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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.37 Canoas abr. 2012

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

Um estudo sobre percepções de profissionais de um serviço de atendimento às vítimas de violência e exploração sexual

 

A study on the professional´s perceptions of a service for victims of violence and sexual exploitation

 

Un estudio sobre percepciones de profesionales de un servicio de atención a víctimas de violencia y explotación sexual

 

 

Beatriz Mello de AlbuquerqueI; Narjara Mendes GarciaII; Maria Angela Mattar YunesIII,IV

I Rede Pública Municipal
II Instituto de Educação na Universidade Federal do Rio Grande
III Centro Universitário La Salle
IV Pós-Graduação em Educação Ambiental da Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, RS

Endereço para contato

 

 


RESUMO

O presente artigo apresenta um estudo de caso sobre um serviço público que atende crianças, adolescentes e famílias vítimas de violência, abuso e exploração sexual. O objetivo foi compreender as percepções dos profissionais para esboçar uma análise das práticas sociais e relacionais da equipe para com os usuários. A pesquisa seguiu o modelo qualitativo, tendo como base a Inserção Ecológica no contexto pesquisado e entrevistas semiestruturadas com três técnicos: coordenador, psicólogo e assistente social. A análise evidenciou a satisfação dos técnicos com os atendimentos e suas crenças na eficácia dos resultados baseadas na diversidade de metodologias e flexibilidade de abordagens desenvolvidas: formação de grupos e/ou atendimentos individuais. Os profissionais revelaram-se otimistas e consideram que os casos de reincidência após a alta do atendimento é baixo, pois a maioria das famílias se vincula com confiança ao serviço.

Palavras-chave: Serviços sociais, Violência sexual, Profissionais sociais.


ABSTRACT

The present article presents a study about a public service for children, adolescents and families who are victims of violence, abuse and sexual exploitation. The aim was to understand the professional´s perceptions in order to draft an analysis of the social and relational team practices with the service´s users. The research followed the qualitative method based on the Ecological Engagement in the context and semi-structured interviews with three professionals: coordinator. psychologist and social worker. The analysis showed the professional's satisfaction with the treatment and their beliefs in the efficacy of the results based on the diversity of methodologies and flexibility of approaches developed: groups or individual treatment. The professionals showed optimism considering the low return number of cases after ending the treatment as the majority of families is linked with trust to the Service.

Keywords: Social services, Sexual violence, Social profissionals.


RESUMEN

El presente artículo presenta un estudio de caso sobre un servicio público para niños, adolescentes y familias victimas de violencia, abuso y explotación sexual. El objetivo fue comprender las percepciones de los profesionales para dibujar un análisis de las prácticas sociales y relacionales del equipo con sus usuarios. La investigación siguió el modelo cualitativo teniendo como premisa la inserción ecológica en el contexto investigado y entrevistas semi-estructuradas con tres técnicos: coordinador, psicólogo y trabajador social. El análisis evidenció la satisfacción de los técnicos con los atendimientos y sus creencias a cerca de la eficacia de los resultados en función de la diversidad de metodologías y flexibilidad de abordajes desarrolladas: formación de grupos y/o atendimientos individuales. Los profesionales demostraron estar optimistas y consideran que los casos de reincidencia después del alta de atendimiento son bajos, una vez que la mayoría de las familias vinculase con confianza al servicio.

Palabras clave: Servicios sociales, Violencia sexual, Profesionales sociales.


 

 

Introdução

Estudar os serviços de proteção e atendimento às crianças e adolescentes que viveram situações de violências e que, por isso, se encontram em situação de risco social é um imperativo, senão um dever dos cientistas sociais e da saúde pública. Os órgãos de denúncia, tais quais: o Disque 100, os Conselhos Tutelares, as Delegacias de Polícia, e outros que compõe a rede de proteção da infância e juventude, são frequentemente referidos nos noticiários nacionais e muitas vezes anunciam as dificuldades destes segmentos em lidar com as diferentes expressões de violência. Diante desta realidade, é pertinente questionar a eficácia de alguns mecanismos públicos e governamentais dos serviços de enfrentamento à violência, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes. Esta proposta de pesquisa visou a investigar como se desenvolve um dos serviços da rede de proteção que presta especificamente o atendimento/tratamento às crianças/adolescentes e famílias vitimizadas num município do interior do Rio Grande do Sul. A investigação foi feita a partir de um estudo de caso do local do serviço, enfatizando-se as percepções dos técnicos responsáveis e a análise das práticas de atendimento exercidas por esta equipe de profissionais sociais.

Ao início do estudo pode-se constatar a vasta bibliografia sobre o tema, tanto na área da Psicologia, como na área da Saúde. Há muitas produções científicas a respeito de violência em suas diferentes modalidades (Bonamigo, 2008; Minayo, 1994; Prado & Pereira 2008, entre outros). Diversas pesquisas descrevem as consequências e o perfil dos agressores e das vítimas (Habigzang, Koller, Azevedo & Machado, 2005; Santos & Dell`Aglio, 2010; Bérgamo & Bazon, 2011) assim como as implicações no desenvolvimento de crianças e adolescentes dentre outros aspectos (Habigzang, Azevedo, Koller & Machado, 2005; Prado, Pereira, 2008; De Antoni, Yunes, Habigzang & Koller, 2011). Em contrapartida, pode-se constatar uma escassez de trabalhos que abordem e avaliem os serviços sociais de atendimento às vítimas destes episódios. A complexidade do fenômeno da violência por si só justifica a eminente necessidade de elaboração de investigações acerca do funcionamento dos órgãos e serviços que compõe a rede de apoio às vítimas de violência sexual.

