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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.38-39 Canoas dez. 2012

 

ARTIGOS DE PESQUISA

 

A dor psíquica na trajetória de vida do paciente fibromiálgico

 

The psychological suffering in the lifepath of a fybromialgic patient

 

 

Rute Grossi MilaniI; Leonardo Pestillo de OliveiraI,II; Vilma Rodrigues SantosI; Irineu Miguel PaulukI

I Centro Universitário de Maringá (Unicesumar)
II Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP)

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RESUMO

A fibromialgia é uma síndrome crônica, não inflamatória caracterizada por dores musculoesqueléticas difusas e pela presença de pontos dolorosos em determinadas regiões do corpo "Tender Points". Seu diagnóstico é clínico, não havendo alterações laboratoriais específicas. O enfoque deste trabalho é compreender o sofrimento psíquico de um grupo de mulheres portadoras de fibromialgia; descrevendo a abrangência dos sintomas gerados pela síndrome e caracterizando a dor psíquica que permeia o processo de aceitação da doença. Trata-se de um estudo qualitativo, em que participaram 10 mulheres portadoras de fibromialgia, com idade variando entre 21 e 65 anos de idade. A coleta de dados foi realizada através de uma entrevista semiestruturada. Verificou-se que a trajetória de vida do paciente fibromiálgico é marcada por muita dor, física e psíquica, e que, além do tratamento medicamentoso, ele necessita apoio psicológico a fim de desenvolver seus recursos adaptativos.

Palavras-chave: Fibromialgia, Dor, Sofrimento psíquico.


ABSTRACT

The fibromyalgia is a chronic syndrome, not inflammatory, characterized by the spread of musculoskeletal pain and the presence of tender points in specific regions of the body. The diagnosis is made by a clinical exam and there are no specific laboratory alterations. Therefore the focus of this project was to understand the psychological suffering in a group of women, who have fibromyalgia; describing the dimension of the symptoms produced by the syndrome, distinguishing the psychological pain that permeates the process of accepting the illness. It's about a qualitative research, composed of a study group of 10 women diagnosed with fibromyalgia from 21 to 65 of age. It became evident that the life path of a person with fibromyalgia is marked with a lot of pain; physical and psychological, and in addition to medical treatment he needs psychological support in order to develop his adaptive resources.

Keywords: Fibromyalgia, Pain, Psychological suffering.


 

 

Introdução

A fibromialgia é uma síndrome dolorosa crônica, não inflamatória, de etiologia desconhecida; caracterizada por dor difusa pelo corpo, referida em músculos, ossos, ligamentos e articulações. Atinge especialmente as mulheres numa faixa etária entre 30 e 60 anos, mas pode também aparecer em crianças e adolescentes (Feldman, 1999; Skare 1999; Lima & Carvalho, 2008). O nome fibromialgia tem origem nos termos: fibra do latim (tecido fibroso), mio do grego (referente aos músculos), e algia originário do grego (algos), que significa dor (Goldenberg, 2006).

É considera uma síndrome, porque inclui uma série de sintomas e sinais que não estão restritos a um órgão ou conjunto de órgãos pertencentes a um sistema do organismo. Além da rigidez muscular, articular e nos ligamentos, outros sintomas são fadiga crônica, dor, irritabilidade, ansiedade, cólon irritável, baixa resistência imunológica, distúrbios do sono, enxaqueca, síndrome da perna cansada, formigamento dos braços, boca seca, tontura ou desmaios, depressão e dificuldade de concentração (Whitcomb, 2007).

A dor é o sintoma mais relevante, sendo descrita como generalizada, na forma de: ardência, incômodo, rigidez e fisgadas; sofrendo variações dependendo da hora do dia, do tipo de atividade, do clima, de alterações hormonais, do padrão de sono e estresse. A maioria das pessoas se refere à doença como se estivessem constantemente gripadas (Maeda, Fernandez & Feldman, 2006).

