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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.30 Canoas dez. 2009

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Reforma psiquiátrica e clínica da psicose: o enfoque da psicanálise

 

Psychiatric reform and psychosis clinic: psychoanalysis perspective

 

 

Fuad Kyrillos Neto

Universidade do Estado de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Apresenta-se, de forma sintética, o pensamento de Basaglia e sua influência na conceituação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, com o objetivo de adentrar o campo das políticas públicas de saúde mental. Com base na Teoria dos Quatro Discursos de Lacan, apontam-se as limitações da Reforma Psiquiátrica Brasileira e diferenciam-se clínica e saúde mental ressaltando-se a indissociação entre ambas. Relaciona-se a essas limitações a ausência, no interior dos serviços orientados pela reforma, da forma de discurso que considera o sujeito e a construção do laço social do psicótico. Aborda-se a questão classificatória na Psiquiatria e retoma-se a proposta freudiana de considerar a interconexão Psiquiatria/Psicanálise. Dessa forma, pleiteia-se a inclusão de uma psicopatologia que permita a significação psicanalítica dos quadros psiquiátricos como elemento da atenção psicossocial. Finalmente apontam-se os requisitos fundamentais para um tratamento consistente e para a inclusão efetiva do psicótico.

Palavras-chaves: Psicose, Psicanálise, Reforma psiquiátrica.


ABSTRACT

The concept of psychiatric reform is presented in a brief form, with the objective of introducing the field of mental health's public policy. Based on Lacan's four speeches theory, the author shows the limitations of the Brazilian Psychiatric Reform; he also differentiates clinic and mental health and stands out the indissociability between them. The lack of a speech that considers the subject and the construction of the psychotic's social bow in the services guided by the Reform is related to these limitations. The author mentions the classificatory question in psychiatry and considers the interconnection phychiatry/psychoanalysis proposed by Freud. The author defends the inclusion of a psychopathology that allows the phychoanalytical signification of the psychiatric diseases as part of the psychosocial attention. Finally, he shows the principal requirements for a consistent treatment and for an effective inclusion of the psychotic.

Keywords: Psychosis, Psychoanalysis, Psychiatric reform.


 

 

Introdução

Os serviços substitutivos de saúde mental surgem na década de 80 num contexto de crítica e prevalência da internação asilar e da privatização da assistência na forma de hospitais e clínicas ditos "conveniados". A maioria dos serviços substitutivos brasileiros foi inspirada na experiência italiana de desinstitucionalização em Psiquiatria.

A experiência basagliana revela a impossibilidade, historicamente construída, de trato com a diferença e os diferentes. No campo das igualdades, o louco ganha identidades redutoras da complexidade de suas existências. Amarante (1995) considera que o mérito da Psiquiatria Democrática Italiana foi possibilitar a denúncia civil das práticas simbólicas e concretas de violência institucional e não restringir tais denúncias a um problema dos técnicos de saúde mental.

Basaglia (1985) considera que o psiquiatra social, o assistente social, o psicólogo da indústria e o sociólogo da empresa são os novos administradores da violência no poder, pois atenuam os atritos, dobram resistências, resolvem conflitos. Com sua ação técnica, limitam-se a consentir que se perpetue a violência global. Para Basaglia (1985, p.102), o único ato possível para o psiquiatra será "evitar soluções fictícias através da tomada de consciência da situação global na qual vivemos, ao mesmo tempo excluídos e excludentes".

Com tal inspiração, o termo "reforma psiquiátrica" no Brasil ganha uma inflexão diferente: a crítica ao asilo deixa de ambicionar seu aperfeiçoamento ou humanização, passando a questionar os próprios pressupostos da Psiquiatria, na condenação de seus efeitos de normalização e controle. A Reforma Brasileira passa a ter como principal reivindicação a cidadania do louco.

Amarante, ao coordenar uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública, define reforma psiquiátrica como:

um processo histórico de formulação crítica e prática que tem como objetivos e estratégias o questionamento e a elaboração de propostas de transformação do modelo clássico e do paradigma da psiquiatria. No Brasil, a reforma psiquiátrica é um processo que surge mais concreta e principalmente a partir da conjuntura da redemocratização, em fins da década de 1970, fundado não apenas numa crítica conjuntural ao subsistema nacional de saúde mental, mas também e principalmente, na crítica estrutural ao saber e às instituições psiquiátricas clássicas, no bojo de toda movimentação político-social que caracteriza esta mesma conjuntura de redemocratização (Amarante, 1995, p.91).

Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) surgem como resposta às aspirações da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Tal serviço possui cinco características fundamentais no que diz respeito a sua "prática terapêutica": garantia de direito a asilo (o que não significa isolamento ou exclusão); agilidade de respostas às situações de crise; inserção no território; inversão no investimento (significando dar ênfase à reprodução social dos usuários, ou seja, sem uma preocupação com estruturas clínicas ou quadros psicopatológicos) e, por fim, processo de valorização, entendido como a participação das instituições no processo de intercâmbio social.

Tais características dos CAPS são aplicações institucionais do modelo basagliano. São princípios que regem o funcionamento cotidiano dos serviços abertos de saúde mental. Ao abordarmos esses aspectos, estamos adentrando o campo das políticas públicas de saúde mental preconizadas pelo Movimento da Reforma Psiquiátrica.

Partimos do pressuposto de que para garantirmos o avanço da Reforma Psiquiátrica Brasileira para além da criação de novos serviços, precisamos de profissionais imbuídos de um arcabouço teórico profundamente distinto do modelo anterior (manicomial). Consideramos que as novas modalidades de atenção em saúde mental não devam ser resumidas a novas técnicas de tratamento, mas constituam outra política, que atente para a ética da inclusão.

Furtado e Campos (2005, p.113) colocam uma questão crucial para a reforma psiquiátrica: "como instaurar uma nova postura, uma nova ética de cuidados, uma nova forma de lidar com o doente mental entre os milhares de trabalhadores de saúde mental do país?".

Ressaltamos que nos serviços abertos de saúde mental temos significativo número de trabalhadores que não vivenciaram o modelo manicomial. Acreditamos que tal vivência ou a transmissão crítica de tal experiência seria importante para o entendimento dos avanços representados pelos serviços substitutivos. Além disso, cumpre frisar que as instituições de formação assimilaram muito pouco das discussões trazidas pela reforma, seja em seus currículos, seja em atividades extensionistas. Elas vêm oferecendo tímidas contribuições, em termos de avaliação e propostas, para seu desenvolvimento.

Nas características descritas anteriormente, consideradas essenciais para o funcionamento dos serviços substitutivos de saúde mental, percebemos uma ausência da dimensão clínica. A "inversão do investimento" propõe que a Psiquiatria não enfatize a patologia e contemple a existência complexa dos pacientes e sua inserção no corpo social.

Um dos maiores riscos da reforma psiquiátrica em curso no Brasil é o fato de privilegiar a adaptação do doente ao meio - ainda que isso venha a custar o próprio apagamento do sujeito. Nos moldes propostos pela Psiquiatria Democrática Italiana, a inclusão social do paciente seria obtida por meio da negação da lógica manicomial (transformação institucional), de uma política compensatória de concessão de benefícios, da participação em movimentos sociais e do retorno ao universo de trabalho. Viganò (2005), em artigo intitulado Basaglia com Lacan, nos lembra que:

A quem puder extrair da experiência basagliana um ensinamento, proponho fixá-lo num aforismo que parafraseia aquilo com o que Lacan ligou a obra de Freud com a de Saussure: se Basaglia tivesse lido Lacan, haveria dito que o fechamento dos manicômios é uma troca de discurso e que o discurso do analista pode motivar "a posteriori" essa passagem. (p.16).

Viganò (2005) aponta, ainda, que a falta de uma operação denominada "torção interna da linguagem", que permita o ato de falar da loucura sem acercar o louco, leva Basaglia a confiar exclusivamente na prática. Essa é a operação que Lacan faz a partir do inconsciente freudiano no discurso do analista. Esse discurso tem como característica fundamental ser o único que considera o outro como sujeito.

