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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.31 Canoas abr. 2010

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Descompassos entre a lei e o cotidiano nos abrigos: percursos do ECA

 

Differences between the law and the daily life in the shelters: ECA's trajectories

 

 

Maria Lívia do Nascimento; Alessandra Speranza Lacaz; Marilisa Travassos

Universidade Federal Fluminense

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto apresenta debates referentes a uma pesquisa bibliográfica que analisou produções escritas sobre o tema do abrigamento de crianças e jovens. Tal pesquisa visou cartografar as narrativas escritas sobre abrigos e convivência familiar a partir do ano 2000, quando, após dez anos da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a consolidação de seus princípios na sociedade poderia ser esperada e sua implantação discutida. Dentre as categorias de análise levantadas, uma delas, "Ditos do ECA e cotidiano dos abrigos", problematiza as mudanças produzidas pelo Estatuto na lógica de assistência à infância, interrogando-as através das práticas cotidianas dos abrigos. As análises feitas apontam divergências entre a lei e essas práticas, qualificando o abrigo como um espaço protetor dos direitos de crianças e jovens, mas ao mesmo tempo violador desses mesmos direitos, ao infringir a lei por outros percursos.

Palavras-chaves: Abrigo, ECA, Infância e juventude.


ABSTRACT

The text presents discussions about a bibliographical research that has analyzed written productions about the subject: sheltering of children and young people. Such study aimed to cartography the written narratives about shelters and family living from the year 2000, when, after ten years of the promulgation of the Children and Adolescent Statute (ECA), the consolidation of its bases in the society could be expected and its deployment discussed. Among the categories of analysis lifted, one of them, "ECA's proposal and the daily life in the shelters" inquiring the changes produced by the Statute in the logic of assistance to the childhood, asking them through the daily practices of the shelters. The produced analysis shows differences between the law and these practices, qualifying the shelter as a space that protects the rights of children and young people, but also violates these same rights while breaking the law in other ways.

Keywords: Shelter, ECA, Childhood and youth.


 

 

Introdução

Os debates que apresentamos aqui dizem respeito à pesquisa Cenários dos Abrigos no Brasil: uma leitura a partir de produções acadêmicas, que integra o Programa de Intervenção Voltado às Engrenagens e Territórios da Exclusão Social (PIVETES). Através de uma pesquisa bibliográfica, buscamos levantar a produção escrita sobre os temas abrigo e convivência familiar (livros, artigos, dissertações e teses) produzida e disponibilizada em diferentes dispositivos de divulgação acadêmica. Para tanto, tomamos como marco inicial textos divulgados a partir de 2000, data escolhida por se considerar que, passados dez anos da promulgação do Estatuto da Infância e da Adolescência (ECA), a consolidação de seus princípios na sociedade poderia ser esperada. Como durante essa primeira década foram acontecendo ajustes decorrentes da passagem para as novas ordenações jurídicas de proteção à infância e à juventude, apostamos ser essa uma data de referência importante para a discussão da implantação do Estatuto. Foi acreditando que uma lei não funciona apenas pela imposição de um decreto, mas pelos efeitos que sua aplicação vai produzindo, que a pesquisa buscou cartografar as narrativas escritas sobre abrigo e convivência familiar.

Tomamos os discursos presentes nos textos analisados como prática social, que produz modos de funcionamento e gestão da vida, estabelece relações de poder, fabrica instituições, enfim, produz efeitos. Tal concepção nos levou a problematizar e historicizar as práticas que estão sendo produzidas sobre crianças e adolescentes abrigados, sobre algumas das instituições que os atravessam – família, infância, internação, abandono, tutela, dentre outras – e sobre quais efeitos são por elas produzidos. A cartografia do cotidiano dos abrigos, construída pelas afirmações de autores e produções acadêmicas, possibilitou colocar em análise temas como os especialismos científicos, o complexo tutelar, as novas ordenações jurídicas de proteção à população infanto-juvenil e os modelos de infância e família.

Concomitantes às leituras dos textos encontrados, foram propostas algumas categorias de análise, localizando temas que estão sendo pesquisados nesse campo e o que tem sido dito a respeito de crianças e adolescentes abrigados no Brasil. Durante o processo de construção dessas categorias, foram destacadas aquelas mais presentes nos textos estudados, que passaram a apoiar nossas discussões e análises.

Desse conjunto de categorias, escolhemos para discutir aqui aquela que denominamos "Ditos do ECA e cotidiano dos abrigos", que problematiza as rupturas produzidas pelo Estatuto na lógica de assistência à infância e à juventude, interrogando até que ponto tais rupturas de fato estão presentes nas práticas dos abrigos.

