/1930): “A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós; proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. A fim de suportá-la não podemos dispensar as medidas paliativas” (p. 93).

Daí parece advir o que entendemos por satisfações substitutivas; que, tal como as oferecidas pela arte, promovem a ilusão. São medidas paliativas. Seu tempo de duração, porém, é curto. A transitoriedade parece novamente contextualizar-se aqui: “O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica” (Freud, 1972/1930, p. 95).

Goethe afirma que nada é mais difícil de suportar que uma sucessão de dias belos, colocando-nos frente à relativização da felicidade, advertida por Freud ao longo de todo o texto. A felicidade dura pouco, somos levados a concluir.

A evanescência da felicidade se apoia na noção de perda. A falta do objeto faz o sujeito confrontar-se com sua própria permanência, fugaz. Encontramos esta ideia desde Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, onde Freud (1972/1905) afirma que todo encontro é um reencontro com o objeto, e o testemunhamos reafirmá-la vinte anos depois, no texto A Negativa (Die Verneinung – Freud, 1972/1925a), no qual trabalha a denegação. A ideia de reencontro (cujo encontro é apenas suposto) relega ao sujeito sua inerente situação de falta, imposta pelo teste da realidade, consistindo em que “objetos, que outrora trouxeram satisfação real, tenham sido perdidos” (Freud, 1972/1925a, p. 299).

A efemeridade aponta para a constatação de uma limitação de permanência no tempo, ou seja, para a noção de morte. Felicidade adiada, castração odiada. Sujeito transitório, sujeito castrado.

No entanto, a criação pode ser uma saída, em vida, para o mal-estar que o acomete. Como na velha máxima, “para tornar-se imortal, o homem deve escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore”, a evocação do espírito criativo alimenta a ilusão de infinitude temporal, da mesma forma com que esta o impulsiona. O dispositivo criativo, válvula confluente de Eros e Tanatus, apoia-se no mecanismo de defesa, simultaneamente garantindo ao sujeito sua marca, lugar de singularidade.

Estar em trânsito é estar submetido à condição da temporalidade enquanto evanescência. Por sua efemeridade, a temporalidade coloca o sujeito transitando entre a tentativa de recobrimento da ideia de mortalidade (tentativa que não se perdura, como vimos afirmar Freud, obrigando o sujeito a insistir), e a feminilidade, que surge como o lugar desconstituído destas fórmulas protetoras, ou seja, um lugar não-fálico. Vejamos primeiramente do que se trata na noção de “falo”.

 

A noção de falo

O complexo de castração, cerne da teoria edipiana de estruturação do sujeito, tão amplamente abordada por Freud retrata a constatação de uma diferença. No texto Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (Freud, 1972/1925b), a ausência do objeto – o falo, único para os dois sexos, constitui em si a angústia frente ao perigo da perda. O referencial fálico pode então ser contextualizado aqui. É de uma tentativa de construir, de obter felicidade, de evitar o desprazer, de relativizar o sofrimento e, ainda, de sobrepujar a castração, que a noção de falo advém.

Assim, a satisfação da pulsão passa a ser a meta do sujeito, o compromisso que lhe cabe, pela insistência dela mesma e pela inerência do mal-estar. Se o mal-estar é inerente e a pulsão é insistente, a apreensão fálica torna-se iminente. Pode ser compreendida como um dos caminhos desta busca do sujeito, de estabelecimento de referenciais que, apoiados na cultura, lhe servirão de “molduras”. O falo coloca-se como amarra para seu desamparo, sustentação para sua angústia, véu para sua feminilidade. Para ilustrar esta questão, cito uma frase lançada por um paciente, certo dia, em sua sessão: “Não consigo falhar com meu pai – aliás – falar”! Seu ato falho revela por si mesmo a falha (redundância de sua função, por excelência), abrindo uma brecha onde a ordem era apenas tamponar e evitar o susto. O instante do tempo torna presente, aí, uma relação frente ao pai que não falha, o pai da horda primeva, a quem toda a felicidade era acessível, como nos propõe Freud (1972/1913) em Totem e Tabu. Este pai que deveria proteger, mesmo ele, revela-se insuficiente (falhar com), e é frente a ele que o paciente se coloca falho. Resta dizer, sobre o lugar do analista, que se trata de não fazê-lo calar. O analista testemunha o caminho trilhado do falar ao falhar.