As primeiras considerações reportadas acerca da fibromilagia datam de aproximadamente 200 anos. Em 1850, temos o relato de pacientes com reumatismo que apresentavam pontos endurecidos em seus músculos, os quais eram dolorosos à pressão. E em 1094 Gower, chamou de fibrosite estas alterações clínicas, com ênfase na sensibilidade à pressão sobre estes locais dolorosos. Smythe e Moldofsky em um estudo por volta dos anos 70 observaram que certas localizações anatômicas eram mais frequentemente dolorosas e denominaram estes pontos sensíveis de tender points (Carvalho & Moreira, 2001).

Os autores acima referidos relatam que em 1980 os tender points já eram considerados úteis para o diagnóstico da fibromialgia. E em 1990 um Comitê Multicêntrico Norte-Americano de Reumatologia, estabeleceu critérios para a classificação da doença, os quais são usados ainda hoje.

A fibromialgia é uma doença real, debilitante, que provoca dores persistentes e generalizadas pelo corpo. Essas dores físicas são agravadas por outra dor, a da incompreensão. De acordo com Goldenberg (2006), só de saber que se tem uma doença real, após anos de dúvida e sofrimento, na maioria dos casos, o paciente já apresenta uma melhora considerável no seu quadro.

O diagnóstico da fibromialgia é essencialmente clínico e diferencial. Não existe um só exame laboratorial ou de imagem capaz de ajudar o médico no diagnóstico, o qual depende totalmente de sua habilidade clínica. Por ser uma doença difícil de ser detectada, e pouco conhecida, seus dados epidemiológicos fornecem uma ideia ainda imprecisa do quadro; razão pela qual não são raros os que não dão a devida importância às queixas dos pacientes (Straumann, 2007).

Apesar dos avanços nas pesquisas sobre esta síndrome, ainda não se tem uma ideia clara sobre sua origem. Straumann (2007) faz referência a alterações bioquímicas nos nervos periféricos que chegam à medula espinhal. Já, Whitcomb (2007) afirma haver um desalinhamento entre o forâmen magnun e a primeira vértebra da coluna cervical causando uma pressão nas meninges; a qual está ligada às raízes nervosas da coluna e do crânio, desencadeando estímulos indiscriminados dos impulsos nervosos, especialmente do Sistema Nervoso Simpático, resultando nos múltiplos sintomas da fibromialgia. Goldenberg (2006) cogita que os agentes estressores na infância condicionam a resposta biológica pelos anos afora. E, Feldman (2004) afirma existir uma predisposição genética e, também, que uma incapacidade em elaborar resposta adequada aos estímulos estressantes do ambiente resultaria em alterações na aquisição, percepção e interpretação da dor; fazendo com que o limiar de dor no fibromiálgico seja muito baixo.

A dor é uma parte integrante da vida e tem a função de proteger a integridade física da pessoa. É um sintoma complexo, individual e subjetivo. Envolve aspectos sensitivos, emocionais e culturais que só podem ser compartilhados a partir do relato de quem a sente. Quando crônica mantém a pessoa num estado de alerta contínuo (Pimenta, 1995; Teixeira, 1995).

Embora a dor seja essencial para a sobrevivência, em muitas circunstâncias, ela excede a função de sinalização. Como afirma Angelotti (2001), a dor crônica, produz uma alteração permanente na vida de um indivíduo modificando seu comportamento, sua inserção na família e na sociedade. Ela própria passa a ser a doença, independente da causa inicial. A dor crônica tem também um custo psicológico elevado, desencadeia baixa autoestima, insônia, raiva, sensação de abandono e taxa elevada de depressão (Straub, 2005).

