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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.31 Canoas abr. 2010

 

ARTIGOS DE ATUALIZAÇÃO

 

Conjugalidade em contexto de depressão da esposa no final do primeiro ano de vida do bebê

 

Conjugality in context of wife's depression by the end of the infant's first year of life

 

 

Giana Bitencourt Frizzo; Ivani Brys; Rita de Cássia Sobreira Lopes; Cesar Augusto Piccinini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente estudo investigou o relacionamento conjugal no contexto da depressão materna, no final do primeiro ano de vida do bebê. Participaram do estudo 22 casais, divididos em dois grupos, um em que a esposa apresentava indicadores de depressão (10), e outro em que não os apresentava (12), segundo o Inventário Beck de Depressão. Os bebês tinham em torno de 12 meses de idade, sendo 8 meninas e 14 meninos. O teste Mann-Whitney indicou diferença significativa entre os dois grupos quanto à depressão, mas não em relação às diversas variáveis sociodemográficas investigadas. Análise de conteúdo qualitativa das entrevistas indicou que, comparado ao grupo sem depressão, as esposas com indicadores de depressão relataram mais dificuldades com relação ao companheirismo e o tempo para o casal, à comunicação e resolução de conflitos e à avaliação global da qualidade do relacionamento conjugal e sexual. Esses resultados corroboram outros estudos que têm destacado que a presença de indicadores de depressão na esposa pode trazer dificuldades para a conjugalidade.

Palavras-chave: Relacionamento conjugal, Conjugalidade, Depressão materna, Parentalidade.


ABSTRACT

The present study investigated marital relationship in the context of maternal depression, at the end of the baby's first year of life. Twenty-two couples, divided into two groups, took part in the study. In one of them the wife presented depression indicators (10), and in the other there were no depression indicators (12), according to Beck's Depression Inventory. The babies were around 12 months, 8 girls and 14 boys. Mann-Whitney test indicated significant differences between the two groups as far as depression is concerned, but not regarding the  several investigated socio-demographic variables. Qualitative content analysis of the interviews indicated that, compared to the group without depression, the wives with depression indicators reported more difficulties regarding partnership and time for the couple, to the communication and resolution of conflicts and to the global evaluation of the quality of the marital and sexual relationship. Those results corroborate other studies which have highlighted that the presence of depression indicators in the wife can bring difficulties for marital relationship.

Keywords: Marital relationship, Conjugality, Maternal depression, Parenthood.


 

 

Introdução

Devido a algumas condições específicas ao encontro mãe-bebê e pai-bebê, é possível que a mãe sinta dificuldades em lidar com as mudanças que sucedem após o nascimento de um filho. Com frequência, durante a transição para a parentalidade, algumas pessoas não conseguem preservar seus interesses pessoais e, principalmente, suas relações de casal (Cramer & Palácio-Espasa, 1993). Waldemar (1998) afirma que não é incomum que, em famílias com filhos pequenos, os casais acabem dedicando muito tempo aos cuidados com os filhos, relegando a conjugalidade para um segundo plano. Algumas vezes, esse pouco investimento na conjugalidade é sentido como um sentimento de insuficiência, de fracasso e de esgotamento (Cramer & Palácio-Espasa, 1993).

A qualidade do relacionamento conjugal estabelecido ainda antes do nascimento do primeiro filho pode ser um importante fator de ajustamento nesse período, podendo inclusive predizer alguns desfechos possíveis. Menezes e Lopes (2007) sugerem que a estrutura da relação conjugal possui forte influência no desenrolar da transição para a parentalidade, já que esse momento pode potencializar um distanciamento já existente no casal.

Nesse contexto, a depressão pode ser um fator que traz complicações para o ajustamento do casal às novas demandas. Uma das formas que a depressão pode afetar a família é através de um possível aumento de problemas no relacionamento conjugal (Cummings, Keller & Davies, 2005). Ainda sobre a associação entre depressão materna e qualidade do relacionamento conjugal, Mayor (2004), em um estudo longitudinal realizado com participantes de Porto Alegre, sugere que parecem existir diferenças nas famílias com e sem depressão materna. Nas primeiras, houve maior relato de existência de conflitos, menor apoio do marido e maior insatisfação conjugal. Interessante notar que, durante a gestação, as famílias não apresentavam maiores diferenças entre si nesses aspectos. Foi após o nascimento do bebê que as diferenças entre essas famílias apareceram, sendo que as famílias com mães deprimidas apresentaram maiores dificuldades durante essa transição para a parentalidade, especialmente quanto à satisfação conjugal.

A satisfação conjugal aumenta quando há proximidade, estratégias adequadas de resolução de problemas, coesão, boa habilidade de comunicação, se os cônjuges estiverem satisfeitos com seu status econômico e forem praticantes de sua crença religiosa (Norgren, Souza, Kaslow, Hammerschmidt, & Shlomo, 2004). Mas é possível que esses sejam alguns fatores também afetados pela presença de depressão e que poderiam, então, levar a uma maior insatisfação conjugal.

A depressão pode, inclusive, afetar a percepção da mãe quanto ao apoio recebido. No estudo de Schwengber e Piccinini (2005), as mães deprimidas de Porto Alegre referiram sentimentos ambivalentes em relação ao apoio social recebido por parte dos familiares e amigos, além de sentimentos muito ambivalentes em relação ao apoio recebido do companheiro e a seu papel como pai. Já o estudo de Fritsch e cols. (2005) mostrou que as mulheres deprimidas tiveram uma avaliação mais negativa da qualidade de vida familiar e da relação conjugal, posição corroborada por seus parceiros. Beach e O´Leary (1993) também encontraram que pessoas deprimidas podem avaliar de modo mais negativo a qualidade do relacionamento conjugal, como uma consequência de seus sintomas depressivos.

