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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.29 Canoas June 2009

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Composições: experimentações do “ser-estagieiro(a)” em uma clínica escola

 

Writings: essays of the “trainee-being” in a clinic school

 

 

Luciana Rodrigues

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com esta escrita proponho uma reflexão articulando a prática da escuta clínica em psicologia (pelo viés psicanalítico) com o fazer em saúde coletiva, a partir de minha experiência como estagiária em uma clínica escola que compõe um serviço integrado de saúde de uma universidade. Ao ancorar nesse porto de estágio emergem questionamentos e diálogos sobre o saber-fazer “estagieiro”, assim como algumas perspectivas possíveis desse saber que se produz através de olhares, escutas e leituras da realidade de um serviço de saúde, em meio a suas (di) visões e coordenadas de trabalho. Evidencia-se, nessa jornada, o processo de subjetivação de um “devir-psi” que se compõe por atravessamentos e capturas de ferramentas-conceito de áreas do conhecimento como a Saúde Coletiva – estratégia que caminha na perspectiva da Clínica Ampliada em Saúde e das provocações dos chamados processos de mudança na graduação.

Palavras-chave: Análise institucional, Saúde coletiva, Estágio de psicologia.


ABSTRACT

I propose with this article a reflection surrounded by the practicing of the hearing clinic in psychology (through the psychoanalitical theory) with the making in collective health, from my experience as a trainee at the clinic school that compounds the integrated health service, in the universidade. After docking on this trainee port questions and dialogues emerge about the “trainee-being” knowing-making, as well as some possible perspectives about the production of this knowledge through the views, hearings and readings of the reality of a health service, during its (di) visions and indexes of work. It presents, in this journey, the process of subjectivity of a “psy-coming-to-be” crossed and captured by concept-tools of other areas of knowledge, as Collective Health – strategy that fits into the Amplified Health Clinic perspective and from the challenges of the so called processes of change in graduation.

Keywords: Institutional analisys, Collective health, Psychology trainee.


 

 

ESCRITOS I: Das descobertas – terra à vista

Já não quero dicionários
consultados em vão.
Quero só a palavra
que nunca estará neles
nem se pode inventar.
(Andrade, 1983, p. 537)

Uma cena: singrando pelos mares da psicologia. É pela imagem que essa metáfora evoca que inicio a composição desta escrita, pois é na travessia das águas calmas e, não raras vezes, turvas do campo psi, que avistei uma terra, um território possível à ancoragem; um território que, entre tantos, se propõe a um trabalho pela ética da vida. Eis que tal terra é um serviço integrado de saúde e que se encontra na área de um dos meus mais explorados territórios de navegação nos últimos anos – uma universidade de um município do Rio Grande do Sul. E para ajudar o leitor a visualizar comigo essa terra, faço-lhes minha descrição do que avistei, senti e cartografei nesse território. Um olhar sobre a perspectiva desse o encontro!

 

ESCRITOS II: ancorando o barco – cartografias e inquietações

Diário de bordo I

Ancorar nessa terra de conhecidos e desconhecidos foi, e permanece, um grande desafio. Nela os já conhecidos, que também por lá estão passando uma temporada anual (içamos do mesmo porto!), são estrangeiros em processo de inserção. Já os mais desconhecidos são, ao contrário de nós estrangeiros, conterrâneos no território desse serviço integrado de saúde – pois lá ancoraram como trabalhadores estáveis. Há ainda, os estrangeiros usuários que ao encontrarem nessa terra um porto seguro ao cuidado de si, lançam suas âncoras por certas temporadas (cada um com a sabedoria de seu próprio tempo).

