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Aletheia

versión impresa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.32 Canoas ago. 2010

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Sob fogo cruzado: o impacto do trabalho policial militar sobre a família do policial

 

Under crossed fire: the impact of police work on the family of policemen

 

 

Fernando C. DerenussonI; Bernardo JablonskiII

I Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro
II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Através de estudo realizado junto a 111 esposas/companheiras de policiais militares da cidade do Rio de Janeiro, procurou-se avaliar o impacto do trabalho policial sobre a família. A partir da definição de duas formas de impacto: direto (relativo à incidência de fatores circunstanciais do trabalho policial sobre a família) e indireto (relativo à forma como se dá a interação do policial com sua família), foram analisadas suas manifestações a partir de dois eixos: o da operacionalidade, relativo à natureza interna ou externa do serviço policial, e o da graduação, relativo à forma como o tempo de serviço influencia na percepção de impacto de suas companheiras. Os resultados indicam que o impacto direto se faz mais marcante que o indireto. A análise por operacionalidade revela que o impacto geral é maior entre as famílias de policiais do serviço externo, e a análise por graduação revela um aumento da incidência de impacto com o passar do tempo de serviço.

Palavras-chave: Família, Polícia, Estresse policial, Família do policial.


ABSTRACT

In a survey among 111 wives of military policemen of Rio de Janeiro, we aimed at analyzing the impact of Police work in the family of Police workers. From the definition of two forms of impact, namely: direct (relative to the incidence of circumstantial factors of police work on the family), and indirect (relative to the effects of this work on the interaction of policemen with his family), its manifestations were analyzed from two standpoints: that of graduation, relative to the passing of time in the police force, and that of operationality, relative to the nature of the work – internal or external –on the perception of impact. Results indicate that the direct impact is prominent. Through operationality, we found that that the impact in general is felt with more intensity by the wives of policemen that work in external service. The analysis trough graduation reveals an increasing sense of impact with the passing of time in the police force.

Keywords: Family, Police, Police stress, Police's family.


 

 

Introdução

Nas últimas décadas a ascensão do poderio bélico e financeiro do tráfico de drogas na cidade do Rio de Janeiro transformou a violência urbana em uma das questões centrais na sociedade carioca. A violência afeta a todos, seja de forma direta ou através da sensação de insegurança.

De todo modo, existe uma categoria de cidadãos que, independentemente das oscilações ou mesmo da resolução parcial deste problema (vide o que vem sendo buscado através de uma nova política de segurança, com a implantação das UPPs), estará sempre mais sujeita aos males advindos da violência e da criminalidade: a dos policiais militares e seus familiares. Pela natureza de suas funções, incidem sobre o policial, além do risco à sua integridade física, as expectativas de resolução de conflitos e as atribuições, por vezes estigamatizantes, da sociedade. Tal é a imersão subjetiva e objetiva do policial e sua família nesta realidade que podemos dizer, como Da Matta (1997), que sua "casa" é invadida pela "rua", com seus códigos e ameaças.

Um dos autores deste artigo, psicoterapeuta familiar do Hospital Central da Polícia Militar, costuma encontrar em sua clínica manifestações adversas que guardam evidente relação com as vicissitudes do trabalho policial. Não raro atendemos a viúvas de policiais, que perderam seus companheiros no serviço ou vitimados por violência fora deste. Afora a vitimização física, encontramos perdas subjetivas: é comum o relato de companheiras de policiais que apontam para uma mudança indesejável de identidade dos mesmos após a entrada na Corporação, com estes tornando-se mais rígidos, indiferentes à família ou mesmo agressivos. Da mesma forma, nos deparamos com casos de policiais que, após passaram por situações traumáticas, ficaram impossibilitados de prover à sua família o apoio emocional outrora disponível.

