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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.30 Canoas dez. 2009

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

O trabalho pastoral numa análise da Psicodinâmica do Trabalho

 

The pastoral work an analysis of the Psychodynamics of Work

 

 

Clarice EbertI; Lis Andrea Pereira Soboll

I Universidade Federal do Paraná (Curitiba)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A pesquisa foi realizada junto à categoria profissional pastor evangélico, objetivando identificar a organização de seu trabalho e suas vivências. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semi-estruturadas, realizadas com cinco pastores de diferentes denominações evangélicas de Curitiba/PR, tratados de acordo com o método qualitativo de análise de conteúdo de Bardin e analisados a partir dos pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho. Como resultados, destacam-se categorias sínteses que contemplam aspectos da organização do trabalho dos pastores, as exigências, as vivências de prazer e sofrimento e as estratégias de mediação do sofrimento no trabalho. A pesquisa contribuiu para a compreensão do trabalho pastoral e serve de subsídio para a intervenção da psicologia, particularmente no contexto religioso.

Palavras-chave: Psicodinâmica do trabalho, Trabalho religioso, Trabalho pastoral.


ABSTRACT

The search was realized close to the professional category evangelical pastor, aiming to identify how their work is organized and his experience. The data were collected through semi-structured interviews conducted with five pastors from different denominations of Curitiba/PR, treated according to the qualitative method of content analysis of Bardin and analyzed from the assumptions of the psychodynamics of work. As a result, there are summaries categories that include aspects of work organization of pastors, requirements, the experience of pleasure and pain and suffering of the mediation strategies at work. The research contributed to the understanding of pastoral work and serves as a subsidy for the intervention of psychology, particularly in the religious context.

Keywords: Psychodynamics of work, Religious work, Pastoral work.


 

 

Introdução

O pastor evangélico é um trabalhador que atua em organizações religiosas da vertente evangélica, as quais abarcam uma porcentagem significativa da população brasileira. A religião evangélica se encontra entre as mais expressivas dentre uma grande diversidade religiosa existente no Brasil, visto ter sido classificada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2007) como sendo a segunda de maior destaque no país. Este dado foi apresentado pelo IBGE após analisar os resultados dos censos demográficos de 1940 a 2000. De acordo com esta análise, a população brasileira evangélica apresenta um significativo crescimento, sendo que em 1940 sua porcentagem era de apenas 2,6%, mas que apresentou um salto para 15,4% até o ano de 2000.

Partindo dessa breve contextualização do crescimento da religião evangélica no Brasil, considerou-se relevante o estudo sobre o trabalho desenvolvido neste contexto. Silva (2004), que também pesquisou sobre o trabalho pastoral, afirma que cada vez mais se acentua a importância do papel desses trabalhadores, sendo que nessa constante transformação eclesiástica, seriam os canais propagadores das agências religiosas. O autor enfatiza que o pluralismo do mercado religioso se assemelha ao mercado secular nas exigências sempre crescentes, podendo acarretar alterações sociais e na saúde física e psíquica.

A Psicologia do Trabalho oferece parâmetros de análise desta realidade, pois abrange em sua teoria e prática a prevenção e promoção da saúde do trabalhador no ambiente em que está inserido (Spink, 1996), não importando qual seja. Segundo Spink (1996), o ambiente de trabalho pode ser empresarial, público ou do terceiro setor, este último englobando entidades e associações filantrópicas, não governamentais ou de representação, portanto, cabendo aqui um olhar para as entidades religiosas, as quais também contemplam o ambiente de trabalho do pastor evangélico.

Partindo dessas considerações incipientes, objetivou-se para este estudo identificar como está organizado o trabalho da categoria profissional pastor evangélico em seu cotidiano, as exigências, as vivências de prazer e sofrimento, bem como as estratégias de enfrentamento do sofrimento no exercício do trabalho pastoral.

A análise do trabalho pastoral aqui apresentada está fundamentada na teoria Psicodinâmica do Trabalho, desenvolvida por Christophe Dejours, que segundo Heloani e Lancman (2004, p.82) "(...) busca compreender aspectos psíquicos e subjetivos que são mobilizados a partir das relações e da organização do trabalho. Busca estudar os aspectos menos visíveis que são vivenciados pelos trabalhadores ao longo do processo produtivo".

A proposta do presente trabalho não contemplou o estudo do trabalho de pastores em nenhuma denominação evangélica específica, por se tratar de uma aproximação exploratória inicial. Buscou-se identificar os aspectos da organização do trabalho e as vivências no exercício do trabalho pastoral, tendo como foco a categoria profissional e não uma organização em particular. Da mesma forma também não foram analisados os conteúdos religiosos envolvendo as crenças individuais e/ou o contexto de trabalho dos entrevistados. Tendo em vista o objetivo deste artigo, será apresentado brevemente o contexto histórico-social no qual se efetiva o trabalho do pastor evangélico e alguns pressupostos da teoria Psicodinâmica do Trabalho.

Da instituição da religião ao trabalho do pastor evangélico

A religião pode ser definida, numa perspectiva das ciências sociais, como um sistema de crenças, práticas, símbolos e estruturas sociais por meio das quais as pessoas e as sociedades humanas, em diferentes culturas e épocas (Valle, 2005), buscam um sentido para a existência do universo e do homem (Macedo, Fonseca & Holanda, 2007). A vivência com o mundo do sagrado, segundo Valle (2005), envolve modos de apropriação por sujeitos dotados de necessidades, emoções, motivações e os mais diversos anseios. Para Silva (2004), a religião - provedora de significado e definidora de questões essenciais à vida numa construção simbólica - mostra sua relevância, especialmente na era globalizada, como alternativa eficaz na obtenção de respostas ao sofrimento e às adversidades da realidade construída socialmente.