A violência sexual contra crianças e adolescentes passou a ter maior visibilidade no Brasil na última década do século passado, período em que esta problemática foi incluída na agenda da sociedade civil como questão relacionada à luta nacional e internacional pelos direitos humanos de crianças e de adolescentes. Estes eram preconizados na Constituição Federal Brasileira, no Estatuto da Criança e do Adolescente – Lei nº 8.069/90 e na Convenção Internacional dos Direitos da Criança. (Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, 2002).

De acordo com os documentos acima mencionados, este período foi marcado por um forte processo de articulação, mobilização e por experiências consolidadas que fortaleceram a Sociedade Civil para assumir a denúncia como forma de enfrentamento à violência sexual. Isso significou um marco histórico na luta dos direitos da criança e do adolescente. O relatório da CPI de 1993 sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes no Brasil também provocou a conscientização e mobilização de importantes setores do executivo, legislativo, judiciário, da mídia e de organismos internacionais. Vale destacar esse papel histórico da sociedade civil (Movimentos/Fóruns/ONGs/Conselhos) como protagonista da mobilização social na luta pela inclusão da violência sexual contra crianças e adolescentes na agenda pública brasileira. Internacionalmente algumas agências como Unicef, Unifem, Visão Mundial, Ecpat, NGO – Focal Point, IIN-OEA, pautaram a temática da violência sexual no contexto dos Direitos Humanos, estimulando os governos, apoiando técnica e financeiramente as iniciativas da sociedade civil e monitorando os avanços conquistados.

Na sequência destes acontecimentos, foi realizado em 2000 na cidade de Natal/Rio Grande do Norte um evento específico para discussões sobre esta temática. A partir do referido encontro, constatou-se que embora algumas medidas tenham sido adotadas, estas não foram capazes de controlar o fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes e nem responsabilizar os culpados, mesmo havendo reconhecimento da gravidade desta situação por parte do governo brasileiro. Assim, conscientes da responsabilidade frente a este problema e compreendendo que há um conjunto de atores e forças no país para fazer valer os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, os participantes da discussão do Plano Nacional assumiram o compromisso para o desenvolvimento de ações que assegurassem o fim da violência contra crianças e adolescentes. Além disso, a responsabilização/tratamento de violadores, a prevenção, a mobilização da sociedade civil e o protagonismo infanto-juvenil foram enfatizados. No mesmo ano, o Governo Federal elaborou o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, com o objetivo de estabelecer um estado de direito para a proteção integral de crianças e adolescentes em situação de violência sexual. O referido Plano foi apresentado e deliberado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes – CONANDA, na assembleia ordinária de 12/07/2000, constituindo-se em diretriz nacional no âmbito das políticas de enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Trata-se, portanto, de um documento legitimado e de referência para as políticas públicas nos níveis federal, estadual e municipal. (Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual Infanto-Juvenil, 2002).

No ano de 2001, foi implantado o Programa Sentinela, dentro do âmbito da Política da Assistência Social. Este programa era uma prioridade estabelecida pelo governo para cumprir o Plano Nacional e foi implantado no âmbito da Política de Assistência Social, coordenado pela Secretaria de Estado da Assistência Social. Este programa tinha como critério de priorização, as capitais e as regiões metropolitanas inseridas no Programa de Segurança Pública: cidades com grandes entroncamentos rodoviários, polos turísticos, polos industriais, zonas de garimpo, áreas portuárias ou localidades que, com registros, comprovassem as situações de violências contra crianças e adolescentes. Em todos estes munícípios deveriam estar implantados os Conselhos Tutelares. O programa destinava-se, portanto, a cumprir as linhas de ações das políticas de atendimento estabelecidas no artigo 86, do ECA, através da integração operacional e das diretrizes do atendimento estabelecido que davam guarda às atribuições dos Conselhos Tutelares. Em 2004, o Sentinela deixou de ser "programa", passando a ser "serviço de ação continuada", superando assim, qualquer possibilidade de extinção. Passou a se chamar Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (Antigo Programa Sentinela).

Em 2005, este Serviço foi inserido no Sistema Único de Assistência Social/SUAS como Serviço de Proteção Social Especial de Média Complexidade. Atualmente em âmbito nacional, é coordenado pelo MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, através da Secretaria Nacional de Assistência Social/SNAS. Este segmento oferece um conjunto de procedimentos técnicos e especializados para o atendimento e proteção imediata às crianças e adolescentes vítimas de abuso ou exploração sexual, bem como aos seus familiares.

Atualmente, este Serviço é desenvolvido no âmbito do Centro de Referência Especializado de Assistência Social – CREAS. Portanto, o "locus" de execução do Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração de Crianças e Adolescentes é o CREAS. No entanto, o município pode efetuar a descentralização do serviço, caso haja na rede socioassistencial, entidades que realizem este tipo de atendimento. Este poderá ser implantado com abrangência local ou regional, de acordo com o porte, nível de gestão e demanda dos municípios, além do grau de incidência e complexidade das situações de risco e violação de direito. O CREAS de abrangência local pode ser implantado em municípios habilitados em gestão inicial, básica e plena. Já o de abrangência regional é implantado nas seguintes situações: a) Nos casos em que a demanda do município não justificar a disponibilização no seu âmbito de serviços continuados, no nível de proteção social especial de média complexidade, ou, b) Nos casos em que o município, devido ao seu porte ou nível de gestão, não tenha condições de gestão individual de um serviço em seu território. (Histórico disponibilizado pela coordenação Estadual do Serviço Sentinela/RS). O município do interior do Rio Grande do Sul pesquisado neste artigo foi um dos pioneiros na implantação deste Serviço por se tratar de uma cidade portuária, o que ocorreu no ano de 2002.

Dentre as metas do Serviço destaca-se: proporcionar condições para o fortalecimento da autoestima das vítimas e superação da situação de violação de direitos e reparação da violência vivida (Relatório CREAS, 2008). Ademais, almeja contribuir para a proteção, defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência, abuso e exploração sexual, buscando: identificar o fenômeno de riscos decorrentes; prevenir o agravamento da situação; promover a interrupção do ciclo de violência; contribuir para a devida responsabilização dos autores da agressão ou exploração e a potencialização da autonomia e o resgate da dignidade.

