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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.30 Canoas Dec. 2009

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Comorbidade psiquiátrica em dependentes de cocaína/crack e alcoolistas: um estudo exploratório

 

Psychiatric comorbidity on cocaine/crack-dependent and alcoholics: an exploratory study

 

 

Cristiane Ribeiro da Silva; Nádia de Moura Kolling; Janaína Castro Núñez CarvalhoI; Silvia Mendes da CunhaII; Christian Haag KristensenIII

I Instituto Universitario Escuela de Medicina del Hospital Italiano de Buenos Aires
II Universidade Federal do Rio Grande do Sul
III Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A ocorrência de comorbidade psiquiátrica concomitante à dependência  química é frequente, indicando um prognóstico desfavorável para o tratamento desse transtorno. O objetivo do presente estudo foi investigar a ocorrência de comorbidade psiquiátrica em 31 pacientes dependentes de álcool (51,6%) e de cocaína/crack (48,4%). Os diagnósticos psiquiátricos foram realizados a partir do instrumento Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I.). A amostra incluiu predominantemente participantes do sexo masculino (84%), com idades variando entre 20 a 56 anos (M = 37,3; DP = 10,7). A análise dos resultados indicou que 83,9% da amostra apresentaram outro transtorno além da dependência química. As comorbidades mais frequentes foram Episódio Depressivo Maior (25,8%), Transtorno de Humor Induzido por Substância (22,6%) e Fobia Específica (19,4%). Os resultados identificados sugerem que as estratégias de intervenção em pacientes com abuso/dependência de substâncias devam considerar a avaliação de comorbidades nesta população.

Palavras-chave: Comorbidade, Cocaína, Crack, Álcool.


ABSTRACT

There is a frequent occurrence of psychiatric comorbidity to  substance  abuse/dependence, leading to an unfavorable prognosis in the treatment of this disorder. The goal of this study was to investigate the occurrence of psychiatric comorbidity among 31 crack/cocaine (48.4%) and alcohol dependence (51.6%). The psychiatric diagnoses were made through the Mini Internactional Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I.). The present sample was composed mainly by males (84%), with ages ranging from 20 to 56 years (M=37.3; SD=10.7). The results showed that 83.9% of the subjects had another mental disorder along with substance abuse/dependence. The most frequent comorbidities were Major Depressive Episode (25.8%), Substance Induced Mood Disorder (22.6%), and Specific Phobia (19.4%). The outcomes of this study suggest that intervention strategies to substance abuse/dependence patients should take into consideration the need to evaluate mental disorder comorbidity within this population.

Keywords: Comorbidity, Cocaine, Crack, Alcohol.


 

 

Introdução

A dependência química é a consequência de uma relação patológica entre um indivíduo e uma substância psicoativa (SPA). O início do consumo de substância pode se dar por diversos motivos, que provavelmente persistirão após a instalação da dependência. Entretanto, este quadro diagnóstico, por seus sintomas físicos e psicológicos de privação, também reforça o comportamento de consumo, o qual se transforma no principal mantenedor do uso nocivo (Edwards, Marshall & Cook, 1999).

Dentre essas substâncias, cabe ressaltar a dependência proveniente do álcool e da cocaína, ambas com crescimento significativo na população brasileira (Galduróz, Noto, Nappo & Carlini, 2001). O consumo dessas substâncias ocasiona problemas à saúde pública, está associado a significativos problemas econômicos e sociais, trazendo uma série de complicações médicas e psiquiátricas e aumentando os índices de morbidade e mortalidade (Cunha & Novaes, 2004; Galduróz & cols., 2001). Conforme o I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas, realizado em 2001, 11,2% dos participantes investigados apresentava dependência de álcool e 2,3% da população brasileira já fez uso de cocaína (Galduróz & cols., 2001).