A religião se organizou, ao longo da história das civilizações, de forma institucional em suas mais variadas expressões e práticas, tendo como eixo central o conceito igreja. Para Guerra (2002), as igrejas seriam empresas sociais que têm como proposta criar, manter e fornecer religião para um conjunto de indivíduos. Para Silva (2004, p.13), a "(...) intencionalidade de atingir determinados objetivos, suas unidades sociais, seus aglomerados humanos, seus valores, sua cultura caracterizam a igreja também como uma organização e não apenas um lugar sagrado". Segundo Carranza (2005), as igrejas se inserem em contextos socioculturais específicos, expressando seus mitos, ritos, sistemas simbólicos e de crenças, portando propostas éticas e guardiãs dos preceitos divinos, com formas específicas e próprias de organização de suas atividades. É neste contexto que o pastor desenvolve seu trabalho.

O pastor evangélico é um trabalhador que geralmente atua na liderança de organizações religiosas da vertente evangélica, que é um ramo do Cristianismo, que se estabeleceu por meio da Igreja Católica, que manteve sua hegemonia até o século XI. A partir de então ocorreram cisões no Cristianismo, sendo uma das mais importantes a Reforma Protestante ocorrida no século XVI, tendo como protagonista o monge Martinho Lutero. Nesse contexto foi utilizado o termo protestante para aqueles que expressavam seus protestos contra a supremacia da Igreja Católica, propiciando o surgimento das igrejas denominadas protestantes (Jostein, Helern & Notakar, 2000; Mather, Nichols & Schmidt, 2000; Russel, 1967).

Consequentemente surgiram outros grupos protestantes e uma série de outras denominações e seitas. Posteriormente, além do termo protestante, como referência atribuída aos grupos de cristãos herdeiros da Reforma Protestante, foi utilizado o termo evangélico, o qual foi amplamente propagado de forma a caracterizar esses grupos como pertencentes à religião evangélica (Jostein & cols., 2000; Mather & cols., 2000).

O surgimento dos vários segmentos frutos da Reforma Protestante foi constituindo ao longo da história novas formas de Cristianismo propulsadas especialmente por diferentes convicções religiosas e hermenêuticas julgadas passíveis de reformulações por seus seguidores (Jostein & cols., 2000; Mather, Nichols & Schmidt, 2000). A composição diversificada de denominações faz com que o grupo evangélico se apresente heterogêneo, fragmentado, sem uma configuração identitária única numa unidade institucional (Silva, 2004; Siqueira, 2006). Este aspecto também pode ser um dos fatores relacionados ao crescimento da religião evangélica, visto que fornece um leque variado para que os indivíduos possam fazer suas escolhas de acordo com seus preferencialismos organizacionais eclesiásticos, teológicos e litúrgicos que atendem melhor à suas necessidades existenciais, bem como na escolha por suas lideranças.

Para Berger (1985) as transformações organizacionais e dogmáticas da igreja estão inseridas numa guerra do mercado religioso, mesmo que não declarada. O autor afirma que, inseridas nessa guerra, as instituições religiosas acabam sendo transformadas em agências de mercado, no qual as tradições, discursos e práticas religiosas, se configuram em bens de consumo. Silva (2004) comenta que as transformações sociais, políticas e dogmáticas, presentes no mercado religioso, são também percebidas no campo evangélico e que na medida em que ocorre um aumento de sua visibilidade o trabalho de suas lideranças também passa por transformações. Refere que "o pastor do século XXI não é apenas mais um pregador dominical itinerante, mas um líder comunitário, um político, um psicólogo, um advogado, um doutor, um palestrante etc." (Silva, 2004, p.23). O trabalho do pastor evangélico, neste contexto, apresenta uma série de demandas que trazem consequências físicas, psíquicas e sociais, os quais interferem significativamente em sua qualidade de vida (Silva, 2004).

Os processos que envolvem a qualidade de vida e saúde no trabalho é um dos focos de estudo, prevenção e intervenção da Psicologia do Trabalho, a qual se ocupa do trabalhador e das relações humanas no contexto laboral, mantendo seu foco na subjetividade, podendo intervir em diferentes meios organizacionais, bem como junto a categorias profissionais distintas (Spink, 1996). A Psicologia do Trabalho se propõe a trazer uma melhoria nas condições de trabalho e para a saúde mental do trabalhador, pautada na ética das relações humanas, sendo que privilegia o estudo dos fenômenos e processos psicológicos na atividade a partir das condições sócio/técnicas estabelecidas no ambiente de trabalho (Spink, 1996). Dentro desses parâmetros, a Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004) apresenta importante contribuição pela qualidade teórica e riqueza metodológica, bem como pela importância de suas descobertas relacionadas à saúde no trabalho (Selingmann-Silva, 2007), conforme descrito no próximo tópico.

Contribuições da teoria Psicodinâmica do Trabalho

A Psicodinâmica do Trabalho teve sua origem na França, nos anos 80, com o médico do trabalho, psiquiatra e psicanalista Christophe Dejours (Ferreira & Mendes, 2003). Esta abordagem é uma proposta que vai além da identificação de doenças mentais específicas correlacionadas à profissão ou às situações de trabalho, sendo que procura abarcar uma dinâmica mais abrangente, a qual refere à gênese e às transformações do sofrimento mental, vinculadas à organização do trabalho (Seligmann-Silva, 2007). Para isso busca-se compreender os aspectos psíquicos e subjetivos que são vivenciados pelos trabalhadores ao longo do processo produtivo a partir das relações e da organização do trabalho (Dejours, 2004; Heloani & Lancman, 2004).