O Serviço em questão trabalha com três modalidades distintas de violência: a violência doméstica ou "intrafamiliar", o abuso e a exploração sexual. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990) determina a obrigatoriedade da notificação de casos suspeitos ou confirmados de maus tratos em crianças e adolescentes. Entretanto, a subnotificação da violência é ainda uma realidade em nosso país, havendo muita dificuldade de identificação da violência sexual. Esta situação pode ser compreendida devido ao despreparo dos profissionais da rede de atendimento nas diferentes áreas de atuação: seja na saúde, na educação ou na área jurídica (Silveira & Yunes, 2010; Yunes, Garcia & Abuquerque, 2007). Esta lacuna no atendimento às vítimas é decorrente de uma lacuna nos currículos de graduação, uma vez que estão sendo desconsideradas as questões referentes à violência sexual (Gonçalves & Ferreira, 2002; Santos, 2011). Este fato resulta no desconhecimento de informações básicas para o diagnóstico da situação de violência em questão. Nesse sentido Amazarray e Koller (1998) afirmam que o trabalho em rede tem apresentado atendimentos por vezes desarticulados, fragmentados e metodologicamente difusos.

O panorama geral sobre o tema apontou para a necessidade de investigar o serviço e a atuação dos profissionais no que se refere às suas crenças e percepções sobre o atendimento realizado às vítimas de violência e aos seus familiares. Neste trabalho, crenças foram definidas como as formas de enxergar e expressar o mundo vivido, pois estas influenciam o que vemos ou o que não vemos, assim como o que fazemos a partir de nossas percepções (Wright, Watson & Bell, 1996). Na sequência estão explicitadas as estratégias metodológicas para o desenvolvimento deste estudo.

 

Método

Este estudo de cunho qualitativo teve como base a "Inserção Ecológica" (Cecconello & Koller, 2003; Prati, Couto, Moura, Poletto & Koller, 2008) que se define por ser uma metodologia de pesquisa que se realiza em ambientes naturais. A revisão atualizada indica que seu objetivo é "avaliar os processos de interação das pessoas com o contexto no qual estão se desenvolvendo em um determinado período de tempo" (Prati, Couto, Moura, Poletto & Koller, 2008, p.161). Tal método tem seus fundamentos na Teoria dos Sistemas Ecológicos (Bronfenbrenner & Morris, 1998) que prioriza a análise da interação de quatro núcleos: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo. Neste modelo teórico, o Processo se refere às interações entre a pessoa e o ambiente no qual ela convive. No estudo de caso em questão o foco estará nos técnicos do serviço e sua convivência diária entre si e com as famílias, crianças e adolescentes usuárias do serviço. Entre estas pessoas se desenvolvem relações que são denominadas de processos proximais e considerados os motores primários para o desenvolvimento segundo o modelo bioecológico (Bronfenbrenner & Morris, 1998). Quanto à Pessoa será levado em consideração, tanto as características determinadas biopsicologicamente, quanto aquelas construídas na interação com o ambiente. Para a realização desta pesquisa foram considerados os técnicos e as famílias entrevistadas, enquanto pessoas em desenvolvimento, com características, percepções e interações específicas.

A análise do Contexto, segundo Bronfenbrenner (1979/1996), buscará compreender a interação dos quatro níveis sistêmicos: microssistema, mesossistema, exossistema e o macrossistema. O microssistema é o sistema ecológico mais próximo e compreende um conjunto de relações entre a pessoa em desenvolvimento e seu ambiente mais imediato, como por exemplo, a família, a escola e a igreja, nos quais a pessoa realiza diversas atividades e assume diferentes papéis, estabelecendo interações pessoais e simbólicas múltiplas. Neste trabalho o microssistema estudado, será a sede do Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes da cidade do interior do Rio Grande do Sul. O mesossistema refere-se ao conjunto de relações entre dois ou mais microssistemas dos quais a pessoa em desenvolvimento participa de maneira ativa: as relações família-escola ou escola-igreja. Quando a criança sai de um microssistema conhecido, como a família, para integrar um novo microssistema, como a escola, ou a igreja, ocorre um fenômeno de movimento no espaço ecológico, ou seja, uma "transição ecológica". As transições ecológicas ocorrem ao longo do ciclo vital e são fundamentais para crianças e adolescentes. Neste caso, é particularmente significativo analisar a transição do ambiente familiar para o referido Serviço, já que este ambiente foi criado para ajudar a superar ou amenizar o sofrimento decorrente das mais diversas situações de violência que vitimizaram crianças, adolescentes e suas famílias.

O potencial de desenvolvimento dos ambientes que compõem um mesossistema é otimizado se a transição inicial da pessoa no novo ambiente se der na companhia de uma pessoa pertencente ao ambiente anterior, por exemplo, no assunto em questão, se um cuidador/responsável acompanhar a criança/adolescente (Bronfenbrenner, 1979/1996), neste caso, ao CREAS – Centro de Referência Especializado da Assistência Social. Nessa perspectiva, Bronfenbrenner considera ainda que a capacidade desenvolvimental dos mesossistemas aumenta pelo número de inter-relações entre um contexto e outro, principalmente se estas relações se derem com pessoas que já estabeleceram díades primárias, ou seja, relações que já não dependem da presença física das pessoas para continuarem a existir. Uma terceira força de influência no desenvolvimento são os exossistemas. Estes compreendem aquelas estruturas sociais formais e informais que, embora não contenham a pessoa em desenvolvimento, influenciam e delimitam o que acontece nos ambientes mais próximos: a família extensa, as condições e as experiências de trabalho dos adultos e da família, as amizades, a vizinhança do bairro em geral. O macrossistema inclui os valores culturais, as crenças, as situações e acontecimentos históricos que definem a comunidade, na qual, os outros três sistemas estão inseridos, podendo portanto, afetá-los: os estereótipos, os preconceitos de determinadas sociedades, períodos de graves situações econômicas dos países e a globalização entre outros componentes culturais. Diante do exposto, o modelo biecológico se constitui em um suporte metodológico apropriado para a realização de pesquisas sobre aspectos psicoeducacionais e de desenvolvimento-no-contexto.