Justificamos a afirmação anterior com o deslocamento do sujeito da experiência da loucura, realizado pela Psiquiatria Democrática Italiana, para a posição de usuário dos serviços de saúde mental. Dessa forma, a demanda de cura dos sujeitos é revertida para a demanda de inclusão. Sua patologia é definida pela exclusão social concreta. A localização de sua demanda não emerge do sofrimento psíquico individualizado, mas do sofrimento atinente à posição de classe. Como tal, sua demanda se objetiva em posições no universo do consumo e do trabalho, de onde a expressão usuário afinal deriva.

O sujeito em Psicanálise integra o corpus teórico da Psicanálise, constituindo-se em categoria essencial dessa teoria. O termo sujeito foi introduzido por Lacan na Psicanálise e permite que operemos com a hipótese do inconsciente, sem aniquilar sua dimensão essencial de não sabido.

Fink (1998) nos lembra que a ciência lida com o sujeito, mas apenas com o sujeito cartesiano, consciente, senhor de seus próprios pensamentos, que são correlativos ao ser. As ciências certamente ignoram o sujeito dividido por afirmações como "Eu sou onde não penso" e "Eu penso onde não sou".

Já a Psicanálise se interessa por aquilo que coloca em questão a natureza autoconfirmadora de seus próprios axiomas: o real, o impossível, aquilo que não funciona. Essa é a verdade pela qual a Psicanálise se responsabiliza.

Em Psicanálise operamos sobre um sujeito que é o mesmo da ciência que não opera sobre ele. A subversão própria à Psicanálise, em relação ao sujeito colocado pela ciência moderna, é o fato de ter criado condições para operar com esse sujeito.

Inferimos que a Psicanálise se debruça sobre um sujeito angustiado, desprovido do anteparo divino para atribuir sentido a sua realidade e a sexualidade organiza sua subjetividade, por vezes produzindo sintomas. A Psicanálise, em primeira instância, não visa a eliminar o sintoma do sujeito, pois é a partir do sintoma que cada sujeito tem a possibilidade de atribuir um sentido a sua vida. O psicanalista trabalha para que o sujeito construa um modo diferenciado de posicionamento frente a seu mal-estar. O trabalho da Psicanálise se dirige ao gozo, ao mais além do princípio do prazer, à redistribuição da economia do gozo, para que o sujeito possa estar melhor.

O sujeito do cogito é o sujeito do pensamento. É só porque ele pensa que se assegura de si. Ele é um sujeito do pensamento e, ao mesmo tempo, um sujeito da certeza. Soller (1997) nos lembra que o sujeito do pensamento, ou sujeito da certeza, não é o sujeito da verdade. A certeza é completamente independente da verdade. O cogito suspende qualquer consideração da verdade.

A partir dessas considerações acerca do cogito, observamos que o sujeito que procura um serviço de saúde mental é muito diferente do sujeito do cogito. O sujeito que procura um serviço de saúde mental é alguém que sofre. Com Soller podemos afirmar que o cogito desse sujeito poderia ser: "sofro, logo sou". Portanto, quem busca acolhimento em serviço de saúde mental não é o sujeito da verdade, mas o sujeito do afeto.

Operar com a noção de sujeito é fundamental para o trabalho analítico, pois, dessa forma, abre-se espaço para as manifestações do inconsciente (atos falhos, sintomas, lapsos, chistes). Assim, nos aproximamos da dimensão fundamental do não sabido, da excentricidade do sujeito de si para si mesmo.

Com a extração de S1 (um significante-mestre) de um saber em posição de verdade, uma verdade não toda, uma proposição subjetiva em relação ao gozo, o discurso do analista, ao tomar o outro como sujeito falante, leva o sujeito à bem-dizer o próprio sintoma e a atravessar sua fantasia. Como sabemos, Lacan (1969-70/1992) elabora a teoria dos quatro discursos a partir do discurso do mestre, cuja matriz é a relação necessária entre S1 e S2. A essa matriz Lacan chama estrutura. Esse autor, ao extrair da experiência psicanalítica o discurso do analista, coloca em evidência e recupera o fracasso que no discurso do mestre aparece como resto, perda de gozo.