 

Proteção e violação dos direitos: uma convivência presente nos abrigos?

Muitos dos trabalhos analisados mostram que, apesar do ECA propor um rompimento com a lógica de internação, ao estabelecer uma outra forma de atendimento, a cultura dos antigos internatos muitas vezes permanece, o que aponta para divergências entre a lei e as práticas cotidianas dos abrigos. Assim, o modelo de estabelecimentos onde crianças e jovens moravam, estudavam, recebiam assistência médica, psicológica e odontológica não foi completamente substituído pelos princípios presentes na nova legislação. De acordo com eles, os abrigos devem funcionar priorizando o contato com atividades comunitárias, favorecer a preservação dos vínculos familiares, possibilitar o não desmembramento de grupos de irmãos e afirmar o atendimento personalizado e em pequenos grupos. Entretanto, nem sempre isso ocorre, e pode-se dizer que há uma considerável incompatibilidade entre algumas propostas do Estatuto e o que, na realidade, se pratica nos abrigos.

O descompasso entre a lei e o vivido nos abrigos pode aparecer das mais diferentes formas, inclusive em algumas completamente inaceitáveis, como nos trechos que se seguem:

Ameaças e punições físicas também eram aplicadas às crianças. (...) Desse modo, a manutenção do autoritarismo e violência ainda existia na vida das crianças que, retiradas de suas famílias por maus-tratos, eram, forçosamente, obrigadas a conviver com pequenos atos de violência diários. (Barros & Fiamenghi, 2007, p.1272)1

Embora seja órgão executor do ECA, em muitos aspectos, o abrigo contraria seus preceitos, colocando em dúvida se efetivamente é um abrigo para proteção. Um claro exemplo desta contradição é referente à preservação (e até estímulo) do vínculo familiar normatizado pelo ECA. A organização institucional cria obstáculos para que as famílias não sejam insistentes e "atrapalhem o trabalho". Uma vez que se deva manter o vínculo, o trabalho da instituição é justamente abrir espaço para a família, e não limitá-la a duas horas de visitas semanais. (Oliva, 2004, p.9)

Em outro texto pesquisado, Arpini citando Bleger (1980), corrobora com a ideia de que os abrigos tendem a reproduzir a mesma lógica de alguns dos problemas que buscam combater, pois criam as mesmas dificuldades vivenciadas por crianças e adolescentes pobres, estabelecendo a mesma relação excludente que a sociedade tem com seus sujeitos não adaptados aos modelos instituídos. A partir de tais argumentos, é sugerida a falta de êxito do funcionamento desses estabelecimentos.

Cabe aqui colocar em análise a ideia de abrigo que tem êxito. O que seria um abrigo bem sucedido? Aquele onde há ordem? Onde tudo está organizado? Aquele que os órgãos de fiscalização avaliam como tendo bom funcionamento? Geralmente esses são os que primam por práticas de normatização, de moralização e de higienização, como visto em outro artigo de nossa base de dados, no qual os autores relacionam a boa aparência das crianças com a disciplinarização de seus corpos.

Constata-se, assim, a existência de um paradoxo presente na relação mãe social/criança, com relação ao cuidado. Não se pode negar que as crianças recebem cuidados, pois estão sempre asseadas e apresentam boa aparência, no que se refere à limpeza e vestimenta. Ao mesmo tempo, a garantia de boa aparência e asseamento ocorre às custas de muita repressão para que não se movimentem e, consequentemente, se desarrumem, associada a cuidados rápidos, muitas vezes bruscos, que não levam em consideração o tempo e as necessidades de cada criança individualmente. (Nogueira & Costa, 2005, p.172 )

Seria esse um bom abrigo, já que asseado, bem cuidado, em perfeita sintonia com padrões instituídos de cuidado e com forças hegemônicas que produzem técnicas de governo? Nesses locais, que espaço teriam linhas flexíveis que possibilitassem modos de existência diferenciados, escapes ao "pensamento único", e aos valores morais apontados como verdadeiros e universais? Locais onde, por exemplo, a algazarra das crianças, o desalinho de suas roupas, o movimento de seus corpos inquietos afirmem a vida e desnaturalizem o abrigo padrão, enfim, onde a criança ao invés de se adaptar, inventa formas de vida com outras formas de expressão.