Mas, além dessa terra ser, em sua totalidade um porto seguro para muitos, ela também comporta três microportos que historicamente recebem o nome de Psicologia, Nutrição e Enfermagem. Isso porque às vezes um estrangeiro precisa passar uma temporada apenas em um, pois é nele que encontrará o cuidado de que necessita. Como cheguei há pouco tempo, estou a observar se um quarto microporto é possível; aquele em que o cuidado não necessita de micro (di)visões... de onde eu venho , acompanhada pelos referenciais teóricos da Análise Institucional (Baremblit, 1996) e do conceito de transdisciplinaridade chamam essa possibilidade de construção de um espaço do “entre”. Ceccim (2004) propõe a entre disciplinaridade, na qual o entre diferencia-se da intersecção. É por ela que trabalhadores e estagieiros, com seus diferentes saberes – pois, como escrevi há pouco, eles vêm de diferentes mares – se encontram para com-versações de um cuidado interdisciplinar (e transdisciplinar?); será que esta terra acolhe tal microporto? Será que os conterrâneos de nosso território desejam um quarto microporto ou preferem trabalhar sozinhos, cada um no seu microporto seguro?

Diário de bordo II

Um “serviço integrado de saúde”... o integrado, que está entre o serviço e a saúde, integra? Será esse o quarto microporto? Ainda preciso de muitos encontros, olhares, sentidos e ferramentas, tudo isso para poder apreender como esse possível microporto opera na terra do serviço integrado de saúde, pois contam alguns sábios, como Ceccim (2004), Passos e Barros (2000) – que há tempos já navegam os mares da saúde ao encontro de portos pela vida – que um “porto do entre”, do “inter”, do “trans”, é sempre um desafio que precisa da coragem e união de todos os protagonistas para ser colocado em movimento. Os sábios nos dizem, também, que esse processo de construção é inacabado, pois sempre refeito.

Neste contexto, fui alertada para não perder de vista a disposição espacial dos três microportos (Psicologia, Nutrição e Enfermagem) e a contextualização de nosso Porto com o movimento pela saúde que acompanha o cenário nacional, pois essa história, que tanto me instiga, de um quarto microporto possível no Grande Porto do serviço integrado de saúde é atravessado pelos movimentos em prol da saúde pública – que há mais de quinze anos construiu as diretrizes e princípios de um imenso farol de orientação aos navegadores da saúde: o Sistema Único de Saúde (SUS).

Diário de bordo III

É interessante ver a organização dos microportos. À ponte de entrada para o Grande Porto há os secretários do território – eles passam as coordenadas de orientação aos estrangeiros usuários. Nosso porto tem como estética o formato “V”, o que faz necessário orientar aqueles que chegam pela primeira vez: a direita de quem ali aporta há o microporto da Nutrição; mais ao centro o da Enfermagem e a esquerda o da Psicologia. Cada qual com seus próprios equipamentos e salas (de diferentes tamanhos), que auxiliam os trabalhadores e “estagieiros” em suas singulares estratégias de intervenção em saúde.

Utilizei da Análise Institucional (Baremblit, 1996) e da perspectiva do trabalho em equipe (Ceccim, 2004) para fazer as reflexões e conversações a respeito do trabalho em saúde, suas relações e sua produção, que são constantemente atravessadas pelo campo da saúde coletiva; mas aqui no Porto do serviço integrado de saúde, como construímos esse campo? Pensar nisso é um desafio para uma estrangeira que vem de um porto com uma longa trajetória histórica que contém inúmeros paradigmas, concepções e modos de trabalho. Em meio ao campo de forças desse território se compõe um ser psicóloga que (por hora, no manejo da temporada nesse Porto) irá fazer uso de ferramentas advindas de inúmeros sábios, entre os quais psicanalíticos, esquizoanalítcos e mestres aventureiros do saber-fazer em saúde coletiva; sábios que potencializam o meu estar nessa terra, pois a vida é híbrida.

Mas e o possível microporto do “entre”, dessas relações do trabalho em saúde (que parece ser a conexão do Serviço com a Saúde no Grande Porto), será que ele tem ou necessita de um espaço sem que insistam as micro-(di)visões?