Além disso, conviver com uma pessoa deprimida pode ser sentido como fonte importante de tensão e angústia emocional para os cônjuges. Benazon e Coyne (2000) sugerem que o impacto da depressão não se restringe ao indivíduo, pois os cônjuges de pacientes deprimidos relataram diminuição em suas atividades sociais e de lazer, queda na renda familiar e aumento de tensão na relação conjugal. Segundo Papp (2000), essa sobrecarga sobre o cônjuge sem depressão pode ser ainda maior, pois se sentir emocionalmente vinculado a uma pessoa, como o cônjuge, pode ser essencial no alívio da depressão. Para essa autora, o relacionamento conjugal é muito importante para a mulher após o nascimento do bebê, posição também corroborada por Trad (1997). Segundo esse ponto de vista, a insatisfação conjugal pode até mesmo ser um fator de risco para o desenvolvimento de depressão nesse momento (Alvarado e cols., 2000).

A literatura revisada acima aponta que, quando um membro do casal tem depressão, pode haver interferências na qualidade das relações familiares, tanto diretamente, através das interações com a criança, como indiretamente, influenciando as condições do relacionamento conjugal (Braz, Dessen & Silva, 2005). Além disso, a depressão parental pode alterar o desenvolvimento da criança, ao modificar o comportamento dos genitores, o que pode acarretar risco, predispondo-a a problemas emocionais e de comportamento (Jacob & Johnson, 1997). O exercício da parentalidade requer uma reorganização familiar, em que o bebê é incluído e o casal precisa de uma nova acomodação para desempenhar as tarefas de cuidado e educação dos filhos, sem esvaziar sua conjugalidade (Minuchin, 1982). Dessa forma, é importante investigar a qualidade das relações conjugais e seu impacto no desenvolvimento da criança, no seu ajustamento social (Dessen & Braz, 2000) e na família. Vários estudos têm investigado particularmente a depressão pós-parto (Field, 1995; Frizzo, 2008) e outros, a depressão e a maternidade no primeiro ano de vida do bebê (Schwengber, 2007; Schwengber & Piccinini, 2005), mas poucos têm examinado a conjugalidade neste contexto. De forma geral, os estudos que investigaram a conjugalidade e a depressão indicaram uma associação entre estes dois fatores com o surgimento de problemas conjugais (Cramer & Palácio-Espasa, 1993; Cummings, Keller & Davies, 2005; Frizzo, 2008; Linares & Campo, 2000; Mayor, 2004; Prado, 1996; Trad, 1997). Nesse sentido, o objetivo desse estudo foi investigar o impacto da depressão da esposa na conjugalidade em casais com bebês no final do seu primeiro ano de vida.

 

Método

Participaram do estudo 22 casais, divididos em dois grupos, um em que a esposa apresentava indicadores de depressão (10 participantes), e outro em que a esposa não os apresentava (12), conforme o resultado do Inventário Beck de Depressão (Beck & Steer, 1993; Cunha, 2001). No grupo de esposas com indicadores de depressão, sete apresentavam indicadores de intensidade leve e três de intensidade moderada. Os bebês tinham em torno de 12 meses de idade, sendo 8 meninas e 14 meninos. Todas as esposas de ambos os grupos moravam com o marido1, que era o pai do bebê. As Tabelas 1 e 2 apresentam as características sociodemográficas dos casais. O teste Mann-Whitney não indicou diferenças sociodemográficas entre os dois grupos quanto à idade, escolaridade, nível socioeconômico do casal e sexo do bebê. O nível socioeconômico dos casais foi avaliado de acordo com critérios baseados em Hollingshead (1975), adaptados para o presente estudo por Tudge e Frizzo (2002).

 

 

 

Delineamento, procedimentos e instrumentos

Foi utilizado um delineamento de grupos contrastantes (Nachmias & Nachmias, 1996), a fim de comparar eventuais diferenças entre os casais cujas esposas apresentavam ou não indicadores de depressão. A amostra foi selecionada dentre os participantes do "Estudo Longitudinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola- ELPA" (Piccinini, Lopes, Sperb & Tudge, 1998), que teve por objetivo investigar tanto os aspectos subjetivos e comportamentais das interações iniciais pai-mãe-bebê, como o impacto de fatores iniciais do desenvolvimento nas interações familiares, no comportamento social de crianças pré-escolares e na transição para a escola de ensino fundamental. Esse estudo iniciou acompanhando 81 gestantes, que não apresentavam intercorrências clínicas, seja com elas mesmas ou com o bebê, que era seu primeiro filho. Os maridos também foram convidados a participar do estudo, caso residissem juntos em situação matrimonial. Os participantes representavam várias configurações familiares (nucleares, monoparentais ou re-casados), de diferentes idades (adultos e adolescentes) e com escolaridade e níveis socioeconômicos variados. Foram realizadas várias coletas de dados desde a gestação até os oito anos das crianças (gestação, 3º, 8º, 12º, 18º, 24º, 36º meses e 6º,7º e 8º ano de vida da criança). O convite inicial para participar do estudo ocorreu quando a gestante fazia pré-natal em hospitais da rede pública da cidade de Porto Alegre (41%), nas unidades sanitárias de saúde do mesmo município (4%), através de anúncio em veículos de comunicação (14%:) e por indicação (41%). Naquela ocasião, foi preenchida a Ficha de contato inicial (GIDEP, 1998), visando obter dados sociodemográficos dos participantes. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da UFRGS (Resolução n° 2006596).