O quarto componente do modelo bioecológico é o Tempo. Este permite examinar as influências sobre o desenvolvimento humano, as mudanças e continuidades que acontecem ao longo da vida. Nessa perpectiva, a relação a ser investigada entre o Serviço de Enfrentamento à Violência, ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes e as famílias, representa o que na linguagem ecológica de Bronfenbrenner, é um estudo de mesossistema, ou seja, a análise de dois microssistemas de grande influência na vida das crianças e dos adolescentes, neste caso específico, vítimas de diferentes modalidades de violência sexual.

Para este estudo foram entrevistados dois técnicos do Serviço: um psicólogo e um assistente social, que relataram o processo de atendimento aos usuários. Também foi realizado contato com a coordenadora do mesmo, que descreveu a proposta, os objetivos e o histórico no serviço no município investigado.

O critério de escolha destes técnicos foi o fato destes serem concursados, para que os mesmos pudessem se sentir mais a vontade para falar sobre seu trabalho. A assistente social trabalha no Serviço há aproximadamente dois anos e possui duas especializações: uma em Atenção Psicossocial e outra sobre Programa Saúde da Família – PSF. A psicóloga está neste Serviço há sete anos, não tem especialização na área, mas possui um curso de perícia na área da violência física e psicológica. Os participantes assinaram um Termo de Consentimento livre e esclarecido elaborado de acordo com os artigos da resolução CFP no 16/2000.

De acordo com o pressuposto da inserção ecológica, para se efetuar o estabelecimento de processos proximais deve haver uma base relativamente regular de interações por períodos de tempo. Assim, foram realizadas 17 visitas ao Centro de Atendimento: 7 (sete) foram realizadas em horário integral (manhã e tarde) e 10 (dez) em horários alternados. Estas foram parte do processo de inserção da pesquisadora no contexto pesquisado. As visitas possibilitaram a observação sistemática da dinâmica do serviço e de alguns aspectos das interações dos trabalhadores sociais e as famílias atendidas. As dinâmicas observadas foram: as interações na sala de espera durante os atendimentos, 3 (três) visitas às residências, participação em reuniões em grupo com as famílias e os contatos de comunicação do serviço com o Conselho Tutelar. Para registro foi utilizado o diário de campo cujas anotações eram sobre as percepções e vivências no ambiente pesquisado, além de detalhes observacionais não contemplados pelas entrevistas. Este instrumento de registro contribui para a identificação de processos presentes em conversas informais, descrição do ambiente e outras situações que foram observadas durante a inserção ecológica do pesquisador.

Os técnicos do Serviço foram entrevistados a partir de um guia de perguntas semiestruturado. No início de cada contato, os objetivos da pesquisa foram apresentados pela pesquisadora, ou seja, de contribuir para a implementação do atendimento no Serviço. Foi reiterada a importância da participação para o desenvolvimento da pesquisa e a elaboração de estratégias para melhorar a qualidade do Serviço oferecido à comunidade. Para tanto, o roteiro elaborado para a entrevista buscou identificar os seguintes pontos na percepção dos técnicos: riscos mais frequentes aos quais as vítimas estão submetidas, características da vítima e do agressor, características do ambiente em que residem as famílias, das práticas parentais nas famílias, tipo de relação que estabelecem com a comunidade em que estão inseridas e por fim, como percebem o seu papel no Serviço prospectando o resultado de seu trabalho. Todas as entrevistas foram gravadas, transcritas na íntegra e analisadas seguindo os passos da grounded-theory.

A grounded-theory foi cogitada, neste caso, por oferecer condições de descobertas de uma teoria a partir dos dados coletados (Charmaz, 2009). Esta metodologia de análise permite ao pesquisador a possibilidade de organizar uma grande quantidade de dados qualitativos, obtidos a partir dos relatos, proporcionando a descoberta de códigos, categorias e subcategorias que emergem a partir das análises. Embora não exista uma tradução literal da expressão grounded-theory para o português, esta é uma forma de análise conhecida como "teoria fundamentada nos dados". O objetivo do pesquisador ao utilizar esta metodologia de análise é compreender uma determinada situação e entender o conteúdo subliminar de ações, percepções, crenças, atitudes e comportamentos. O processo de ler e reler, escrever e reescrever, ouvir r re-ouvir as gravações das entrevistas realizadas com os técnicos e com as famílias propicia a descoberta dos códigos, a eleição de subcategorias e categorias e o encontro se suas inter-relações. O detalhamento será apresentado na seção resultados. O rigor dos procedimentos desta forma de análise possibilita uma certa "descontaminação" das ideias teóricas e hipóteses previamente elaboradas para a realização do seu estudo.

 

Resultados

A seguir serão apresentadas as categorias extraídas a partir das narrativas e perspectivas dos profissionais entrevistados na seguinte sequência: (a) dinâmica de funcionamento do serviço; (b) as famílias atendidas no Serviço; (c) dificuldades no cotidiano do trabalho no Serviço.