Ser falo do outro, para que nada possa falhar. Porém, algo desta meta falha por si, naquilo que já fora mencionado como efemeridade. Embora chamado a suprir uma falha no gozo materno (o que o inclina a uma passividade), sua dádiva não se sustenta no tempo. A face da castração, remetendo a uma falha na imagem narcísica, lhe fornece a imagem do horror, contrária à do belo, colocando em cheque o júbilo que ele ainda não sabe que perdeu.

O falo, que serve de véu para a feminilidade, simultaneamente aponta para uma diferença. Como significante da falta, a recobre ao mesmo tempo em que a marca. Este tênue momento, fugaz mas eficiente, é o presente inapreensível do qual nos ressentimos, tanto quanto insistimos por sorver. A temporalidade permeia nosso entendimento disso, na medida em que se acha presente nestes movimentos do sujeito. Na dimensão fálica, o tamponamento do caráter efêmero serve ao júbilo narcísico, por instantes. O belo de toda obra de criação, além de estar reduzido à evanescência da significação que lhe é dada, traz consigo a face do horror que ele esconde. A neurose constitui-se por esta dupla face, ideia que podemos encontrar no texto O Estranho (Freud, 1972/1919). Diz Freud: “Depois de haver sido uma garantia de imortalidade, o duplo transforma-se em estranho anunciador da morte” (p. 294).

Podemos associar amor e criação, naquilo que, em ambos, diz respeito ao falo. Como uma das formas de fugir ao horror, o sujeito ama. Em Para introduzir o narcisismo, Freud (1972/1914) nos lança a ideia de que, num último recurso, o sujeito deve começar a amar a fim de não adoecer. Pontua que estamos fadados a cair doentes se, em consequência da frustração, formos incapazes de amar.

Esta ideia é acompanhada pelos versos do quadro que Heine traça sobre a psicogênese da Criação: “Imagina-se Deus dizendo: ‘A doença foi sem dúvida a causa final de todo anseio de criação. Criando, pude recuperar-me; criando, tornei-me saudável” (Freud, 1972/1914, p. 102).

Mas, se o amor canaliza o mal-estar, ao mesmo tempo coloca o objeto num lugar inacessível. Conforme as palavras de Balbure (1994), “... o que quer dizer que o amor é esta estratégia muito particular que permite ao desejo perdurar sem contudo ter que saltar sem cessar de um objeto a outro, sem ter necessidade de metonimização” (p. 152).

No amor, a ideia de perdurar-se apaga a constatação da perda. Trata-se da ilusão a qual se refere Freud (1972/1930) em O mal estar na civilização. No entanto, há no amor uma face de perda; o amor é o espelho da falta. Por ser transitório, por não durar, da mesma forma como tampona um lugar de vazio, evoca a feminilidade.

O caráter de ilusão é uma das vertentes do amor. A fim de não adoecer, o sujeito cria. Sujeito efêmero, mas não enfermo.

Consideramos que a beleza de toda criação traz em si a finitude, que é marca da castração. O transitório, aos olhos do neurótico, angustia mas ofusca, delimita mas seduz. O que nos faz pensar no caráter de simultaneidade na apreensão do júbilo narcísico e da injúria narcísica. A unidade ideal vista pelo sujeito evoca uma fragmentação, no momento desta captura especular. Esta simultaneidade traz como fruto a ambivalência, que faz o sujeito transitar entre a feminilidade e a ilusão de completude dada pelo amor.