Entende-se por organização do trabalho as prescrições que expressam as concepções e as práticas de gestão de pessoas e do trabalho, as quais determinam o funcionamento do meio produtivo (Ferreira & Mendes, 2003). Segundo Dejours (2001), a organização do trabalho interfere na saúde psíquica do trabalhador, contemplando tanto os conteúdos materiais como simbólicos do significado da execução das tarefas, como a interação entre trabalhador, a atividade e as relações sociais. Para Ferreira e Mendes (2003), as situações de trabalho modificam as percepções do trabalhador em relação a si mesmo e dos outros, o que resulta nos aspectos subjetivos do trabalho, que viabiliza a construção do sentido do trabalho. Este pode ser de prazer e/ou sofrimento, o qual é atribuído de forma compartilhada por um grupo de trabalhadores.

Segundo Ferreira e Mendes (2003, p.54), "o prazer no trabalho é uma vivência individual e/ou compartilhada por um grupo de trabalhadores de experiências de gratificação provenientes da satisfação dos desejos e de necessidades do trabalhador (...)". Os autores enfatizam que essa vivência é decorrente de uma mediação bem sucedida dos conflitos e contradições gerados num determinado contexto de produção, em que o sentido do trabalho é atribuído como prazer, transformando-o em fonte de saúde. Já o sofrimento, segundo os autores, é vivenciado, muitas vezes, de forma inconsciente, individual e/ou compartilhada por um grupo de trabalhadores frente a conflitos e contradições num confronto entre desejo e necessidades do trabalhador e as características de determinado contexto produtivo. Seria a consequência de trabalhadores estarem expostos a situações em que se encontram diante da impossibilidade de negociarem seus desejos, e ao esgotarem todas as suas tentativas individuais e coletivas no enfrentamento das adversidades, acabam sofrendo algum tipo de adoecimento (Dejours, 2004; Ferreira & Mendes, 2003).

No entanto, segundo Dejours (2004), o contínuo submeter-se às pressões e ao sofrimento no trabalho gera a ocorrência de um ajuste entre a subjetividade e a organização do trabalho, em que estratégias são mobilizadas diante destas vivências, permitindo, mesmo que precariamente e temporariamente, a continuidade do trabalho. Para a Psicodinâmica do Trabalho "o trabalho é uma atividade humana ontológica finalística por meio da qual os trabalhadores forjam estratégias de mediação individuais e coletivas" em um contexto de produção de bens e serviços (Ferreira & Mendes, 2003, p.38). Na dinâmica da mediação destas estratégias, os indivíduos, ao mesmo tempo em que transformam o contexto de produção, são também transformados por ele (Ferreira & Mendes, 2003). Estes conceitos apresentados permeiam a pesquisa apresentada neste texto.

 

Método

A pesquisa, de natureza qualitativa e exploratória, foi realizada com cinco pastores de igrejas evangélicas da cidade de Curitiba/PR, de orientação denominacional variada, sendo todos do sexo masculino, casados, exercendo a atividade pastoral em período integral, os quais foram selecionados por acessibilidade e adesão, após busca em sites de igrejas na internet e contatos telefônicos.

Para a coleta dos dados foi utilizada a entrevista em profundidade. As questões do roteiro semiestruturado orientador da entrevista foram construídas a partir das seguintes categorias teóricas: a organização do trabalho, as exigências, as vivências de prazer e sofrimento e as estratégias de mediação do sofrimento no trabalho. As entrevistas foram individuais, realizadas no local de trabalho dos entrevistados, com duração entre 50 e 70 minutos. Seguindo os padrões éticos, após esclarecidos os objetivos e efetivada a assinatura do termo de consentimento, as entrevistas foram registradas eletronicamente, sendo posteriormente transcritas.

A metodologia utilizada para análise dos dados foi a análise de conteúdo categorial, do tipo qualitativa, proposta por Bardin (1997). As categorias foram selecionadas e nomeadas a partir das verbalizações dos entrevistados, que estiveram mais latentes e que apresentaram semelhanças, a partir de temas índices tendo em vista os pressupostos da Psicodinâmica do Trabalho.

 

Resultados e discussão

Como resultados da pesquisa se destacaram categorias sínteses que contemplam a organização do trabalho dos pastores e suas vivências neste contexto, conforme apresentadas a seguir.

"O pastor basicamente administra a igreja, prega, ensina e atende as pessoas"

A categoria indica algumas das características que envolvem a organização do trabalho dos pastores entrevistados, no que refere às tarefas/funções e sua execução. A organização do trabalho estabelece as regras, as normas, os papéis, as funções, as responsabilidades, a hierarquia, o comando, a produtividade e padrões prescritos, os ritmos de produção e as relações hierárquicas, envolvendo por um lado a divisão das tarefas e por outro lado a divisão dos homens (Dejours, 2004).

As funções desempenhadas são múltiplas e compreendem: administrar a igreja; liderar departamentos; liderar reuniões; realizar cultos; atender, aconselhar, orientar e acompanhar pessoas; treinar e formar outros líderes; visitar; pregar; ensinar; ministrar cursos; ministrar em eventos; realizar eventos; participar em projetos sociais; preparar mensagens e estudos bíblicos; realizar funerais, casamentos e batismos; elaborar relatórios. A atividade pastoral é estabelecida por contrato autônomo entre o pastor e uma organização eclesiástica.

A necessidade de responder as mais variadas atividades impõe aos pastores uma flexibilidade na organização do tempo. O trabalho pastoral é organizado em uma rotina semanal, incluindo período matutino, vespertino e noturno. Há uma carga horária que, apesar de não ser fixa e pré-estabelecida, está em torno de dez horas diárias durante a semana, sendo maior no domingo. As funções diferem nos dias da semana, sendo que cada dia da semana tem atividades diferenciadas. As funções matutinas e vespertinas têm horário de início e término, no entanto, os horários são flexíveis podendo ser alterados de acordo com alguma demanda imprevisível que se apresente como urgente. Os compromissos no período da noite geralmente são compostos por reuniões ou cultos.