Se voltarmos à ideia, anteriormente sugerida, que associa o êxito ou o não êxito ao fato do abrigo reproduzir as mesmas práticas de exclusão presentes na sociedade para sujeitos não adaptados, pode-se dizer que o abrigo não se constitui como algo fora das construções subjetivas. Ou seja, enquanto instituição do tecido social é a um só tempo produzido e produtor de processos de subjetivação excludentes. Seus muros não o isolam desses processos. Existe uma porosidade entre o que se passa no seu interior e fora dele, já que as subjetividades construídas não habitam locais específicos, não existem em si, não são estáticas e nem definitivas, não se dão dentro ou fora dos estabelecimentos: são processuais, constantemente fabricadas a partir de um conjunto de relações de forças, no qual as hegemônicas convivem com outras construídas como minoritárias e se espraiam em todo o tecido social. Dessa forma, as lógicas da exclusão referentes aos abrigados se encontram em toda parte, até porque esses territórios dentro e fora não se separam no que se refere a construções subjetivas.

Foucault (2001) afirma a dimensão positiva do poder ao dizer que é necessário "(...) deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos" (p.161). Entende a positividade como a propriedade de produzir alguma coisa, como a existência de configurações que possibilitam acontecimentos. Assim, as relações de poder presentes nos abrigos, como todas as demais, são sempre propositivas. Afirmam políticas públicas destinadas à população infanto-juvenil, fabricam orçamentos públicos, constroem práticas de atendimento, higienizam as ruas ao guardarem intramuros alguns dos considerados nocivos sociais. Todas essas, muitas vezes, vistas como práticas bem sucedidas. Ou seja, o êxito sempre existe, importa localizá-lo.

Frente a tais análises e passados 18 anos da implantação do ECA, é pertinente uma discussão que problematize as transformações ocorridas nas práticas protetivas de atenção infanto-juvenil e o que ainda permanece como herança do sistema total2. O abrigo se qualifica como um espaço protetor dos direitos de crianças e jovens, mas é ao mesmo tempo violador, já que simultaneamente se propõe a protegê-los de situações de risco, mas infringe a lei por outros percursos. Um dos pontos mais recorrentes nos textos analisados diz respeito ao fato dos abrigos terem se tornado um lugar de permanência até a maioridade, enquanto o caráter temporário desses espaços é uma condição prevista na lei. Dessa maneira, muitos passam suas vidas inteiras ali, não tendo oportunidade de retornar à sua família de origem. É o que Orionte e Souza (2007, p.114) descrevem no seguinte trecho:

Sabe-se que, em virtude da burocracia das instituições, dificilmente uma criança será retirada dali. O espaço que deveria ser apenas temporário torna-se, para muitas delas, permanente, contrariando a proposta  do  ECA (Brasil, 1990). Entretanto, no âmbito geral, essa proposta ainda não foi efetivada, necessitando de políticas sociais que garantam apoio às famílias, qualidade da institucionalização e efetiva aplicabilidade dos preceitos e normativas do ECA.

Muitos abrigos alegam não ter recursos para realizar suas funções, como, por exemplo, a de reintegração da criança ou do jovem na sua família, a quem deveriam prestar assistência no sentido de favorecer condições para esse retorno. Sendo essa tarefa exercida de forma precária pelos abrigos, ela fica, muitas vezes, a cargo das equipes técnicas do poder judiciário, que também a realizam de maneira insuficiente.

Tal preocupação está presente em algumas das produções pesquisadas, quando discutem as funções do abrigo, as práticas de desqualificação da família pobre e os limitados procedimentos de reintegração da criança à sua família. O exemplo que se segue, retirado de um dos textos pesquisados, aponta a necessidade do abrigo buscar meios de reaproximar a família do filho abrigado.

Entendemos que as instituições que se destinam a abrigar crianças, necessitam desenvolver estratégias de ação que possibilitem a reintegração da criança à família, servindo como ponte para o restabelecimento dos vínculos que por motivos diversos, em algum momento se perderam. A instituição necessita repensar seus objetivos a fim de ampliar seu horizonte de ação, acrescendo a sua função de cuidadora da criança à de promotora do restabelecimento do contato da mesma com a família, para que esta assuma o seu papel enquanto primeira gestora do cuidado de seus membros, ou seja, cumpra sua função afetiva, provedora e formadora. (Zem-Mascarenhas & Dupas, 2001, p.419)

Encontramos, ainda, referências ao fato de que muitos abrigos, até o presente, ainda funcionam com especialistas atendendo dentro de seus espaços internos. Silva, Mello e Aquino (2004) relatam que o "Levantamento Nacional" realizado pelo IPEA