Diário de bordo IV

Farei desse o quarto e último diário de bordo, o que não significa que as pulsações nesse Porto irão cessar. Elas continuarão pedindo passagem, transbordando por outros escritos, dizeres e fazeres. E, como último diário, não poderia deixar de registrar mais algumas inquietações e estranhamentos, que pela escrita se transmutam em perguntas. A suspeita acerca de um quarto microporto continua em suspenso; enquanto vou procurando/construindo sentidos para esse questionamento, pergunto-me sobre a equipe do meu próprio microporto: somos uma equipe? Ou miniequipes que não chegam a constituir uma equipe integrada do microporto da Psicologia? Pois há aqui também mais (di)visões: psicanalíticas, gestálticas, cognitivistas e sistêmicas. E se não há “uma” equipe Psi, é possível pensar em uma equipe que agregue estagieiros dos três microportos? Façamos circular essa questão.

No entanto, com equipes ou sem equipes, o Porto é atravessado/constituído por relações de trabalho preestabelecidas entre os trabalhadore(a)s dessa terra. Dizem a nós estagieiros: “são vocês que fazem o serviço integrado de saúde funcionar”. Como será nossa inserção nessa rede de trabalho? Quais as redes já instituídas? Quais se instituirão? (Os encontros geram movimentos).

E por ter aqui ancorado, seguirei nesses encontros do fazer “estagieiro” aprendendo a tecer intervenções e redes de cuidado, construindo conexões entre os referenciais da psicanálise, da saúde coletiva, da análise institucional e da esquizoanálise – na tentativa de construir estratégias de inter(ven)ação à integralidade e potência vida.

Registrados os primeiros diálogos e aproximações com o Grande Porto, prossigo com alguns apontamentos e propostas do que visualizo como uma possibilidade do “saber fazer estagieiro” no microporto em que lancei âncora: o da Psicologia.

 

ESCRITOS III: Descendo ferramentas – produções do encontro

Que possibilidades do saber-fazer “estagieiro” irei articular pelo cuidado e pela promoção da vida nesse “devir-estagieiro”? Há moldes e missões preestabelecidas (as coordenadas) a cumprir. A partir de que leituras, perspectivas e conexões irá se articular a escuta clínica aos processos híbridos do campo da Saúde Coletiva?

Coordenada I: o atendimento individual, que, entre as possibilidades oferecidas pelas (di)visões do microporto Psi, escolhi realizar pela visão psicanalítica. Coordenada II: as ações em saúde coletiva. Entre as atividades possíveis, lancei a proposição de por em movimento um novo grupo, o “Há-gentes pela Saúde”, composto por Agentes Comunitárias de Saúde de um município do Rio Grande do Sul.

Coordenadas revisadas, desço de minha embarcação algumas ferramentas teóricas, pergaminhos compartilhados com outros navegadores, para pensar o fazer “estagieiro” em saúde.

Da sabedoria psicanalítica: a escuta

Antes de ancorar por essas terras sabia que minha missão seria oferecer espaços à escuta, ao cuidado dos sujeitos e coletivos em suas múltiplas formas de ser no mundo – acolhimento!

E o caminho da escuta, base dessa missão, é aquele que se propõe à escuta do desejo, desse sujeito do desejo que nos habita emergindo pelo discurso de nosso inconsciente; habita-nos e nos constitui enquanto sujeitos, humanos inscritos na linguagem. E como pensar essa escutar? Dolto (2004) em um dos seus escritos nos demonstra que o psicanalista é essa presença humana que escuta e que, assim, possibilita que forças emocionais encobertas em jogo conflitivo encontrem uma saída. No entanto, a direção, o sentido atribuído a essas forças, partirá do próprio analisando – aqui, dos “estrangeiros-usuários”, que se colocaram na posição de pacientes. Ao acompanhar Jorge e Ferreira (2005), podemos ver que essa escuta, que permite uma pontuação no discurso do sujeito (a interpretação), “deve libertar o analisando dos sentidos cristalizados, levando-os a criar novos sentidos, abrindo novas possibilidades de seu estar no mundo” (p. 67). Nas palavras de Dolto (2004, p. 10): “uma escuta no sentido pleno do termo, faz com que o discurso se modifique, adquira um sentido novo a seus ouvidos. O psicanalista não dá razão nem a retira; sem emitir juízo, escuta. As palavras empregadas pelos consultores são as suas palavras habituais, mas a maneira de escutar é portadora de um sentido de apelo a uma verdade (...)”.