Dinâmica de funcionamento do Serviço

Os relatos dos três técnicos entrevistados foi consistente e as observações realizadas evidenciam os processos do fluxo de funcionamento da rede apoio social às crianças e adolescentes vítimas de violência, bem alguns aspectos do atendimento do serviço investigado (Figura 1). Segundo os entrevistados, as pessoas são encaminhadas ao Serviço através de órgãos como: Conselho Tutelar, Ministério Público, Delegacias de Polícia, Juizado da Infância e da Adolescência, hospitais e recepcionadas por um assistente social. Este momento é definido como "abertura de caso" ou "acolhimento", termo utilizado pelos três técnicos. Na acolhida, é realizada a anamnese social da família, para a elaboração do diagnóstico e de um possível plano de ação, no qual, são levadas em consideração as vulnerabilidades e potencialidades das famílias. "Quais as necessidades, vulnerabilidades e potencialidades da família? Em cima das vulnerabilidades a gente vai montar nosso plano de ação" (Assistente Social).

 

 

Constatada a necessidade de tratamento no Serviço, o responsável é encaminhado ao psicólogo, que também realiza uma bateria de questionamentos, mas agora com outro enfoque. "A primeira entrevista com a psicóloga, também é com o cuidador ou a pessoa responsável para fazer a anamnese psicológica e depois é que vão marcar com a criança" (Assistente Social). Somente após estas entrevistas com os responsáveis é que o psicólogo passa a atender a pessoa vítimizada sistematicamente. Vale destacar que a criança ou o adolescente neste processo é atendido apenas pelo psicólogo. Segundo a coordenadora e a assistente social, esta é uma forma de proteção instituída no Serviço, com intuito de poupá-los de verbalizar várias vezes a situação ocorrida a diferentes técnicos. "Toda criança e adolescente que chega ao Serviço de avaliação e tratamento já falou pra muita gente (Assistente Social)". Estas crianças e adolescentes são incluídos nos grupos psicoterapêuticos, onde são utilizadas diferentes técnicas que permitem que o profissional identifique as situações de violência da qual a criança/adolescente foi vítima, sem que esta precise relatar verbalmente a situação ocorrida.

No que tange às metodologias de acolhimento e organização do espaço de atendimento às crianças ou aos adolescentes, constata-se a utilização de diferentes atividades lúdicas e o cuidado no uso de uma linguagem mais acessível que possibilite expressões de forma criativa e espontânea dos sentimentos, medos e inseguranças. "Às vezes, elas desenham tal e qual, outras no brinquedo ela coloca o boneco em cima do outro e consegue te mostrar a situação de abuso" (Psicóloga). Já os cuidadores são convocados a participarem de reuniões em grupo sob a coordenação de um assistente social. Nestas reuniões são transmitidas orientações a respeito da educação dos filhos, as fases de desenvolvimento da criança e do adolescente e estratégias de como lidar com o problema que estão enfrentando, buscando assim colaborar para que haja o entendimento e a superação da violência vivenciada e a troca de experiências e angústias entre cuidadores. "Eu acho que o grande barato, talvez o ganho mesmo do grupo é essa troca entre elas.[...]" (Assistente Social).

No decorrer do processo de acompanhamento, as técnicas entrevistadas ressaltam que a assistente social faz a visita domiciliar, com intuito de ver in loco a realidade desta família. "A gente tá fazendo no mínimo duas visitas no decorrer da criança aqui. Uma na avaliação e outra no tratamento". (Assistente Social). Uma das práticas do Serviço é a realização sistemática de reuniões envolvendo toda a equipe técnica, ou seja, entre a coordenadora, os psicólogos e os assistentes sociais. O objetivo das mesmas é a troca de informações a respeito dos casos novos, sugestões de abordagens, dúvidas, relatos dos casos em andamento ou demais dificuldades que possam estar enfrentando. "A reunião é quarta-feira de manhã. Tu leva para a equipe técnica, já apresenta ali e já troca umas ideias . Já se pensa em algumas intervenções" (Assistente Social).

Os técnicos entrevistados demonstraram satisfação com o resultado de seu trabalho. "Nós temos tido bons resultados. A gente tem tido poucos retornos depois da alta, poucos tiveram reincidência." A psicóloga atribui o sucesso do trabalho realizado a dois fatores: primeiro ao trabalho em grupos de cuidadores, "[...] esse avanço que a gente teve foi o trabalho em grupo. À medida que eles trocam, têm a possibilidade de ver que a dor deles também é a dor do outro e podem dividir. Psicologicamente conseguem evoluir relativamente bem", e em segundo lugar, atribui o sucesso ao vínculo da família com o serviço e sua responsabilidade com o tratamento da vítima. "Não adianta a criança vir e a família não vir" (Psicóloga). Azevedo e Guerra (1994) estão de acordo com este elemento e sugerem que a vítima e a família devem ser encaminhadas a um tratamento compulsório na comunidade com duração de no mínimo dois anos.

A assistente social entrevistada também percebe o resultado positivo do seu trabalho, no relato das mudanças de conduta parental das cuidadoras durante as reuniões de grupo quando afirma que "algumas estão conseguindo fazer diferente" referindo-se às novas posturas com relação à educação dos filhos. A profissional do serviço social afirmou que: "o resultado pra mim é o comprometimento da família, tu vai medindo, a caminhada dessas famílias junto da instituição, adesão ao tratamento". Acrescenta ainda que: "Compreendo que a família tá num processo de transformação, tá se construindo". Referindo-se a família que "nunca teve acesso nunca teve aquele modelo, nunca foi cuidada". De forma geral, suas falas evidenciam a relevância do vínculo familiar para o tratamento efetivo das vítimas e das famílias e a visão processual das técnicas sobre o tratamento, sublinhando que nos grupos de cuidadores são discutidas questões referentes ao cuidado, educação, violência e outros temas detectados por estes técnicos.