... mostra um quadro preocupante nesse sentido: apenas 6,6% dos  abrigos pesquisados utilizam todos os serviços disponíveis na comunidade, tais como: creche, ensino regular, profissionalização para adolescentes, assistência médica e odontológica, atividades culturais, esportivas e de lazer e assistência jurídica. Nesse aspecto, a maioria dos abrigos (80,3%) ainda oferece pelo menos um desses serviços diretamente (de forma exclusiva) dentro do abrigo... (p.234)

Referindo distância, dificuldade de transporte, quebra da dinâmica da casa, falta de funcionários para acompanhar as crianças, os abrigos alegam não ter condições, por exemplo, de levar as crianças a postos de saúde. Nesse contexto, e no sentido de poupar trabalho, muitos estabelecimentos relatam práticas de padronização nos abrigos semelhantes àquelas dos antigos estabelecimentos de internação: uma homogenização de roupas, penteados, condutas e hábitos. Isso evidencia uma contradição com a diretriz do ECA, que afirma o atendimento personalizado, que respeite as individualidades de cada criança ou jovem.

No entanto, anterior a todas estas violações, o que está em questão é a própria prática de abrigamento utilizada de forma recorrente, como primeiro recurso. Tal procedimento fere os direitos garantidos pelo Estatuto, operando a inversão do que encontramos no artigo 101, parágrafo único: "O abrigo é medida provisória e excepcional, utilizável como forma de transição para a colocação em família substituta, não implicando privação de liberdade".

Estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (Silva, 2004), em parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), mostraram que mais de 80% da população desses estabelecimentos têm família, sendo que quase 60% mantêm vínculo com seus familiares. Esses dados contrariam a crença disseminada de que a maioria das crianças abrigadas não tem família e evidenciam um modo de funcionamento da rede dissonante com a proposta do Estatuto no que concerne, especialmente, ao direito fundamental de convivência familiar.

Nesse caminho de análise, cabe perguntar: escrever algo em formato de lei assegura as mudanças que inspiraram sua elaboração? A lei garante os direitos por ela mencionados?

A pesquisa do IPEA indicou, também, que entre os abrigados a maioria é de meninos, negros e pobres, com idade entre 7 e 15 anos, sendo os principais motivos que justificam a entrada nos estabelecimentos a carência de recursos materiais da família e um pretenso abandono. Nesses casos, o abrigamento está fortemente ligado à situação financeira da família e sua suposta incapacidade de prover para seus filhos condições básicas como higiene e alimentação. Isto, apesar do ECA ratificar, em seu artigo 23, que a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para o abrigamento e a consequente suspensão do poder familiar. Tal artigo afirma ainda, em seu parágrafo único, que não havendo outro fator, a criança será mantida na família de origem, que deverá, obrigatoriamente, ser inserida em programas sociais de auxílio.

Estaria sendo o abrigo um dispositivo de violação de direitos? A institucionalização dessas crianças e adolescentes seria a melhor medida? Que outros funcionamentos poderiam ser operados pela rede de proteção à infância e juventude?

 

O ECA, os abrigos e as relações de forças que os atravessam

Não há como problematizar as práticas de violação de direitos sem revisitar a história de assistência à população infanto-juvenil brasileira, pautada e construída a partir das práticas de internação. Até 1990, crianças e adolescentes que por algum motivo não podiam ser cuidados por suas famílias e ficavam sob a tutela do Estado eram encaminhados para os grandes internatos. Tal conduta se constituiu fortemente embasada em pressupostos médico-higienistas, juristas e, podemos também dizer, foi fundamentada em certos discursos psi, aqueles que acreditam na apreensão objetiva do mundo e do ser humano e na natureza específica e identitária dos objetos.

Ao se apoiar em uma concepção de indivíduo dotado de uma essência, o discurso psi corroborou com a afirmação de modelos hegemônicos de família, estabelecendo padrões de normalidade e anormalidade, desqualificando, assim, a família pobre, fixando-a em aparelhos de normalização, regulação e controle. Visando dar conta disso, proliferam os grandes complexos de internação para infância e juventude, dispondo de um modelo punitivo-repressivo, legitimado, dentre outros, pelo saber da psicologia.