Nesse ponto, cabe uma diferenciação entre clínica e saúde mental. A clínica diz respeito ao caso tomado em sua singularidade, enquanto a saúde mental preocupa-se com as ações políticas e eticamente orientadas para as peculiaridades de certo grupo. Podemos afirmar que a prática clínica está em conexão com o discurso do analista. Nossa posição é a de que clínica e saúde mental sejam indissociáveis na prática dos trabalhadores de saúde mental. Considerar sujeito do direito e sujeito do inconsciente é nosso desafio. Aliás, Lacan (1969-70/1992) insiste no caráter essencialmente social desse discurso que tem por objeto o analista em sua prática, que toma na posição de "dominante", de agente, o "mais gozar" e na posição de produção, o significante Mestre.

Em sua obra, Quinet (2006) nos apresenta o discurso como laço social que compõe o campo do gozo. O autor defende a ideia de que não existe tratamento efetuado fora do campo do discurso e que, dessa forma, todo tratamento se insere num laço social. A relação médico-paciente se estabelece a partir dessas modalidades de laço social. Lembramos que Basaglia não interrogou a experiência subjetiva da estrutura psicótica. A partir desse aspecto, a sua crítica histórica acerca do tecnicismo psicológico ocupará um nível puramente estratégico. Criticamos o laço social produzido pelo saber da Psiquiatria Democrática Italiana, demonstrando que o discurso do mestre é hegemônico nos serviços de saúde mental de inspiração basagliana, pois os técnicos prescrevem as condutas que os usuários devem seguir para alcançar a almejada "inclusão social".

Quinet (2006) propõe levantar as possibilidades de construção dos laços sociais dos sujeitos psicóticos, tendo como alicerce a Teoria dos Quatro Discursos de Lacan e o campo do gozo. Dessa forma, faz-se necessária uma breve incursão acerca das relações entre discurso e laço social.

A experiência analítica é, para Lacan, uma experiência de discurso. Por intermédio dos discursos, Lacan aborda os laços sociais possíveis entre os sujeitos. O discurso é, para Lacan, um modo de relacionamento social representado por uma estrutura sem palavras.

Coutinho Jorge (2002, p.19) aponta que:

A originalidade dessa teoria [dos quatro discursos] e o contexto sociopolítico no qual surge não impedem que ela seja um verdadeiro corolário de fundamentais desenvolvimentos lacanianos anteriores, já que trata do liame social enquanto (sic) essencialmente fundado na linguagem: se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, como Lacan postulou desde 1953, o liame social não deixa de sê-lo.

Lacan aponta que todo laço social se sustenta nos quatro discursos. Consideramos esse legado lacaniano fundamental para todo aquele que deseja intervir na instituição como psicanalista. Tais discursos apresentam quatro posições que definem quatro discursos radicais. Segundo Fink (1998), cada discurso específico facilita ou dificulta determinadas questões, ou permite ou impede que elas sejam vistas.

Lacan (1969-70/1992) nos lembra que a manipulação do significante está nos dados da Psicanálise. O inconsciente permite situar o desejo. Esse desejo pode ser decifrado quando consideramos a repetição. Há busca de gozo na repetição; logo, esta se inscreve na dialética do gozo. A partir dessa constatação, Freud elabora o instinto de morte. Diz Lacan (Lacan, 1969-70/1992, p.46):

Quando o significante se introduz como aparelho de gozo, não temos que ficar surpresos ao ver aparecer uma coisa que tem relação com a entropia1, posto que se definiu precisamente a entropia quando começou-se a sobrepor esse aparelho de significantes à sonda física.

O significante pode trazer a marca da fantasia na qual o sujeito se identifica como objeto de gozo. Gozo do Outro. Essa é uma das vias de entrada do Outro no mundo do ser falante.

Quinet (2006) aborda, ainda, a partir dos conceitos fundamentais da Psicanálise Lacaniana, os três tipos clínicos da psicose descritos pela Psiquiatria Clássica e adotados por Freud: esquizofrenia, paranoia e melancolia.

Acerca da questão classificatória, a Psicanálise faz crítica incisiva à tendência atual da Psiquiatria de desconsiderar completamente as estruturas clínicas com uma pulverização da nosologia. Assim, os diagnósticos generalizam-se de tal forma que acabam por perder totalmente seu valor.