Características das famílias atendidas no Serviço

A partir das narrativas constatou-se uma variedade de adjetivos que caracterizam as percepções dos técnicos sobre as famílias usuárias do Serviço. Segundo estas profissionais a maioria das famílias atendidas pelo Serviço é de baixa renda. Mas reconhecem que a violência está presente em todas as classes sociais. Segundo a assistente social, as residências das famílias não apresentam condições de extrema pobreza. No entanto se destacam pelo elevado número de filhos que possuem. Por este motivo precisam dividir o mesmo cômodo pra dormir, fato este que ocasiona a falta de privacidade das pessoas e segundo a técnica, pode estimular de maneira precoce a sexualidade das crianças. Talvez este seja um paradoxo na fala da profissional, que apesar de reiterar a violência sexual como fenômeno "democrático", acentua pontos característicos de moradia das classes pobres como possíveis estímulos de situações abusivas.

A assistente social relatou que muitas famílias atendidas no Serviço apresentam grande demanda, pois "são pessoas carentes e abandonadas socialmente." Apontou também que, de modo geral, a família contemporânea vive um momento de muita fragilidade. Atribui esta condição ao ingresso da mulher no mercado de trabalho, e à falta de serviços públicos destinados ao cuidado dos filhos destas trabalhadoras. Muitas mães não têm com quem contar para cuidar e orientar seus filhos a respeito de valores, hábitos e atitudes, no período em que elas estão trabalhando. Por este motivo, a assistente social entrevistada percebe que muitas crianças ficam totalmente desamparadas durante o período de expediente de trabalho da mãe. Justifica desta forma, a fragilidade das relações familiares. Estas situações de vulnerabilidade, as quais estão submetidas estas crianças e adolescentes, ocorrem muitas vezes por falta de uma figura de proteção. Para a técnica, estes fatos denunciam que a família necessita cada vez mais dos serviços sociais. Outra característica percebida nas famílias é a presença da violência no seu cotidiano, especialmente no trato com os filhos. Quanto ao perfil das mães, a assistente social relatou que muitas apresentam baixa autoestima e se mostram dependentes e pouco assertivas. Afirmou ainda a importância de investigar a questão da transgeracionalidade das situações de abuso e violência, já que muitas das mães das vítimas também sofreram de violência sexual.

Quanto à relação das famílias com a comunidade, as profissionais apontam que as interações das famílias com outros contextos, são restritas às figuras dos vizinhos, que desempenham papel fundamental na condição de necessidade de auxílio mútuo. Nestas relações se estabelece um vínculo quase familiar, de cuidado e até de suporte financeiro (Yunes, 2001). As técnicas revelam que no que se refere ao conhecimento das potencialidades do bairro em que residem, as famílias sabem muito pouco. Este desconhecimento nos remete ao fato de que as famílias de um modo geral, não são sabedoras dos serviços e políticas sociais às quais têm direito e, por este motivo, não usufruem nem sabem reivindicá-los (Yunes, Garcia & Albuquerque, 2007) A psicóloga entrevistada também observa que as famílias têm como característica o isolamento da comunidade em que estão inseridas. Esse isolamento favorece a perpetuação do segredo nos casos de abuso sexual (Furniss, 1993; Pietro & Yunes, 2008). Nestas famílias, o homem exerce extrema autoridade sobre os filhos ou enteados e a mulher é subjugada a este sistema (Sarti, 1996) e essa submissão e dependência da mulher para com seu marido ou companheiro pode interferir na relação que esta mãe estabelece com seus filhos bem como no seu autoconceito.

A partir do atendimento que realizam e das informações que obtém no contato direto com as famílias das vítimas de violência, as profissionais apontam e identificam as causas da violência familiar na sua visão. A análise das entrevistas evidenciou que são múltiplas as causas da violência segundo as percepções das técnicas entrevistadas. Segundo elas, estas famílias estão expostas a muitos fatores de risco microssistêmicos, ou seja, são referidas várias situações que podem ocasionar violência familiar. As mais citadas são: vulnerabilidades individuais, mudança/transformação de papéis e funções na família contemporânea, práticas educativas autoritárias ou violentas, uso de drogas ou álcool e a transgeracionalidade da violência. Estes fatores de risco que emergem internamente na história da dinâmica do grupo familiar, as profissionais julgam como fragilidade das relações familiares. Segundo a assistente social a fragilidade nos grupos familiares é vinculada ao fato de que as crianças "não têm afeto e atenção", fatores que segundo ela favorecem as situações de negligência e descuido: "a maioria dos acidentes é dentro de casa, são acidentes domésticos".

No que tange aos fatores de riscos macrossistêmicos e à vulnerabilidade social, as duas profissionais apontaram a baixa renda e a pobreza sócioeconômica como importantes variáveis de risco. A psicóloga salientou na entrevista que estes não são fatores únicos, pois uma série destes fatores geram outros riscos, denotando mais uma vez a perspectiva processual e sistêmica na maneira de elaborar conceitos. No que se refere às causas da violência, a assistente social apresentou uma percepção ampla e atualizada do tema. Ressalta em primeiro plano, a dimensão macrossistêmica, apontando várias causas, dentre elas: questões sociais, onde há um grande contingente de famílias carentes "tanto de habitação, educação, falhas que o sistema não tá ofertando, desemprego...". Tal elaboração nos remete ao conceito de violência estrutural de Minayo (1994).

Outro fator de risco macrossistêmico sublinhado por estes agentes sociais é que com o ingresso da mulher no mercado de trabalho, a escassez de serviços públicos destinados ao cuidado dos filhos destes trabalhadores, pode acarretar em inúmeros problemas familiares de proteção às crianças e adolescentes, com desgaste mais específico para a figura materna. As profissionais denotam ciência de que as dificuldades enfrentadas pela mulher contemporânea podem ficar ainda mais complicadas, nos casos de separação conjugal e monoparentalidade feminina, pois é fato que a grande maioria de casamentos quando se desfazem, deixam para a mulher a maior carga de cuidado e responsabilidade com os filhos, o que é consistente com a literatura sobre o tema (Carter & Mc Goldrick, 2008; Yunes, Mendes & Albuquerque, 2007).