Para fins desse estudo, foram utilizados os dados relativos à coleta de dados realizada aos 12 meses de idade do bebê. Nesse momento, seguindo o plano de coleta de dados do projeto ELPA, o casal foi convidado a comparecer a um novo encontro no Instituto de Psicologia para realizar as entrevistas referentes a essa etapa. A esposa e o marido responderam separadamente à Entrevista sobre o desenvolvimento do bebê e a experiência da maternidade (GIDEP, 1999a) e à Entrevista sobre o desenvolvimento do bebê e a experiência da paternidade (GIDEP, 1999b), respectivamente. Essas entrevistas tinham por objetivo investigar as impressões maternas e paternas a respeito do crescimento, desenvolvimento, habilidades e características emocionais do bebê, os sentimentos sobre ser mãe/pai, as impressões sobre o marido como pai e da esposa como mãe, a rede de apoio em relação aos cuidados com o bebê e a ocorrência de eventos estressantes. Após, o casal respondia conjuntamente à Entrevista com o casal com bebê de doze meses (GIDEP, 2000), cujo objetivo era investigar como estava a vida do casal no momento, sua rotina e o relacionamento conjugal. O Inventário Beck de Depressão (Beck & Steer, 1993; Cunha, 2001) foi preenchido apenas pela esposa. As entrevistas foram conduzidas por outros pesquisadores que não os autores do presente estudo.

Dos 47 casos do ELPA2 avaliados pelo BDI aos 12 meses de vida do bebê, 26 esposas (34%) apresentaram indicadores de depressão, sendo que 5 (11%) foram classificadas como apresentando depressão moderada e 11 (23%) depressão leve. 31 esposas (66%) não apresentaram depressão. Para fins do presente estudo, foram inicialmente selecionados todos os casais cuja esposa apresentava indicadores de depressão, morasse com o marido, que era o pai do bebê, e que tinham os dados completos, o que permitiu a inclusão de dez casais. Foram então selecionadas as esposas que não apresentavam indicadores de depressão, que tinham dados completos e que apresentavam características sociodemográficas semelhantes ao grupo com indicadores de depressão, o que permitiu a inclusão de doze casais.

 

Resultados e discussão

As entrevistas foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa (Bardin, Laville & Dionne, 1999), com base em três categorias: companheirismo, atração física e paixão romântica (Waldemar, 1998) e comunicação, que foi também incluída por ser bastante referida nos estudos sobre conjugalidade (Braz, Dessen & Silva, 2005; Garcia & Tassara, 2003; Norgren & cols., 2004). Para cada uma dessas categorias, foram incluídas subcategorias, que permitiram explicitar detalhes dos resultados, conforme exposto a seguir. Tomando-se por base esta estrutura de categorias, inicialmente foram feitas repetidas leituras de todas as entrevistas das esposas e dos maridos, buscando-se identificar todos os relatos que caracterizassem cada uma das categorias e subcategorias acima. As análises foram realizadas de forma independente por duas das autoras deste artigo, sendo que as eventuais diferenças foram revisadas e discutidas até haver um consenso. Caracteriza-se, a seguir, cada uma das categorias e subcategorias, ilustrando-as com os relatos dos participantes, destacando inicialmente as semelhanças e depois as particularidades nos relatos dos casais nos dois grupos.

Companheirismo

Essa categoria refere-se à dedicação dos membros do casal no relacionamento conjugal. Para fins de análise, foi subdividida em três subcategorias: tempo para o casal, cuidar um do outro e divergências e conflitos.