A imprevisibilidade de demandas e a flexibilidade de horários se contrapõem com a rotina prevista, intensificando o trabalho. Estes são elementos também presentes no atual contexto de trabalho na sociedade. Há uma aparente autonomia e liberdade, porém, de fato esses elementos levam o trabalhador a uma responsabilidade individual diante de suas tarefas, que acaba por intensificar cada vez mais seu trabalho (Dejours, 2001; Heloani, 2003).

A busca por responder às exigências e às demandas, muitas imprevisíveis, impõe aos pastores um ritmo de trabalho intenso e constante, dissolvendo os limites entre tempo de trabalho e de descanso, conforme exemplificado no discurso dos entrevistados:

"Você se dedica seriamente, mergulha, vai até o limite. Enquanto trabalho descanso. Descanso mesmo é uma coisa que eu tenho buscado ter um tempo" (31 anos, sexo masculino, 10 anos de trabalho pastoral).

Essa verbalização indica a intensificação do trabalho e a negação de sua necessidade de descanso e de sua condição humana. Segundo Dejours (2001), na medida em que o sujeito mergulha num ativismo alienante em prol de seu trabalho o internaliza como sendo uma missão especial, passando a descuidar de aspectos importantes da sua vida.

"A gente vive no desafio constante de produção de trabalho"

Essa categoria indica aspectos das relações sociais e as exigências no trabalho dos pastores entrevistados. As decisões sobre o funcionamento da instituição são tomadas pelo pastor ou pela equipe de pastores e pela assembleia da igreja, constituída de membros da comunidade.

Os pastores relataram que embora exista um espaço de autonomia no desenvolvimento das tarefas, devem prestar contas para a hierarquia da instituição e para a comunidade. Devem apresentar relatórios verbais e descritivos, especificando as atividades realizadas e seus resultados, destacando os departamentos existentes, os números de membros e as entradas e saídas financeiras.

"A denominação tem uma diretoria e tem que prestar contas para eles. Tem uma reunião em que todos os pastores se reúnem para apresentar relatórios, em que se devem apresentar as entradas e saídas financeiras e outra prestação relacionada ao crescimento da igreja" (39 anos, sexo masculino, 2,5 anos de trabalho pastoral).

Para responder as exigências de resultados é necessária a mobilização de uma "inteligência eficiente no trabalho" (Dejours, 2001, p.56), para lidar com o imprevisto, com aspectos que ainda não foram assimilados e nem estabelecidos numa rotina e não estão contemplados na prescrição do trabalho. Neste sentido os pastores referem existir espaços de autonomia no seu trabalho, o que de fato representa os esforços de adaptação entre o trabalho prescrito (ordenado dentro de uma operação padrão) e o trabalho real (realizado a partir da interpretação das prescrições e da realidade).

"Eu tenho autonomia. Eu mesmo criei uma forma de controle para prestação de contas." (31 anos, sexo masculino, 10 anos de trabalho pastoral).

"Eu tenho liberdade de trabalhar conforme eu for dirigido por Deus" (63 anos, sexo masculino, 15 anos de trabalho pastoral).

Segundo Dejours (2001), a mobilização da inteligência pode ocorrer pela gratificação e pelo reconhecimento do trabalho bem feito, mas um dos principais motores da inteligência no trabalho seria o medo, especialmente referente a ameaças de demissão, também presente no trabalho pastoral.

"Eu sempre brinco que o pastor, aqui no conceito nosso, é como um técnico de futebol. Se o time perdeu, num campeonato, perdeu o título, já imediatamente a primeira pessoa que eles pensam em descartar é o técnico. E... na igreja também é mais ou menos assim" (55 anos, sexo masculino, 30 anos de trabalho pastoral).

Segundo o autor, o conjunto de exigências que permeiam a organização do trabalho, se intensifica diante das mudanças do mundo do trabalho, na medida em que crescem as pressões por produtividade, bem como as ameaças de demissões e corte nas ofertas de emprego, instaurando medo constante, insatisfação e ansiedade nos trabalhadores. Para o autor esse medo permanente, que gera condutas de obediência e submissão, também quebra a reciprocidade entre os trabalhadores, sendo que desliga o sujeito do sofrimento do outro que está sujeito também à mesma situação. Dessa forma as exigências funcionam como estratégia de controle do trabalho em que se estabelece um culto a excelência, numa lógica qualitativa, a qual exige variedade e renovação constante de serviços e produtos (Wood, 2001), elementos imprescindíveis para se manter no mercado de trabalho, o que pode ser percebido no discurso:

"Tinha um professor de seminário que dizia ‘o pastor tem que tomar muito cuidado que ele é como um soldado na guerra. Se ele comete falhas, ele está sujeito a morrer'. Então é uma vida de extrema tensão, isso, sem dúvida, que se você é uma pessoa muito visada. O pastor é uma pessoa visada" (55 anos, sexo masculino, 30 anos de trabalho pastoral).

Este relato apresenta semelhanças a uma guerra a qual, descrita por Dejours (2001, p.14), é travada sem recurso às armas, mas que implica "sacrifícios individuais consentidos pelas pessoas e sacrifícios coletivos em altas instâncias, em nome da razão econômica". O autor afirma que nessa guerra o fundamental é o desenvolvimento da competitividade e que só permanecem os aptos para o combate, ou seja, que suportem a exigência de "desempenhos sempre superiores em termos de produtividade, de disponibilidade, de disciplina e de abnegação" (Dejours, 2001, p.13). Dessa forma, observa-se no trabalho pastoral a mesma lógica de mercado produtivo, em que o trabalhador é descartável e precisa produzir de acordo com os interesses da organização, a qual associa a manutenção do espaço de trabalho com a condição de que o pastor seja multifuncional em suas tarefas e altamente produtivo.