A dor é simultaneamente um fenômeno psíquico e somático, ela não se deixa aprisionar no corpo, implica o homem em sua totalidade, sendo um fato existencial, além de fisiológico. O seu limiar de sensibilidade não é o mesmo para todos. A atitude face à dor e os comportamentos de resposta variam conforme a condição social e cultural, conforme a história de vida e a personalidade. Esta última pressupõe organizações psíquicas internas e modalidades específicas de lidar com a dor, que podem envolver desde a capacidade de contê-la mentalmente, de elaborá-la e, até mesmo, a necessidade de expulsá-la, de negá-la, de desprezá-la. É uma experiência ao mesmo tempo universal e singular. Semer (2008) relata que Freud introduziu esta questão como dor na alma e distinguiu dor e sofrimento. Ambos os termos designam afetos e emoções básicas que se exprimem na área transicional que vai da experiência corporal à mental. Sofrer remete à capacidade de suportar, de tolerar e, portanto, de ser capaz de conter dentro do espaço psíquico da experiência. Adoecer produz sofrimento, de modo que sofrer é suportar alguma coisa desagradável, sobretudo quando não se tem os meios para agir sobre as causas e diante das quais a fuga é impossível (Dantas & Tobler, 2003).

Queiroz (2009) descreve evidências de que processos psicológicos estão relacionados à exacerbação e manutenção da dor. O fibromiálgico experimenta a dor crônica como sofrimento físico e psíquico, por conta da exclusão social, da incapacidade funcional e das limitações em vários contextos da sua vida. Em uma maior ou menor intensidade, a dor é a companheira diária do portador de fibromialgia que lança mão de múltiplas alternativas para se livrar dela. Há, portanto, a necessidade de um olhar psicológico sobre o aparecimento e a manutenção da dor, a fim de se compreender o indivíduo e orientá-lo na busca de qualidade de vida.

Coelho (2001) afirma que em toda perda importante que acontece na vida, é necessário um processo elaborativo, que é também acompanhado por um processo de enlutamento, o luto pela perda da saúde. O luto é um processo de cicatrização doloroso, mas necessário, onde ocorre a despedida de uma situação para que o indivíduo possa se adaptar à nova realidade. A dor da perda da saúde é algo que abala a estrutura emocional do indivíduo e provoca desânimo profundo, cessação de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e inibição da atividade. Algumas pessoas na situação de doença ficam tão fragilizadas, que mesmo seus mecanismos de defesa mais bem elaborados caem por terra, algumas pessoas transpõem a experiência tornando-se mais fortes internamente. Outras, entram para a cronicidade física e emocional e, aliada ao sofrimento físico emerge uma dor emocional de perder a condição de sadio.

Goldenberg (2006) destaca que, além do sofrimento causado pelas dores, a pior consequência da fibromialgia é a perda da qualidade de vida. As dores e os demais sintomas atrapalham as atividades diárias, limitam os contatos sociais e podem inclusive levar ao rompimento dos laços familiares. Todavia, a forma e a extensão em que uma enfermidade crônica pode afetar a vida de uma pessoa dependem em grande parte do funcionamento emocional anterior à doença.

Segundo Rocha (2001), deve se considerar os fatores emocionais em pacientes com dores crônicas, pois o estado afetivo é um importante modulador da vivência dolorosa. Pacientes com dor crônica apresentam mais sintomas depressivos, talvez pelo sentimento de desânimo e tristeza frente a um problema crônico e incurável.

Kubler-Ross (2005) descreve cinco estágios pelos quais um doente terminal passa: Negação, Raiva, Barganha, Depressão e Aceitação. Os mesmos também são vividos por portadores de doenças crônicas como a fibromialgia. Estas fases são na verdade mecanismos de defesa, e não há uma ordem para a ocorrência destas manifestações, tão pouco uma cronologia, sendo que o doente pode vivenciar mais de uma destas fases concomitantemente, num mesmo período ou até mesmo não vivenciar algumas delas. A Negação pode ser uma defesa temporária e funciona como um para-choque que amortece o choque do diagnóstico de uma doença crônica. Quando não é mais possível manter firme a negação e a realidade vai se tornando mais palpável, esta negação é substituída por um sentimento de raiva, revolta, inveja e ressentimento e vem a pergunta "Por que eu?". Na Barganha o doente faz promessas pela cura ou por alguns dias sem dor; esta na maioria das vezes é feita com Deus. A Depressão pode evidenciar seu alheamento ou estoicismo com um sentimento de grande perda, de modo que as dores frequentes e a desesperança de uma doença crônica levam à depressão. A Aceitação é o último estágio, em que o doente passa a aceitar a sua condição, desenvolve mecanismos de enfrentamento e aprende a conviver com a doença.