Quinet (2006) nos sugere algo que não podemos negligenciar ao pensarmos na postura ética de cuidados aos portadores de sofrimento mental: reconsiderar a proposta, feita por Freud, de interconexão entre a Psiquiatria e a Psicanálise. Tal proposta diverge da postura atual da Psiquiatria, que a reduz a um modelo médico expresso no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM) e na Classificação Internacional de Doenças (CID). Consideramos que a proposta atual da Psiquiatria está ancorada na circulação do discurso do mestre, que tem, no lugar da verdade, o sujeito despótico (o psiquiatra); no lugar de agente, o significante mestre (diagnóstico); na posição do outro, o saber que está adstrito, como produto, o mais-gozar (condição de portador do diagnóstico). Também existe a possibilidade de o modelo médico circular na modalidade do discurso universitário, no qual o saber S2 (diagnóstico) ocupa o lugar da ordem e do comando e reduz o outro à condição do objeto moldado à semelhança do saber que o produziu.

Restituir a função diagnóstica em Psicanálise no tratamento psiquiátrico é função ética que a Psicanálise propõe à Psiquiatria, assim como propõe ir contra a dissolução da clínica substituída pelo binômio norma versus transtorno para privilegiar o sintoma como manifestação do sujeito. Consideramos que esse fato seja uma forma de sair do discurso do capitalista2, que condiciona desde o diagnóstico até o tratamento, para restituir à medicação seu justo valor paliativo e não resolutivo do sofrimento mental. Frisamos que a Psicanálise não se opõe à Psiquiatria, mas sim a todo discurso que suprime a função do sujeito.

Porém, ao aceitarmos o desafio freudiano, estamos abrindo uma via para a construção do caso clínico a partir de um saber sobre a subjetividade de cada paciente. Assim, surge um diagnóstico como conclusão de um processo investigatório: não atacar o sintoma, mas abordá-lo como manifestação subjetiva significa acolhê-lo para que possa ser desdobrado. Daí surge um sujeito, seja na melancólica, no delírio paranoico ou no despedaçamento do esquizofrênico.

Consideramos que a construção do caso clínico é relevante, pois com a reforma psiquiátrica temos a passagem da consideração da loucura como doença para a loucura como saúde mental. A construção do caso clínico é fundamental para que tal passagem não traga a marca de uma nova cronicidade. Viganò (1999) propõe a construção do caso clínico como forma de evitar a cronificação no interior dos serviços abertos de saúde mental.

Ao falarmos de construção de caso clínico e processo investigatório, não podemos deixar de mencionar a fecundidade do discurso da histérica, essencial ao trabalho clínico. A histeria é um fator que emperra as pesquisas clínicas pois, se de um lado aceita ser descrita pelos mestres da ciência, acaba desafiando seu saber ao se recusar ser classificada. De que jeito? Inventando novas formas e não respondendo aos tratamentos. Ela, no entanto, faz, com seus desafios, avançar o método clínico, que, por vezes, tenta enquadrá-la e medicá-la para subjugar as manifestações do sujeito do desejo. Com suas paixões e seu desejo, o discurso da histérica interroga os significantes mestres para produzir saber, inclusive os significantes mestres da Psicanálise, em um permanente movimento de reinvenção. No caso da Psiquiatria, a aproximação com o discurso da histérica significa que o avanço da ciência deve ser motivado pelo sujeito patológico, sofredor, sujeito dividido, sujeito da esquize, que se manifesta na clínica.

Um aspecto que nos interessa nesta discussão é a necessidade de um giro discursivo que possibilite aos técnicos ocupar o lugar de objeto causa de desejo em transferência. Estamos falando do discurso do analista, imprescindível para o trabalho de construção do caso clínico. Para tanto, é necessário que o técnico mantenha um relativo distanciamento das prescrições institucionais por intermédio de uma postura crítica do saber institucional. Tal crítica permite enunciar ou, no mínimo, não obliterar os antagonismos institucionais. A Psicanálise Lacaniana nos ensina que quando se indaga de que saber faz a lei, o saber cai na categoria de sintoma e, com ele, vem a verdade. Esse questionamento tem importância política para o trabalho dos psicanalistas nas instituições.