No abuso e dependência de SPA, a ocorrência de comorbidade psiquiátrica é frequente, indicando um prognóstico desfavorável ao tratamento da dependência química (Silveira & Jorge, 1999). A ocorrência de um transtorno adicional pode alterar a sintomatologia, comprometendo o diagnóstico, tratamento e prognóstico de ambos (Alves, Kessler & Ratto, 2004). Na última década, a co-ocorrência de transtornos devido ao uso de substância e transtornos mentais tem sido amplamente reconhecida na clínica psiquiátrica. O abuso de SPAs é o transtorno mais frequente entre portadores de transtornos mentais, sendo de fundamental importância o correto diagnóstico das patologias envolvidas (Lima, 2000; Ratto & Cordeiro, 2004; Zaleski & cols., 2006).

Ainda que tenha havido um crescimento na pesquisa sobre comorbidade psiquiátrica em dependentes químicos, até o momento, no Brasil são poucos os estudos que investigaram esta questão, embora há indícios de que a associação entre transtornos mentais e abuso/dependência de álcool e/ou drogas seja um problema relevante. (Lima, 2000; Marques & Ribeiro, 2003; Ratto & Cordeiro, 2004; Zaleski & cols., 2006). Segundo Ratto & Cordeiro (2004), há dificuldades na abordagem terapêutica destes pacientes, que geralmente acabam não encontrando locais com treinamento adequado para o tratamento. Os dependentes químicos com frequência deixam de ser submetidos a avaliações diagnósticas que investiguem a presença de comorbidades. Deste modo, a não identificação de transtornos psiquiátricos associados a farmacodependência resulta em intervenções terapêuticas inadequadas e ineficazes (Silveira & Jorge, 1999). Por se tratar de uma população que possui diferente apresentação de sintomas e evolução, muitas abordagens de tratamento propostas para pacientes sem comorbidades se mostram impróprias para os que possuem este diagnóstico (Ratto & Cordeiro, 2004).

Alcoolismo

O uso de álcool é milenar e comum em diversas culturas ao longo da história, servindo de alimento, remédio ou ainda, empregado em ritos sociais, culturais e religiosos. Entretanto, foi somente após a Revolução Industrial, com o fenômeno da crescente produção e industrialização do álcool destilado, que o beber excessivo tornou-se um grave problema social e de saúde, passando a ser foco de atenção clínica (Edwards & cols., 1999).

Os dados epidemiológicos disponíveis sobre o consumo de drogas no Brasil caracterizam o uso abusivo de álcool como um grave problema de saúde pública (Déa, Santos, Itakura & Olic, 2004), sendo considerado atualmente pela Organização Mundial de Saúde uma doença com consequências físicas, psicológicas e sociais (Galduróz & cols., 2001). Entre as complicações de saúde comumente apresentadas, destacam-se: hepatite, pancreatite, miocardite, cirrose, hipertensão, desnutrição, distúrbios neurológicos, alterações da memória e lesões no sistema nervoso central (Bordin, Figlie & Laranjeira; Déa & cols., 2004; Ramos & Woitowitz, 2004). Sabe-se que características como gênero, idade, grau de instrução e estado civil pode influenciar no uso nocivo e desenvolvimento da dependência do álcool. Em uma pesquisa em dez capitais brasileiras, constatou-se que 50% iniciaram o uso de álcool entre 10 e 12 anos (Marques & Ribeiro, 2003).

Em um estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) e pela Secretaria Nacional Antidrogas (SENAD), envolvendo uma amostra de 8.589 sujeitos, com idade entre 12 e 65 anos, identificou 68,7% dos sujeitos como usuários de bebidas alcoólicas, sendo que 11,2% dos indivíduos preenchiam os critérios diagnósticos para dependência de álcool. A faixa etária em que aparece maior porcentagem de dependentes é entre 18 e 24 anos, e a porcentagem de acordo com o sexo é de três homens para cada mulher. A quantidade de consumo de álcool aumenta na faixa dos 35 anos, chegando a uma diferença de três vezes o consumo inicial da dependência (Alves & cols., 2004).