O fator estressante crônico, com o passar do tempo pode mudar em natureza, frequência e intensidade. Há períodos de relativa estabilidade e previsibilidade, que alternam com períodos de explosões, novidade e incerteza. Os fatores ambientais como apoio social e recursos financeiros também interferem neste ciclo. Consequentemente a pessoa precisa desenvolver um padrão nos mecanismos de enfrentamento que oscilam entre vigilância e descanso (Gottlieb, 1997).

O processo para acomodar uma condição de vida estressante crônica, como afirma Gottlieb (1997), envolve estabelecer alvos dentro dos limites gerenciáveis; preservar ou recuperar o valor pessoal; manter ou desenvolver relacionamentos; buscar uma compreensão significativa da situação e desenvolver uma medida de confiança em que progressos estão sendo feitos em direção a um futuro melhor. Segundo o referido autor, a eficácia no enfrentamento de estressores crônicos depende muito mais da habilidade em experimentar emoções positivas, do que nos esforços para evitar ou diminuir o problema.

Considerando as implicações da perda da saúde relativas à fibromialgia destacadas nesta revisão, questiona-se: como o portador da fibromialgia vivencia o processo de adoecer? Será que a falta de informação e de um diagnóstico confiável intensificam seu sofrimento, levando-o a concluir que ele não está realmente doente e que suas dores são "psicológicas"? O presente estudo visa compreender o sofrimento psíquico de um grupo de mulheres portadoras de fibromialgia; descrevendo a abrangência dos sintomas gerados pela síndrome e caracterizando a dor psíquica que permeia o processo de aceitação da doença.

 

Metodologia

Nesta pesquisa foram entrevistadas dez mulheres portadoras de fibromialgia com idade variando entre 21 e 65 anos e com grau de escolaridade acima do ensino fundamental. As participantes foram selecionadas mediante consulta ao banco de dados da Clínica de Fisioterapia do Centro Universitário de Maringá. Foram incluídas no estudo todas que procuraram atendimento, no período entre 2009 e 2010. Foram excluídas as que não possuíam um diagnóstico fechado de fibromialgia, embora relatassem sintomas característicos da síndrome. Outro critério para a exclusão foi a idade acima de 65 anos, devido à maior probabilidade da presença de outros complicadores da saúde. Algumas características das entrevistadas são apresentadas na tabela 1.

 

 

Para a coleta de dados foi utilizada uma entrevista semiestruturada, abordando os seguintes aspectos: a identificação dos sintomas, tipo de ajuda recebido, mudanças e dificuldades provocadas pela doença e estratégias de enfrentamento desenvolvidas. Algumas questões norteadoras serviram para ampliar o conhecimento acerca da temática, sendo as seguintes: Com que idade você identificou os primeiros sintomas da fibromialgia e quais eram eles?; Fale sobre sua trajetória desde os primeiros sintomas até o diagnóstico; Em que a fibromialgia alterou sua vida?; Quais são suas perspectivas com relação à doença e ao tratamento?

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética Envolvendo Seres Humanos do Centro Universitário de Maringá, sob o parecer número 345/2010.

Foram apresentados aos participantes os objetivos e procedimentos adotados na pesquisa, com compromisso de sigilo em relação aos dados individuais obtidos. A entrevista foi gravada com o consentimento da participante.