Observamos que há poucos estudos que têm o policial como objeto-fim, que o abordem não a partir de suas funções, mas atentando às suas necessidades como pessoa, cidadão, trabalhador. Ainda que existam menções à vivência subjetiva e familiar deste profissional em alguns estudos por nós encontrados, como nos de Andrade e Souza (no prelo), Muniz (1999), Poncioni (2003) e Silva (2006), persiste em âmbito nacional uma carência de trabalhos que focalizem especificamente as condições de trabalho e o bem-estar deste profissional, como observamos ao examinar diversas bases de dados de textos nacionais. No campo das exceções, uma instituição que produziu importantes publicações neste sentido foi a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP-FIOCRUZ), com destaque para dois estudos sobre as condições de trabalho e de vida dos policiais civis (Minayo & Souza, 2003) e militares (Minayo, Souza & Constantino, 2008) do Rio de Janeiro.

Foi a partir destas observações – da especial incidência da violência urbana sobre o policial e sua família, dos relatos encontrados em nossa experiência clínica na PMERJ e da escassez de estudos sobre o tema – que surgìu o interesse em realizarmos uma investigação, que nos respondesse de forma mais sistematizada à questão de qual seria – e como se daria, de fato, a magnitude do impacto da profissão policial sobre a família deste profissional. .

O impacto do trabalho policial sobre a família

Ao analisarmos os fatores comumente associados na literatura ao impacto do trabalho policial sobre a família, percebemos que eles poderiam ser abordados através de duas categorias principais: alguns se fariam presentes por força das circunstâncias do trabalho policial e o meio sociocultural onde se insere, sendo relacionados a elementos intrínsecos desta função. Outros seriam extrínsecos, mediados pelo policial, dependentes da forma como este interage com sua família. Desta distinção chegamos à divisão dos fatores de impacto nos termos "direto" e "indireto".

Fatores de impacto direto

O risco: elemento central do trabalho policial.

O risco é um elemento associado ao trabalho policial por constituição, uma vez que sua principal atribuição é a lida com a criminalidade. O policial militar do Rio de Janeiro está particularmente exposto a tal fator, uma vez que atua em um ambiente peculiarmente conflagrado (Burgos, 2005; Lessa, 2000; Ventura, 1994; Zaluar, 1998), caracterizado pela oposição de grupos fortemente armados, e destes em relação à polícia especificamente. Analisando a factualidade de risco nesta profissão, Souza e Minayo (2005) observam que os policiais são 6,18 vezes mais vitimizados que o cidadão comum por causas violentas. Observam que, mesmo entre os agentes de segurança pública a mortalidade dos PMs é elevada: entre 1999 e 2004 estes apresentaram um índice 72% maior de mortes que os policiais civis e superaram os guardas municipais em 6,4 vezes.

Ao contrário do que se poderia supor, Minayo e cols. (2008) apontam que os policiais são mais frequentemente vitimados em folga do que durante o horário de trabalho. Em 2004, como observam, morreram por ação violenta 2,8 vezes mais policiais em folga do que em serviço. As causas para isto muitas vezes são relacionadas ao trabalho fora da Corporação, mas não de forma exclusiva: o risco é real também nos momentos de lazer do policial militar, o que faz com que sua família também esteja mais exposta à violência do que o restante da população. Isto se daria por diversos fatores, entre eles a possibilidade do policial ser reconhecido em sua condição, ou de atuar em ocorrência que venha a presenciar durante sua folga, ou de reagir a assalto, risco este ampliado pelo fato de grande parte dos policiais portarem a arma mesmo em seus momentos de folga.

O horário de trabalho

O horário de trabalho do policial é também um fator que pode impactar a família de forma direta, principalmente no caso daquele que atua no serviço externo (policiamento), que opera em regime de turnos. O trabalho em turnos está frequentemente associado a problemas de saúde física e mental, prejudicando funções associadas ao ciclo circadiano (Selligmann-Silva, 1994). Segundo Kirschman (2007), o círculo de relações da família do policial pode ser afetado por este regime de trabalho, pois se tornam raros os momentos de confraternização que não coincidem com o trabalho. A imprevisibilidade inerente à atividade policial seria outro elemento complicador da rotina policial, fazendo com que este profissional necessite, por vezes, prolongar seu expediente por causa de alguma ocorrência surgida no final de sua jornada.

