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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.37 Canoas Apr. 2012

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A qualidade da educação e o professor por um fio: o cotidiano docente na ótica da psicologia social comunitária1

 

The quality of education and the teacher about to collapse: the daily teaching experience from the perspective of social community psychology

 

La calidad de la educación y el profesor a punto de colapsar: el cotidiano del profesor desde la perspectiva de la psicología social comunitaria

 

 

Maria de Fatima Quintal de FreitasI; Lygia Maria Portugal OliveiraII

I Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná
II Curso de Psicologia da Faculdade de Administração, Ciências Educação e Letras

Endereço para contato

 

 


RESUMO

Sob a ótica da Psicologia Social Comunitária, propõe-se uma análise sobre armadilhas/dimensões psicossociais que afetam as relações interpessoais dos docentes, com subprodutos negativos à prática e rede escolar-comunitária. Realizou-se uma pesquisa exploratória, aplicando questionários semiestruturados a 219 docentes de 33 escolas municipais de Curitiba. O eixo temático da pesquisa dirige-se à Educação, Formação e Vida Cotidiana do(a) Professor(a). A análise quantitativa e qualitativa (com análise de conteúdo) gerou categorias a posteriori, em torno de: caracterização geral, ingresso e prática; dificuldades enfrentadas e alternativas de resolução; dificuldades percebidas na comunidade escolar; perspectivas/planos de futuro. A condição docente é pouco valorizada, e há baixo envolvimento coletivo e dificuldades para participação escolar solidária. Encontraram-se paradoxos/desafios vividos pelos professores: fragilidade de redes de solidariedade no cotidiano; posturas fatalistas diante da vida e do trabalho; trabalho docente vivido como uma prática solitária no espaço público e que acontece no limite da exaustão psicossocial.

Palavras-chave: Prática docente e psicologia social comunitária, Vida cotidiana e educação comunitária, Cotidiano docente e comunidade.


ABSTRACT

From the perspective of Social Community Psychology, an analysis of traps / psychosocial dimensions that affect interpersonal relationships of teachers with negative byproducts practice and school-community network is proposed. We performed an exploratory research, using semi-structured questionnaires to 219 teachers from 33 municipal schools in Curitiba. The main theme of the research is directed to Education, Training and the Teacher`s Daily Life. The quantitative and qualitative analysis (with content analysis) later on generated categories of: general characterization, admission and practice; difficulties faced and resolution alternatives; difficulties perceived in the school community; prospects / future plans. The teacher`s condition is undervalued, and there is little involvement and collective solidarity and difficulties for solidary school participation. Paradoxes / challenges faced by teachers were met: fragility of daily solidarity network; fatalistic attitudes toward life and work, teaching work experienced as a solo practice in public space and that happens in the limit of psychosocial exhaustion.

Keywords: Educational practice and social community psychology, Everyday life and community education, Educational everyday and community.


RESUMEN

Desde la perspectiva de la Psicología Social Comunitaria, se propone un análisis de las trampas/dimensiones psicosociales que afectan a las relaciones interpersonales de los docentes produciendo subproductos negativos para la práctica y red de la escuela y comunidad. Se realizó una investigación exploratoria, utilizando cuestionarios semiestructurados a 219 docentes de 33 escuelas de la alcaldía de Curitiba. El tema principal de la investigación se dirige a la Educación, Formación y la Vida Cotidiana del (la) profesor (a). El análisis cuantitativo y cualitativo (análisis de contenido) generó categorías acerca de: caracterización general, entrada y práctica docente, dificultades vividas y soluciones, dificultades percibidas en la comunidad escolar; perspectivas /planes futuros. La condición de los docentes está infravalorado, y hay poca participación y solidaridad colectiva y hay dificultades para la participación en la escuela de manera solidaria. Se conocieron paradojas/retos que enfrentan los docentes: fragilidad de las redes de solidaridad en su cotidiano, actitudes fatalistas delante de la vida y del trabajo, el trabajo docente se experimenta como una práctica vivida en solitario en el espacio público y que ocurre en el límite de agotamiento psicológico.

Palabras clave: Práctica docente y psicología social comunitaria, Vida cotidiana y educación comunitaria, Cotidiano docente y comunidad.


 

 

Introdução

Ao refletir sobre a escola e o processo educativo dentro do paradigma das relações de produção, no tipo de sociedade capitalista em que vivemos, Guzzo (2005) refere-se à mercantilização e coisificação da vida humana, que se expressam também no contexto educacional. Guzzo (2005) bem revela este sutil e cruel processo ao afirmar que "viver o cotidiano da escola tem sido viver o desalento de um processo adaptativo e domesticador em relação ao mundo" (p.19). Inúmeras também são as dificuldades que afetam, de forma significativa, o cotidiano do professor, tanto em sua vida particular quanto laboral, principalmente aquele das escolas públicas que trabalha em condições e infraestrutura precárias, além de viver, nas interações humanas, relações de competição e individualismo, típicas da natureza desta sociedade. O censo escolar de 2011 mostra que pouco mais de 15,5% dos alunos da educação básica (7.918.677 de alunos de um total de 50.972.619 matriculados) frequentam escolas privadas, sendo que esse percentual aumentou, aproximadamente, meio por cento a cada ano, desde 2007. Nesse ano, em 2007, no total geral das matrículas da educação básica, havia 2.056.309 de alunos a mais do que as matrículas em 2011, o que torna essa presença na rede privada, hoje, ainda mais significativa (Mandelli, 2012). Assim, poder-se-ia dizer que o número de escolas públicas, proporcionalmente, é menor do que o das privadas, visto que aquelas atendem a um contingente maior de estudantes em sala de aula do que as particulares (Mandelli, 2012; Oliveira, 2007; Penteado & Guzzo, 2010). Esta é uma das dificuldades que os professores de escolas públicas enfrentam, além do alto índice de sofrimento mental, estresse e burnout presentes, em especial, para os professores com mais tempo de magistério (Souza & Leite, 2011); assim como os problemas de saúde física, como os ligados à voz (Servilha & Ruela, 2010; Souza, 2011; Luchesi, 2009) e os cuidados físicos dependentes das condições de trabalho (Araújo & Carvalho, 2009; Cardoso et al., 2011; Fernandes & Rocha, 2009; Gasparini, Barreto & Assunção 2005).