Uma importante semelhança que ocorreu entre os grupos foram os relatos de que conseguiam organizar o tempo do casal, independente do tempo dedicado ao bebê (cd:E4/E9/E10/M8/M2/M4/M5; sd:E12/E17/E20/E22/M12/M22)3,4, como exemplificado na fala a seguir: "A gente procura assim ter um final de semana que a gente sai nós dois, nós deixamos [filho] com a mãe ou a gente liga pra babá, pra ela ficar" (E20/sd). No entanto, algumas diferenças apareceram quando essa questão foi mais bem explorada ao longo da entrevista. No grupo de esposas deprimidas5, os casais pareciam ter maior dificuldade na organização do tempo do casal, quando o bebê não estivesse presente, restando para o casal apenas os momentos em que o bebê estivesse dormindo (cd:E9/M6/M8): "O tempo que a gente tem junto a gente não tá.... não tá junto, a gente tá no ambiente de serviço, então não tá disponível. E depois em casa a gente dá maior atenção para ela, até ela dormir né, depois a gente tem um tempo para ficar só nós dois... (M8/cd)". Embora isso também tenha sido relatado pelo grupo com esposas deprimidas (sd:E11/E13/E14/E16/E17/E20/M13/M17/M16), parecia que nesse a divisão do tempo se dava com mais tranquilidade: "As coisas pessoais sempre se revezando até que ela durma, quando ela dorme, a gente pode olhar filme junto... tem mais tempo né" (M16/sd). Alguns casais, em ambos os grupos, relataram que o tempo em que estão juntos, o bebê sempre está presente (cd:E1/E2/E3/E14/E6/E7/E8/E9/M5/M14/M8; sd:E11/E14/E20/E22/M14/M19/M21). Isso foi relatado como queixa por algumas esposas deprimidas (cd:E1/E2/E9) "Eu tenho que estar junto. Então de noite, o quê que se faz? Que ele possa ir junto. Jantar. Então é o que a gente faz, a gente vai comer pizza..." (E2/cd). Houve também um relato de dificuldade em se separar do bebê: "Eu, aonde eu for, eu gosto de levar ele [bebê] comigo. Eu não gosto de deixar ele com ninguém." (E2/cd). Outra esposa deprimida relatou que passou a incluir o bebê nos passeios do casal para poderem retomar à vida normal: "É que a gente tá percebendo que se a gente incluir a [bebê] no nosso programa, a gente faz coisas normais. A gente vai passear, sempre, e leva ela junto." (E6/cd). Mas vários casais, em ambos os grupos, relataram que incluíam o bebê para poder aproveitar melhor o tempo em que estavam juntos: "Mas de noite a gente aproveita, de noite a gente janta e a primeira coisa que a gente faz é ir pro quarto, os três, ficar ali junto, ficar olhando TV, mas geralmente a gente procura sempre ir os três juntos, descansar, olhar TV, ficar juntos, pelo menos esse tempo. A gente faz coisas junto, a gente, domingo, a gente não faz muita coisa diferente, mas a gente fica mais tempo junto" (E7/cd). Da mesma forma, isso aconteceu nos casais com esposa sem depressão, que consideravam essa inclusão do bebê como já esperada, como pôde ser visto nesse diálogo do casal: "E: –É que já era tão previsto assim que os nossos planos eram estar com ela, a gente adaptou muita coisa, as saídas... M: – Tudo gira em função dela [bebê]. E: – É. Nossa vida gira muito em função dela, então, ah, a praia ou sair... M: – Quer ir para a praia, 'Ah, mas e daí?', tudo em função dela. É, a maior parte é sair assim durante o dia para parque, que ela gosta e é isso" (E14/M14/sd). Finalmente, poucos casais, em ambos os grupos, relataram explicitamente que não tinham mais tempo juntos (cd:E7/M2; sd:E12/M12): "A gente não tem aquele tempo pra nós, né." (E7/cd)".

Juntos estes relatos mostram que, quando se tem filhos pequenos, pode ficar difícil organizar um tempo somente para o casal, mesmo na ausência de depressão (Cramer & Palácio-Espasa, 1993; Waldemar, 1998). Esse ajustamento entre o subsistema conjugal e parental é uma importante tarefa dessa etapa do ciclo vital (Carter & McGoldrick, 1995), por ser necessário criar um espaço para inclusão do bebê sem perder o apoio e companheirismo no relacionamento do casal. Esse desafio pode ser sentido como algo já esperado, como citado pelos casais sem depressão, ou suscitar sentimentos de insuficiência, de fracasso e de esgotamento (Cramer & Palácio-Espasa, 1993), como apareceu particularmente nos relatos dos casais com esposas com indicadores de depressão do presente estudo. A depressão pode, então, ser considerada um fator estressor que dificulta a adaptação nesse momento de transição na vida da família.

Na subcategoria cuidar um do outro, apareceram poucas semelhanças e várias diferenças entre os casais com e sem esposa deprimida. No que diz respeito às semelhanças, nos dois grupos apareceu, com pouca frequência e somente na fala dos maridos, a questão de o marido ajudar a esposa nas tarefas de casa como uma forma de ajudar o outro (cd: M1/M5/M6/M9/M10; sd: M11/M19/M21/M22): "Aí, fica, quando eu tô em casa, sempre eu tô ajudando ela, limpando, coisa assim" (M1/cd); "Ela chega em casa, hoje tem um monte de roupa, ela chega em casa e vai estar passada" (M21/sd). Essa subcategoria teve maior incidência nos casais com esposas deprimidas, (cd: E2/E5/E6/E8/E9/E10/M2/M5/M6/M9/M10), com grande convergência no relato de ambos membros do casal. Houve relatos de o marido cuidar do bebê para a esposa descansar: "Eu fico com ela [bebê] para minha esposa tomar um banho, fazer uma sauna, e depois ela [bebê] fica com a mãe e eu faço. A gente se adapta dessa forma, porque nem sempre tem alguém pra cuidar dela..." (M6/cd) ou para terem mais tempo juntos "Meu marido faz tudo, até o serviço da casa, ele me ajuda dia de semana, pra gente poder terminar rápido" (E9/cd). As falas das esposas com depressão também se referiram ao apoio do marido para que elas se sentissem melhores, o que envolveu possíveis sintomas de depressão, por exemplo, quando a esposa chorava sem motivo e o marido ficava preocupado com isso: "O [marido] me ajudava um monte. Ele chegava em casa e nós duas chorando... e ele não sabia se acudia a ela ou acudia a mim..." (E8/cd). Cabe ressaltar que, nos casais sem depressão, houve apenas relatos dos maridos se sentirem cuidados pelas esposas, especialmente quando ela não trabalhava fora de casa "No dia-a-dia da casa, nessa história de ela não trabalhar, ela termina então dando uma dedicação adicional. Contribuição adicional, até me poupando de demandas que certamente se ela trabalhasse fora, eu teria que auxiliar" (M22/sd). Não houve nenhum relato das esposas nessa subcategoria como apareceu nos casais com esposas deprimidas.