Compartilhamos com Foucault (1996) a ideia de que o lugar de saber-poder ocupado pelos especialistas e sua habilidade em instituir verdades eternas e a-históricas produz sentidos por/para os sujeitos. Dessa forma, o saber age nos indivíduos a partir da observação, da rotulação, do registro, da análise de seu comportamento, da comparação entre os tidos como desiguais e da sua posterior desqualificação, visto que a razão especialista se pauta pela vigilância, o controle e a disciplina, transformando questões sociais em problemas individuais, ao retirar das análises a condição histórica dessas questões. As múltiplas forças do poder dos especialistas constroem valores e sensibilidades e se apresentam de diferentes maneiras no cotidiano.

Os efeitos que os saberes dos especialistas produziram no interior dos internatos foram colocando em análise suas formas de funcionamento. Assim é que a partir dos anos de 1980 a internação e o cotidiano de sua aplicação passam a ser objeto de debates. Sobretudo questionava-se a utilização dessa prática como dispositivo de controle das famílias pobres. Discussões dessa ordem, somadas ao cenário político brasileiro daquela época, marcado pela elaboração e promulgação da Constituição de 1988 e pela presença de fortes movimentos sociais, prepararam o terreno para a revogação do Código de Menores e sua substituição pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. O ECA, portanto, tenta interromper o percurso histórico da internação ao propor uma lógica de contraposição aos grandes estabelecimentos de acolhimento de crianças e jovens, instituindo o abrigo enquanto dispositivo de proteção.

Mais uma vez nos fazemos acompanhar de Foucault e do que ele nos diz sobre os discursos. Para ele, o discurso "não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos" (Foucault, 1971).

Dessa forma, o que seria a lei senão um discurso? Um discurso que se faz em meio a relações de força e produz efeitos sobre essas próprias relações. Diferente do que se pensa e se espera, a lei não cria a realidade por si só. É mais um discurso circulando, mais uma palavra de ordem no meio de outras forças. É fato que existe todo um aparato junto a esse discurso legal que pretende fazê-lo funcionar de determinada forma. Existe uma relação de força para fazer a palavra legal funcionar de modo a prescrever comportamentos. Só que como toda relação de força, ela não é estática e nem definitiva.

De acordo com Passetti (2007),

O Direito (...) é produto de uma luta entre forças, que justifica a força vencedora e o seu egoísmo, mesmo quando esta se apresenta igualitária, altruísta e com facetas universalistas. Assim é que todo direito se expressa em lei a ser respeitada pelo cidadão (...) (p.76)

Fica, pois, a questão: o que aconteceu no intervalo entre as lutas, os movimentos que construíram o ECA e a realidade dos abrigos, no que se refere à implantação das noções trazidas pela nova lei? Para pensá-la é fundamental evocar os processos de subjetivação que instituem nossas práticas e que através de diferentes mecanismos, como por exemplo, a mídia forma os sujeitos e seus modos de funcionamento. É interessante lembrar que no caso da mídia, sua ação se faz de preferência atrelada aos especialistas, que constantemente são convocados a dar pareceres nos meios de comunicação,

As noções de família desestruturada, de menor, de infâncias desiguais, de pais ideais são constantemente vinculadas à desqualificação e mesmo à criminalização da pobreza. Veiculadas no espaço social, em destaque pela mídia, vão produzindo subjetividades que julgam os pobres como necessitados de intervenção, inclusive psi, no sentido de corrigir, enquadrar e adaptar as pluralidades de seus modos de vida a modelos hegemônicos de família, trabalho, infância, dentre outros. Isso, apesar do Estatuto tentar justamente romper com essa lógica assistencialista e desqualificadora.

Sendo assim, é através de um discurso científico, que legitima, reforça e coloca a família pobre no lugar da impotência, e da massificação desse pensamento através dos meios de comunicação, que as práticas no campo da infância e juventude também vão sendo constituídas. Conceber o modo de vida dos pobres como desprovido de condições para o cuidado de seus filhos é herança que vem do Código de Menores. Tal noção, não completamente desmontada com a entrada do ECA, ganha espaço, dentre outros aspectos, apoiada em forças circulantes que associam a pobreza com risco, periculosidade e violência.

Apesar do ECA propor uma nova política de assistência para a infância e a juventude, que promove a noção de sujeitos de direitos, a garantia desses direitos fica prejudicada em função de uma disparidade entre os processos presentes numa ordem macropolítica e os que se apresentam numa perspectiva micro. Na passagem do Código de Menores para o ECA, a dificuldade de desmontar um modo de funcionamento e construir outro esbarra nas singularidades e nas multiplicidades do cotidiano. A lei, assim, não garante a implantação de seus preceitos. O instrumento legal é, sem dúvida, de suma importância nesse processo, no entanto, não dá conta da  pluralidade presente no dia a dia das práticas dos abrigos.