No que se refere às práticas parentais, a assistente social relatou que a questão do cuidado e da educação das crianças e adolescentes ainda é muito restrita à figura da mulher. As mães/cuidadoras aceitam este fato com naturalidade, e justificam o mesmo devido ao trabalho do marido/companheiro (Sarti, 1996). O discurso da assistente social revelou que ainda é muito forte a relação de poder exercida por quem cumpre o papel de provedor, evidenciando o desequilíbrio de poder nas relações familiares, fato exaustivamente demonstrado no clássico trabalho antropológico de Sarti (1996) na periferia de São Paulo e que ao que parece, não mudou muito durante estes anos e parece valer para famílias de baixa renda de diferentes regiões do Brasil. A profissional entrevistada apontou também que há casos em que os responsáveis não se comprometem, nem definem questões de educação e cuidado dos filhos, vivendo numa constante situação de delegar a outra pessoa estas questões. "Ela espera do marido, o marido espera dela, que passa pra vó, que mora junto". Certamente esta atitude de falta de compromisso com a educação dos filhos e de delegar ao outro estas questões, sem que ninguém realmente se comprometa, pode trazer consequências prejudiciais ao desenvolvimento de crianças e adolescentes.

A psicóloga referiu-se ainda a famílias que não respeitam as fronteiras transgeracionais. Muitos pais desrespeitam as etapas de desenvolvimento de seus filhos e exigem que estes desempenhem tarefas para os quais não estão muitas vezes física, psicológica e cognitivamente preparados. Isso não deixa de ser uma modalidade de violência que mereceria especial atenção. Apontou ainda a questão da transgeracionalidade como um fator de risco, afirmando que há casos em que os pais foram vítimas de situação de negligência, de violência física ou sexual, e que poderão reproduzir junto aos filhos, o que do ponto de vista científico ainda é assunto polêmico na literatura (Carter & McGoldrick, 2008).

Dificuldades apontadas pelos agentes sociais

Os trabalhadores sociais entrevistados relataram as dificuldades enfrentadas no desenvolvimento das ações e no atendimento à população foco. A assistente social referiu-se basicamente à dificuldade de estabelecer um efetivo trabalho em rede com os demais órgãos de assistência social, uma vez que para suprir as demandas específicas da população atendida, necessitam de outros serviços de suporte. Como explica a seguir: "Tu faz um belo laudo, cheio de referenciais teóricos, bota teu carimbo, assinas. Precisa de avaliação neurológica, psicológica e psiquiátrica dos pais e acompanhamento. Se essa rede não vai dar, não vai conseguir comportar, não vai acolher. Nem sempre se consegue". A esse respeito Faleiros e Costa (1998) apontam que as políticas públicas brasileiras caracterizam-se pela pouca articulação e fragmentação entre as redes de proteção e combate à violência sexual. A profissional apontou também o despreparo profissional das pessoas que atuam na rede social: "Tu vê pessoas, profissionais que trabalham na área da assistência social que se dizem pertencem a uma rede e que não conhecem as políticas que implementam essa rede". Expressou a dificuldade de estabelecer um diálogo com outros serviços: "[...] eu sei o que é essa angústia de tu queres buscar mais informações a respeito dessa família. Às vezes, tu não és recebido, às vezes tu não consegues. Relatou ainda problemas internos do Serviço que poderiam ser sanados pelo órgão Executivo municipal, uma vez que este Serviço esta inserido na Secretaria da Assistência Social do Município.

Outro aspecto identificado foi a ausência de uma pedagoga no Serviço, o que resulta numa lacuna no atendimento em termos da avaliação do desenvolvimento escolar destas crianças e adolescentes. Embora outros técnicos estejam buscando suprir esta deficiência, este fato resulta em atrasos ou sobrecarga dos demais técnicos que não têm formação adequada para o desenvolvimento deste trabalho. "A questão da distribuição das escolas, fica pro técnico que tá mais liberado." Outro complicador é o fato de haver profissionais contratados, referindo-se ao problema da instabilidade dos técnicos no Serviço. Sobre esta questão expressou que: "em termos de projetos... sonhos que eu teria pro nosso Serviço, é poder ter uma equipe completa, todos nomeados sem ter contratados". Afirmou que esta situação "Pro Serviço isso tem um impacto muito grande". A assistente social refere-se à lacuna que a saída de um técnico provoca na equipe, seja por demissão ou pela não renovação do contrato e o impacto no atendimento ao usuário.

 

Discussão

O estudo realizado numa cidade do interior do RS possibilitou constatar que o Serviço pesquisado está cumprindo com seus objetivos, contribuindo para a promoção, defesa e garantia de direitos de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Esta constatação foi possível através da análise das práticas de atendimento/tratamento oferecidas aos usuários no município investigado, das observações realizadas e das categorias que emergiram nas entrevistas das profissionais. No entanto, o estudo realizado com os profissionais apontou ainda a necessidade de suprir a demanda de melhoria da estrutura de atendimento às crianças e adolescentes vítimas de violência e, assim, promover a articulação mais efetiva entre os serviços da rede de apoio social, como conselhos tutelares, escolas, unidades de saúde, promotoria de Justiça, Juizado da Infância e da Adolescência, Secretaria da Assistência Social, dentre outros. Tal trabalho em rede de colaboração é requerido para fazer o encaminhamento das vítimas aos serviços, seja para regulamentar o afastamento e punição do agressor ou para fornecer certidões e outros documentos que por ventura as famílias não possuam, dentre outras demandas (Pietro & Yunes, 2012).