Estas falas ilustram como a esposa e o marido precisam um do outro como um refúgio para as exigências múltiplas da vida (Minuchin, 1982). Especificamente em situação de depressão materna, o pai pode amenizar possíveis efeitos negativos da depressão para seus filhos ao apoiar a esposa deprimida, o que acaba contribuindo para uma melhor parentagem (Frizzo & Piccinini, 2005). Ao mesmo tempo, isso contribui para a satisfação conjugal, se a mulher perceber isso como um cuidado com ela, como um indicador desse "refúgio" proposto por Minuchin (1982).

Quanto à subcategoria divergências e conflitos, houve mais diferenças nos relatos entre os dois grupos, com maior relato de conflitos nos casais com esposa deprimida (cd: E5/E7/E8/M2/M8; sd: M19/M21). Em sua maioria, nos casais com esposas deprimidas, os conflitos foram relacionados às diferenças de temperamento: "Ele tem saído com os amigos dele, eu não gosto de sair, aí ele vai com os amigos dele" (E7/cd); à falta de apoio numa situação em que a esposa se sentiu mal: "Ele achou que eu estivesse fingindo a indisposição e disse que ia levar [filho] lá pra mãe. Dá uma olhada nele, eu só quero dar uma descansada. Eu não sei o que eu tenho, eu tô um pouco indisposta, eu tô com dor de cabeça, uma situação estranha pra mim, sintomas que eu não tinha sentido. Aí ele simplesmente disse pra mim, então tu trata de ficar boa" (E5/cd) e ao pouco tempo para ficar junto: "Mas ela [esposa] é muito dorminhoca... ela não assiste a um filme comigo...." (M8/cd).

Nos casais sem depressão, houve apenas dois relatos que referiram divergências e conflitos (M19/M21), sendo que ambos diziam respeito às tarefas domésticas e isto só apareceu nas falas dos maridos: "Ah, do ponto de vista dela, eu sempre poderia fazer um pouquinho mais. Mas não em relação a ele [filho], mas em relação à casa." (M19/sd). Apareceu também divergência nas tarefas domésticas em um casal com esposa deprimida, mas com maior intensidade: "Acho que ela não gosta de ficar junto, então ela sai lá e depois ela vem... aí na hora de voltar para casa aí tem que tomar banho, tem que fazer a refeição... aí quando eu acho que a gente vai descansar, ela vai passar roupa... aí em vez de nós ficarmos descansando e curtindo ficar com ela [bebê], ela tem que ficar passando roupa... então fica tudo complicado" (M8/cd). Especialmente em relação a essa última vinheta, podemos pensar que, conforme preconizado pela literatura, a pessoa deprimida parece ter uma tendência a priorizar os deveres e responsabilidades, negligenciando os momentos de prazer e descanso (Linares & Campo, 2000). Além disso, devemos lembrar que essa subcategoria se refere a divergências e conflitos no companheirismo do casal e não a questões mais globais de conflito. Ainda assim, estes relatos corroboram a associação entre depressão e conflito conjugal existente na literatura (Alvarado e cols., 2000; Cummings e cols., 2005; Mayor & Piccinini, 2005). Embora divergências e conflitos tenham aparecido nos dois grupos, nos casais com esposas deprimidas, os relatos foram mais frequentes e intensos, tanto na fala dos maridos como das esposas.

Comunicação

Essa categoria se refere à qualidade da comunicação entre o casal. Para fins de análise, foi subdividida em duas subcategorias: resolução de conflitos e divergências e conflitos. Quanto à primeira subcategoria, a resolução de conflitos, nos casais com esposas deprimidas, aparentemente, havia conflitos que não eram solucionados de forma adequada para ambos, pois um deles acabava cedendo sempre (cd: E2/E6/M2/M5): "É, eu já decidi que não fico mais brava. Não vou mais me estressar à toa" (E2/cd). Um casal desse grupo relatou uma divergência, pois a esposa referiu que o marido conversava com ela: "Eu acho que a gente conversa bastante, ele procura ser carinhoso, se ele tiver que falar alguma coisa... ou eu tiver com alguma coisa, mau humor por exemplo... ele deixa eu me acalmar, depois ele vem e conversa: 'O que que tu tem?... porque tu tá assim?'" (E8/cd) e o marido relatou que não costumava conversar: "Então, quanto a isso, não tem muita ajuda... e quando a gente briga ou coisa assim, não tem... eu não costumo conversar muito" (M8/cd).

Já nos casais sem depressão, o diálogo apareceu como forma de resolução de conflitos (sd: E11/E22/ M20/M22): "Às vezes, a gente tem um desentendimento, ela [esposa] quer resolver logo e, às vezes, ela tá junto, então, não vale a pena, eu não insisto em falar enquanto a nenê tá junto, até porque ela vai sentir que tem uma... então, não precisa saber disso, não é que não precisa saber, mas que ela não precisa passar por isso, até porque isso não é dela, não é assunto dela, não é dela, não é problema dela, uma coisa nossa, de nós resolver, aí, depois a gente fala." (M22/sd).