Segundo Quinet (2006, p.36),

o discurso do mestre é o discurso da instituição, o discurso que institui, e seu avesso - o discurso do analista - é o que destitui o significante do lugar do mestre. Ao ser destituinte, seu governo é o da a-cracia, o que não significa desgoverno, nem falta de direção.

Abordamos duas modalidades de discurso que estão ausentes nos serviços orientados pela Psiquiatria Democrática Italiana e são indispensáveis ao trabalho clínico: a busca pelo saber, próprio do discurso histérico, bem como o funcionamento do discurso do analista, que possibilita o despertar da singularidade do sujeito.

A psicose tem como referência, no campo da linguagem, a foraclusão3 do Nome-do-Pai no lugar do Outro e a elisão do falo, a regressão tópica ao estágio do espelho e um desregramento de gozo (por falta do arrimo fálico), que pode ir do gozo da imagem ao gozo transexualista, como no caso de Schreber, ou, como acontece na paranoia, o gozo pode ser identificado no Outro.

Nesse sentido, ressaltamos que uma nova ética do cuidar a ser implementada nos serviços substitutivos deve apreciar o funcionamento da estrutura psicótica e, principalmente, as formas de discurso que considerem o sujeito e levem o profissional a questionar a condução do caso clínico. Assim, o cuidado nos serviços deve ser pautado pela atenção na construção do laço social do psicótico, na medida em que ele se encontra tanto no campo da linguagem quanto no campo do gozo.

Propomos uma psicopatologia que permita a significação psicanalítica de quadros psiquiátricos como elemento da atenção psicossocial. Tenório e Rocha consideram que tal premissa permite que os serviços substitutivos avancem para além das soluções no campo da realidade, como, por exemplo, a busca de adequação do paciente na convivência social. Para pensarmos a lógica própria da psicose, que, na maioria das vezes, não está em consonância com as soluções no campo da realidade, temos que considerar o sujeito fixado em sua psicose. Sobre esse aspecto, Tenório & Rocha fazem importante ponderação: "Não é que ele não tenha um pé na realidade, mas não é aí que ele encontra seu lugar de sujeito" (Tenório & Rocha, 2006, p.59-60). Tal ponderação deve ser considerada para evitarmos que a equipe atue em um registro, enquanto o paciente atua em outro, com sua forma singular de se vincular ao significante.

Outra questão que deve ser analisada é o funcionamento da equipe. Para abordamos essa questão, precisamos fazer uma breve digressão acerca da utilização da nosografia psiquiátrica nos cotidiano dos serviços. A ocupação de um plano secundário da Psicopatologia faz com que, nos serviços substitutivos, não tenhamos clareza acerca de qual nosografia operar. Alguns profissionais utilizam, de forma pouco elaborada, a nomenclatura de Kraepelin (PMD, esquizofrenia e paranoia) e oscilam entre a nosografia psicanalítica e a nosografia pulverizada da CID 10, utilizada pela Psiquiatria contemporânea.

Com relação à CID 10, cumpre assinalarmos que tal classificação alçou a esquizofrenia à categoria paradigmática da Psiquiatria. Tenório e Rocha (2006) apontam que ela se tornou o modelo para as psicoses e, junto com ela, ganharam relevância as noções de surto, crise e estabilização. Com essa centralização na esquizofrenia, ignorou-se a noção de estrutura e continuidade. Passamos a diagnosticar a psicose como a perda de nexos (afetivos, cognitivos, volitivos) e a tomar como parâmetro do tratamento a supressão dos sintomas "produtivos" (alucinações e delírios).

Retomamos o funcionamento da equipe: conforme assinalam Tenório e Rocha (2006, p.63), temos, assim, "uma cisão entre tratar e cuidar". O psiquiatra, por intermédio do uso de fármacos, trata, pois reduz o surto. Os demais profissionais cuidam da reabilitação psicossocial. Ou então temos a versão de que tratar é sinônimo de cuidar da reabilitação psicossocial. Nela, fica patente o desdém pela Psicopatologia e pela Psiquiatria.

Não se trata de ignorar a crise, mas de relativizar o lugar que tem ocupado. Além de se constituir em um tempo de quebra, se isolarmos os elementos em antecipação ao surto, perceberemos uma concatenação entre eles e não, unicamente, uma ruptura. Como clínicos, podemos perceber a crise como um momento de desamarração, o que nos possibilita investigar como era efetuada a amarração até então.