De acordo com Lynskey (1998), muitos indivíduos que procuram tratamento para um transtorno apresentam critérios para outro transtorno psiquiátrico, e parece provável que a comorbidade é um forte determinante na procura de tratamento. Embora pesquisas mais direcionadas ao impacto da co-ocorrência de transtornos ainda precisam ser realizadas, acredita-se que os indivíduos dependentes de álcool que se encontram com critérios diagnósticos para um ou mais transtornos psiquiátricos diferem daqueles sem comorbidade em maneiras clínicas relevantes (Schneider & cols., 2001).

Abuso e dependência de cocaína=crack

A cocaína pode ser consumida por diversas vias: orais, intravenosas e respiratórias, sendo essa última a mais devastadora para o organismo. Por ser um psicoestimulante (com características de reforçador positivo) apresenta um grande potencial de abuso, levando à dependência (Leite & Andrade, 1999).

Nos últimos anos o consumo de cocaína tem aumentado drasticamente, principalmente devido à chegada do crack (cocaína fumada) em São Paulo durante a década de 1990 (Leite & Andrade, 1999). Durante esta década, um estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID) verificou que um aumento progressivo do consumo de cocaína em alguns segmentos da população brasileira começava a ser preocupante, ainda que não fosse a droga que mais causasse danos. Neste mesmo estudo, foi identificado um crescimento no número de internações entre os usuários de cocaína=crack em detrimento de outras drogas no período de 1988 a 1992 (Carlini, Galduróz & Nappo, 1993).

O uso crônico de cocaína acarreta inúmeras complicações para o organismo do usuário. Entre as complicações médicas destacam-se problemas cardíacos (angina, arritmias), pulmonares, deficiências vitamínicas, entre outras. Adicionalmente, podem ocorrer distúrbios neurológicos: acidentes vasculares cerebrais e medulares, isquemias, cefaleias, convulsões e desordens motoras como tiques (Leite & Andrade, 1999). Avaliações neuropsicológicas apontam um déficit significativo nas funções cognitivas de memória, atenção e concentração, aprendizagem, formação de conceitos e habilidades viso-espaciais (Andrade, Santos & Bueno, 2004; Stocker, 2006). Os efeitos prejudiciais persistem por um longo tempo após a descontinuação do uso da substância, o que sugere que os déficits possam ter uma duração de longo prazo ou mesmo serem permanentes (Stocker, 2006). Têm-se ainda complicações psiquiátricas decorrentes do uso da droga, que são os transtornos induzidos por substâncias, como, por exemplo, o transtorno psicótico e os transtornos associados ao consumo (comorbidades psiquiátricas) (Leite & Andrade, 1999).

Recentemente, o I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil - 2001 (Galduróz & cols., 2001) apontou a Região Sul como apresentando a maior prevalência de uso na vida de cocaína aspirada e de crack dentre todas as regiões do país. Entretanto, pouco é o conhecimento a respeito dos usuários de cocaína fumada, apesar destes dados, o que traz limitações ao conhecimento científico desta realidade (Carlini & cols., 1993; Galduróz & cols., 2001).

Comorbidades psiquiátricas em dependência química

A presença de uma patologia qualquer em um indivíduo em concomitância com outra doença, com a possibilidade de potencialização recíproca entre estas, é definida como comorbidade (Alves & Cols., 2004; Ratto & Cordeiro, 2004). No estudo da dependência química, a manifestação de transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de drogas e de outros transtornos psiquiátricos vem sendo estudada desde a década de 1980 (Zaleski & cols., 2006).

Uma revisão com estudos comunitários sobre comorbidade psiquiátrica feita com jovens usuários de álcool e drogas revelaram que 60% dos indivíduos apresentavam uma comorbidade, sendo o transtorno de conduta e o transtorno desafiador opositor os mais comuns, seguidos pelo transtorno depressivo (Armstrong & Costello, 2002). Os transtornos ansiosos também são comumente associados aos transtornos por consumo de substância (Ratto & Cordeiro, 2004). Alguns estudos indicam que um terço dos alcoolistas apresenta um quadro significativo de ansiedade, com evidências de que 50 a 67% dos alcoolistas e 80% dos dependentes de outras drogas possuem sintomas semelhantes ao transtorno do pânico, dos transtornos fóbicos ou do transtorno de ansiedade generalizada (Edwards & cols., 1999). Pacientes com comorbidade psiquiátrica, principalmente aqueles com transtornos psiquiátricos graves, apresentam maiores taxas de suicídio, agressividade, detenção por atos ilegais, recaídas, internações, mais gastos com tratamento, falta de moradia, maior período de hospitalização e utilizam mais os serviços de saúde (Alves & cols., 2004).