A questão salarial

O salário, da mesma forma, pode se constituir como fator de impacto direto para a família. Minayo & cols. (2008) observam que o Policial Militar do Rio de Janeiro recebe um dos salários mais baixos do país. Tal fator levaria, como observam, mais de 60% destes trabalhadores a adotar atividades paralelas para complementar seus ganhos.

Fatores de impacto indireto

Analisaremos o impacto indireto da profissão policial sobre a família por dois vieses: o da determinação identitária engendrada pelo curso de formação e pela prática profissional cotidiana, e o da transferência, para o âmbito familiar, do desgaste mental e estresse laboral vivenciados pelo policial no exercício de suas funções.

Fatores identitários

A importância de abordarmos as questões identitárias do policial na análise de sua interação com sua família se torna evidente quando observamos, em nosso trabalho clínico na Corporação, inúmeros relatos, tanto de policiais quanto de familiares, acerca de mudanças comportamentais negativas após a entrada na PM. Tais dados são sustentados por pesquisa realizada por Silva (2006), onde 60,3% dos policiais entrevistados consideraram que o policial pode sofrer mudanças personalógicas negativas ao ingressar na Corporação.

Twersky-Glasner (2005) chega a propor a existência de uma "personalidade policial", forjada na vivência laboral. Ao procurar estabelecer seus termos constituintes, o autor chega a elementos como assertividade e vigor (Rubin, citado por Twersky-Glasner, 2005), pragmatismo, orientação para a ação e cinismo (Watson & Sterling, citado por Twersky-Glasner, 2005), tendência ao isolamento e desconfiança (Skolnick, citado por Twersky-Glasner, 2005), entre outros. Podemos analisar a transformação identitária do policial a partir de dois mecanismos: o processo de formação e o exercício das funções policiais.

O curso de formação como agente de transformação subjetiva

O processo de formação estaria, segundo Sirimarco (2004), relacionado a uma transformação específica, em certa medida planejada, operando de acordo com uma lógica institucional que visa despir o indivíduo de idiossincrasias e personalismos em favor da obediência a um ethos específico. Os elementos presentes nesta modificação identitária seriam a noção de obediência (Foucault, 1987), submissão à ordem institucional (Goffman, 2007). Segundo Castro (1990), o elemento primordial para o sucesso do empreendimento formador do militar seria a socialização secundária. Tais mecanismos presentes na formação, como observa este autor, acarretariam mudanças na identidade do policial em direção a um novo modo de ser, calcado no militarismo e no ethos guerreiro.

Vivência laboral

Outra ordem de determinantes da identidade policial militar estaria relacionada ao exercício laboral cotidiano. Os atributos desenvolvidos nesta prática seriam resultantes da imersão do indivíduo no meio social, lidando com os mais variados tipos de desvios e agressões. Tal contato com o lado mais duro da realidade social terminaria, como observa Muniz (1999), por promover um "desencantamento do olhar" do indivíduo policial em relação ao próximo, caracterizado por uma atitude básica de desconfiança em relação à natureza humana e, por assim dizer, de um endurecimento emocional do indivíduo policial.

O estresse laboral

O segundo grupo de fatores indiretos a ser analisado em seu impacto é relativo ao desgaste mental e estresse experimentados pelo policial. Woody (2006) observa que o estresse policial pode levar este profissional a um risco maior que o do cidadão comum de apresentar burnout, alcoolismo, abuso de substâncias, problemas conjugais, depressão e suicídio. O trauma, advindo da perda de companheiros ou de vivências de risco, seria um dos principais fatores de estresse para este profissional, como denotam Andrade e Souza (no prelo), Danieli (1999), Dwyer (2005), Kirschman (2007) e Violanti (1999).