Ao nos afastarmos do aspecto deficitário da esquizofrenia, podemos resgatar a dimensão estrutural da psicose. Isso nos possibilita pensar numa clínica para a saúde mental e para a reforma psiquiátrica que possa superar tanto a redução da clínica ao biológico-farmacológico quanto à redução do sujeito ao bom funcionamento psicossocial.

Seguindo essa diretriz podemos, com Quinet, propor os seguintes requisitos fundamentais para um tratamento consistente e para uma inclusão efetiva do psicótico: incluir a noção de estrutura na elaboração do diagnóstico, incluir o conceito de foraclusão na semiologia e na própria estrutura da rede de serviços institucionais da reforma psiquiátrica, incluir o conceito psicanalítico de sujeito do inconsciente e a premissa da implicação do sujeito no tratamento.

A inclusão no campo social é também tributária do conceito de sujeito em Lacan, na medida em que não há sujeito sem Outro. O sujeito é dependente de como se dá sua relação com o Outro, assim como o desejo do sujeito é o desejo do Outro e a forma como o sujeito do discurso é vinculado ao outro do laço social. O conceito de sujeito é, portanto, concomitantemente, individual e coletivo.

Estamos caminhando no sentido de construir o trabalho com psicóticos por intermédio da construção de laço social. Novamente abordamos a questão ética no acolhimento e no tratamento de psicóticos ao reforçarmos a cumplicidade entre o técnico e o usuário, bem como a implicação e a responsabilização do paciente como forma de fazer emergir o sujeito.

Acreditamos que a conceitualização da foraclusão é fundamental para evitarmos um risco permanente de os serviços inspirados na reforma psiquiátrica buscarem a adaptação do paciente ao cotidiano social sem considerar as particularidades do sujeito psicótico. Em outras palavras, evitar o ímpeto de esses serviços quererem normalizar o sujeito psicótico considerando seus fenômenos como transtornos da norma e ignorando a noção do retorno do foracluído.

Nesse sentido, Quinet (2006) nos adverte sobre o risco do furor includenti. Os trabalhadores de saúde mental devem se precaver contra seu desejo exacerbado de incluir o louco nos jardins da polis, no intuito de retirá-lo do jardim das espécies da nosografia. Isso significa não exigir dele, de maneira incisiva, aquilo que é valor fálico em nossa sociedade e, sim, deixá-lo fazer sintoma sem Nome-do-Pai.

Quinet (2006) afirma que o fora-do-discurso da psicose aponta para uma impossibilidade estrutural e lógica de fazer o psicótico entrar completamente nos jogos dos discursos, ou seja, circular pelos laços sociais e participar, alternadamente, de um ou de outro discurso. Há também, na psicose, um avesso dos discursos como um todo, representado pelo avesso ao laço social estabelecido. O psicótico é o fora e o mestre dos discursos. Sua posição nos remete ao fato de que nós estamos amarrados aos discursos. Assim, ele é livre dos discursos estabelecidos e de seus avessos. A posição de Quinet é congruente com a nossa, pois consideramos que o psicótico possui uma rede de significantes composta por uma lógica circulatória peculiar; por não ser falocêntrico, o mundo do psicótico muitas vezes espera por intervenções externas que decidam sua configuração, daí o risco da oferta de discursos ideológicos por instituições que acolham esses sujeitos4.

Consideramos pertinente conjecturarmos acerca de como o psicótico responde diante do discurso do mestre. Calligaris (1989), num capítulo com o sugestivo título de A transferência psicótica, afirma que, quando o psicótico não encontra um mínimo de escuta que possibilite a constituição de uma metáfora delirante ou quando encontra recusa de seu trabalho de elaboração, seu trabalho psíquico torna-se empobrecido.

Ainda, segundo Calligaris, corremos o risco de buscar a conformidade do psicótico com os ideais fálicos elementares. Nas palavras do autor: "Isso acontece quando o terapeuta explicita a sua paixão normalizante até o ponto que a conformidade com ela apareça ao sujeito como o preço necessário para negociar uma filiação ao terapeuta do qual espera uma significação". (Calligaris, 1989, p.70).