Vários são os estudos, pesquisas e levantamentos que têm sido realizados, desde fins dos anos 90, tendo o foco dirigido ao aprimoramento e melhoria da educação, buscando garantir uma melhor formação e condições mais dignas e saudáveis aos atores sociais envolvidos (Abramovay, 2005; Gasparini, Barreto & Assunção ,2006; Marriel, Assis, Avanci & Oliveira, 2006). Embora tenham também aumentado as instâncias governamentais, programas e propostas ligados ao desenvolvimento de conhecimentos e práticas neste campo, isso não significa necessariamente que os aspectos centrais dessa relação ensino-aprendizagem tenham melhorado e recebido o devido valor e proteção. Assim é que, por exemplo, na maioria dos programas públicos no campo da educação, há sempre uma ênfase, claramente colocada, para a melhoria dos índices, dos resultados de aprendizagem e aprovação, do número de vagas para entrada no sistema educacional, do contingente de recursos e bolsas destinados aos jovens, tendo na maioria o foco na formação, educação, preparação e profissionalização do estudante, e vários outros itens nessa direção.

Contudo, a figura do professor não tem recebido a mesma prioridade na destinação dos recursos ou nas propostas de aprimoramento e formação. Em vários casos, ele é colocado como o "protagonista" desse processo educacional, mas numa perspectiva de quase ser o principal responsável pelos resultados, criando-se assim várias tensões e dilemas vividos pelos professores em seu cotidiano (Freitas, 2003; Guzzo, 2005). Isto, em parte, tem contribuído para que os professores "sintam-se perdidos. Eles perderam algumas referências fundamentais sobre seu trabalho, sobre as relações com este e sobre sua vida" (Freitas, 2003, p.144). Várias são as explicações sobre o quadro de insucessos e desafios na realidade educacional, entre as quais muitas localizam o professor como responsável, pois "não teria competências", ou "não teria se capacitado", ou "não ´soube´ como lidar com essas situações" de adversidade. Mesmo que, de fato, o professor possa não ter sido capacitado e nem aprendido em como lidar com essas situações, esta condição não pode, por si só, significar a reificação dessa responsabilidade. Isto porque faltam – para uma análise justa e voltada à totalidade histórica dos determinantes dessa situação – aspectos estruturais que devem ser considerados para a análise e compreensão da precarização do trabalho docente, que também produz impactos nas dimensões subjetivas da vida cotidiana desses professores. Mesmo que sólidos e extensos investimentos sejam feitos na direção de "melhorar e capacitar" os profissionais da educação, também não é isto que, por si só, seria suficiente para desvendar o que se passa nos meandros dos processos psicossociais vividos pelo professor em seu cotidiano, muitas vezes de modo solitário, silencioso e desalentador e que afeta não só seu trabalho e sua vida, como também, as perspectivas e projetos educacionais nesse campo.

Este trabalho pretende reunir informações obtidas através de uma pesquisa de campo exploratória, realizada na região metropolitana de Curitiba, ao trazer as vozes, sonhos, desafios, problemas e possibilidades percebidas no cotidiano, pelos professores de educação básica de 33 escolas municipais. Tem-se como objetivo caracterizar o trabalho docente, na ótica dos professores, identificando os efeitos psicossociais em sua vida cotidiana e as influências sobre os planos e sonhos para o futuro. Busca-se fazer uma reflexão sobre os aspectos importantes para a formação e capacitação de futuros agentes comunitários, dentro e fora da escola, na ótica desses docentes e à luz da psicologia social comunitária.

 

Método

Esta pesquisa foi realizada, dando continuidade à proposta de implementar ações comunitárias no contexto educacional, que vinha sendo desenvolvida em projetos anteriores, ligados ao NUPCES (Núcleo de Psicologia Comunitária, Educação e Saúde/CNPq-PPGE/UFPR) buscando envolver diferentes atores sociais (professores, estudantes e comunidade), preparando-os para a realização do diagnóstico de necessidades e construção de redes colaborativas em seus entornos educacionais e comunitários.

Em uma primeira aproximação, foi feito o levantamento de vários aspectos e necessidades junto ao grupo de professores. A linha temática central localizou-se no eixo "vida cotidiana: estratégias de resistência e de desistência dos docentes", o que gerou investigações e a participação em atividades de formação a pedido da Secretaria de Educação e do Sindicato dos Professores. Ambos têm buscado aportes para compreender o que se passa com os docentes, em seu dia a dia, sob a ótica dos processos psicossociais com vistas a uma melhoria na participação escolar e comunitária. Já existiam vários contatos e trabalhos grupais anteriores, que vinham sendo realizados junto ao Sindicato de Professores e aos professores-representantes de cada escola ligada ao sindicato. Durante ano e meio, regularmente, realizaram-se reuniões mensais, em que eram feitas discussões sobre problemáticas vividas pelos docentes em seu cotidiano de trabalho, buscando-se a constituição de grupos de trabalho que fossem dirigidos a essas problemáticas em cada escola participante. Como resultado disto, após um levantamento de informações e diagnóstico psicossocial feito junto aos professores-representantes que participavam dessas reuniões regulares, o próprio grupo de docentes, juntamente com a diretoria do sindicato e a nossa equipe de trabalho de intervenção, definiu que um primeiro passo seria a realização de uma pesquisa para conhecermos sobre os docentes e sua vida. Esta deveria ter a maior abrangência possível, atingir cada escola e permitir que os professores pudessem expressar, de modo seguro e sigiloso, seus posicionamentos e visões a respeito de seu cotidiano de trabalho e sua vida, captando as diferentes necessidades e problemas, assim como os anseios e projetos para o futuro pessoal e profissional como educadores e cidadãos.