Fatores de impacto relativo ao estresse laboral

Como observa Kirschman (2007), embora não haja estudos conclusivos neste sentido, a violência doméstica é um fator comumente tido na literatura como mais frequente entre policiais que na população em geral. Johnson, Todd e Subramanian (2005), sustentam esta noção, apontando como possíveis causas para isto o burnout advindo do fato de os policiais "lidarem com as piores pessoas, e com o pior das pessoas normais" (p.15). Os autores apontam para a tendência de o policial transferir sua forma de lidar nas ruas, com a característica "voz de comando", para o plano familiar.

O uso de álcool, segundo Kirschman (2007), seria outro fator agravado pela profissão policial, por propiciar uma atitude, comum entre estes trabalhadores, de "seguir adiante" diante dos problemas enfrentados no cotidiano laboral, e por facilitar a socialização no meio policial.

 

Método

Participantes

A escolha pelas companheiras de policiais como sujeitos se deve à noção de que estas constituem o observador privilegiado do impacto do trabalho policial sobre a família. Elegemos três condições gerais para nortear a escolha das respondentes, todas atendendo ao critério de maior exposição aos fatores de impacto: a) residir na Capital ou na Região Metropolitana do Rio de Janeiro; b) estar vinculadas a praças da PMERJ; c) estar vinculadas a policiais da ativa.

Desta forma, contamos com um total de 111 respondentes, dispostas da seguinte forma:

 

 

Instrumento e procedimento

Construímos um questionário composto de duas partes (vide anexo 1), no qual procuramos sondar: (1) Composição familiar e dados socioeconômicos; (2) Questões sobre trabalho e família. O local escolhido para aplicação foi o Hospital Central da Polícia Militar, localizado no bairro do Estácio, região central do Rio de Janeiro.

Análise dos dados

Na análise dos dados utilizamos o programa SPSS, para tratamento estatístico. Para análise comparativa de elementos intra-amostrais, dividimos nossa amostra em grupos distintos, de acordo com a graduação e a operacionalidade dos policiais. Por graduação entenda-se a posição hierárquica que o policial ocupa na Corporação – em nossa pesquisa, tratamos apenas de três graus específicos: o de soldado, de cabo e o de sargento (em ordem ascendente). O interesse em analisar nossa amostra em termos de graduação se deve à possibilidade de observarmos os efeitos do tempo de serviço sobre a percepção de impacto deste trabalho por suas companheiras. Isto porque o grau hierárquico é um fator estreitamente associado ao tempo de serviço, salvo raríssimas exceções.

A divisão em termos de operacionalidade separa os policiais do serviço externo – a chamada "atividade-fim" da polícia, ou seja, o policiamento ostensivo – daqueles do serviço interno, ou da "atividade-meio", caracterizada pelo desempenho de funções administrativas nas diversas unidades da Corporação. Aqui a análise serve ao propósito de avaliarmos a influência da exposição ao risco (muito mais presente no trabalho dos policiais do serviço externo) na percepção de impacto das respondentes.

Os resultados obtidos foram submetidos a testes de significância não paramétricos. Os testes utilizados foram o de Kruskall-Wallis, o de Mann-Whitney, além de teste de significância entre porcentagens e o qui-quadrado.

 

Resultados

Para melhor apresentação dos resultados numéricos, nos valemos de siglas correspondentes aos grupos de operacionalidade, onde si = serviço interno e se = serviço externo, e de graduação, onde sd= soldado, cb = cabo, sgt = sargento.

Percepção geral de impacto

Para uma apreciação inicial da percepção do impacto propusemos uma questão direta (escores de 0 a 4): "Você acha que o trabalho policial de seu companheiro afeta (ou afetou) negativamente sua família?". Em termos de operacionalidade, o grupo ligado a policiais do serviço externo indicou índice de impacto levemente maior que o relativo ao serviço interno (se=1,61; si=1,51, p= 0,680.). Entre graduações, as esposas de cabos (os que estão aproximadamente na metade do tempo de serviço) atribuem o maior grau de impacto negativo na família (sd=1,46; cb=1,71; sgt=1,49; p= 0,544).