"O pastor precisa ter uma vida irrepreensível"

A categoria em destaque sinaliza uma exigência de cunho subjetivo, sendo que também se apresentou como exigência para o desempenho da função pastoral a questão moral e ética, inclusive da vida financeira. Para isso o pastor deve ter uma conduta de irrepreensibilidade, que seria apresentar uma vida ilibada, sem ter do que ser acusado, tendo, conforme referido, um "bom testemunho diante da igreja", bem como de toda sociedade. Estas exigências são estabelecidas por uma interpretação bíblica. O pastor também deve ter boa conduta ética, tendo boa educação para com todos, na qual deve expressar "longanimidade, paciência, misericórdia, amor e acolhimento". Estes aspectos todos remetem para a exigência de ser referência e exemplo a ser seguido. Deve ser um bom chefe de família, o que significa ser um bom marido e um bom pai. No entanto, os entrevistados ao citarem essas exigências para o pastorado também assinalaram que este padrão se assemelha à perfeição humana, o que é impossível de ser alcançado, conforme representado no discurso abaixo:

"Nós muitas vezes não entendemos no que tange a perfeição humana e queremos ser perfeitos. (...) Por mais que a gente tente ser alguma coisa, sempre vamos estar longe do que queremos ser" (31 anos, sexo masculino, 10 anos de trabalho pastoral).

Segundo Dejours (2001), as exigências no trabalho se configuram como estratégias de controle que perpassam a dimensão objetiva e subjetiva, tendo efeito de controle simbólico na utilização do conjunto de crenças vigentes em uma organização de trabalho.

A exigência de irrepreensibilidade para a função pastoral remete à lógica da ideologia de sucesso do mercado atual, a qual está presente não apenas em instituições religiosas, mas também em outros meios produtivos. Nessa lógica busca-se o sucesso naquilo que se faz e produz, sendo que não há espaço para o fracasso (Enriquez, 1997; Pagès & cols., 1993).

Diante da exigência de irrepreensibilidade para o exercício pastoral o líder religioso pode assumir uma manutenção de uma imagem de líder de sucesso. De acordo com Wood (2001, p.152) líderes com características de "executivo eficaz" em um mundo cada vez mais complexo "lutam para manter uma aparência de controle e domínio sobre a situação". Segundo o autor esses líderes acabam por manter seu próprio mito ao gerarem uma imagem de "controlabilidade e simplicidade". A manutenção dessa imagem é impulsionada pela exigência de excelência absoluta, tanto na produtividade como na conduta, que sinaliza um convite para a superação contínua que exige trabalhar mais e sempre melhor (Wood, 2001).

"Não é um trabalho profissional, é um trabalho vocacional"

Essa categoria sinaliza o conteúdo simbólico imbuído no exercício pastoral o qual dá significado à execução das tarefas. O trabalho do pastor não é considerado pelos entrevistados como uma profissão, sendo, ao contrário, uma vocação na qual o pastor é um escolhido por Deus para desempenhá-lo. De acordo com as entrevistas o trabalho de outras profissões manteria uma ação direcionada à prosperidade material relacionada ao lucro e ao benefício econômico, enquanto que o trabalho religioso contemplaria a subjetividade conectada a um âmbito divino que propicia uma prosperidade espiritual, sendo relacionada ao conforto da alma.

De acordo com Menezes (2006), é na dimensão simbólica que é configurada a concepção de hipóteses que os sujeitos formulam a respeito de uma tarefa, bem como sua concepção mental acerca do objetivo, meio e comportamento para realizá-la, independente ou não de fatores objetivos.

A afirmação de que o trabalho pastoral não é reconhecido como profissão pelos próprios implicados no trabalho provém da percepção de que sua atividade foi estabelecida por uma vocação, um chamado divino. Weber (1967) expõe que a concepção de vocação formulada por Lutero, trazia uma conotação religiosa implícita de uma tarefa dada por Deus, a qual deveria se configurar numa expressão externa do amor fraternal, sem renunciar aos deveres desse mundo e nem abster-se das obrigações temporais (Weber, 1967). O pastor, ao desempenhar sua atividade na expressão externa de "amor fraternal", legitima a vocação por meio do carisma que exerce sobre as pessoas, na medida em que as influenciam a seguirem suas ideias numa proposta de obtenção de bem-estar (Silva, 2004).

Sendo assim, o trabalho do religioso não seria uma mera atividade de trabalho, como são as outras profissões, mas seu sentido vocacional ultrapassa interesses e conflitos pessoais e está envolta da ideologia de ação divinizada e transcendental (Silva, 2004).

"Eu não vejo a nossa função como uma profissão. É algo divino, é uma vocação que Deus seleciona. Tanto é que as igrejas hoje, elas não tem a preocupação de registrar os seus pastores. Porque não é um trabalho profissional". (39 anos, sexo masculino, 2,5 anos de trabalho pastoral).

No entanto, a categoria analisada evidencia um paradoxo na atividade pastoral entre profissão e vocação. Por um lado, encontra-se desempenhando suas atividades pastorais num status simbólico e ideológico, no qual se percebe como um vocacionado trabalhando para o divino. Aspecto concomitante ao entendimento de Lutero (Weber, 1967, p.71) de que "o indivíduo deveria permanecer de uma vez por todas na condição e na vocação em que Deus o houvesse colocado, e deveria restringir suas atividades mundanas aos limites a ele impostos pela condição de vida estabelecida". Por outro lado se vê obrigado, no exercício do trabalho pastoral, a se adaptar às exigências da organização eclesiástica em que atua, a qual espera que não apenas encaminhe abnegadamente os fiéis a um bem estar espiritual, mas que isso reflita em crescimento e desenvolvimento da própria organização.