Isto gerou um instrumento de coleta de informações, sob o formato de questionário que foi denominado, à época, de "Professor: sua vida, seu trabalho, seu futuro". Este questionário, composto de 17 questões abertas e fechadas, estruturou-se, com a ajuda dos docentes-representantes, em torno de três eixos temáticos: "conhecendo os docentes da rede municipal" (dados de caracterização sociofamiliarescolar); "ingresso e participação no magistério e cotidiano docente" e "planos e perspectivas de futuro". As respostas foram categorizadas e submetidas a uma análise de conteúdo, criando-se categorias a posteriori, dentro dos eixos temáticos.

Desafios e dificuldades no campo da pesquisa

Parte dos dados aqui apresentados originou-se de uma proposta de intervenção coletiva, em que a construção e os temas-guias do instrumento de coleta foram discutidos e elaborados em conjunto (direção do sindicato, representantes dos docentes e a nossa equipe). Anteriormente a esta coleta, já existia um trabalho que realizávamos junto aos professores-representantes que tinham assento no sindicato e com a direção dessa entidade, através de reuniões mensais em que as problemáticas e dificuldades dos docentes apareciam, de maneira recorrente, ligadas às dimensões subjetivas e psicossociais.

Assim, foi-se identificando, ao longo desse período, um tema central relacionado à vida docente, surgindo discussões sobre as estratégias de resistência e de desistência que os docentes encontravam em sua vida cotidiana, cujo conteúdo discutimos, nas intervenções e palestras solicitadas pela Secretaria de Educação. Isso produziu algum impacto e expectativa nos professores quanto à necessidade de adquirirem conhecimentos sobre o que se passava com eles, do ponto de vista psicossocial (como os desânimos, sofrimentos, fatalismos, descrenças em possibilidades de melhoria, entre outros), em seus trabalhos e vidas, para que pudessem encontrar alternativas de enfrentamento, individual e coletivo.

Dessa forma, após a confecção e aplicação do questionário-piloto, tendo o apoio e autorização do sindicado e dos docentes-representantes, buscou-se um contato com as direções das escolas. Mesmo tendo a mediação dos professores-representantes, foi um trabalho demorado e cheio de desencontros em termos de tentar coadunar as disponibilidades, assim como os interesses das direções e coordenações pedagógicas em saber do que se tratava, com receios de estarem sendo avaliados externamente. Dos 35 docentes-representantes que participavam com regularidade das reuniões mensais no sindicato, obteve-se por parte de 33 a concordância em intermediar o nosso contato em suas escolas. Assim, estas 33 escolas integrantes da rede (de um total de 167 instituições) tinham em seu conjunto 987 professores ligados à educação básica, que receberam os questionários, entregues ou em reuniões e visitas que realizamos em cada escola, ou através do próprio representante. Cada questionário constituía um conjunto de 17 itens, organizados de modo a ser rápida e objetiva a resposta, com exceção das questões abertas, relativas aos planos de futuro e dimensões mais pessoais. Com todos houve um contato e informação cuidadosa sobre a finalidade da pesquisa, assim como a garantia de sigilo e anonimato, além da leitura e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) (em consonância à resolução 196/96/MS, aprovado pelo comitê de ética em pesquisa do setor de ciências da saúde, em 2009). O questionário deveria ser, então, depositado em outra urna lacrada, colocada à parte da urna, também lacrada, destinada à recolha dos TCLE assinados. A existência dos contatos e trabalho anteriores, junto aos professores-representantes, contribuiu para que fôssemos recebidas nas escolas e que fosse construída uma relação de confiança, mediada pelo aval e conhecimento destes docentes. Isso colaborou para que conseguíssemos um retorno dos 219 questionários (de 987 entregues) que foram considerados válidos. Houve casos de escolas, em que as urnas recolhidas apresentavam poucos questionários no seu interior (ao todo, oito foram considerados inválidos) ou mesmo tinham questionários com a maior parte das respostas em branco, que se referiam a docentes que atuavam na escola não mais na função de conduzir as salas de aula, mas sim em trabalhos administrativos.

Ao final, os 219 questionários respondidos pelos docentes representaram 22% do total entregue. Em cada escola, com a permissão da direção, colocamos uma urna que foi publicamente lacrada por nós, para que os professores pudessem depositar de modo sigiloso e seguro suas respostas, e as duas urnas (a dos termos de consentimento e a dos questionários respondidos) só poderiam ser retiradas por alguém de nossa equipe, a fim de garantir o sigilo e segurança dos docentes, evitando qualquer tipo de pressão ou possível represália. Mesmo com estes cuidados, verificou-se haver uma não devolução de questionários em 88% e, em muitas situações, foi-nos relatada uma "certa insegurança e receio em participar, embora quisessem muito" (sic). Houve inclusive o recebimento de alguns questionários (quatro, de escolas diferentes) que nos foram entregues, anonimamente, três meses depois, colocados no escaninho da coordenadora deste projeto, na universidade. Embora seja um fato isolado e de abrangência restrita, apresenta forte significado se considerarmos que, a sua chegada às nossas mãos, implicou um esforço e envolvimento desses professores, desde a busca e localização da nossa lotação institucional específica, até um interesse em que tais informações nos fossem dadas, para o conjunto do trabalho. Os dados destes questionários agregaram-se depois ao conjunto de respostas dos outros docentes.

 

Resultados

Alguns aspectos contribuem para uma reflexão sobre as dificuldades de participação e obtenção de dados para a realização de pesquisas em cenários, cujas relações interpessoais são delicadas e sensíveis às pressões hierárquicas e de poder. Estas são influências que muitas vezes colaboram para que os dados obtidos possam sofrer interferências que, se não forem consideradas quando do processo de coleta das informações, podem trazer percepções parciais e compreensões analíticas nem sempre próximas à realidade concreta.