Fatores que mais afetam a família

Na questão "Quais os fatores que mais afetam (ou afetaram) sua família?" dispusemos seis opções de resposta entre fatores diretos e indiretos para averiguar o peso relativo de cada um, antes de os analisarmos em separado. As respondentes poderiam escolher dois dentre os fatores expostos. Estes foram assinalados na seguinte ordem: Preocupação com a Segurança do Policial (37% do total de respostas), Salário (32%), Preocupação com a Segurança da Família (12%), Atitudes do Policial em Casa (10%), Horário de Trabalho do Policial (8%), e Outros (1%). A seguir, dispomos os resultados obtidos ao analisarmos a gradação atribuída para cada fator isoladamente.

Percepção de impacto direto

Comparando o grau de preocupação com a segurança do policial através de escores (com valor máximo de 4 pontos) por operacionalidade, observamos resultados significativamente maiores entre as companheiras de policiais do serviço externo (se=3,53; si=2,88; p < 0,001), enquanto na comparação por graduação detectamos uma pequena diminuição de percepção de risco para o policial ao longo da carreira (sd=3,34; cb=3,30; sgt=3,20, p=0,896). Já os escores relativos à preocupação com a segurança da família indicam uma grande proximidade entre os diversos grupos de operacionalidade (si=2,55 se=2,58, p=0,975) e graduação (sd=2,55; cb=2,62; sgt=2,53, p=0,955)

Para analisar o impacto do horário de trabalho sobre a família do policial, formulamos a pergunta: "Você considera que o tempo que você ou seus filhos convivem (ou conviviam) com ele é (era) suficiente?", com apenas duas possibilidades de resposta: sim ou não. O grupo de companheiras ligado aos policiais do serviço externo revelou maior insatisfação que o ligado aos policiais do serviço interno (60% contra 40%, z = 2,09, p < 0,02). O trabalho fora da Corporação se revelou determinante para a insatisfação das respondentes em relação ao convívio com o policial: 68% das companheiras dos policiais que exercem atividade extra manifestaram insatisfação quanto ao tempo de convivência, contra 48% (z = 2,12, p < 0,02) das vinculadas aos policiais que trabalham somente na Corporação.

Percepção de impacto indireto

Após a análise dos fatores de incidência direta, partimos para a avaliação do impacto indireto, composto de dois grupos principais: fatores identitários e relativos ao estresse laboral.

Mudanças personalógicas ao entrar na Corporação

No que tange a mudanças na personalidade do policial desde sua entrada na Corporação, os resultados indicam uma franca divisão entre o total de nossas respondentes, com 52% das companheiras não atribuindo maiores modificações na personalidade do policial após a entrada na Corporação. As que observaram mudanças negativas representaram 18% da amostra, enquanto modificações positivas foram observadas por 10%.

Fatores identitários

Os fatores identitários analisados foram: comunicação do policial sobre o trabalho, autoritarismo, manifestação de afeto junto aos familiares e presença na criação dos filhos. Tais fatores foram analisados com perguntas que permitiam o escore máximo de 3 pontos.

No item comunicação do policial sobre o trabalho, observamos escores medianos (1,68 pontos). Apesar das diferenças não se mostrarem significativas, os policiais do serviço interno se mostraram mais comunicativos (si=1,86; se=1,53, p=0,110), o mesmo se dando entre as graduações (sd=1,67, cb=1,77, sgt=1,62, p=0,935). Já os policiais do serviço interno revelaram maior tendência à manifestação de autoritarismo (si=1,60; se=1,42; p= 0,589),algo ascendente entre as graduações (sd=1,16; cb=1,57; sgt=1,67; p= 0,129)

No que concerne às manifestações de afeto, as respostas apontam para um alto nível geral de expressão de afetividade (2,41 pontos). A análise por operacionalidade revelou grande proximidade entre os dois grupos (si=2,43, se=2,40, p=0,614), enquanto sob o eixo graduação observamos uma tendência uniforme, ainda que não significativa, em direção à diminuição da expressão de afeto (sd=2,54; cb=2,43; sgt=2,31; p=0,449). Nos resultados referentes à presença na criação dos filhos, obtivemos, da mesma forma, escores altos (2,65), praticamente sem diferenças entre serviço externo e interno (si=2,67; se=2,63; p=0,327). Na comparação por operacionalidade as atribuições foram similares entre soldados e cabos, com um decréscimo pequeno para os sargentos (sd=2,73; cb=2,70, sgt=2,55; p=0,275).