A concepção de rede de colaboração e sua importância para a eficácia dos serviços de saúde à comunidade estão claramente expressas nos conceitos da teoria ecológica de Bronfenbrenner (1979/1996), no que se refere às formas de comunicação e consequentes inter-relações microssistêmicas. Tais relações podem formar mesossistemas de risco ou proteção. No caso do Serviço pesquisado, os técnicos se mostraram alertas e protetivos, pois logo após a constatação da situação de violência, pedem o afastamento do agressor junto ao Ministério Público e procuram atuar em rede para evitar que a criança ou adolescente seja re-vitimizado por ser retirado da família e da comunidade em que vive em casos de inserção em casa de acolhimento.

Os técnicos entrevistados afirmaram ainda que, embora não tenham estatísticas numéricas, percebem que é baixo o índice de reincidências após a alta do tratamento no Serviço. Pode-se constatar que os resultados favoráveis são fruto de múltiplos fatores, como: o trabalho comprometido da equipe técnica para com os usuários evidenciado por demonstrações de interesse e satisfação em trabalhar com os solicitantes; preocupação dos profissionais em manter uma formação acadêmica específica, com participação ativa em cursos de especialização direcionados à área de atuação de violência sexual; participação em avaliações sistemáticas acerca do funcionamento da equipe técnica; participação em reuniões semanais envolvendo toda equipe para a discussão dos casos mais "delicados" e apresentação de novos casos; desenvolvimento de um trabalho comunicativo entre as equipes multidisciplinares de outros serviços, o que permite um olhar mais abrangente dos casos em andamento; a busca constante de novas estratégias e de abordagens que promovam o maior envolvimento dos usuários no tratamento (evidenciado pela satisfação dos usuários participantes nos grupos de cuidadores e das crianças/adolescentes nos grupos psicoterápicos) e a norma interna de obrigatoriedade da participação de pelo menos um responsável/cuidador adulto no tratamento da criança ou do adolescente.

Uma prática de atendimento valorizada pelos profissionais foi a construção de um espaço destinado à troca de experiências entre os responsáveis das famílias vitimizadas que integravam os grupos de cuidadores. Nessa perspectiva, poder-se-ia dizer que o potencial de desenvolvimento humano é otimizado através de relações proximais que ocorrem entre pessoas que provém de ambientes de convívio com características similares e que tenham papéis e vivências próximas. Segundo considerações dos entrevistados, o resultado mais importante é a ajuda mútua e os indícios de reciprocidade possibilitada pelos conteúdos que são discutidos em grupo e "amenizados" em suas consequências a partir da catarse grupal. Por último, é preciso destacar o respeito, o cuidado e a relação de empatia da equipe técnica para com os usuários e entre os próprios usuários. Vale ressaltar que estes elementos de análise emergiram das entrevistas, das observações da rotina do Serviço e dos diálogos informais realizados pela pesquisadora com os profissionais durante o período de inserção.

No que se refere às relações e interações dos técnicos com as famílias usuárias deste Serviço, pode-se afirmar que as relações profissionais são pautadas pelos princípios do respeito, alteridade, e crenças otimistas no desenvolvimento das pessoas em situações de sofrimento (Yunes, 2007; Siqueira, Betts, Dell`Aglio, 2006). Apesar dos resultados positivos do Serviço, com relação à superação da situação de violência e os baixos índices de reincidência, há ainda algumas sugestões que na percepção dos técnicos poderiam melhorar a qualidade do Serviço oferecido à comunidade. Os técnicos salientaram a necessidade da incorporação de um profissional da área da educação e sugerem que todos os profissionais sejam funcionários concursados para maior estabilidade do próprio Serviço e de sua filosofia de atendimento. É fato que as mudanças provocadas por trocas constantes de funcionários nos serviços públicos de saúde e educação, ocasionam ruptura nos tratamentos, provocam lacunas de tempo em processos burocráticos e podem ocasionar quebra de relações já estabelecidas entre o usuário e o novo técnico, exigindo pra isto, período de adaptação e algumas vezes, o recomeço do "zero".

O estudo realizado identificou necessidades na implementação das seguintes ações ao Serviço: o desenvolvimento de um trabalho específico para as mães/cuidadoras que também foram vítimas de abuso sexual durante a infância ou a adolescência; a disponibilidade de inclusão de um profissional da área jurídica para assessorar os casos em andamento; e a efetivação de um trabalho em rede mais amplo e articulado, uma vez que muitas famílias que são encaminhadas apresentam uma demanda que extrapola as atribuições do Serviço em questão. Portanto, as ações e intervenções devem ser de caráter ecológico-sistêmico e não individuais.

Conclui-se que apesar das adversidades estruturais do Serviço pesquisado, o mesmo está cumprindo o seu papel do ponto de vista humano e relacional, já que vem colaborando para minimizar os danos psicológicos dos envolvidos na complexa situação de violência sexual. As práticas de intervenção parecem atingir os objetivos de apoiar a superação do sofrimento com o fortalecimento e empoderamento das famílias, tanto individual como socialmente.

Portanto, um serviço como este, que se dispõe a atender vítimas de violência é mais uma conquista das políticas públicas brasileiras que visa a garantir os direitos fundamentais de crianças e adolescentes a um atendimento especializado e protetivo, e por isso deve valorizar, proteger e acompanhar os profissionais que nele atuam, pois os resultados dependerão da qualidade das relações micro, meso, exo e macrossistêmicas.

 

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Endereço para contato
E-mail: bia.furg@yahoo.com.br

Recebido em julho de 2012
Aceito em agosto de 2012

 

 

Beatriz Mello de Albuquerque – Pedagoga, Especialista e Mestre em Educação Ambiental. Professora da Rede Pública Municipal.
Narjara Mendes Garcia – Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação Ambiental. Professora Assistente do Instituto de Educação na Universidade Federal do Rio Grande.
Maria Angela Mattar Yunes – Psicóloga, Doutora em Educação: Psicologia da Educação, Professora no Mestrado em Educação do Centro Universitário La Salle, Unilasalle/Canoas. Professora colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental da FURG, Rio Grande, RS.