Mas onde será que essa escuta acontecerá? Ela é possível apenas no setting terapêutico, isto é, nas salas do microporto da Psicologia? Lembro-me que os grandes navegadores, que há muito estudam os pergaminhos psicanalíticos, ensinam a nós (esses humanos em “devir estagieiro”) que a escuta é sempre clínica. Portanto, podemos romper os limites do microporto e, porque não, a do Grande Porto?! A clínica com crianças e com sujeitos que se constituem pela via de uma estruturação psicótica, nos demonstram o quanto é possível acompanharmos tais “estrangeiros-usuários-pacientes” também em andanças pela cidade do Porto, a saber, os espaços da universidade. Berger (1997, p. 9) traz uma escrita poética ao falar sobre os ATs (acompanhamentos terapêuticos): “Usamos no acompanhamento terapêutico a errância pela cidade e os projetos que podem surgir daí, como instrumentos para a criação de narrativas pessoais. Essas histórias, montadas sobre os deslizamentos (de sentido e de espaços) da dupla acompanhante-acompanhado, procuram tecer novas possibilidades às cristalizações e aos embrutecimentos da história desses pacientes”.

E na psicanálise com crianças? São tantos os “estrangeiros criançeiros” que chegam ao Porto. Na missão de escutá-los busco orientação através de algumas proposições que Dolto (2004) nos deixou, pois elas possibilitam a realização da escuta clínica da infância situando a criança na posição de sujeito de seu próprio desejo, e não como uma extensão dos pais. O trabalho terapêutico constituirá então, um espaço ao movimento do “ser criançeiro”, no sentido de sair do lugar de objeto (ao qual frequentemente se encontra), restituindo seu lugar de sujeito desejante e não de alienação. Como pontua Ferreira (2000), é necessário problematizar e desconstruir esse lugar de “ali-é-nada”, muitas vezes referido à criança. É nosso trabalho restituir a criança o seu caráter de liberdade enquanto sujeito.

Então, seja com o “ser criançeiro”, adolescente ou adulto, oferecer uma escuta é válido para que? Para possibilitar a passagem dos fluxos do desejo, para permitir ao sujeito se assumir enquanto ser desejante; a escuta ao permitir a interrogação das certezas, essas convicções perigosas que fazem o ser humano “sofrer e que o aprisionam em alguns sentidos fixos, metáforas congeladas, possibilita a emergência da significação recalcada” (Jorge & Ferreira, 2005, p. 68) e o resgate da relação mais próxima entre a palavra e o desejo.

Para tanto, nós terapeutas no “devir estagieiro”, precisamos suportar aquilo que Freud (1996) denominou motor da análise – a transferência – assim como suportar o que vem implicado nela, aquilo que Lacan, como nos apresenta Jorge e Ferreira (2005), chamou de falta, a angústia da falta que o “estrangeiro-usuário-paciente” deseja ser suprida.

Alves (2003) nos diz: “a verdade mora na escuridão do corpo onde uma palavra é ouvida” (p. 79). Outra escrita poética que nos ajuda a visualizar a importância da palavra escutada, cantada, narrada... no princípio é a palavra do outro que nos constitui enquanto sujeitos. Desse modo, o que nós estagieiros escutaremos nas palavras ditas (e não-ditas) pelo outro “estrangeiro-usuário-paciente”, enunciadas pela regra fundamental da análise, a associação livre? Nas múltiplas possibilidades de espaço-tempo do exercício da escuta, escutemo-los “estrangeiros-usuários”! Escutemo-los em sua singularidade.