Fatores relativos ao estresse laboral

Ainda no plano dos fatores indiretos, procuramos investigar três elementos relativos ao estresse laboral: presença de agressão verbal, agressão física e nível de uso de álcool.

A agressão verbal foi atribuída com maior intensidade aos policiais do serviço externo (si=1,02; se=1,23; p=0,255) e revelou-se ascendente entre as graduações (sd=1,04; cb=1,13; sgt=1,20; p=0,979). Em nenhum destes grupos os escores extrapolaram o grau de agressão leve de nosso questionário. O fator agressão física foi atribuído com maior intensidade aos policiais do serviço externo (si=0,22; se=0,45; p=0,382), na divisão por operacionalidade. Na análise por graduação, observamos uma oscilação em sentido ascendente (sd=0,18, cb=0,44, sgt=0,35, p=0,365).

O escore médio de uso de álcool pelos policiais foi de 0,95 ponto, ficando o resultado geral em termos de uso leve. A maior atribuição de uso, por operacionalidade, foi dada aos policiais do serviço externo (se=1,12; si=0,76; p=0,327). Na comparação por graduação, observamos um sensível aumento da atribuição do uso de bebidas alcoólicas conforme o policial acumula tempo de serviço (sd=0,84; cb=0,95; sgt=1,04; p=0,365).

Percepção de fatores positivos

No presente estudo também procuramos sondar a expressão de sentimentos positivos em relação à profissão policial, no entendimento de que tal observação poderia nos fornecer melhor dimensionamento do próprio impacto.

O primeiro item analisado, relativo à satisfação do policial em sua profissão, recebeu atribuições francamente positivas, ficando o escore médio das respostas em 2,20 pontos entre 3. Apesar de suave aumento em termos de operacionalidade (si=2,13; si=2,26; p=0,348) e graduação (sd=1,92; cb=2,24; sgt=2,34; p=0,333), os resultados encontrados não se mostraram igualmente significativos. Quanto à satisfação das companheiras dos policiais em relação ao trabalho deles, obtivemos escores significativamente menores que na questão anterior, referente à percepção de satisfação deles na profissão (policiais=2,20; companheiras=1,26; p < 0,001). Na divisão por operacionalidade, observamos pequena vantagem por parte das companheiras de policiais do serviço externo (se=1,31; si=1,22; p=0,829). A diferença entre os escores das diversas graduações foi também pequena, mas estes se mostraram ascendentes com o passar do tempo na Corporação (sd=1,28; cb=1,25; sgt=1,32; p=0,580).

 

Discussão

Pelo que pudemos observar, de acordo com a literatura abordada e de nossa experiência clínica na PMERJ, o impacto mostrou-se um elemento presente na vivência familiar do policial, ainda que em menor intensidade do que o previsto: obtivemos respostas que apontam para a percepção de um impacto geral entre leve e moderado. O mesmo se deu para resultados relativos a fatores isolados, como veremos a seguir.

No todo, pudemos observar como os principais fatores de impacto o risco para o policial e o salário, de forma muito superior aos outros fatores listados. Tais achados se mantiveram na mesma ordenação quando comparados entre os grupos de graduação e operacionalidade, indicando que – não importa a condição laboral do policial – são estes fatores, ambos de ordem direta, os que mais afetam a família do policial.