A análise dos dados foi baseada no método qualitativo. O critério utilizado na pesquisa para sistematização, análise e discussão dos dados, foi a análise de conteúdo, a qual possibilita a compreensão dos "significados", e é utilizada a fim de ir além da leitura simples do real, visando uma leitura mais profunda das comunicações. Permite ao pesquisador entendimento das representações que o indivíduo tem sobre sua realidade e a interpretação que faz dos significados a sua volta (Bardin, 1997).

 

Resultados

Mediante a análise de conteúdo das entrevistas derivaram-se quatro categorias apresentadas a seguir: Sintomas da síndrome e limitações na qualidade de vida; peregrinação em busca de um diagnóstico; Sofrimento e incompreensão; e Enlutamento na perda da saúde.

Sintomas da síndrome e limitações na qualidade de vida

Toda doença crônica traz certas limitações, no presente estudo foram relatados como principais sintomas da fibromialgia a dor e a rigidez muscular e articular. Entretanto, as entrevistadas referiram, ainda, fadiga, irritabilidade, enxaqueca, distúrbios intestinais, síndromes das pernas inquietas, distúrbios do sono, ansiedade, boca seca, depressão, disfunção na articulação temporomamdibular, vertigens, inchaço, distúrbios cognitivos, dormência e formigamento dos membros como sintomas da síndrome. Tais sintomas impõem limitações funcionais para o portador, como mostram os relatos a seguir.

"...parei de andar de moto, de ir ao parque de exposição, pois dói tanto que se alguém me der uma cotovelada ou esbarrar em mim não sei o que sou capaz de fazer. Parei de fazer academia, de ir à festa onde há muita gente, de fazer rapel e hipismo que eu gostava. Atrapalhou também meu trabalho, pois tenho que viajar muito..." (E1).

"... Tem coisa que não dá para fazer, você não tem força, trava mesmo, não tem força de jeito nenhum. Eu fazia crochê, não faço mais..." (E2).

"... A fibromialgia limitou minha atividade física, não tenho energia, qualquer esforço extra, desencadeia uma crise de dor e me deixa muito mal..." (E10).

"... Estou afastada do trabalho, não consigo mais. Se eu insisto, gasto o dobro com remédio. Não posso viajar, pois não posso ficar muito tempo em uma posição senão eu travo..." (E8).

Peregrinação em busca de um diagnóstico

Após passarem vários anos sentindo dores, conforme apresentado na tabela1, a trajetória de vida das entrevistadas revela o difícil processo de busca por um diagnóstico, perambulando de um especialista a outro e realizando exames inconclusivos para dores que exames não identificavam.

"... Fui de neurologista até oncologista, já fiz até ressonância magnética, e tudo negativo..." (E1).

"... Eu ia de médico em médico e ninguém sabia o que eu tinha. Eu achava que eles não tinham interesse, esses médicos, são médicos só para ganhar dinheiro. Eu pensava que eu tinha doença ruim, que ia morrer, pois eles não descobriam, como estou bem se sinto tanta dor? Demorou muito tempo para descobrir que era fibromialgia..." (E2).

"... Já gastei tanto dinheiro indo de especialista em especialista. Durante a gravidez do segundo filho descobri que tinha leishmaniose, aí vem aquela expectativa, que talvez tudo o que eu sentia fosse da leishmaniose. Com 26 anos, um reumatologista me diagnosticou como sendo portadora de fibromialgia, ufa! Pelo menos o negócio tem um nome..." (E3).

"... O primeiro ortopedista queria tirar meus meniscos, o segundo disse que era a dor do fim do crescimento, o terceiro disse que a dor que eu descrevia era muito mais intensa do que uma escoliose, mas os exames só mostravam uma escoliose. A peregrinação de médico em médico era um sofrimento, pois no próximo especialista que eu me consultava, eu imaginava que ali estaria a solução para tanta dor..." (E10).

Sofrimento e incompreensão

Ninguém vê a dor, ela é subjetiva, também não pode ser medida, mas ela tem efeitos devastadores sobre os indivíduos que não são compreendidos, como mostram os relatos a seguir.