Em estudo epidemiológico realizado nos EUA foi estimada a prevalência de 13,5% de dependência de álcool e 6,1% de dependência de outras drogas. Entre os dependentes de álcool, 37% apresentavam um diagnóstico psiquiátrico e 53% dos de pendentes de outras drogas (excluindo o álcool) apresentaram diagnóstico para outro transtorno mental (Regier & cols., 1990). Silveira e Jorge (1999) referem que a maioria dos estudos de comorbidade psiquiátrica em dependência química considera os transtornos depressivos como aqueles de maior prevalência. Outros estudos epidemiológicos citam que a co-ocorrência de duas patologias sugere que uma delas estabelece uma relação causal com a outra ou então que existiriam fatores de vulnerabilidade comuns a ambas. Independente dos transtornos associados serem anteriores ou posteriores à instalação da dependência química, os diagnósticos precoces desses quadros psicopatológicos contribui na queda dos índices de recaídas e para uma maior eficácia no tratamento terapêutico (Bischof, Rumpf, Meyer, Hapke & John, 2005).

Segundo Zaleski e cols. (2006), uma das maiores dificuldades na abordagem do paciente com comorbidade está no diagnóstico diferencial, pois ocorre uma superposição de sintomas. Um transtorno pode mascarar ou exacerbar o outro. No início do tratamento pode haver dificuldade de estabelecer diferenças entre a presença de comorbidade psiquiátrica e dependência química devido aos sintomas de intoxicação e abstinência da substância, que pode produzir sintomas de depressão, ansiedade, agitação e hipomania/mania (Alves & cols., 2004). A partir dos conteúdos acima descritos, o presente estudo tem como objetivo investigar a possível ocorrência de transtornos psiquiátricos associados ao uso prolongado e contínuo de cocaína/crack e álcool.

 

Método

Participantes

Participaram da pesquisa 31 sujeitos diagnosticados como dependentes de álcool ou cocaína/crack (através dos critérios diagnósticos da CID-10 e DSM-IV) em regime de internação no Centro de Dependência Química (CDQUIM), que é uma unidade do Hospital Parque Belém, localizado em Porto Alegre, RS. O serviço onde foi realizada a pesquisa é um centro especializado no tratamento da dependência de substâncias psicoativas e funciona como uma unidade hospitalar. O hospital situa-se na zona sul da cidade e é referência para a população dessa região, e também presta atendimento à região metropolitana de Porto Alegre e interior do estado.

Os critérios para exclusão da amostra foram: (a) idade inferior a 18 anos; (b) estar há menos de duas semanas em abstinência de cocaína/crack e álcool; (c) pacientes que fizeram apenas experimentação e ex-usuários; (d) apresentar dependência ou abusar de alguma outra substância (com exceção do tabaco); (e) ter menos de seis meses de uso contínuo da substância.

A amostra foi constituída predominantemente por sujeitos do sexo masculino (84%), com idade entre 20 a 56 anos (m=37,3; DP=10,7). Quanto ao nível de escolaridade, 19,4% (n=6) dos participantes possuem ensino fundamental incompleto, 16,1% concluíram o ensino fundamental, 16,1% ensino médio incompleto, 29% concluíram o ensino médio, 12,9% ensino superior incompleto, e 6,5% possuem ensino superior completo.