Observou-se ao longo destas práticas de intervenção, desde as diretamente realizadas no sindicado dos docentes, uma dificuldade em aumentar o número de professores participantes nas reuniões mensais e debates, em parte explicada pelos medos de serem "vistos como contrários às normas da secretaria ou da direção" (sic). Alguns inclusive relatavam que nem sempre conseguiam vir às reuniões, também em parte porque muitas vezes tinham de cobrir colegas que haviam faltado naquele dia em suas escolas. Nesta ocasião também, o sindicato estava reunindo informações sobre as condições frágeis de saúde dos professores, cujos pedidos de afastamento por causa de doença vinham aumentando. Várias, também, eram as reclamações relativas às dificuldades de ascensão na carreira de magistério, devido a fatores pouco claros.

Além disto, podem-se também indicar mais dois aspectos que permitiriam explicar as dificuldades para uma participação maior em responder aos questionários. Um deles relaciona-se à ideia de que a pesquisa poderia ter uma finalidade de avaliação pessoal dos docentes e/ou escola, visão esta que tem sido observada em várias investigações realizadas no campo da educação e ciências humanas, em que os docentes expressam uma concepção equivocada de que "podem estar sendo avaliados pela universidade", mesmo quando esclarecidos dos objetivos das pesquisas a serem realizadas. O outro aspecto estaria ligado ao fato de que as escolas, de maneira geral, têm sido procuradas por um grande número de pesquisadores e seus estudantes para a realização de trabalhos de investigação (monografias, dissertações de mestrado e/ou teses de doutorado, e outros), utilizando uma variedade de instrumentos de coleta de dados nem sempre muito explicados e "confortáveis" às pessoas. Isso, em muitos casos, pode gerar uma saturação e uma certa desconfiança em relação ao que será feito com os resultados, em especial quando não há um retorno dos pesquisadores para os participantes da pesquisa sobre os achados e conclusões obtidas.

Conhecendo os docentes e seu ingresso no magistério

Como esperado na rede da educação básica, a maioria dos docentes é do sexo feminino. Encontramos 214 mulheres para apenas 5 homens, com idade entre 24 e 61 anos sendo que mais de três quartos deles situam-se em duas faixas etárias predominantes: dos 24 aos 35 anos (com 85 professores-38,8%) e dos 36 aos 47 anos (com 87 professores – 39,7%). Ainda 31 docentes situam-se entre os 48 e 55 anos, representando uma proximidade com a aposentadoria, visto que se dedicam à profissão há mais de duas décadas.

Considerando-se apenas os que foram informaram de modo preciso (209) seu estado civil, houve uma maioria de casados (130- 62,2%) para 37,7% (79 docentes) que se encontram, provavelmente, sozinhos em alguma condição similar (solteiros, divorciados ou viúvos). Mesmo trabalhando e vivendo na capital do estado, os docentes praticamente se equilibram quanto à sua origem: uma maioria (112- 51,6%) é originária de fora da capital sendo que 38,2% (83 docentes) são do interior desse estado, e 48,4% (105) nasceram na capital. Em termos de moradia, observa-se que a grande maioria (179 docentes) vive em casa própria e os demais se dividem, equitativamente, entre morar de aluguel ou em casa de parentes. A contribuição para a renda familiar predomina (172 docentes – 78,5%) em um a dois trabalhadores, vivendo em casas em que moram de 3 a 6 pessoas (168 – 76,7%).

Em relação à sua formação para a docência, a maioria (195–89,04%) fez magistério no ensino médio, concentrando-se (146 deles) em escolas públicas. Quase a mesma proporção observa-se em relação a terem feito (210-95,9%) algum curso superior, com predomínio para a pedagogia (100-47,2%), magistério superior (31-14,7%) e letras (22-10,4%). Os cursos de educação física, artes e ciências sociais aparecem equiparados, tendo sido feitos por nove (4,3%) docentes cada um. Com o mesmo índice de escolha (quatro -1,9%), aparecem os cursos de psicologia, jornalismo, biologia, história e filosofia. Ainda foram cursadas as seguintes carreiras por apenas um docente: geografia, matemática, desenho industrial, economia, serviço social, direito e fonoaudiologia. Observa-se que algumas destas carreiras cursadas não estão diretamente relacionadas ao exercício da docência na educação básica, podendo indicar que estes professores talvez não tenham conseguido colocação profissional quando se formaram, ou que já atuavam no magistério e lhes foi mais vantajoso e motivador continuar na docência do que iniciar-se na nova carreira.

Como indicado na Tabela 1, a maioria (169) dos docentes informou já ter realizado algum tipo de curso de especialização ou capacitação, concentrando-se nas áreas da Educação e das Psicologias, com ênfase nos temas relativos à sala de aula (metodologias, técnicas e didática, e gestão do trabalho pedagógico) e aos processos de ensino (desde deficiências até processos de aprendizagem).

 

 

Em termos de expectativa futura para seu aprimoramento profissional, todos os professores indicaram algum tipo de capacitação que desejam fazer, havendo casos de mais de uma indicação por docente. Interessante verificarmos que predomina a expectativa em fazer cursos no campo das psicologias (43) e da pós-graduação stricto sensu (40) nessa área, ficando o campo da Educação e Educação Especial como terceira (30) área procurada para cursos futuros. Parece haver uma crença de que cursos voltados para a compreensão do individuo e de suas formas de desenvolvimento e aprendizagem poderiam trazer benefícios, inclusive para a prática de magistério que eles têm. Isso aparece também nas escolhas que fazem em termos de cursos de mestrado e doutorado que pretendem fazer.

Observa-se na Tabela 2, que as razões indicadas para terem se tornado docentes concentram-se em aspectos vocacionais, altruístas (de quererem melhorar o mundo e a humanidade), pessoais e de condições externas/objetivas.

 

 

Os aspectos externos indicados referiram-se ao fato de terem buscado essa profissão pela influência e modelo de amigos e parentes, por ser um trabalho que permite atuar somente por meio período, e pela segurança ao ser um trabalho de vínculo público. Estes motivos mantêm-se presentes seja como primeira ou segunda razão atribuída.