Quanto à subcategoria divergências e conflitos, apenas um casal, do grupo das esposas deprimidas, fez um relato incluído nessa subcategoria, tanto pelo marido como pela esposa: "E eu quero conversar, sabe? Eu passei o dia inteiro sozinha. Eu quero conversar, eu quero que ele me conte como é que foi... E ele não presta atenção no que eu falo, porque ele fica na televisão, sabe?" (E2/cd). "Daí eu não falo com ela também, porque eu tô vendo o jogo!" (M2/cd).

De acordo com Cummings e Davies (1994), mulheres deprimidas podem ter dificuldade em explicar as causas e consequências de suas brigas, aproximando-se então de uma característica de casais disfuncionais que, muitas vezes, têm dificuldades na identificação do problema, pois a pouca clareza na comunicação bloqueia a sua definição (Walsh, 2002). Em geral, esses casais têm dificuldade de exprimir as diferenças por um grande medo de que o conflito aumente e ocasione violência ou ruptura do casamento. Linares e Campo (2000) corroboram essa asserção ao descreverem algumas características de casais com esposas deprimidas, onde a evitação de conflito parece ser bastante comum, exatamente pelo receio de ruptura na relação. Porém, essas estratégias só fazem aumentar a possibilidade de que os problemas não sejam enfrentados de modo eficaz, com consequências negativas para o relacionamento (Walsh, 2002). Em uma revisão teórica realizada por Mayor e Piccinini (2005), os autores apontaram que, quanto mais o casal puder escutar um ao outro, respeitar e aceitar o ponto de vista do outro, mais chances têm de encontrar uma solução para seus conflitos que satisfaça a ambos. Garcia e Tassara (2003) também apontaram que a falta de diálogo constitui-se num dos principais problemas nos casamentos de modo em geral. No caso de casais cuja esposa apresenta depressão, esse parece ser um desafio particularmente importante.

Atração física e paixão romântica

Essa categoria refere-se à qualidade do relacionamento conjugal relatada pela esposa e marido. Para fins de análise, foi subdivida em qualidade do relacionamento conjugal, percepção em relação ao outro e divergências e conflitos. Quanto à primeira subcategoria, casais de ambos os grupos avaliaram de forma positiva seu relacionamento conjugal (cd:E2/E3/E6/E7/P2/P4/P9; sd:E11/E12/E14/E13/E17/M11/M12/M13), como no relato desse marido: "Mudou pra melhor, né, tem pessoas que reclamam, mas eu, da minha parte melhorou mais, assim." (M11/sd). Por outro lado, houve uma pequena diferença entre os grupos, pois nos casais com esposas deprimidas, não foram referidas melhoras no relacionamento conjugal após o nascimento do bebê: "Não, eu acho tá, assim, normal. Tá bom" (E3/cd), ao contrário do que foi relatado nos casais sem depressão, onde apareceram mais avaliações de que o relacionamento melhorou, principalmente em comparação com os primeiros meses após a chegada do bebê (sd:E14/E17;M11/M12/M14): "Então, acho que isso facilita um pouco e aí isso faz com que o casal também fique melhor, né, comece a ter mais momentos." (E14/sd). Devemos lembrar que o casal contemporâneo é confrontado o tempo todo com forças paradoxais: por um lado, deve sustentar o crescimento e o desenvolvimento de cada um e, por outro, surge a necessidade de vivenciar a conjugalidade e os desejos e projetos comuns do casal (Féres-Carneiro, 1998). Conciliar essas demandas pode ser especialmente difícil para as famílias principalmente em alguns momentos de crise no ciclo vital, como na ocasião do nascimento dos filhos. No entanto, quando existe um bom relacionamento conjugal, a tendência é que, passado o momento inicial de crise, a reorganização estabelecida de certa forma tende a restaurar os sentimentos de satisfação familiar e conjugal. Não devemos esquecer, entretanto, que a depressão nesse período do ciclo vital é um fator estressor imprevisível que se sobrepõe à crise normativa, característica principalmente do nascimento do primeiro filho do casal (Carter & McGoldrick, 1995). E com essa sobreposição, pode ser mais difícil avaliar os aspectos positivos das mudanças.

Alguns casais, em ambos os grupos, avaliaram de forma negativa seu relacionamento (cd:E2/E6/M4/M8; sd:M13/M19). Nos casais com esposa deprimida, houve maior incidência desses relatos e pareceu que essa percepção foi relatada com mais intensidade: "Eu tinha um cansaço, uma angústia, uma coisa assim. Primeiro porque eu fiquei muito insatisfeita com o meu corpo, pra começar. Porque eu acho que, no meu inconsciente, estava assim, 'Aquela que me estragou', tá, 'que me deixou, assim, mal, porque eu tô mal comigo', se eu estava mal, se estava mal com meu corpo, eu estou mal. Até com o meu marido, a minha relação com ele" (E6/cd). Já nos casais sem depressão, houve apenas dois relatos nessa subcategoria e de pouca intensidade: "Tá faltando um pouco de tempo, mas..." (M13/sd). Estes relatos apoiam o que a literatura indica, já que era esperado que o relacionamento conjugal fosse avaliado de forma mais negativa nos casais com esposas deprimidas, na medida em que elas parecem ter uma percepção mais negativa de seu relacionamento familiar e conjugal (Beach & O´Leary, 1993; Fritsch e cols., 2005).

Por fim, alguns poucos casais, em ambos os grupos, se mostraram ambivalentes na sua avaliação sobre a qualidade do relacionamento conjugal (cd:E5/M5; sd:E19/M19): "Não vai mal, mas nós estamos tentando conciliar, e aí que vai... Às vezes, é muito estressante, e principalmente pra mim." (M5/cd); ou ainda relataram que não havia ocorrido mudanças (cd:E1/E2/E8/E10; sd:E18/M15/M21), o que foi referido principalmente pelos casais com esposas deprimidas: "Acho que não mudou" (E10/cd).