A amostra foi dividida em dois grupos. O primeiro, de alcoolistas, será denominado "álcool" e o segundo, de dependentes de cocaína e/ou crack, receberá denominação de "cocaína/crack". A Tabela 1 apresenta a caracterização da amostra quanto aos diagnósticos primários atuais, ou seja, dependência de substâncias. Seis participantes do grupo cocaína/crack apresentaram diagnóstico para abuso de álcool no passado.

 

 

Foi observada grande variabilidade entre os participantes quanto ao tempo de abstinência, desde 14 dias até 180 dias. Em termos medianos, os participantes apresentaram 25 dias de abstinência.

Instrumentos e procedimentos de coleta de dados

Os procedimentos éticos condizentes na pesquisa com seres humanos foram respeitados, assegurando sigilo e confidencialidade dos dados obtidos com os sujeitos, cumprindo a Resolução 016/2000 do Conselho Federal de Psicologia e a Resolução 196 do Conselho Nacional de Saúde. Os dados foram coletados individualmente, em ambiente apropriado.

Os sujeitos foram convidados a participar da pesquisa, durante o período da internação, nos grupos e nos atendimentos individuais pelo técnico da equipe com o qual este sujeito realiza seu tratamento na instituição. Todos os sujeitos que participaram da pesquisa foram voluntários e assinaram um termo de consentimento informado e esclarecido, indicando a autorização e o entendimento de todos os aspectos de investigação da pesquisa. O projeto de pesquisa foi aprovado pela equipe técnica do CDQUIM do Hospital Parque Belém. A sessão de coleta de dados durou em torno de 60 minutos e os seguintes instrumentos foram utilizados:

Protocolo de Entrevista Individual: Formulário padronizado, elaborado pela autora, no qual foram explorados dados de identificação, dados sociodemográficos e questões específicas sobre o uso de substâncias.

Mini International Neuropsychiatric Interview (M.I.N.I. Plus): Entrevista clínica estruturada que engloba os principais transtornos de Eixo I, conforme a classificação do DSM-IV e da CID-10, visando diagnóstico (Amorim, 2000; Sheehan & cols., 1998).

Critérios da análise de dados

As respostas dadas aos instrumentos aplicados foram levantadas e tabuladas em planilha eletrônica. A estatística descritiva foi empregada para caracterizar a amostra, envolvendo medidas de tendência central, dispersão e propriedades da distribuição para as variáveis sociodemográficas e de uso de substâncias. Os dados referentes à psicopatologia foram apresentados em forma de frequência. A análise inferencial estabeleceu como foco o exame de diferenças entre as variáveis de interesse e das correlações entre psicopatologia e tipo de substância utilizada (álcool ou cocaína/crack). Todas as análises foram conduzidas no programa SPSS for Windows (versão 13.0).

 

Resultados e discussão

Inicialmente foi examinada a diferença em relação ao sexo na variável tempo de abstinência, substância utilizada e presença de transtornos psiquiátricos. Através do testes de Mann-Whitney, foi observada uma diferença significativa quanto ao tempo de abstinência por sexo [U(31) = 19,0; p < 0,05] indicando que os participantes do sexo masculino apresentavam maior tempo de abstinência. Adicionalmente, foi verificado que os participantes dependentes de cocaína/crack são mais jovens do que os alcoolistas, t(29) = 6,22; p < 0,001. É interessante notar que, 67,7% dos participantes (n = 21) referiram ter parente próximo que apresenta uso abusivo ou dependência de substâncias psicoativas (álcool e/ou drogas). Verificou-se que 38,7% tinham pai dependente químico, 25,8% tios, 22,6% primos, 19,4% avós, 12,9% irmãos, 6,5% apresentaram mãe com abuso/dependência de substância e 1 participante (3,2%) citou ter filho dependente químico.

Em relação à prevalência de diagnósticos psiquiátricos, verificou-se que 83,9% dos participantes deste estudo apresentaram ao menos um outro transtorno mental além da dependência de cocaína e/ou crack e alcoolismo. Destes, 19 participantes (61,3%) foram diagnosticados com 2 ou mais transtornos mentais, sugerindo a presença de comorbidades múltiplas em expressiva parcela da amostra estudada.