Ao serem perguntados a respeito dos problemas e dificuldades que enfrentam em seu cotidiano profissional, os professores apontaram sete grupos de dificuldades que se expressaram e em relação às condições: alunos, saúde, colegas, relacionamento, família dos alunos, execução e recursos do trabalho (Vide Tabela 3). Cada grupo de dificuldades refere-se a vários aspectos, reunidos em categorias a posteriori a partir das respostas dadas às perguntas abertas, que permitem conhecer os obstáculos que os professores enfrentam em seu dia a dia. Há um significativo predomínio de dificuldades relacionadas aos alunos (534 problemas apontados) e suas famílias (370 problemas).

 

 

O grupo de dificuldades relacionadas a recursos e materiais no trabalho foi o que teve a frequência maior de professores (68) que informou não enfrentar tais obstáculos. Em sentido oposto, poucos (4) foram os que disseram não enfrentar problemas relacionados aos alunos. Por sua vez as dificuldades ligadas a "relacionamento na escola" tiveram respostas na categoria "não respondeu" superiores a "não têm problemas" neste item. Mesmo que a quantidade de problemas indicados em relação a este aspecto tenha sido o menor de todos (94), isto nos faz pensar nos receios que muitos docentes têm em se expressarem de maneira objetiva, de tal modo que isso poderia revelar algum tipo de tensão ou conflito nas relações profissionais, colocando-os em posições frágeis nas relações hierárquicas e de poder, por isso talvez muitos preferem "não responder".

As dificuldades e/ou problemas enfrentados em relação aos alunos foram indicadas quanto a três dimensões: a) problemas na relação alunos e sua família; b) ao próprio comportamento e desempenho dos alunos, e c) problemas da escola/comunidade que afetam os alunos (Vide Figura 1). Este é o grupo de problemas com maior indicação (534), destacando-se aqueles relacionados ao comportamento e desempenho (387). Neste subgrupo, os professores apontam principalmente a falta, por parte dos alunos, de atitudes e interações adequadas e com bom controle emocional e afetivo diante de contrariedades ou adversidades, muito mais do que os problemas relativos ao processo de aprendizagem e aquisição de conhecimento (62).

 

 

Os problemas relativos à Escola/Comunidade, que os professores consideram afetar mais os alunos, derivam de: fatores socioeconômicos (pobreza, falta de condições materiais, de higiene e alimentação; drogas e álcool;); falta de condições favoráveis de ensino (excesso alunos em sala, falta de material/pessoal); falta de condições pedagógicas (apoio e comprometimento político-pedagógico, autonomia escolar, acompanhamento especializado); sistema educacional vigente (ciclos e critérios para aprovação).

Conforme se observa na Figura 2, quanto à saúde no trabalho, os professores indicaram problemas que foram agrupados em duas subcategorias: uma relativa à saúde física e emocional, e, outra, ligada à saúde afetada pelas condições de trabalho. Na primeira, foram apontados problemas e dificuldades ligadas a: aspectos psicossociais e SN (sistema nervoso) (desânimo, ansiedade, depressão, esgotamento emocional); dores na coluna e musculares; comprometimentos nos órgãos do sentido (voz-garganta, audição, visão); alergias e enxaquecas. Na segunda subcategoria – saúde ligada às condições de trabalho – foram indicados problemas ligados a: excesso de horas trabalhadas e falta de pessoal (que geram estresse e sobrecarga física); condições precárias e insalubres (ambiente insalubre, problemas com médicos, espaços precários, doenças infectocontagiosas no ambiente); falta de tempo (sem lazer e sem descanso); e "clima" social negativo (muitas reclamações, desconfianças, baixo comprometimento dos funcionários e professores).

 

 

As dificuldades e/ou problemas enfrentados pelos professores em relação aos seus colegas de trabalho (vide Figura 3) foram reunidas em quatro subcategorias: desunião e desrespeito (enfatizando as competições desleais, individualismo, baixa solidariedade, falta de ética e responsabilidade, incompreensões e injustiças nas interações); desinteresse e insatisfação (lamúrias e desânimos, baixo envolvimento e compromisso com situações escolares); ciúmes/inveja e fofocas (falta de aceitação às várias, disputas pessoais e discórdias, "muita convivência de mesmo "gênero" (sic)); e estresse físico-emocional (decorrente das doenças e afastamentos dos colegas que produz sobrecarga e acúmulo de aulas com substituição dos que estão em exercício).

 

 

Já em relação aos problemas e dificuldades existentes nos relacionamentos dentro da escola (vide Figura 4), os professores indicaram os 182 aspectos distribuídos nas seguintes categorias: falta de valores e ética (individualismo, baixo compromisso, desrespeito, competição desleal); falta de espírito de equipe (falta de união e cooperação, partidarismo/facções, baixa colaboração); falta de tempo/interesse e comunicação (poucas oportunidades criadas para compartilhar atividades, falta de perspectivas no trabalho, problemas de comunicação/diálogo); déficits nos planos pedagógicos (falta de professores, de planejamento metodológico, gerando estress); e abuso de poder.

 

 

Como quinto grupo de dificuldades e problemas, apontado por 178 professores, relativo à família dos alunos, e refletindo nos comportamentos destes, foram agrupados nas seguintes categorias: falta de acompanhamento escolar (com 118 indicações – ausência de: diálogo e comunicação, tempo para conversas, de apoio/incentivo, interesse); falta de compromisso e limites dos pais (com 85 indicações – expressada em baixo compromisso com as atividades escolares, pouca responsabilidade diante dos prazos e pouca disciplina e limites no âmbito familiar); negligência e abandono (com 60 indicações – permissivos, esquecem crianças na escola, negligentes); desvalorização/desrespeito dos professores (com 43 indicações – desrespeito, colocam alunos contra docentes, responsabilizam professores por tudo, sem ética); famílias desestruturadas (com 38 indicações – famílias instáveis, com drogas e violência); problemas econômico-culturais (com 26 indicações – pobreza, falta de higiene, alimentação, valores e cuidados básicos de sobrevivência).

Os professores indicaram 287 dificuldades que interferem na execução/desenvolvimento do seu trabalho na escola, referentes ao sexto grupo de obstáculos vivenciados (vide Figura 5).