Na análise dos fatores diretos, percebemos sua maior incidência sobre as famílias vinculadas aos policiais do serviço externo, ainda que a diferença entre estes dois grupos de operacionalidade tenha sido menor do que imaginávamos no fator "preocupação com a segurança do policial" e "preocupação com a segurança da família", uma vez que os policiais do serviço externo estão muito mais expostos aos riscos da profissão policial, bem como suas famílias, pela possibilidade de estes serem reconhecidos em seu horário de folga.

Ainda nos fatores de impacto direto, quanto ao horário de trabalho, o fato de as companheiras de policiais do serviço externo se mostrarem mais afetadas era esperado, dado o regime de turnos a que este policiais estão sujeitos, distinto do que ocorre com os policiais do serviço interno, que trabalham em expediente normal, de 8 às 17hs.

Percebemos que permanece elevada, ao longo da carreira, a preocupação das companheiras em relação à segurança deste trabalhador, o que indica que a família do policial não "se acostuma" com o risco que este profissional corre em sua profissão, mesmo passados muitos anos de serviço. Em relação ao horário de trabalho, percebemos uma queda brusca da satisfação das companheiras de policiais entre a graduação de soldado e as demais, o que demonstra dificuldades cada vez maiores da família em se adaptar à rotina de trabalho do policial.

Como já reportamos anteriormente, a intensidade atribuída aos fatores de impacto indireto ficou, de maneira geral, abaixo do esperado por nós, pois os relatos colhidos em nossa experiência clínica na PMERJ e a literatura abordada (Danieli, 1999; Johnson & cols., 2005; Kirschman, 2007; Muniz, 1999; Silva, 2006; Twersky-Glasner, 2005) nos permitiam antever resultados desfavoráveis a respeito da incidência do estresse laboral e da identidade policial no lar. Os resultados relativamente positivos encontrados nos levaram a suspeitar, em primeiro lugar, de uma subnotificação das respondentes a respeito de manifestações negativas do policial em família. Não ignoramos, porém, que a amostra clínica em que nos baseamos para a formulação de suposições pode ter, por outro lado, nos condicionado a esperar resultados mais negativos, uma vez que esta possivelmente apresenta maiores agravos psicológicos e maior desestruturação familiar que o universo geral da população da PMERJ.

Nossa análise dos fatores identitários (parte dos fatores indiretos) indica um impacto relativamente baixo, em um quadro no qual o policial, embora manifeste pouca comunicação com sua companheira sobre seu trabalho, e se revele moderadamente autoritário, apresenta alto grau de afetividade com seus familiares e mostra-se presente na criação dos filhos. Tais achados parecem contradizer as noções difundidas na literatura que dão conta de uma tendência a mudança negativa ao ingressar na corporação (Silva, 2006), e de aumento de problemas conjugais entre policiais (Woody, 2006).

Analisando estes fatores pelo viés da operacionalidade, temos que o policial do serviço interno comunica-se mais sobre seu trabalho que o do serviço externo, o que creditamos à natureza por vezes extrema das funções deste último. Houve uma grande proximidade entre estes dois grupos no que tange à afetividade e presença na criação dos filhos, o que contraria a noção de que o policial do serviço externo seria mais reservado e mais "endurecido" pela profissão (Kirschman, 2007; Muniz, 1999; Twersky-Glasner, 2005). Outro fator que contraria esta suposição é relativo ao autoritarismo, quesito no qual os policiais do serviço interno tiveram escores mais altos que os do serviço externo. É possível que tal atribuição se deva ao fato do policial do serviço interno lidar mais constantemente (que os do serviço externo) com figuras de autoridade na Unidade onde trabalha, levando tal modelo para seu círculo de convivência familiar.

Através do eixo da graduação, observamos um aumento da incidência de impacto de todos os fatores identitários com o passar do tempo de serviço. Assim, os policiais foram retratados como cada vez menos comunicativos, menos afetuosos e menos presentes na criação dos filhos, e cada vez mais autoritários com o passar do tempo de serviço. Tal tendência, porém, foi mais marcante apenas no que concerne ao autoritarismo, demonstrando que o modelo militarista, apesar de ser transferido com intensidade crescente para a família ao longo do tempo, não afeta da mesma forma outros aspectos das relações do policial em família.