Além disso, é preciso referir, também, o processo através do qual a lei se faz. O ECA emergiu num contexto de movimentos de luta, movimentos sociais, e culmina com um poder constituído, a Lei. Parece-nos importante, e trágico, para os movimentos sociais que suas lutas para construir uma realidade, percam força justamente no momento em que se consegue legislar uma determinada questão. Pode-se dizer que os movimentos de defesa dos direitos da infância e da juventude reduziram suas forças após a promulgação do ECA, e sabemos que seria justamente neste momento da cotidianidade da aplicação da lei que mais fortemente deveriam estar presentes. O advento do Estatuto traz novas perspectivas para a população infanto-juvenil ao propor a doutrina de proteção integral e criar o sistema de garantias de direitos. Esse sistema envolve, além do poder público, entidades da sociedade civil organizada, que têm lugar fundamental no cenário da proteção. São as condições de organização dessas entidades, suas forças de articulação em rede e suas posturas ético-políticas frente à consolidação do texto da lei que irá garantir os direitos de crianças e jovens.

Nossa pesquisa apontou que em muitos casos de abrigamento inexiste um trabalho com as famílias que assegure o caráter provisório e excepcional da medida. Esse deveria ser um campo de atuação dos movimentos de defesa dos direitos de crianças e jovens, orientados para o fortalecimento das famílias e da convivência familiar e comunitária.

É com a lógica de internação que o ECA tenta romper. Entretanto, na literatura consultada nesta pesquisa, algumas afirmações apresentadas corroboram com a ideia, já mencionada, de que o abrigo além de protetor, também viola os direitos de crianças e jovens, em descumprimento da lei. Tomando mais um exemplo, diz o Estatuto que não mais se pode abrigar por pobreza, mas não são justamente as crianças e os jovens pobres, filhos dos qualificados como negligentes, descuidados, violentos, que continuam sendo abrigados? Ou seja, são os pobres os considerados necessitados de intervenções especialistas que possam regular e tutelar suas vidas.

Muitas são as interfaces que permeiam esse processo histórico de cronificação da pobreza, em que a questão econômica emerge como um dos mais nocivos vetores. Embora se saiba que a pobreza em si não deveria ser causa do abrigamento de uma criança ou adolescente como preconizado pelo ECA, nos inúmeros casos de abrigo em que a justificativa é a pobreza, constata-se uma situação de miséria – crescente e avassaladora – que interfere diretamente na dinâmica das relações familiares e gera as denominadas "famílias desestruturadas", um termo que identifica "famílias incapazes de cuidar dos filhos. (Oliveira & Milnitsky-Sapiro, 2007, p.10)

Nesses moldes, o que podemos extrair do conjunto de dados e análises que realizamos ao longo da pesquisa, referente ao descompasso entre a lei e o cotidiano de abrigamento, é que a implantação do ECA, no que diz respeito aos abrigos, vem experimentando um embate de forças que, em certos momentos, faz funcionar engrenagens produtoras de infâncias desiguais e mecanismos violadores dos direitos da população infanto-juvenil pobre.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: mlivianascimento@gmail.com

Recebido em março de 2009
Aprovado em junho de 2009

 

 

Maria Lívia do Nascimento: Psicóloga; Doutora em Psicologia (PUC-SP). Professora do Departamento de Psicologia/Universidade Federal Fluminense (UFF).
Alessandra Speranza Lacaz: Graduanda de Psicologia UFF; Bolsista PIBIC/CNPq.
Marilisa Travassos: Graduanda de Psicologia UFF.
1 As citações que aparecem com asterisco referem-se aos textos utilizados como fonte da pesquisa bibliográfica.
2 O sistema total tem como suporte as instituições totais (manicômios, prisões, asilos, conventos) (Goffman, 1974). No que se refere ao tema aqui tratado – infância e juventude – diz respeito ao complexo de estabelecimentos que se destinavam à internação de crianças e jovens. Ancorados pela proposta de substituição da caridade pela filantropia, emergem no século XIX, fazendo parte de um aparato médico-jurídico-assistêncial, que buscava a prevenção, a reeducação e a recuperação dessa parcela da população quando vista como perigosa ou em perigo. Com base na vigilância e no controle, funcionava como forma de promover a correção dos internados e o saneamento social. Na maioria dos casos, atuavam como depósito, já que o mais comum era só deixar o estabelecimento após a maioridade, mesmo que ao longo de suas vidas passassem por diferentes locais de internação.

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