 

 

Esses obstáculos foram agrupados nas seguintes categorias: condições físicoestruturais deficitárias (falta de materiais básicos, pouco/ruim espaço físico, excesso de alunos, tecnologia deficiente); condições físico-emocionais (cansaço, ansiedade, estresse, falta de apoio e valorização); exigências humanas e laborais (falta de professores e tempo, baixos salários, capacitação exigida); julgamentos (opiniões negativas, críticas, cobranças); problemas com alunos (relacionamento, interação e desrespeito); dificuldades com secretarias(filosofias de ensino, burocracia).

Quanto às dificuldades e problemas ligados aos recursos necessários para o seu trabalho (vide Figura 6), os professores apontaram 167 aspectos que se referem a: falta de materiais e infraestrutura (escassez de materiais, equipamentos, verba, espaço); problemas de uso/zelo dos materiais (acesso difícil, demora na aquisição, falta de cuidado no manuseio, equipamento estragado, roubo de equipamento); falta de apoio (falta de auxiliares, de tempo e apoio pedagógico), utilização dos próprios recursos (uso de equipamentos pessoais, trabalha com o que existe).

 

 

E o futuro?

Os planos profissionais (250 indicações) de futuro dos docentes situam-se em cinco categorias: realizar estudos para se aprimorar e/ou ter ascensão profissional; buscar trabalho em outra área; continuar trabalhando como professor; atingir reconhecimento e valorização profissional; aposentadoria (Figura 7). Da totalidade de 219 docentes, 26 deles não indicaram nenhum projeto ou plano profissional para o futuro.

 

 

Com relação aos sonhos, o relato dos docentes distribui-se desde indicar aspectos pessoais como uma melhoria de função e trabalho, até um desalento e certo desespero por sair, como fruto da desvalorização que a profissão docente tem tido, passando por desejos relacionados a condições objetivas e razoáveis de trabalho ou alguns desejos ´românticos´ com a profissão.

Algumas verbalizações, fornecidas pelos docentes nas respostas às perguntas abertas no questionário, ilustram isso:

"Gostaria de ter salário mais decente e fidedigno ao que tenho trabalhado" (professora, 45anos),
"Quem sabe, abrir uma pré-escola" (professora, 27 anos)
"... realizar um projeto com crianças em minha chácara. Vai se chamar "xxx", meio ambiente e educação" (professora, 41anos)
"Conseguir ensinar alunos que tenham menos problemas disciplinares. O meu sonho é ser um professor que orienta e ensina usando as tecnologias do momento: computador em sala de aula" (professor, 31 anos)
"…ajudar a ter uma sociedade mais participativa, educada e responsável pelos seus atos. Liberdade, respeito e paz'" (professora, 59 anos)
"Que os alunos da escola pública tenham mesma qualidade de ensino da escola particular. Sou uma idealista sonhadora" (professora, 60 anos)
"…queria ter turmas menores" (professor, 35 anos)
"Passar para pedagoga" (professora, 33 anos)
"Meus sonhos no magistério foram morrendo aos poucos devido à forma como os profissionais vêm sendo tratados pela sociedade de uma maneira geral" (professora, 45 anos)
"Deixar de ser professora o mais rápido possível! Urgência! Nunca mais mesmo, quero cogitar em ser professora!" (professora, 29 anos)
"Um dia trabalhar com alunos mais envolvidos, interessados, respeitadores e em um ambiente harmônico (bonito)" (professora, 37 anos)

Os projetos pessoais (256 indicações) que os docentes têm para si próprios situamse em quatro categorias: âmbito familiar (desde constituir família até dar segurança); segurança material-financeira (de bens, moradia e aposentadoria); saúde (cuidados e qualidade de vida); e realizar outros cursos (como hobby). (Vide Figura 8).

 

 

Discussão

Professores por um fio…?

Neste momento, podemos iniciar algumas reflexões sobre as dimensões psicossociais que se expressam no cotidiano da vida dos professores. Depreende-se que esta profissão, também, é vista pelos próprios professores como estando imbuída de "características humanitárias, altruístas", parecendo depender muito mais da dedicação e do gosto ou vocação que têm por ela, de tal modo que isto lhes daria força e coragem para enfrentar o dia a dia. Isso em parte pode dar um certo caráter sacerdotal à profissão, podendo contribuir para desfocar outros aspectos que são importantes para a construção de uma prática profissional e seu sucesso, e com isso gerar processos de naturalização que podem contribuir para posturas fatalistas e pouco coletivas em uma perspectiva comunitária. Estes são exemplos daquilo que, no campo da psicologia social comunitária e da psicologia social da libertação, tem sido chamado de processo de naturalização da vida cotidiana (Alfaro, 2012; Freitas, 2008, 2012; Montero, 2003; Montero & Serrano-Garcia, 2011; Martín-Baró, 1989).

Considerando-se as falas dos docentes, em relação aos vários aspectos, poder-se-ia dizer que, mesmo antes dos desafios relacionados a como fazer seus alunos aprenderem, interpõem-se, no seu cotidiano, problemas anteriores que estão na base das relações e interações humanas, cuja condição básica seria necessária para qualquer aprendizagem. Ou seja, as dificuldades que enfrentam quanto aos comportamentos e posturas "inadequadas" e "inadmissíveis" de seus estudantes revelam um importante entrave em seu cotidiano. Esse entrave contribui, muitas vezes, para (re)criar formas de desalento e descrença no "fazer docente" – como um fazer psicossocial fatalista (Martín-Baró, 1987, 1989) – cujo reflexo, lamentavelmente, abre a porta para formas de adoecimento psicossocial na vida desses profissionais. Novamente, nos deparamos com condições facilitadoras para que se reinstaure, assim, um perverso círculo vicioso entre: essa vida docente que "se naturaliza" (como uma sequência de sacrifícios e paradoxos, necessários de serem vividos), as concepções fatalistas que fornecem algum parâmetro de referência (de que nada poderá mudar, restando um certo "acostumar-se" com esse "caminho"), a crença na imutabilidade histórica (visto que a vida dos professores "é assim em todos os lugares"), e o deparar-se com dilemas e paradoxos cotidianos (percebidos nos avanços de aprendizagem em seus alunos "apesar de tudo", e no envolvimento afetivo-emocional com sua práxis cotidiana "que justificaria o sacrificar-se") (Freitas, 2008, 2012; Montero, 2003;Martín-Baró, 1987, 1989) .