"... Tenho vergonha de desmaiar e sentirem pena de mim... Os interrogatórios incomodam, tem que ficar dando explicação..." (E1).

... Fui tão rotulada, era conhecida como aquela que tem muita dor; eu tinha tanta dor de cabeça, o oftalmologista me disse que eu não tinha nada, estava precisando ter um filho para preencher minha vida; eu tinha dúvidas, tristeza, porque eu sou diferente das outras pessoas?..." (E3).

... Minha família diz que estou me aproveitando da doença para não fazer as coisas em casa, às vezes me perguntam onde é que você não tem dor? Trabalhei em um posto de saúde, tempos depois encontrei um rapaz que também trabalhou lá, ele me disse ah! Você é a Maria das dores?... (E7).

"... Me sinto inútil, às vezes finjo que estou bem, não quero falar que estou mal o tempo todo. Fico de cama e a família tem que me ajudar até a tomar banho, (...) ninguém tem sossego por causa da gente, a gente pensa até em acabar com a vida; já me chamaram de Condor, Maria das Dor, a gente começa a ser motivo de piada da família... (E8).

Enlutamento na perda da saúde

A saúde é um bem valioso e ao perdê-la a pessoa passa por algumas fases onde ela vivencia o luto desta perda. As mulheres que participaram deste estudo mostraram que:

"... A gente se revolta, porque comigo? Porque não fico boa? Porque não melhoro? Tinha raiva, ficava nervosa, minha raiva era revolta..." "... Eu tinha raiva dos médicos. Apegava-me com Deus rezava muito... (E2).

"... Sinto raiva, muita raiva, por ter tanta dor. Eu falo para minha psicóloga que eu não aceito... (E1).

"... Chorava, me isolava, comia, roia unhas, era agressiva, dormia muito; pelo menos eu dormia, agora durmo muito mal..." (E3).

"... Choro e vou para cama, fico quietinha no meu canto, menos conversa é melhor para mim... (E8).

... Aprendi a lidar, não deixo aquilo me dominar, não me entrego. Espero que descubram um medicamento que resolva o problema, mas a minha força maior está em Deus... (E5).

 

Discussão

A fibromialgia impõe limitações funcionais ao paciente, várias das entrevistadas tiveram que abandonar algumas atividades de rotina e mesmo de lazer devido à dor intensa e à rigidez articular. O que corrobora com a afirmação de Angelotti (2001), que a dor crônica produz uma alteração permanente na vida do indivíduo, modifica seu comportamento, sua inserção na família e na sociedade. Dentre as entrevistadas, duas foram aposentadas por invalidez. As dores e os demais sintomas atrapalham as atividades diárias, limitam os contatos sociais e podem, inclusive, levar ao rompimento dos laços familiares; como no caso de uma das participantes, cujo esposo a deixou durante sua peregrinação em busca de um diagnóstico.

Um dos objetivos deste estudo foi descrever a abrangência dos sintomas gerados pela síndrome, dentre os relatos analisados observou-se que todos os sintomas relatados na literatura estavam presentes nas mulheres entrevistadas. Entretanto, foram relatados também sintomas como: espasmos musculares, visão turva, baixa resistência imunológica, distúrbios da menstruação, nódulos e tumores pelo corpo. Na literatura, todavia, tais sintomas não são mencionados como parte da síndrome.

Neste estudo foram encontradas duas participantes que apresentavam os sintomas da fibromialgia desde a adolescência, o que está de acordo com (Feldman, 1999; Skare 1999; Lima & Carvalho, 2008) que afirma que a fibromialgia se desenvolve numa faixa etária entre 30 e 60 anos, mas pode também aparecer em crianças e adolescentes.