"É uma falácia que as pessoas têm de imaginar que o pastor ele é um homem que está acima do bem e do mal. Não, o pastor (...) passa por muitas cobranças" (55 anos, sexo masculino, 30 anos de trabalho pastoral).

Dessa forma, ao mesmo tempo em que a tarefa pastoral se ocupa do transcendente, também é exigido deste trabalhador o desempenho de tarefas que envolvem administrações do "aqui e agora" da organização eclesiástica para a qual trabalha, envolvendo questões da organização, condições e relações sociais do trabalho, mesmo que pelo víeis da espiritualidade.

"Eu faço o que gosto, faço com consciência, me sinto recompensado por Deus, acho que estou numa missão, assim como toda profissão"

A categoria indica um sentido de prazer atribuído ao exercício pastoral, o qual tem um sentido de missão, o que gera um empenho consciente e prazeroso na atividade. A ação é recompensada por um viéis subjetivo, sendo que há um sentimento de que é vocacionado e recompensado por Deus. A confirmação do trabalho pastoral parte de um reconhecimento da importância de suas atividades por parte da comunidade. Também há um sentimento de realização ao ajudar pessoas, especialmente no exercício das atividades de aconselhamento pastoral. Experimenta satisfação ao perceber a importância de sua intervenção ao contribuir na ocorrência de mudanças positivas na vida das pessoas aconselhadas. Também experimenta satisfação ao perceber sua capacidade no processo de ajuda, permitindo-lhe sentir-se útil e um canal divino, o que lhe faculta uma identificação com as tarefas do trabalho pastoral. O trabalho pastoral é fonte de prazer quando percebido como relevante para a organização a qual pertence, bem como para a sociedade em geral.

O relato de um dos entrevistados exemplifica a importância do reconhecimento de sua contribuição para as vivências de prazer, o que é associado com uma confirmação da vocação:

"Eu acredito que a voz do pastor dentro da igreja, ela é muito considerada e muito respeitada. O pastor autêntico. Um pastor com chamado, um pastor verdadeiro, não um mercenário. Mas, a voz do pastor autêntico, ela é muito respeitada pela comunidade, pela igreja. A igreja lhe ouve muito" (39 anos, sexo masculino, 2,5 anos de trabalho pastoral).

Segundo Ferreira e Mendes (2003), por meio do trabalho, são construídos os significados psíquicos e a identidade pessoal e social do trabalhador, sendo que nessa construção se dá a dinâmica entre prazer e sofrimento (Dejours, 2004; Ferreira & Mendes, 2003). O trabalho pode ser uma das fontes de saúde psíquica e de construção da identidade na medida em que houver a possibilidade do indivíduo expressar sua subjetividade, bem como de construir uma subjetividade no trabalho ao atribuir o sentido do trabalho como prazer (Ferreira & Mendes, 2003). Para Dejours (2004) o prazer é vivenciado quando são experimentados sentimentos de valorização e reconhecimento no trabalho, sendo a valorização o sentimento de que o trabalho é importante e significativo para a organização e para a sociedade. O reconhecimento evoca o sentimento de ser aceito e admirado no trabalho e de ter liberdade para a expressão de sua individualidade. Dessa forma, as vivências de prazer e sofrimento no trabalho ocorrem numa dinâmica do reconhecimento do trabalho e da constituição da identidade no campo social do trabalho (Dejours, 2004). No trabalho pastoral, ter sua vocação reconhecida nas relações de trabalho é o que atribui à identidade de ser pastor.

As principais causas do prazer no trabalho encontram-se nas dimensões da organização, das condições e das relações de trabalho, que estruturam o contexto de atuação do sujeito (Dejours, 2004; Ferreira & Mendes, 2003). O pastor vivencia prazer no trabalho ao perceber os resultados da intervenção pastoral na vida de pessoas, que mostram sinais de mudanças. Este aspecto se configura num indicador de gratificação, em que vivencia sentimentos de realização na percepção da utilidade e relevância de seu trabalho. Ferreira e Mendes (2003, p.65) definem a gratificação como um dos indicadores de prazer no trabalho, sendo vivenciado por "sentimento de satisfação, realização, orgulho e identificação com um trabalho que atende às aspirações profissionais".

"O pastor é uma pessoa que encarna muitos sofrimentos, ele é uma pessoa que passa por muitas cobranças"

A categoria indica vivência de sofrimento, sendo o medo da incompetência como um importante fator de sofrimento no trabalho pastoral. Para Dejours (2001), o medo da incompetência é um dos principais fatores do sofrimento no trabalho, o qual, segundo Ferreira e Mendes (2003, p.65), é gerador do sentimento de insegurança, pelo "receio de não conseguir atender às expectativas relacionadas à competência profissional, exigências de produtividade e pressões no trabalho". Para os autores seria o medo de não estar à altura ou até mesmo de ser incapaz de enfrentar adequadamente e com a responsabilidade necessária as situações incertas ou incomuns que se apresentam no trabalho.