Da sabedoria dos dispositivos ao cuidado: um grupo nascente

Em que outros planos de nosso Porto é possível realizar um “saber-fazer” estagieiro no cuidado com a vida? As duas coordenadas que direcionam certos fazeres do pensar em saúde, moldam fazeres que devem ser concretizados, pois paira sobre nós o olhar da super-visão – humanos que já passaram pelo “devir estagieiro” e hoje auxiliam nossas navegações. Retomando: Coordenada I, o atendimento clínico; Coordenada II, as ações em saúde coletiva. (E elas são passíveis de uma delimitação, separação?).

Ao procurar espaços para a segunda coordenada, encontro-me novamente com as indagações a respeito da existência de um quarto microporto no serviço integrado de saúde – o microporto do entre, da saúde coletiva. Em minha busca pude observar que existem planos de composição de equipes multiprofissionais, onde Psicologia, Enfermagem e Nutrição se encontram; eis o grupo de gestantes, diabéticos, hipertensos e a equipe que realiza as visitas domiciliares. Mas como afirmar aí o quarto microporto, se o que o constitui não é apenas o mero encontrar dos estagieiros dos nossos três microportos?

Diante da coordenada de realizar ações em saúde coletiva (ações que nessa terra tem como referencial a composição de grupos), um trabalho para o cuidado em saúde, implicado com minhas andanças por outros territórios, surge. Uma proposta articulada com vivências das navegações passadas, rotas de minha trajetória acadêmica, que permitiram o trânsito por terras onde a problematização do campo da saúde, e a reflexão sobre alternativas às demandas sociais/comunitárias, perpassam o cotidiano de trabalho: os projetos VER-SUS/Brasil1 e VER-SUS/Extensão (VEPOP)2.

Nasce, assim, a possibilidade de construir um espaço direcionado as Agentes Comunitárias de Saúde de um município do Rio Grande do Sul, que a partir dos diálogos mediados pelos projetos mencionados acima, pontuaram a importância de um espaço que acolhesse e oferecesse suporte as suas vivências, oportunizando momentos de troca e integração. Um espaço que se configura como uma experiência singular que seguindo os passos da promoção de saúde, postulada como conceito-ferramenta do Sistema Único de Saúde (SUS), promove o cuidado de si na interação, no cuidado coletivo. Estratégia geradora de diálogos que abre caminho à criação de novos processos de subjetivação que se coloquem a serviço da potência da vida. Como nos traz Ceccim (2004) a prática de saúde como afirmação da vida é um dos fatores obrigatórios para promover a formação em saúde3.

Atentar para o fato da emergência de um espaço vir acompanhada de uma demanda – seja ela solicitada pelos próprios sujeitos ou produzida por aqueles que ofertam determinados serviços – instiga a problematizar a serviço do que os mesmos são disponibilizados. Nessa reflexão, proponho pensar o espaço de um grupo como um dispositivo que, na perspectiva de Barros (1993), se coloque como um “catalizador existencial que poderá produzir focos mutantes de criação” (p. 151). Deste modo, enquanto um dispositivo analítico, o grupo “poderá servir às descristalizações de lugares e papéis que o sujeito-indivíduo constrói e reconstrói em suas histórias” (p. 152). O grupo, nesse sentido, permite o surgimento de novas significações aos processos de subjetivação que agenciam modos de estar no mundo e, a partir da experiência do encontro com o outro, abre possibilidades ao fluxo da enunciação da palavra, pois “[...] todo humano tem a ver com a palavra, se dá em palavra, está tecido em palavras... Quando fazemos coisas com as palavras, do que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao que nos acontece, de como correlacionamos as palavras e as coisas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e de como vemos ou sentimos o que nomeamos” (Larrosa, 2002, p. 21).

Encontrar espaços para a experiência do encontro, da escuta e do cuidado, parece cada vez mais raro na atualidade, pois vivenciamos um tempo da rapidez, da produção, da informação, do efêmero... e quais as implicações desse modo de ser e se colocar no mundo? Que sujeitos ele produz, que vidas ele inaugura? Em relação ao campo da saúde, em meio às possibilidades de subjetivação, como se configura o cotidiano de trabalho para o ser Agente Comunitário de Saúde? Por onde “escoam” as implicações da dimensão público (interação com a comunidade) e privado (a família)? Que tempo-espaço existe para essas questões tornarem-se visíveis, dizíveis, transformadas? Que espaços existem para a oxigenação de suas vidas?