No grupo de sujeitos alcoolistas, apenas 3 sujeitos (18,8%) não apresentaram comorbidades psiquiátricas, enquanto no grupo de dependentes de cocaína/crack, em somente 2 sujeitos (13,3%) não foi diagnosticado nenhum outro transtorno psiquiátrico além da dependência de substância. Não foi observada uma correlação significativa entre tempo de abstinência e número de comorbidades.

Os transtornos pesquisados foram separados em três categorias: transtornos de humor, transtornos de ansiedade e outros transtornos mentais (tabela 2). Em relação à primeira categoria, 24 participantes (77,4%) preencheram os critérios diagnósticos para ao menos um transtorno de humor. Destes, a maior parte da amostra apresentou Episódio Depressivo Maior (25,8%), seguido de Transtorno de Humor Induzido por substância (22,6%) e Episódio Maníaco (12,9%). Treze participantes (41,9% da amostra) apresentaram ao menos um transtorno de ansiedade. Os transtornos de ansiedade mais frequentes foram: Fobia Específica (19,4%), Transtorno Ansioso com Ataques de Pânico Induzido por Substância (12,9%) e Transtorno de Estresse Pós-Traumático (9,7%).

 

 

No que se refere a outros transtornos mentais, os pacientes do grupo cocaína/crack preencheram critérios diagnósticos para as seguintes comorbidades: Transtorno Psicótico Induzido por Substância (26,7%), Esquizofrenia (6,7%), Transtorno Disfórico Pré-Menstrual (6,7%), Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade (6,7%) e Transtorno de Personalidade Anti-Social (13,3%). No grupo álcool, para esta categoria, verificou-se comorbidade com Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade em 2 participantes (12,5%). Na Tabela 2 (Anexo B) é possível observar a distribuição das categorias diagnósticas identificadas para os transtornos de ansiedade e humor com a utilização do M.I.N.I. Plus entre os pacientes dependentes de cocaína/crack e alcoolistas.

Os dados apresentados fornecem um indicativo da importância de realizar o diagnóstico adequado, que deve ser preciso, para o sucesso do tratamento e com consequente adesão ao mesmo, bem como, auxiliar na abordagem terapêutica, nas estratégias de prevenção à recaída e para indicar a forma de intervenção mais eficaz para cada paciente. Quando foram analisadas as médias de transtornos de ansiedade, transtornos de humor e qualquer transtorno mental entre o grupo de alcoolistas e dependentes de cocaína/crack nenhuma diferença significativa foi observada.

Foi observada uma correlação moderada negativa e significativa entre escolaridade e número de comorbidades psiquiátricas (considerando qualquer transtorno mental), rs(31)= -.31; p < 0,05. Ou seja, parece haver um efeito protetor dos anos de escolaridade (ou um fator de risco, no caso da baixa escolaridade) em relação ao número de comorbidades apresentadas.

Quanto à presença de parentes próximos usuários de substância psicoativas este estudo sugere que há um aumento na possibilidade de os filhos apresentarem uso abusivo de substâncias, dependência química ou outros transtornos psiquiátricos. Foram verificados números relevantes, 21 participantes (67,7%) da amostra apresentam parentes próximos dependentes químicos, indicando a necessidade de se dar importância às questões hereditárias e aos comportamentos aprendidos, pois entre os participantes, 12 (38,7%) referiram ter pai dependente químico. Segundo Payá e Figlie (2003), estudos com filhos de dependentes químicos constataram que estes apresentam risco aumentado de consumo de substâncias psicoativas, bem como para o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos como depressão, ansiedade, transtornos de conduta e fobia social.

Da mesma forma, é possível sugerir a importância de enfatizar a questão social de como é feito o tratamento das mulheres dependentes de substâncias psicoativas, uma vez que pode ser observado que elas internam menos. No presente estudo, a grande maioria da amostra foi do sexo masculino (84%).