Assim como em relação aos fatores identitários, a análise daqueles ligados ao estresse laboral revelou um impacto relativamente baixo. Na análise por operacionalidade, temos em todos os três fatores deste grupo (agressão verbal, agressão física e uso de álcool), uma avaliação de impacto mais elevado para os policiais do serviço externo, denotando que estes têm maior tendência que os do serviço interno ao acting out. Acreditamos que o maior índice de agressividade destes policiais está relacionado à transposição de sua forma de agir nas ruas (com a chamada "voz de comando") para o âmbito doméstico, como o denotaram Johnson e cols. (2005). A análise destes fatores por graduação revelou, assim como nos fatores identitários, um aumento do impacto indireto da profissão ao longo da carreira policial, como aponta Kirschman (2007).

 

Conclusão

O presente trabalho procurou estabelecer os termos de um construto amplo, identificado como "impacto da profissão policial-militar sobre a família", e medir sua intensidade e forma de manifestação entre policiais militares da cidade do Rio de Janeiro. De maneira geral, o impacto reportado pelas companheiras dos policiais foi moderado, com maior intensidade para os fatores de incidência direta, mormente os relacionados à preocupação com a segurança do policial e o salário.

A observação dos fatores isoladamente revelou uma diferenciação relativamente pequena, tanto na análise por operacionalidade quanto por graduação. Observando o conjunto total dos fatores, porém, pudemos chegar a algumas conclusões com maior definição. Na análise por operacionalidade, observamos que as famílias dos policiais do serviço externo sofrem um impacto maior que as de policiais do serviço interno, uma vez que seus escores superaram os do outro grupo em 8 entre 10 fatores. Da mesma forma, o exame do conjunto dos fatores pelo critério de graduação aponta para um aumento gradual do impacto percebido ao longo do tempo de serviço em 8 entre 10 fatores analisados.

À maior incidência de impacto entre famílias de policiais do serviço externo, e ao aumento do impacto ao longo do tempo de serviço, porém, se complementam dados opostos: 1) as companheiras de policiais do serviço externo atribuem a eles, e a si próprias, maior satisfação com a profissão policial que as companheiras de policiais do serviço interno; e 2) a atribuição de satisfação do policial e das companheiras com este trabalho aumenta com as graduações. Tal quadro, se pode nos confundir por sua natureza contraditória, acaba por ter uma grande importância ao nos trazer a dimensão da complexidade desta realidade laboral e da diversidade de sentimentos que suscita. Pois se o impacto aumenta entre os policiais do serviço externo, também aumenta o sentimento positivo de estar realizando um serviço de importância para a sociedade. Da mesma forma, também é incrementado o sentimento de satisfação em pertencer à força policial ao longo do tempo de serviço, algo tantas vezes percebido por nós entre policiais e seus familiares. Assim, é possível observar como, por vezes, sentimentos contraditórios podem conviver em relativa harmonia, mesmo que sejam marcados por grande intensidade, nos dois sentidos.

Em resumo, neste trabalho, procurou-se traçar um esboço preliminar das diversas dimensões de impacto do trabalho policial sobre a família deste profissional. Os resultados, embora esclarecedores, não são conclusivos e sugerem a realização de outros estudos acerca desta realidade, com metodologias distintas, posto que se trata de realidade complexa e multifacetada, que merece maior atenção da academia por sua grande relevância social.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: fcderen@yahoo.com.br

Recebido em janeiro de 2010
Aprovado em julho de 2010

 

 

Fernando C. Derenusson: Psicólogo da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro.
Bernardo Jablonski: Psicólogo; Doutor em Psicologia Social (FGV-RJ); Professor da PUC-Rio; Bolsista de Produtividade do CNPq.

 

Anexo 1: Questionário

 

 

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