Com referência à categoria Peregrinação em busca de um diagnóstico, o portador de fibromialgia no geral não recebe um diagnóstico imediato. Ele visita muitos especialistas, até obter um diagnóstico conclusivo. Pelo fato da fibromialgia ser uma síndrome com múltiplos sintomas, confunde os profissionais que têm um conhecimento superficial sobre ela, e focalizam nos sintomas de sua especialidade. Isto demora a obtenção de um diagnóstico preciso, levando o doente a fazer uma peregrinação de médico em médico até descobrir o que ele tem, com o agravante de que o diagnóstico da fibromialgia é essencialmente clínico e diferencial e não existe ainda um só exame laboratorial ou de imagem capaz de ajudar o médico no diagnóstico, o qual depende totalmente da sua habilidade clínica, conforme afirma Straumann (2007).

É perceptível o desamparo na fala das entrevistadas, diante de um sofrimento real, onde não se descobre qual é o problema e o tratamento fica na base da tentativa e erro. Algumas se submetem a intervenções invasivas e desnecessárias em busca de respostas. Verifica-se uma contradição entre a percepção do sofrimento físico e a falta de um diagnóstico preciso fazendo com que a pessoa se sinta incompreendida, desacreditada e rejeitada, isto produz sofrimento psíquico por conta da ansiedade gerada, da incerteza, do desânimo e do ônus financeiro que advêm deste percurso.

Com referência à categoria Sofrimento e incompreensão observou-se no grupo estudado, que a incompreensão da síndrome, de um modo geral, estava presente na família e, também, entre amigos e, mesmo, em alguns médicos. Estar presa a uma doença crônica já é um sofrimento em si, que se agrava com a incompreensão. Conforme o relato das entrevistadas, a dor é o sintoma que mais incomoda, no entanto, ela é muito subjetiva, não pode ser vista nem medida, o que tende a gerar descrédito por parte da família e demais pessoas do convívio social. Não há como julgar qual a intensidade da dor que a pessoa está sentindo, é muito individual e só pode ser compartilhada a partir do relato de quem a sente (Pimenta & Teixeira, 1996 ). Por esta razão os portadores de fibromialgia sofrem muita incompreensão, são motivos de chacotas por parte de amigos e familiares.

Faz-se necessário destacar o sofrimento psíquico que acompanha as mulheres entrevistadas, descritos como tristeza, sentimento de inferioridade e de inutilidade. Este sofrimento ocorre, pois a dor é simultaneamente um fenômeno psíquico e somático, ela não se deixa aprisionar no corpo, implica a pessoa em sua totalidade (Semer, 2008). No entanto, os relatos sugerem uma dificuldade dessas mulheres de lidarem com o sofrimento causado pela dor e pela reação social e evidenciam um sentimento de culpa intensificado, dificultando o processo de elaboração e acarretando desprezo em relação ao seu estado de saúde. Assim, como afirmam Dantas e Tobler (2003), fica muito mais difícil sofrer, ou seja, suportar algo desagradável, sobretudo quando não se tem os meios para agir sobre as causas e consequências, e diante das quais a fuga é impossível.

Neste estudo observou-se que, por ser a fibromialgia uma doença difícil de ser detectada e pouco conhecida, seus dados epidemiológicos fornecem uma ideia imprecisa do quadro; razão pela qual não são raros os profissionais que não dão devida importância às queixas dos pacientes, e as dores físicas são agravadas pela dor da incompreensão e do descaso por parte da família, dos amigos e dos profissionais da saúde.

Com relação à categoria Enlutamento na perda da saúde, verifica-se que em toda situação de perda importante é necessário um processo elaborativo que é acompanhado por um processo de enlutamento. No caso de uma doença crônica o indivíduo vivencia o luto pela perda da saúde. O luto é um processo de cicatrização doloroso, mas necessário, onde ocorre a despedida de uma situação para que o indivíduo possa se adaptar à nova realidade (Coelho, 2001).

Em situações de perda, de um modo geral, os traços mentais encontrados são desânimo profundo e cessação de interesse pelo mundo externo. Pacientes com dor crônica apresentam mais sintomas depressivos, talvez pelo sentimento de desânimo e tristeza frente a um problema crônico e incurável. No grupo estudado todas tiveram depressão em algum momento e algumas ainda estão lidando com ela.