Cabe ressaltar que a média de idade da amostra de alcoolistas foi de 45 anos e a de dependentes de cocaína/crack foi de 29 anos, o que pode indicar que devido às especificidades do uso de cocaína/crack, como efeitos mais intensos e mais rápido desenvolvimento da dependência, houve um aumento da procura por tratamento, iniciando na população jovem. Além disso, os dois grupos estão na faixa etária de adulto jovem e adulto médio que pode ter melhoria na qualidade de vida e relacionamentos, se tiver o tratamento adequado a partir de um diagnóstico preciso, daí a importância da precisão na indicação terapêutica.

Os resultados identificados sugerem que as estratégias de intervenção no abuso de substâncias devem considerar outros focos de atenção além da dependência química. Embora o estudo tenha indicado uma alta prevalência de transtornos psiquiátricos em pacientes dependentes de substâncias psicoativas, dado corroborado pela literatura, as limitações do tamanho amostral impedem generalização dos resultados à população de dependentes químicos.

 

Considerações finais

A dependência química caracteriza-se como um problema social relevante por gerar violência, crises familiares, acidentes e patologias orgânicas. Sabe-se, através de estudos atuais (Armstrong & Costello, 2002; Lynskey, 1998), que os transtornos de humor e ansiedade têm sido cada vez mais frequentes. Desta forma, estudos diagnósticos de comorbidades e de tratamento são importantes para melhor compreender este problema e buscar assim intervenções mais eficazes e métodos preventivos.

Pode-se concluir, através deste estudo, sem deixar de considerar suas limitações, que a presença de comorbidade psiquiátrica associada à dependência de substâncias psicoativas é frequente, bem como alguns dos sintomas que aparecem associados de forma especial a estas patologias, como sintomas de ansiedade e depressão. Os sujeitos também referiram que o uso da substância atenua os sintomas das psicopatologias.

A literatura revisada sugere que a presença de transtornos psiquiátricos é um dos fatores que compromete a eficácia do tratamento com pacientes dependentes químicos. O diagnóstico adequado desses transtornos associados possibilitaria  intervenções terapêuticas apropriadas na interrupção do comportamento de consumo de substância, diminuindo a ocorrência de recaídas e proporcionando melhora no  funcionamento social e familiar. Os baixos índices de eficácia observados no tratamento de usuários de substâncias psicoativas poderiam ser atribuídos a pouca atenção dispensada ao diagnóstico de comorbidades psiquiátricas nesses pacientes.

Esta pesquisa necessitou de critérios de exclusão claros para avaliar sintomas encobridores, como ter no mínimo 14 dias de abstinência e não utilizar outra droga (com exceção do tabaco e medicamentos prescritos), e com pacientes em regime de internação para um controle mais rígido destas variáveis, tendo como objetivo excluir sintomas da síndrome de abstinência. Este critério, embora necessário, reduziu consideravelmente o número da amostra, impossibilitando a generalização dos resultados para além dos participantes envolvidos diretamente no estudo. De qualquer forma, ao apontar a elevada presença de comorbidades entre dependentes de SPAs, espera-se ter contribuído para alertar profissionais e familiares envolvidos no tratamento sobre a necessidade de considerar uma avaliação mais global da saúde mental desses pacientes.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: christian.kristensen@pucrs.br

Recebido em maio de 2008
Aceito em abril de 2009

 

 

Cristiane Ribeiro da Silva - Psicóloga (UNISINOS).
Nádia de Moura Kolling - Psicóloga (UNISINOS).
Janaína  Castro Núñez Carvalho - Psicóloga; mestranda em Psicologia -  Ênfase em Cognição Humana (PUCRS) e mestranda em Neuropsicologia (Instituto Universitario Escuela de Medicina del Hospital Italiano de Buenos Aires).
Silvia Mendes da Cunha - Psicóloga, aluna do curso de especialização em Psicologia Clínica: Terapia Cognitiva e Comportamental (UFRGS).
Christian Haag Kristensen - Psicólogo; especialista em Neuropsicologia (CRP/07), doutor em Psicologia (UFRGS); Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia (PUCRS).

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