Quanto à percepção em relação ao outro, casais de ambos os grupos (cd:E8/E9/M2/M3/M4/M6/M10; sd:E20/E21/M11/M14/M16/M20/M21/M22) avaliaram seu cônjuge de forma positiva: "Sendo filha da mãe dela, eu sempre achei que ela tinha esse jeito [carinhosa e meiga], essa personalidade, assim" (M6/cd). Mas houve também relatos negativos em relação ao cônjuge. Nos casais com esposas deprimidas, a maioria dos relatos são queixas dos maridos sobre suas esposas serem bravas (cd:M4/M1): "A mãe dele, quando fica brava, é brava mesmo" (M1/cd); apáticas (M7/cd): "Eu acho que ela é muito preguiçosa, porque ela poderia ir, ela poderia largar a [filha] no chão, ela não vai muito de preguiça mesmo, porque a [filha] vai atrás, ela não é daquelas que tem que ficar sempre no colo, que a [filha] é muito mais fácil de lidar com ela" (M7/cd); ou impacientes: "Ela perde a paciência muito rápido" (M10/cd). Nos casais sem depressão, os principais aspectos relatados foram relacionados com características da esposa como ser ciumenta (M19): "a [nome da esposa] é mais ciumenta" (M19/sd); mandona (M18): "Ela é muito mandona"; ou brava (M20), como pôde ser visto no exemplo a seguir: "O jeito assim de bravo [da filha] tudo é da mãe" (M20/sd). Em ambas os grupos (cd:E4/E6; sd:E17/E22), houve poucos relatos negativos da percepção das esposas sobre seus maridos e não houve diferenças entre os grupos nesse aspecto, pois, em ambos, eles foram descritos como teimosos/geniosos (cd:E4; sd:E22) e como bravos/estourados (cd: E6; sd: E17).

Além disso, somente os maridos relataram certa ambivalência com relação às suas esposas (cd:M1/M5/M7; sd:M13), especialmente nos casais com esposas deprimidas: "Mas quando ela tá assim, calma, ninguém xingou, brigou com ela, ela tá, é normal, assim, calma, tudo assim." (M1/cd). Esse aspecto de inconstância das emoções precisa de atenção especial no contexto da depressão, pois as emoções tendem a se alterar com frequência (Phares. Duhig & Watkins, 2000). Essa característica das esposas pode ter influenciado a avaliação desses maridos sobre elas no presente estudo.

Quanto às divergências e conflitos no relacionamento conjugal, houve uma incidência maior de conflitos relacionados à impulsividade da esposa nos casais com esposas deprimidas: "Até tivemos algumas brigas assim, porque a [nome da esposa] é bem impulsiva" (M8/cd); à quantidade de tempo para ficarem juntos: "Eu encho o saco, ah, vem deitar comigo, vamos dormir, porque ele é muito amarrado, entendeu, ele tem a mania de chegar e ficar se amarrando, se amarrando e demora pra tomar banho, eu já estou até deitada e quero que ele venha deitar junto com a gente assim, sabe e ele fica se amarrando" (E7/cd); brigas por morar com a sogra e não ter casa própria: "Passa dois, três dias, eu já tô agoniado, mas se a gente fica muito tempo junto, parece que, que qualquer coisa a gente briga, sabe, eu acho que é porque também a gente não mora sozinho, a gente não tem uma casa nossa" (E4/cd); e quanto à sexualidade: "Porque esses dias... foi o caso de novo da coisinha [sexo], que eu não queria, e queria dormir, tava cansada. Aí pegou, 'Ai... então, pega e vai dormir!' Sabe? Já ficou bravo, já não me deu boa-noite... 'Tu não vai deitar?' 'Não!' Já ficou furioso comigo. Daí fui eu me deitar lá, toda cheia de culpa, sabe? Toda furiosa. Aí acabei dormindo. Daqui a pouco, ele veio se deitar, me abraçou..." (E2/cd). Apenas um casal sem depressão relatou conflito, mas sem explicitar detalhes: "Certas coisas a gente briga, mas só..." (E21/sd). Novamente, pôde-se perceber a associação entre qualidade do relacionamento conjugal e presença de depressão (Beach & O'Leary, 1993; Fritsch e cols., 2005; Mayor & Piccinini, 2005), além de certa dificuldade das esposas deprimidas de lidarem com eventos estressantes (Schwengber & Piccinini, 2005).

 

Considerações finais

O presente estudo teve como objetivo investigar diferenças na conjugalidade de casais em que a esposa apresentava ou não indicadores de depressão, quando o bebê estava no final do primeiro ano de vida. Os resultados encontrados corroboraram a expectativa inicial de que a presença de depressão na esposa pode trazer dificuldades nos diferentes aspectos investigados do relacionamento conjugal, com destaque para o companheirismo e o tempo para o casal, a comunicação e resolução de conflitos, a avaliação global da qualidade do relacionamento conjugal e sexual.