No trabalho pastoral o medo da incompetência apresenta-se como um fator de sofrimento diante das múltiplas exigências e do padrão "divino" de irrepreensibilidade, associado a limites da própria relação de ajuda, descrito no discurso abaixo:

"Angústia... Pessoas que a gente investiu e não chegou a lugar nenhum. A gente investiu em jovens que foram assassinados, tentando tirar das drogas. Angústia de um jeito que você não tem ideia. Gente que travou e que não foi a lugar nenhum por decisão própria, está sofrendo, mas, que não ajuda, não coopera, não... você fica.. orando pra que Deus faça alguma coisa criativa e diferente do que você está vendo, pra ver uma reação. Essas coisas acontecem, gente que se machucou muito, porque não ouve os conselhos, e você estava ali perto e acompanhou, jovens, famílias quebradas, casos de parar de investir no outro, não ouvir. Vem aí os casais com histórias de agressão e de tudo o que você pode imaginar e a gente não consegue levar até um relacionamento saudável" (37 anos, sexo masculino, 5 anos de trabalho pastoral.

"Por mais que é o teu papel, o aconselhamento é bom, é gratificante por um lado, porém por outro lado você sofre com as pessoas" (63 anos, sexo masculino, 15 anos de trabalho pastoral).

Por mais que a atividade de aconselhamento seja sinalizada como fonte de prazer, em que há um sentimento de reconhecimento e gratificação, também há uma vivência de sofrimento ao se sentir incompetente para desenvolver a função de ajuda, em alguns casos, sendo essa atividade vivenciada paradoxalmente. Por um lado se apresenta como fonte de prazer, por outro lado é apontada como fonte de desprazer, sendo fonte geradora de cansaço e desgaste.

"Quando eu estou passando por alguma situação delicada eu procuro me refugiar, renovar as forças"

A categoria indica a utilização de estratégias na mediação do sofrimento vivenciado em situações mencionadas pelos entrevistados como "delicadas". Entre as estratégias de mediação do sofrimento os pastores utilizam principalmente o distanciamento do contexto de trabalho por meio do isolamento, do individualismo, da espiritualidade e das atividades compensatórias, conforme pode ser observado no relato reproduzido a seguir:

"Quando chega ao extremo... eu também sei que se eu estou a ponto de explodir, então, é melhor eu não me apresentar diante do povo. Eu prefiro então me isolar, prefiro até ficar em casa, se for o caso. Porque a igreja em si, ela não tem a obrigação de ouvir as minhas queixas. Quando uma pessoa está assim, com os nervos à flor da pele, ela é capaz de dizer o que não deve. Então, eu prefiro não me expor nessas horas. É até mais conveniente você ficar em casa refletindo, do que subir num púlpito e acabar dizendo o que não deve para uma congregação" (39 anos, sexo masculino, 2,5 anos de trabalho pastoral).

Para Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007), as situações de trabalho geradoras de sofrimento mobilizam um ajuste entre a subjetividade e a organização do trabalho, por meio de estratégias individuais e/ou coletivas, para lidar com suas vivências e continuar trabalhando. O autor afirma que para isso são utilizadas estratégias de mediação do sofrimento que podem ocorrer por duas vias: as estratégias defensivas e a mobilização subjetiva (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 2007; Ferreira & Mendes, 2003).

Segundo Ferreira e Mendes (2003) as estratégias defensivas são mecanismos de negação e/ou racionalização do sofrimento e do custo humano negativo causado pelas contradições e pelos conflitos vivenciados no contexto de trabalho, que, muitas vezes são inconscientes, individuais e/ou compartilhados por um grupo de trabalhadores. O mecanismo de defesa é acionado "por comportamentos de isolamento, desconfiança, exacerbação do individualismo, banalização das adversidades do contexto de produção e eliminação do coletivo de trabalho, ao não considerar a história que o produziu" (Ferreira & Mendes, 2003, p.57).

O refúgio para renovar forças, sinalizado na categoria em análise, remete a um distanciamento da realidade de trabalho. Ou seja, ao invés de recriar a realidade que produz o sofrimento junto ao coletivo implicado no trabalho, se distancia do mesmo. As atividades compensatórias como estratégias de distanciamento, segundo Silva (2004) surgem como um mecanismo de defesa, como uma válvula de escape, assumindo o caráter essencial de compensar o sofrimento. O isolamento da atividade se configura numa estratégia de distanciamento da realidade de trabalho buscando um autocontrole (Ferreira & Mendes, 2003), o qual é buscado para poder resistir ao sofrimento e se manter trabalhando. Para Dejours (2001), o aspecto da resistência é característico do individualismo, sendo que o indivíduo resiste numa defesa do silêncio, da cegueira e da surdez. O autor refere que nessa estratégia cada indivíduo se preocupa em resistir e para que consiga fazer isso é necessário fechar os olhos e os ouvidos ao sofrimento de outros e de seu próprio sofrimento. A espiritualidade pode ser uma defesa que atribui elemento estruturador da subjetividade, ao ser adotada uma postura de vida que busca sentido e significado para estar no mundo, com a família e também no trabalho, podendo ocorrer uma experiência integradora que lhe dá um sentido de vida maior (Siqueira, 2006). No entanto, Farris (2002) aponta que o viés religioso pode também ser usado como um recurso de mecanismo de defesa em momentos de dificuldades ou estresse e propicia uma negação dos sentimentos de forma que o sujeito não os integra de maneira ativa e criativa em sua vida. Portanto, apesar do elemento estruturador e integrador da subjetividade encontrado na espiritualidade, se o sujeito se refugiar nela, na forma de negação de suas vivências e das vivências alheias, poderá ver-se impossibilitado de mediar seu sofrimento de forma efetiva em seu contexto de trabalho, sendo que para isso são requeridas também outras ações que sejam mobilizações propulsoras de mudanças do que gera o sofrer, as quais são referidas por Dejours (2001) como mobilizações subjetivas.

De acordo com Ferreira e Mendes (2003, p.55), essas mobilizações de ordem subjetiva têm como principal característica elaborar estratégias de mobilização coletiva, em que são engendrados "modos de agir em conjunto dos trabalhadores, por meio do espaço público de discussão e da cooperação, para eliminar o custo humano negativo do trabalho, resignificar o sofrimento, fazer a gestão das contradições".