Temos aqui o despotismo do mestre com seu saber explícito acerca da conformidade. Frente a essa tirania, o psicótico fica "coisificado" pelo significante mestre (S1).

Qualquer S1 previamente ofertado pelo técnico como saber sobre o sujeito produz o efeito de "fechamento" da cadeia significante, com a fixação de certos significantes em detrimento de outros. O discurso do mestre oblitera a transferência do saber inconsciente. Inferimos ainda a possibilidade de o psicótico se colocar na posição de gozo de um Outro, representado pelo S1 emitido pelo mestre.

Quinet (1997) explica a certeza e o sacrifício do psicótico pelo S1 lembrando a foraclusão do Nome-do-Pai e o retorno de um gozo da Coisa no real na estrutura psicótica. O psicótico, ao contrário do neurótico, não se encontra dividido. Ele tem certeza do significante oferecido pelo mestre.

Importante salientar que a noção de foraclusão não corresponde à abolição do simbólico, não equivale a déficit, mas implica sempre o retorno do real daquilo que foi foracluído no simbólico. Dessa forma, o retorno do foracluído constitui um Outro original do psicótico, desde que seja o retorno daquilo que é a outra cena, o inconsciente, caso haja a possibilidade de uma escuta analítica no acolhimento do psicótico.

Pensamos o trabalho com o psicótico na direção daquilo que não se efetuou para ele e que ele mesmo se esforça para realizar. Por isso não enfatizamos a eliminação dos sintomas, o que não significa que recusamos o acesso à medicação para apaziguar o gozo destrutivo, mortífero. O tratamento será pautado no estímulo à "historicização" dos fenômenos ao considerarmos que são repletos de sentido, conforme preconiza uma clínica que considere o sujeito. Outro passo que, assim como o anterior, consideramos fundamental na construção de um novo discurso, e consequentemente em uma nova postura de lidar com o sofrimento dos usuários dos serviços de saúde mental, é considerar todos os fenômenos do paciente como tentativas de estabelecimento de algum vínculo com o outro e, portanto, como tentativas de fazer laço social.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: fuadneto@uol.com.br

Recebido em novembro de 2008
Aceito em julho de 2009

 

 

Fuad Kyrillos Neto - Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (PUC/SP). Docente da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).
1 Entropia, segundo uma das definições do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, significa "quantidade de energia ou calor que se perde num sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse sistema donde há tendência ao estado de inércia, degradação".
2 O discurso do capitalista foi apresentado por Lacan, em uma conferência proferida em Milão, em maio de 1972. Esse discurso é considerado como o discurso do mestre moderno e é escrito por meio de uma única inversão no binômio do sujeito do mestre entre as letras S1 e S(barrado). Trata-se de um discurso que, ao contrário dos outros quatro, não faz liame social. Coutinho Jorge (2002) nos lembra que no discurso do capitalista o sujeito se crê agente e não percebe que age somente a partir de significantes mestres. As observações de Roudinesco (2000) e de Beneti (1998) acerca do CID e do DSM nos fazem buscar uma analogia do consumo de medicação psicotrópica com o discurso do capitalista. Esses autores afirmam que na Psiquiatria os objetos produzidos pelo saber da neurociência são os medicamentos que facilmente se tornam objetos de consumo. Tais objetos causam um fascínio que fustiga os homens a tratar seu sofrimento exclusivamente com medicamentos.
3 Forclusion é um termo francês extraído do vocabulário jurídico. Um processo está forclos quando não se pode apelar por ter perdido o prazo legal. Um processo forclos encontra-se acabado e inexistente. Equivale, em termos jurídicos, em português, à prescrição que é a exclusão de um direito ou faculdade que não foi utilizada em tempo hábil. Isso ajuda a compreender a escolha do termo Verwerfung por Lacan para explicar o mecanismo da psicose: a função paterna passou do prazo legal de ser reclamada, exigida e cumprida.
4 Essa discussão está desenvolvida em: Kyrillos Neto, F. (2005). Serviços substitutivos de saúde mental: a incidência do discurso ideológico na estrutura psicótica. Psicologia Clínica, 17(1), 35-49

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