Pontua Freud (1972/1930, p. 104): “Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança”. O caminho buscado refere-se a um retorno ao narcisismo perdido, a um retorno ao estado primitivo onde a ingenuidade protegia o sujeito dos sofrimentos da cultura e, mais especificamente, da influência do tempo. Diz Freud (1972/1914), referindo-se à “sua majestade o bebê”, em Para introduzir o narcisismo: “O ponto mais espinhoso do sistema narcísico, esta imortalidade do eu, tão oprimida pela realidade, encontra lugar seguro ao se refugiar na criança” (p. 108).

Se a felicidade dura o instante, a dimensão fálica também o faz. Seguindo a já indicada proposição de Freud em Sobre a transitoriedade, ela recobre a ferida aberta deixada pela flor, que, aos olhos do poeta, durara apenas uma noite. Abordando o complexo de Édipo freudiano, Lacan (1986/1958/9) nos mostra, em Hamlet, que é o falo a chave do declínio do Édipo, e que é ao final do ciclo de sua relação com campo do simbólico que se produz a experimentação da perda do falo. O “Édipo entra no seu declínio do mesmo modo em que o sujeito deve fazer o luto do falo” (Lacan, 1986/1958/9, p. 108).

Contrapondo o mito de Aristófanes ao que as observações clínicas nos ensinam, Lacan nos diz que não é sua metade sexual que o vivo procura no amor, mas sim a parte para sempre perdida dele mesmo.

O falo é o caminho encontrado para suportar a desordem do desamparo, transformando instantes em causalidade.

 

Sobre a possibilidade de sublimar

Seria então a sublimação um possível contorno do tempo? A sublimação pode ser entendida como uma saída buscada para a lidar com a efemeridade do tempo. Devemos pensá-la sob duas formas, a partir de sua evolução teórica: sublimação como deserotização, na qual o objeto mantém-se fixo; e como transformação do objeto, podendo dar-lhe um caráter de maleabilidade, que permite ao sujeito um acesso à criação.

Voltemos ao artigo Sobre a transitoriedade, na sequência de um trecho em que Freud (1972/1915), desolado, desabafa sobre o advindo da guerra, que trouxe consigo toda a transformação do mundo, roubando-lhe muito do que amava: “... Se os objetos forem destruídos, ou se ficarem perdidos para nós, nossa capacidade para o amor (nossa libido) será mais uma vez liberada e poderá então ou substituí-los por outros objetos ou retornar temporariamente ao ego” (Freud, 1972/1915, p. 347).

Esta é uma das vertentes nas quais podemos contextualizar amor e criação. Enquanto esta capacidade de amar sobrevier ao desalento, o caminho para a criação encontrar-se-á aberto e, respeitando a singularidade do sujeito, garantirá proteção temporária ao mal-estar. O amor, como sabemos, também pode estar a serviço de uma repetição “do mesmo”, quando tomado somente como tentativa de recobrimento. Porém, abre-se uma brecha no que tange a possibilidade de produção da diferença, se considerarmos a substituição como este fundamental agente diferenciador. Se nos referenciarmos na segunda teoria da sublimação, na qual há substituição de objeto, podemos contextualizar o desejo como válvula operadora de um deslizamento, garantindo ao sujeito a dimensão do novo. Desta forma, amor e criação apontam para o caminho da feminilidade.

O eixo da temporalidade, marcando para o sujeito a finitude, vem de encontro com o estabelecimento de uma ordem, ordem esta que, dirá Freud (1972/1930) em O Mal-estar na civilização “é uma espécie de compulsão a ser repetida, compulsão que, ao se estabelecer um regulamento de uma vez por todas, decide como, quando e onde uma coisa será efetuada... Os benefícios desta ordem são incontestáveis. Ela capacita os homens a utilizarem o espaço e o tempo para seu melhor proveito, conservando ao mesmo tempo as forças psíquicas deles” (p. 113).