Larrosa (2002) ao refletir sobre os momentos de experiência (entendida aqui como o que nos passa, acontece, nos toca; como um acontecimento sempre único, singular e múltiplo; uma abertura ao desconhecido), nos diz que em tempos atuais a possibilidade de algo nos tocar requer gestos de interrupção “[...] requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação [...]” (Larrosa, 2002, p. 24).

Gestos que passei a acompanhar através de um olhar cartográfico em meio aos movimentos desse grupo, pois a cartografia4 como ferramenta de trabalho nos possibilita “dar língua para afetos que pedem passagem (...)” (Rolnik, 2006, p. 23). Afetos do ser Agente Comunitário de Saúde.

 

ESCRITO INOMINADO: o “devir estagieiro”

Aprender a ler o mundo
Com palavras de simples linhagem.
Traduzir o que há de mais fundo
Com elementos da alma e linguagem.

(Araújo 1998, p. 88)

Aprender a ler o mundo e traduzi-lo em nossa singularidade, parece ser essa a lição do poeta. A psicanálise nos ensina que a linguagem, na qual somos e estamos inscritos, é um conjunto que oferece determinadas possibilidades e como tal, apresenta sua limitação. Mas ainda que o conjunto de possibilidades seja delimitado, não somos nós humanos, seres de criação, capazes de (re)inventar sentidos, criar novas conexões, inventar palavras e estabelecer infinitas significações? E não é nesse plano da linguagem, que o sujeito se compõe para tornar-se um ser singular?

Implicações: como ser estagieira dessa terra e acolher os “usuários estrangeiros” (criançeiros, adolescentes, adultos) em suas múltiplas leituras e traduções do mundo? O que pode a experiência do encontro com o saber-fazer “estagieiro” nessa rede de relações? Experimentações: escutas do sujeito do desejo, do inconsciente vivo e, algumas vezes, esquecido como nos demonstra a Psicanálise; cartografias que possibilitam dar língua aos afectos do vivido, como nos demonstra a Esquizoanálise. Acompanhar a travessia para e pelo o mundo das possibilidades; estar junto; estar com; com a vida que pulsa ao nosso lado, a nossa frente, não importa a direção, mas sim, que ela seja a direção do cuidado, da transcendência dos limites do humano, sem perder de vista nesse caminho, como nos propõe Boff (2007), a ética, o cuidado e o respeito. Como fazemos isso? Somente na experimentação dos encontros.

É no campo das possibilidades que um encontro é capaz de produzir há também a reinvenção de si, processo de mútua afecção: inauguração do “ser estagieira”, pois também nos compomos, (re)inventamos jeitos, gestos e fazeres ao estar com o outro, ao passar pela experiência da escuta, ocupando o lugar de terapeutas. Cada movimento realizado pelo outro, por esse “estrangeiro-usuário-paciente” é, também, acompanhado pelo meu: “É o amor à vida, apesar de toda falta de objeto que opera no desejo do analista” (Maurano, 2006, p. 56).

 

ESCRITO NOMEADO: ditos, feitos e sentidos (implicações)

O Filósofo Baruch Spinoza nos ensina que a vida é movimento e afecto e suas palavras afirmam a potência da vida, pois é nessa dança que reinventamos nossos modos de estar no mundo, nossos modos de estar com o outro, nosso modo, e aqui, um modo de estar sendo “estagieira”. A experiência nos faz sentir/pensar essa vivência de reinvenção de si; ser “estagieira-psi” é estar constantemente em um processo de mútua afecção.