A fase do ciclo vital do nascimento dos filhos por si só tende a ser estressante para a maioria dos casais pelas diversas readaptações que necessitam ser feitas. Na ocorrência de mais um estressor, como a depressão materna, pode ser ainda mais difícil realizá-las, como pôde ser visto nos relatos dos casais do presente estudo. Obviamente, muitas vezes, as dificuldades são sutis e podem surgir tanto em casais em que a esposa tem ou não depressão. No presente estudo, puderam-se observar sofrimentos e dificuldades adicionais especialmente no primeiro grupo, seja na forma de avaliar o relacionamento conjugal ou no cuidado com o outro, como na reorganização do tempo do casal, quando o bebê não está presente. A comunicação talvez tenha sido a categoria que melhor explicitou as diferenças entre os dois grupos, especialmente quanto à forma de resolução de conflitos, mais difícil nos casais com esposas deprimidas. De acordo com Walsh (2002), a diferença entre casais ditos "saudáveis" e àqueles que apresentam dificuldades não está na presença ou ausência de problemas, mas na maneira como eles são resolvidos. Por exemplo, o acúmulo de fatores estressantes (no caso, nascimento do bebê mais sintomas depressivos) pode colocar em perigo qualquer casal, mesmo os que não apresentam dificuldades, embora no presente estudo isto pareça ter sido mais comum entre os casais em que a esposa apresentava indicadores de depressão no final do primeiro ano de vida do bebê. Além disso, a estrutura prévia da relação conjugal, que não foi investigada aqui, pode também atuar como um fator que explica a conjugalidade em momentos de crise e merece ser investigada em futuros estudos.

A importância de se investigar a conjugalidade e a depressão pós-parto, também merece ser ressaltada devido a um possível efeito de contaminação de afetos entre os diferentes subsistemas familiares. Quando a mulher encontra-se deprimida, com sentimentos de desvalia e dificuldades no relacionamento conjugal, isto pode também afetar a qualidade da relação que poderá estabelecer com seu bebê. Ainda que, muitas vezes, apareça no relato materno a satisfação em cuidar do bebê, mesmo em situações de depressão pós parto da mãe (Frizzo, 2008), devemos lembrar que isso também pode ser sentido como sobrecarga em alguns momentos. E, embora essa sobrecarga seja relatada também por mulheres sem depressão, novos estudos devem investigar melhor este aspecto e sua relação com depressão pós-parto.

É importante ressaltar que nenhuma das participantes deste estudo havia sido diagnosticada com depressão anteriormente, embora algumas estivessem com sintomas intensos de irritabilidade, fadiga e dificuldades no cuidado com o bebê, além de dificuldades no relacionamento conjugal. Esses não são casos isolados, pois, muitas vezes, os sintomas depressivos podem ser confundidos com o desgaste natural do puerpério, tanto pelo cuidado com o bebê e as noites mal dormidas, como pelo acúmulo de tarefas domésticas (Cruz, Simões & Faisal-Cury, 2005). Assim, é comum que a mulher deprimida e as pessoas que a cercam nem sempre reconheçam que seus sintomas podem ser considerados depressão. Tendo em vista que, mesmo a presença moderada e leve de indicadores de depressão – como o que ocorreu nos casos do presente estudo – já pode trazer importantes dificuldades nos relacionamentos da mulher, ressalta-se a importância da família e dos profissionais da saúde em reconhecer esses sintomas e em ajudar a mulher a buscar ajuda quando ela não se sente bem, especialmente ao longo do primeiro e segundo ano de vida do bebê, quando as demandas sobre a mulher são particularmente elevadas. Avaliações sistemáticas associadas à prevenção e intervenções psicológicas neste contexto terão importante papel não só para o relacionamento conjugal, mas particularmente para o desenvolvimento da criança.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: gifrizzo@terra.com.br

Recebido em novembro de 2008
Aprovado em dezembro de 2009

 

 

Giana Bitencourt Frizzo: Psicóloga; Especialista em Psicoterapia de Casal e Família (INFAPA); Doutora e pós-doutora em Psicologia (UFRGS); Professora do curso de Psicologia (UFRGS)
Ivani Brys: Psicóloga; Mestranda em Psicologia (UFRGS); Bolsista de Iniciação Científica do CNPq.
Rita de Cássia Sobreira Lopes: Psicóloga; Doutora em Psicologia (University College London/Inglaterra); Professora do PPG-Psicologia (UFRGS); Pesquisadora do CNPq.
Cesar Augusto Piccinini: Psicólogo; Doutor e Pós-doutor em Psicologia  (University  College London/Inglaterra); Professor do PPG-Psicologia (UFRGS); Pesquisador do CNPq.
1 Embora alguns casais coabitassem e outros fossem casados legalmente, no presente estudo optou-se por falar em maridos e esposas para simplificar o texto, por considerar essa distinção não importante para os fins dessa investigação.
2 Um  artigo que contemplou parte da mesma amostra, mas apenas com os  relatos  das mães sobre sua experiência da maternidade, foi publicado por Schwengber, D. D. S., & Piccinini, C. A. (2005). A experiência da maternidade no contexto da depressão materna no final do primeiro ano de vida do bebê. Estudos de Psicologia, 22, 143-46.
3 A letra 'E' refere-se à esposa, e 'M', ao marido; o número indica o participante, conforme a tabela 1 e 2.
4 As letras 'cd' referem-se aos casais com esposas com indicadores de depressão, e 'sd' aos casais com esposas sem indicadores de depressão.
5 Embora o termo correto seja esposas com indicadores de depressão, para tornar o texto mais claro, optou-se por falar a partir desse momento em esposas deprimidas e esposas sem depressão.

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