Se uma das fontes da neurose advém da frustração que a cultura impõe, podemos considerar uma tentativa de retorno às possibilidades de felicidade, pela via da criação. A substituição de objeto torna maleável este jogo. Mas, se compreendemos que o ato de criatividade é tão necessário quanto efêmero, tão preciso quanto transitório, a face da feminilidade aparece, obrigando o sujeito a um novo investimento. Neste sentido, o caminho não-fálico traz um segundo entendimento possível para a sublimação: em sua evanescência, o sublime só faz brilho a quem não quiser ofuscar: é do sujeito desprovido de todas as suas molduras de que se trata na sublimação. Se a busca é inevitável, condição de vida por excelência, podemos compreendê-la como não-fálica, na medida em que o sujeito, confrontado com a feminilidade, puder acessar-se a um lugar destituído de seus antigos referenciais, descomprometido com os aprisionamentos do passado.

Frente ao imperativo do mal-estar, que em análise encaminha o sujeito a um lugar destituído de fórmulas, os referenciais calejados obrigam-se a uma reorganização. Clarice Lispector (1990/1969) nos ajuda a pensar nesta condição, quando diz: “Existir é tão completamente fora do comum que se a consciência de existir demorasse mais de alguns segundos, nós enlouqueceríamos. A solução para este absurdo que se chama ‘eu existo’, a solução é amar um outro ser que, este, nós compreendemos que exista” (p. 177).

 

Considerações finais

A partir dos fragmentos que escolhi expor no presente artigo, a transitoriedade pode ser compreendida como uma báscula, uma passagem, entre o “eu sou” – evanescente – e o lugar de onde o sujeito diz “nada sou”. A transitoriedade marca a passagem de um lugar a outro: sujeito passageiro, transitando entre a feminilidade e a possibilidade de antecipação, fruto de sua condição desejante. A efemeridade, que faz com que o tempo da concomitância se acenda como ilusão, simultaneamente aponta para o vazio de um sujeito.

Na medida em que a natureza da pulsão incita-o permanentemente a outros caminhos, tendo sido-lhe negada a satisfação completa, se vislumbra a possibilidade do dito nada sou desenrolar-se em .. mas posso vir a ser. Um vir a ser da criação, todavia intermediada pela castração. Um vir a ser constante da feminilidade, a saber, paradoxal, pois de uma permanência que carrega a transitoriedade. O vir a ser condicional do sujeito.

A dimensão da feminilidade faz transitar o transitório. No presente do instante, ela garante que a repetição seja sempre novidade. Se o instante passa, há, todavia, um retorno, em nome quem sabe de uma crença no “eu fui”, porém um retorno que é só contorno. A teoria do recalque parece tentar explicar isto, incluindo a noção de a posteriori na ideia de retorno do recalcado, inserindo a dimensão de algo desde sempre perdido.

Quando falha a ilusão de eternidade, fala a feminilidade. O efêmero faz surgir a face do feminino, que a cada vez aparece para em seguida escapar. A evanescência revela-se como báscula, determinada pelo movimento pulsional, caracterizando-se por jamais findar. Pois o ilimitado do sujeito é somente sua condição de sujeito limitado. Ao propor no amor uma busca possível, refiro-me a um encontro já sem encanto, de um sujeito já defrontado com estes limites.

A feminilidade traz consigo a efemeridade do instante, e o desalento que disto deriva oferece ao sujeito o caminho da criatividade, arte da singularidade que sobrevive simultaneamente ao desejo. Ao criar, despojando-se de seus falos e fazendo-se falar, lançando-se no terreno da feminilidade, encontramos o sujeito imerso numa dimensão em que a ordem temporal, transitória, pode transitar.

 

Referências

Balbure, B. (1994). Melancolia. Em: R. Chemana & C. Dorgeuille (Orgs.) Dicionário de psicanálise Freud & Lacan (pp. 129-163). Salvador: Ágalma.        [ Links ]

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Endereço para correspondência
E-mail: sniskier@uninet.com.br

Recebido em maio de 2008
Aceito em março de 2009

 

 

Sandra Niskier Flanzer: psicanalista; doutora em Teoria Psicanalítica (UFRJ); membro do Tempo Freudiano – Associação Psicanalítica.

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