Comparando os relatos das entrevistadas observaram-se fases distintas no processo de vivenciar o luto na perda da saúde, o que confirma a descrição de Kubler-Ross (2005) das cinco fases do luto ou "ciclo de sofrimento". Uma das entrevistadas bastante jovem e com um diagnóstico recente, vivenciava a fase da negação. A maioria delas estava na fase da raiva, algumas na fase da depressão e duas delas na fase de aceitação. Estas últimas já tinham o diagnóstico há bastante tempo e já haviam passado pelas outras fases. Portanto, quando se torna claro o diagnóstico e se tem uma perspectiva real do problema há melhores condições para desenvolverem mecanismos de enfrentamento adaptativos. A aceitação é a última fase onde o doente passa a entender sua condição, desenvolve mecanismos de enfrentamento e aprende a conviver com a doença.

 

Considerações finais

Por meio desta pesquisa verificou-se que existe uma busca incansável e onerosa por um diagnóstico preciso. As entrevistadas mostraram que ao se depararem com o diagnóstico, sentem certo alívio por darem nome as suas dores, e começa então a procura por um tratamento eficaz. Como não existem medicamentos específicos para a fibromialgia o médico faz certas combinações com anti-inflamatórios, analgésicos, antidepressivos, relaxante muscular e outros. De acordo com os relatos, essas combinações muitas vezes não são bem aceitas pelas pacientes devido às reações adversas causadas pelo medicamento.

Outro aspecto relevante levantado foi que a dificuldade maior no convívio com a doença é a dor, que está presente diariamente em maior ou menor intensidade, dependendo dos fatores que as desencadeiam. Essa dor impõe limitações em algumas e incapacitação funcional em outras, e que muitas vezes leva à exclusão social.

Na trajetória de vida do paciente fibromiálgico emergem questões existenciais pouco consideradas no cotidiano do indivíduo saudável, a impotência diante das restrições e as perdas advindas da doença passam a ser o foco central da pessoa, gerando sofrimento psíquico. Entender as limitações impostas pela fibromialgia e aceitar a condição de doente crônico é um processo que pode ser facilitado por profissionais da saúde, que estejam comprometidos com o bem estar do ser humano, pois embora a pessoa tenha uma aparência saudável, manifeste sintomas pouco esclarecedores, ela tem um sofrimento real que abala sua estrutura emocional e, além do tratamento medicamentoso, o paciente necessita apoio psicológico para desenvolver seus recursos adaptativos.

No grupo estudado observou-se a presença de sintomas tais como: espasmos musculares, visão turva, baixa resistência imunológica, distúrbios da menstruação, nódulos e tumores pelo corpo. Na literatura tais sintomas não são mencionados, sugere-se que mais pesquisas sejam realizadas para verificar se estes podem estar associados à síndrome da fibromialgia. Observou-se também que quanto maior o conhecimento que a pessoa tem sobre a doença e todas as suas implicações, maior a capacidade em se adaptar às suas restrições. Todavia sugerem-se novos estudos com portadores de fibromialgia para elucidar se a capacidade de se adaptar está relacionada ao conhecimento sobre a doença que proporciona certo controle, ou se depende do funcionamento emocional da pessoa anterior à doença.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: vilmasantos60@hotmail.com

Recebido em maio de 2011
Aceito em abril de 2013

 

 

Rute Grossi Milani: Psicóloga, Doutora em Saúde Mental pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora titular do Centro Universitário de Maringá (Unicesumar).
Leonardo Pestillo de Oliveira: Psicólogo, Doutorando em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e professor do Centro Universitário Cesumar (Unicesumar).
Vilma Rodrigues Santos: estudante do quinto ano de psicologia do Centro Universitário Cesumar (Unicesumar).
Irineu Miguel Pauluk: estudante do terceiro ano de psicologia do Centro Universitário Cesumar (Unicesumar).