Os problemas que afetam a saúde dos professores e são derivados, especificamente dos aspectos psicossociais e dos reflexos no sistema nervoso (116 indicações), têm grande importância que quase se equiparam aos problemas ligados às condições objetivas de trabalho. Isto poderia significar mais uma vez que algumas dificuldades, (como a falta de condições estruturais e objetivas) para o desenvolvimento do trabalho docente, não chegam a se constituir em entraves sérios e impeditivos, visto que para os professores as condições de dimensão subjetiva e psicossocial têm uma maior significação. Isto aponta para a necessidade de uma análise histórico-dialética, que identifique as contradições histórico-sociais que se refletem na vida das pessoas, se pretendemos obter subsídios para pensar em propostas de intervenção comunitária (Montero, 2003). Uma consideração a fazer é a de que não estamos, aqui, defendendo uma precariedade nas condições de trabalho dos professores, já que estes conseguem fazer "verdadeiros milagres" para atingirem seus objetivos. Pretende-se sim, destacar este lado da força e da criatividade do trabalho cotidiano dos docentes, que inúmeras vezes atingem seus resultados mesmo diante de grandes adversidades. Como bem sabemos, há décadas esta profissão constitui-se em um grande baluarte de resistências e de enfrentamentos na vida cotidiana (Freitas, 2003, 2007; Guzzo, 2005; Penteado & Guzzo, 2010). Outra consideração refere-se ao fato de que as dimensões psicossociais, que atravessam a vida dos docentes, são aspectos relevantes que deveriam ser enfocados seja na formação desses profissionais, seja no planejamento e implementação de políticas públicas, que poderiam reverter em novas formas de planejamento das condições cotidianas de trabalho. Isso poderia contribuir para que as formas de superação e resistência às adversidades não ficassem dependendo, quase exclusivamente, das ações e posições dos professores, como numa atitude individual, solitária e corajosa (Freitas, 2003, 2007; Montero, 2007).

Os professores referem-se a vários problemas (em relação aos colegas ou a outros problemas, de modo geral) que emergem das interações, nem sempre produtivas e saudáveis, havendo situações de uma certa " animosidade" não declarada, já que relatam não haver confiança, união e nem cuidados éticos no trato interpessoal. Parece haver uma situação paradoxal, visto que seria compreensível se os professores estivessem inseguros em seu emprego, de tal modo que teriam de disputar por espaços e por sobrevivência. No entanto, como é um emprego público isto não acontece e não há um risco forte de perda de emprego. Entretanto, outras dimensões das relações de trabalho emergem e parecem acirrar-se nas interações professor-professor e professor-condições da escola, que se expressam em situações como:

a) a falta de docentes (decorrente de um quadro escasso, professores que vão adoecendo e/ou vão se intimidando com as inseguras condições de trabalho diário e depois licenciam-se ou pedem remanejamentos de escola) acaba pressionando aqueles que permanecem no exercício das suas atividades;

b) existe pouca participação em grupo e/ou sindical dirigida a interesses coletivos ou da categoria;

c) o excesso de tarefas e trabalho traz um subproduto "interessante" para a não união e estabelecimento de parcerias e solidariedades que revertam para todos, já que os docentes ou estão exaustos ou têm de deslocar-se rapidamente para a outra escola, na 2ª ou 3ª jornada de trabalho, portanto pouco tempo há para discussões coletivas;

d) a insegurança, as ameaças fora e dentro da sala de aula, o não envolvimento das famílias e ainda a cobrança por indicadores de "excelência" educacional colocam de novo o docente na condição vulnerável.

 

Considerações finais

Todos estes aspectos, numa interação intensa e cotidiana, podem fazer com que qualquer personagem, participante desta dinâmica, transforme-se em potencial disputa por alguns parcos benefícios, como horários e aulas melhores, salas e espaços de trabalho, horários-atividade e reuniões de colegiado, e aproveitamento escolar das turmas como se isso, por si só, indicasse a (in)eficiência e (in)competência do professor. Cria-se, assim, uma armadilha psicossocial muito perversa que fragiliza as relações interpessoais e legitima um trabalho a ser feito, na maioria das vezes de modo solitário e no limite da exaustão psicológica, social e laboral. Some-se a isto, ainda, o fato de que tais condições favorecem e fortalecem a criação de explicações naturalizantes e fatalistas para as dificuldades e insucessos, criando círculos viciosos de visões desalentadoras quanto à possível mudança e melhoria em sua vida e trabalho. Como já mencionado, deparamonos com um importante entrave à realização de trabalhos de intervenção comunitária no contexto educacional. (Freitas, 2007, 2008, 2012; Montero, 2003; Martín-Baró, 1987, 1989; Rebellato, 2009). Isso vai aparecer, por exemplo, quando os professores (e outros também) não só não acreditam ser possível mudar, como também colaboram para reforçar visões fatalistas junto aos alunos e colegas. Agrava-se a situação – aumentando a distancia para a realização de projetos e propostas coletivas e comunitárias – quando o individualismo e egoísmo são fortalecidos e valorizados por posturas "que deram certo", já que "cada um cuidou do que é seu sozinho". Configura-se, assim, o desafio aos trabalhos comunitários: como romper com este círculo de fatalismo-descrença no comunitário? E como fazer com que as pessoas (e professores) acreditem em um projeto coletivo e comunitário de formação cidadã e mais digna no cotidiano?