Apesar de haver encontros com a equipe, que dependendo da realidade organizacional poderia ser a diretoria ou o conselho ou até mesmo o grupo de colaboradores no trabalho, não é possível configurá-los como mobilização subjetiva, visto que não são encontros mediadores das contradições vivenciadas na realidade de trabalho geradoras de tensão para os indivíduos. Nesses encontros são contempladas, especialmente, questões de ordem estratégica para o bom andamento da organização eclesiástica em que estão inseridos. As dificuldades da mobilização coletiva estão relacionadas ao trabalho, muitas vezes, isolado do pastor, sendo que perde a relação com os pares ao estar inserido num sistema hierárquico de prestação de contas. Embora se reconheça que há uma mobilização coletiva no trabalho dos pastores, pode-se afirmar que ela não se apresentou como destaque nos relatos dos entrevistados da pesquisa.

Portanto, pode-se inferir que as estratégias mediadoras do sofrimento que mais se evidenciaram no trabalho dos pastores entrevistados, apresentam-se como estratégias defensivas, sendo que, tanto a espiritualidade, o isolamento, como o individualismo e as atividades compensatórias têm como principal funcionalidade o distanciamento daquilo que faz sofrer, sem, no entanto caracterizar uma transformação da realidade instauradora de sofrimento.

 

Considerações finais

Como um soldado em guerra, os pastores vivenciam individualmente, a luta pela sobrevivência dentro das organizações religiosas, cada vez mais exigentes e focadas em resultados, de forma semelhante ao que se assiste nas organizações produtivas. A autonomia e a flexibilidade aparentes na definição das tarefas e dos horários são contrapostas com as cobranças simbólicas (da religião) e concretas (da comunidade e da estrutura hierárquica religiosa). Sendo assim, a irrepreensibilidade e o sucesso são os padrões referenciais para a realização do trabalho pastoral. A vivência de sofrimento se apresenta neste contexto, especialmente pela falta de reconhecimento, pelo distanciamento dos pares. A mobilização de estratégias defensivas de distanciamento não favorece a transformação desta realidade.

Na ocorrência do esgotamento das estratégias de mediação do sofrimento se instaura a possibilidade do desenvolvimento de desordens psíquicas ou mesmo físicas, estresse, depressão e outras doenças (Dejours, Dessors & Desriaux, 1993). Diante desses aspectos pode-se assinalar que este trabalhador está sujeito a problemas de saúde, pois segundo Dejours, Abdoucheli e Jayet (2007) as estratégias defensivas não impedem o adoecimento, sendo que bloqueiam a relação entre trabalhador e a organização do trabalho ocasionando um sentimento de desprazer e tensão (Dejours, Abdoucheli & Jayet, 2007). O processo de adoecimento é realidade no trabalho pastoral, segundo a pesquisa de Lotufo-Neto (1997), que afirma ser crescente entre os ministros religiosos o diagnóstico de transtornos depressivos, transtornos do sono e transtornos ansiosos.

Por outro lado, a vivência de prazer no trabalho é sempre uma realidade possível e foi também identificada nesta pesquisa, relacionada ao reconhecimento do trabalho pastoral como uma atividade útil, reconhecida pela comunidade de fiéis e com recompensa simbólica.

Dessa forma, o trabalho pastoral abarca importantes vivências que não podem ser desconsideradas e que o justificam como foco da Psicologia do Trabalho. Cada vez mais a psicologia se insere no mundo do trabalho com uma visão crítica dos processos mobilizadores da subjetividade humana, de forma que sua intervenção ultrapassa as demandas das organizações, podendo atuar junto a categorias profissionais diferenciadas, visando à saúde de trabalhadores inseridos em qualquer contexto organizacional, bem como de qualquer profissão. Essa possibilidade viabilizou o estudo junto à categoria profissional diferenciada "pastor evangélico".

O presente estudo contribuiu para a compreensão do trabalho pastoral e serve como subsídio para a intervenção da psicologia, particularmente em relação ao trabalho no contexto religioso. Neste sentido, foi realizado um curso para pastores, o qual ofereceu um espaço de escuta a partir da coordenação de debates e reflexões conjuntas sobre o trabalho do pastor evangélico.

Os resultados desta pesquisa representam uma aproximação inicial à realidade do trabalho pastoral, realizado a partir de apenas cinco entrevistas individuais, e como tal não consegue abordar importantes aspectos do trabalho pastoral. Outras pesquisas poderão ser desenvolvidas a partir da análise das organizações religiosas de maneira a desvelar aspectos da dinâmica organizacional não passível se ser observada no discurso individual, num estudo inicial. Pesquisas que evidenciem a relação saúde mental, qualidade de vida e o trabalho pastoral poderão contribuir para a compreensão do processo de saúde-doença desta categoria profissional, com potencial para fundamentar intervenções preventivas e de tratamento de casos.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: clarice@eirene.com.br

Recebido em dezembro de 2008
Aceito em maio de 2009

 

 

Clarice Ebert - Acadêmica do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (Curitiba), pesquisadora voluntária do Núcleo de Estudos do Desenvolvimento Humano da UFPR.
Lis Andrea Pereira Soboll - Psicóloga, especialista em Psicologia do Trabalho, mestre em Administração (UFPR) e doutora em Medicina Preventiva (USP). Professora na área da Psicologia Organizacional e do Trabalho da UFPR, em 2007 e 2008.
*Este trabalho é decorrente da monografia "A Vivência Psicológica do Trabalho Pastoral: das tarefas às relações interpessoais", apresentada como requisito parcial à conclusão do Curso de Graduação em Psicologia, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

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