Ao relembrar os primeiros dias no microporto, lá quando o caminhar estagieiro estava apenas começando (início de angústia e medo, ao mesmo tempo em que o desafio se mostrava instigante), a pergunta ecoava: como o “ser-estagieiro” acolheria os “usuários-estrangeiros” em suas múltiplas leituras e traduções do mundo? Que construções se fariam a partir dessa experiência do encontro com o outro no “saber-fazer estagieiro”? Um caminho possível, no desafio de encontrar pontos de sustentação a tais questionamentos, está na reflexão de minha própria escuta enquanto “estagieira”.

Lembro do ditado “o tempo irá mostrar”, pois é com passar dos dias, no caminhar “estagieiro”, que a escuta se aguça. A escuta, como uma ferramenta-potência, um sentido que afinamos como a um instrumento, não existe sem o som, sem a palavra dita, a palavra muda (que muda ao receber os sons e ressonâncias que a escuta oferece).

A transferência, então, torna-se mais familiar e menos assustadora, possibilitando acompanhar Adriana5 em sua caminhada por outros sentidos, que não os que em seu discurso estão alinhados, estruturados, cristalizando sua experiência existencial; que vejo Olinda rejuvenescer sua vivência, tão enredada no cuidado do outro, ao autorizar o cuidado de si; assim como vejo Pedro perceber que mudanças são possíveis e que a palavra possibilita ver o que insiste sem ser visto; que sinto Cézar nomear suas escolhas, driblar conflitivas em seu adolescer e Vinícius expressar esses sentimentos humanos de desamparo e raiva, construindo alternativas criançeiras que possam falar de um cuidado afetivo.

A vivência “estagieiro-terapêutica” (na perspectiva psicanalítica) pressupõe sustentar a posição de “Objeto a” e, portanto, a experiência da falta. Esse lugar aponta para a falta do humano e descortina o modo do sujeito operar com seu desejo – o(a) analista, então, interprete do que se desdobra em análise, possibilita a produção de um saber sobre a verdade do sujeito; micronarrativas como traz Fontenele (2002). E para afirmar e firmar o desejo do analista é fundamental (no sentido de fundar uma escuta) a análise pessoal.

Deste modo, compreender a função da interpretação, aqui utilizada como ferramenta do processo terapêutico no encontro entre “estrangeiros-usuários-pacientes” e terapeuta, é sine qua non ao contexto do devir-analítico. Escapar das malhas esteriotipadas do conceito de interpretação, amplamente criticado por outras (di)visões psi, quando não representada em nosso cotidiano por comentários que remetem ao chamado “interpretasso”, torna-se um desafio a ser ultrapassado. E estando a ética, na psicanálise, sustentada no sujeito do desejo, a interpretação (sendo instrumento que aborda os caminhos por onde o inconsciente se revela) não se compromete com sentidos preestabelecidos, pois se movimenta em direção ao desejo do sujeito – sempre único e singular. Ao fazermos uso do instrumento interpretação, trazido pela Psicanálise, devemos afiná-lo ao ‘tom’ de cada paciente. A essa imagem de fina ação (que requer uma escuta sensível), trago as palavras de Alves (2003, p. 13) ao escrever que “o inconsciente é um artista”.

E se o espaço é o do coletivo, de produção de subjetividades, é pelo encontrodos diversos ‘tons’ que novas composições podem ser criadas, sempre na direção da potência de vida nelas contida. Nesse sentido, volto à escrita aos fragmentos do trabalho com um grupo, de um acompanhar coletivo de vidas agentes de saúde e desse trabalho que tantas vezes invade a privacidade familiar dessas mulheres6 (ou elas, com seus valores, “invadem” a comunidade? A linha é tênue, como a linha nebulosa que traz o limite das ações do ser Agente Comunitário de Saúde). Como emerge no grupo, agendar consultas, pegar remédios, etc, “não é nosso trabalho”, mas o que fazer quando ninguém mais pode realizar essas ações pelo sujeito que necessita delas? O que fazer, questiona outra integrante, ao se deparar com famílias que vivem em situações de precariedade? (sendo essa não apenas característica de uma família, mas de um bairro, entre tantos em semelhante condição). Para além das obrigações profissionais, o que está colocado, em inúmeras situações, envolve questões referentes as nossas políticas públicas.