Mesmo havendo a indicação de uma série de problemas relativos à família dos alunos, com fortes impactos na vida destes – como pais negligentes, pais que desrespeitam os professores, ausência no acompanhamento e apoio aos filhos, etc. – e que podem tornar o trabalho dos professores mais árduo ainda, estes profissionais não deixam de manifestar uma grande preocupação com a vida de seus alunos, com as condições nas quais vivem e como isso tudo afeta o seu desenvolvimento e aprendizagem na escola. Mesmo podendo parecer uma situação por demais delicada e difícil, a persistência dos docentes nesta preocupação parece apontar para uma crença de que algo deve e pode ser feito. Novamente emergem considerações sobre a importância de serem agregados conhecimentos e práticas oriundas do campo dos processos psicossociais, durante a formação destes professores, para que possam instrumentalizar-se com algumas estratégias de intervenção e participação comunitária. Esta poderia ser uma contribuição, ao menos para se evitar explicações legitimadoras e fatalistas, assim como encontrar alternativas para ações grupais pró-ativas dentro da escola guiadas por uma proposta coletiva e comunitária.

Quando avaliamos as diferentes dificuldades enfrentadas pelos docentes, pode-se dizer que o tornar-se professor, na prática diária, apresenta-se muito difícil ao terem de lidar com várias condições contrárias e adversas, muitas das quais não são de sua responsabilidade e atribuição. Estas condições concentram-se em aspectos físicos e estruturais que em nada ajudam a atuar como professor, ou seja, o espaço físico é ruim e precário, há um excesso de alunos em sala, e faltam equipamentos ou não funcionam, e a tecnologia é deficiente. Portanto, o ser professor acaba, em grande medida, restringindo-se ao "aparato" físico-corpóreo-cerebral do próprio professor, que ainda solapado pelas pressões de ordem psicológica (como as fofocas, julgamentos, críticas e cobranças, entre outros) vê-se sempre como numa linha de front, onde a cada dia novas e desafiadoras experiências podem se configurar. Ele(a) sustenta-se, então, no seu cotidiano e a cada dia…por um fio! Apesar disso, continuam a buscar alternativas, mesmo que possam ser pontuais e baseadas em recursos individuais e próprios. Todavia, destacar o aspecto positivo disto não pode servir para criar conformismos e nem para aceitar esta precarização das condições de trabalho e de vida. Talvez a possibilidade de construção de projetos comunitários a partir de dentro da escola possa ser uma possibilidade de mudança em longo prazo. Para isso, necessário se faz o envolvimento de todas as instâncias educacionais e pedagógicas nessa construção.

Olhando o futuro que os docentes projetam para si, parecem ser planos imediatos (dirigidos para a realização de estudos) ligados a alguma capacitação e aprimoramento. Isto talvez esteja ligado ao fato de que eles acreditam em si próprios e em suas ações no cotidiano escolar, como fatores essenciais para a resolução dos problemas que vivem. E, nesse sentido, o fato de poderem estudar e se aprimorar contribuiria para encontrar estratégias de enfrentamento dessas dificuldades, gerando soluções que reverteriam de modo positivo para a sua prática profissional como docentes. Embora a continuidade na profissão, como docentes, tenha aparecido pouco, superando apenas a opção de se aposentar, percebe-se que os professores ainda colocam dentro de seus planos profissionais, mesmo que de modo indireto, alternativas ligadas ao trabalho e à prática docente ( como aprimorar-se dentro da temática da educação). Isto revela, assim, um forte envolvimento com seu trabalho, independentemente dos sucessos e fracassos, e dos sentimentos de satisfação ou de desalento que possam ter em seu trabalho. Outra razão para desejarem estudar mais no futuro poderia estar na direção de aumentar as chances de melhoria salarial, seja dentro do campo da educação e ensino em que se encontram, seja em outro, caso se mudem para outra área.

Estes aspectos foram nos indicando os dilemas e paradoxos que os professores vivem em seus cotidianos, ora percebendo dimensões positivas que chegam a lhes dar mais alento para o trabalho, ora identificando aspectos difíceis, dolorosos e até aversivos a ponto de quase se "desesperarem" e desejarem sair, mudar ou se afastar. Ao mesmo tempo, mesmo em situações dolorosas, parece haver uma constante que se refere ao fato de estarem buscando, de modo contínuo, meios e recursos para "fazerem os alunos aprenderem" (sic) e melhorarem suas vidas. Muitas vezes, mesmo estando "por um fio", em suas vidas e seus trabalhos, chegando próximos a sentimentos de desistência, de desalento, de descrença, ainda assim acreditam e buscam outras formas, mesmo que pequenas, de resolução e melhoria. Parece, então, que este "fio" pode ser de aço! Entretanto, se assim for, isto de modo algum, pode ser utilizado para justificar e legitimar formas de precarização e de aceitação de situações indignas e injustas, vividas no cotidiano das pessoas. Ao contrário! (Martín-Baró, 1987; Freitas, 2008; Rebelatto, 2009).

Buscou-se, aqui, dar voz a estes docentes e, ao fazer isto, foi possível refletir sobre os impactos na vida cotidiana destes profissionais, empregando-se alguns aportes da psicologia social comunitária visando desnudar os processos de naturalização que podem enfraquecer a construção de redes comunitárias e processos de mudança no dia a dia. Nesse sentido, a discussão sobre o cotidiano docente, tomando-o como ponto de partida, buscou tornar visíveis caminhos para possíveis projetos de participação comunitária dentro do contexto educacional, baseados em redes de relações mais solidárias e humanas na própria escola (Freitas, 2007, Martin-Baró, 1987, 1989). Com isto, talvez seja possível subsidiar formas de romper com o "processo adaptativo e domesticador presente nas relações" (Guzzo, 2005) cotidianas, que tanto têm contribuído para esta condição de mal-estar e sofrimento docente.

 

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Endereço para contato
E-mail: fquintal@terra.com.br

Recebido em agosto de 2012
Aceito em setembro de 2012

 

 

Maria de Fatima Quintal de Freitas – Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre e Doutora em Psicologia Social pela PUC-SP e Pós-Doutora em Psicologia Comunitária pelo ISPA-Lisboa e Universidade do Porto, Portugal.
Lygia Maria Portugal Oliveira – Professora do curso de Psicologia da Faculdade de Administração, Ciências Educação e Letras (FACEL). Mestre em Educação pela UFPR.
1 CNPq e CAPES.