Diante disso, atentar a escuta, em alguns momentos, para o sujeito do inconsciente seria reduzir as possibilidades existenciais excluindo a dimensão sócio-política-cultural? O exercício da escuta no plano do vivido, do saber que produzimos, se constrói imersa no contexto social e não indiferente a ele. Voltarmos nosso olhar para a escuta do sujeito do inconsciente, em determinadas situações, não exclui nossa leitura das transformações sociais, nem nossa implicação e inserção nos movimentos que tentam entendê-lo e encontrar brechas para a promoção de vida através da experiência do coletivo (como na perspectiva de grupos pensada por Barros 1993). É preciso não deixar que ações e reflexões no campo da psicologia caiam na dicotomia indivíduo X sociedade. É necessário olhar o sujeito “[...] como um ser de relação no mundo, como um ser singular à procura de uma compreensão que lhe é pertinente. É essa visão de totalidade existencial-filosófica que faz com que o profissional abra as janelas de sua mente para ver o mundo como uma realidade social, política, comunitária e perca a mesquinhez de só ver o indivíduo no seu imediatismo. É essa visão que o faz transcender do indivíduo para o grupo, do momento para a história, de soluções precárias para procuras mais globais” (Conselho Federal de Psicologia, 2004, p. 3).

E esse não fará sentido apenas no dia em que o rito de passagem que dá acesso a identidade ser psicólogo(a) for atravessado. Sustentar a afirmação de uma postura ética do “ser-psi” necessita também circular a palavra com, e através, de outras áreas do conhecimento. O que estamos fazendo diz de onde queremos chegar... chegar a perceber que “essa vida morna e tola que nos é oferecida e alardeada como única possível, desejável e saudável esconde outras tantas. Cuja beleza e tentação cabe reinventar” (Pelbart, 1993, p. 13).

Como? Segundo Alves (2003) através da feitiçaria das palavras isso é possível: “O feiticeiro fala e a palavra, sem o auxílio das mãos, realiza o que diz” (p. 11). Não seremos nós eternos feiticeiros?! E o trabalho do psicólogo(a) o ato de devolver o poder feiticeiro àqueles que, por algum motivo, dele já se distanciaram? Espaço de feitiços; caldeirão de múltiplos (em)cantos: façamos produções feiticeiras!

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: luciana_rodrig@yahoo.com.br

Recebido em janeiro de 2008
Aceito em março de 2009

 

 

Luciana Rodrigues: Acadêmica do curso de Psicologia (Universidade de Santa Cruz do Sul/RS – UNISC)
1 Vivências e Estágios na Realidade do Sistema Único de Saúde do Brasil; realizado no município de Santa cruz do Sul- RS em 2005/2
2 Vivência em Educação Popular no SUS – VEPOP – SUS. Projeto realizado entre dezembro de 2006 a janeiro de 2008 no município de Santa Cruz do Sul – RS.
3 Segundo Ceccim (2004), “três são os intercessores, fatores de exposição obrigatórios, as interfaces que precisam prover a formação em saúde: a alteridade com os usuários, a experimentação em equipe e a prática de saúde como afirmação da vida” (p. 275).
4 Segundo Kastrup (2007) o método cartográfico, formulado por Deleuze e Guattari, possibilita-nos acompanhar, investigar processos de produção ao invés de representar um objeto. Nesse caminho não há uma coleta de dados, mas uma produção dos dados da pesquisa que convoca assumir a atenção, não como funcionamento seleção de informações, mas como “detecção de signos e forças circulantes, ou seja, de pontas em processo em curso” (p. 15).
5 Os nomes dos “estrangeiros-usuários-pacientes” são fictícios.
6 No grupo participam de 9 a12 mulheres, em uma faixa etária entre 20 e 50 anos que atuam em diferentes comunidades. Como Agentes Comunitárias de Saúde estão vinculadas ao Programa de Agentes Comunitários em Saúde (PACS).

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