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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia  no.38-39 Canoas Dec. 2012

 

ARTIGOS TEÓRICOS

 

Da reminiscência platônica à construção em análise: um estudo sobre a memória freudiana

 

From the platonic reminiscence to the analytics construction: a study about the Freudian memory

 

 

Maria Celina Lima Peixoto; Débora Passos de Oliveira

Universidade de Fortaleza

Endereço para contato

 

 


RESUMO

O objetivo do presente trabalho consiste em investigar o caráter inventivo da memória freudiana. Para Platão, a memória é pensada a partir de dois tempos, o da inscrição do traço e o de sua reminiscência, a relação que o traço mantém com a percepção é, desde então, problematizada. O filósofo grego, com o intuito de preservar uma memória inteligível, distancia-a de sua conexão com a realidade sensível. Em Freud, a memória dirige-se, fundamentalmente, à percepção. Contudo, a memória freudiana tampouco pode ser pensada como um depósito de experiências outrora vivenciadas, existe, deste modo, um deslocamento do traço mnêmico no que se refere à realidade material. Este distanciamento é devido ao caráter de atualidade da memória freudiana. Logo, se, por um lado, em Platão a memória inteligível é uma evasão do tempo mundano, por outro, em Freud, trata-se de uma causalidade retroativa que, no trabalho de construção, rearranja a dimensão temporal.

Palavras-chave: Filosofia platônica, Memória, Construção.


ABSTRACT

The objective of this study is to investigate the inventive character of the Freudian memory. For Plato, the memory is thought up from two times, the trace inscription and their evocation, the relationship that the trace maintains with the perception is, since then, problematized. The Greek philosopher, in order to preserve an intelligible memory, distances it from its connection with the sensible reality. In Freud, in contrast, the memory is addressed particularly to the perception. However, Freudian memory nor can be thought of as a storehouse of experiences once lived, there is, therefore in Freud, a displacement of memory trace in relation to material reality. This gap is due to the character of Freud's memory today. So if in one hand, in Plato the understandable memory is an avoidance of mundane time, on the other, in Freud, it is a backward causation that in the construction work, rearranges the temporal dimension.

Keywords: Platonic philosophy, Memory, Construction.


 

 

Introdução

É próprio da psicanálise redimensionar termos usualmente utilizados no âmbito do pensamento corrente. Assim, o sintoma não se reduz à noção clássica de doença, o desejo significa mais que uma mera aspiração, o sentimento de culpa excede ao de remorso, e a memória, objeto do presente trabalho, transcende à evocação. Nesse sentido, a iniciativa de Freud em eleger termos que são comuns ao domínio público pode, por vezes, mais dificultar e confundir que facilitar e esclarecer a boa compreensão do que eles de fato significam. Excedendo, pois, o sentido habitual de certos conceitos – tanto do senso comum quanto de outros campos da ciência – a exata definição dos termos psicanalíticos só pode, com efeito, ser obtida a partir de uma leitura meticulosa e contínua de Freud. Com isso, as dificuldades de apreensão das noções forjadas pelo autor se reatualizam a cada pesquisa.

Com relação à memória, conceito comum tanto às psicopatologias quanto às funções psicológicas normais, este traço do pensamento freudiano é ainda mais desafiador. Como Freud não organiza um saber sobre a memória, não podemos afirmar, desse modo, que o autor demonstra uma preocupação em estabelecer uma teoria sobre este tema. Nesse sentido, Carlota Ibertis Casanave (2008) afirma: "Embora seja o tema onipresente na teoria freudiana e o domínio privilegiado de estudo, seu tratamento não foi sistematizado e unificado por seu autor, especificamente como teoria da memória" (p.16).

Observamos que na origem das formulações freudianas (Freud, 1895/2007), a conceitualização da memória é apresentada como uma tarefa irrefutável àqueles que se destinam a um exame acerca da psique, ao passo que nos demais escritos, seu papel é aparentemente secundário. Mas nem por isso a ideia de memória deixa de estar presente em boa parte dos textos de Freud. Esta noção apresenta-se em artigos que examinam o trabalho do recalque, a noção de construção em análise, as especificidades da fantasia, assim como na própria formulação do conceito chave da psicanálise, o inconsciente.

A partir de um estudo mais aprofundado sobre os textos freudianos em que a memória é o tema subjacente, dois pontos principais se sobressaem: 1) a discussão sobre a memória, em Freud, reapresenta toda uma problemática, anterior à psicanálise, acerca deste conceito; 2) a memória freudiana caracteriza-se, essencialmente, por seu caráter de atualidade, marca que a diferencia da maneira como este conceito é forjado no berço da tradição filosófica.

Se Freud idealiza a memória a partir de um viés essencialmente empirista, Platão direciona-se, sobretudo, a uma memória inteligível que transcende os limites da condição humana. Nesse sentido, numa primeira visada, nos parece mais evidente demarcar que Freud não é um dos herdeiros de Platão. Contudo – e este é o ponto fundamental que nos permite arranjar teóricos tão distintos, num mesmo plano discursivo – Platão igualmente concebe uma memória de natureza sensível. Talvez esta memória, pensada por Platão, seja apenas o phantasma de uma memória inteligível, mas, sem dúvida, nos possibilita pensar as nuances da relação que a memória mantém com a percepção.

Em Freud, assim como em Platão, encontra-se uma memória pensada a partir de dois momentos: o momento da inscrição do traço e o momento de sua reevocação. Trata-se, nesse sentido, fundamentalmente de dois tempos: o presente e o passado. Em um sentido mais geral, podemos compreender a memória como a guardiã de um acontecimento passado. Em contrapartida, a memória freudiana introduz uma compreensão inovadora sobre o lugar da recordação, que suspende a ação do tempo presente. Se a memória em Freud não se dirige ao passado, entendido a partir de uma relação linear com o presente, a pergunta que se apresenta é a seguinte: qual o tempo da memória freudiana?

Começaremos por tratar a memória em Platão devido à imprescindível diferenciação, feita pelo autor, entre memória (mnèma) e reminiscência (anamnèsis). A temática da memória encontra-se, à vista disso, dividida em dois tempos: o da preservação do traço e o de sua reevocação. Não se trata aqui do esgotamento deste tema e de suas minúcias, muito pelo contrário, nossas argumentações são, desde logo, direcionadas para a discussão da memória em Freud. Mais precisamente, nossa investigação dirige-se ao arrazoamento filosófico que analisa certa autonomia da memória a respeito da percepção. O que objetivamos destacar é a relação, de aproximação e afastamento, que a memória mantém com a percepção, isto desde Platão. É no intervalo entre o momento da conservação da percepção e o instante de recordação do traço mnêmico que se inscreve toda uma problemática sobre a noção de memória na tradição filosófica, e é neste entre, também, que reside sua originalidade, isto até Freud. Desse modo, temos como objetivo realizar um estudo teórico acerca das especificidades desta noção, ressaltando, pois, o caráter imanente à própria memória, apresentar-se sempre como algo que excede os limites de um registro perceptivo.

Os diálogos platônicos e a memória

Como dissemos, os estudos sobre a memória em Platão orientam-se a partir de duas prerrogativas essenciais: primeiro, a memória diz respeito à manutenção de um traço na alma, de uma lembrança impressa (mnèma); segundo, a existência do traço concede à reminiscência (anamnèsis) sua condição de possibilidade, uma vez que a mesma se refere à reevocação da lembrança. Em contrapartida, se a memória tem relação com a preservação do traço, a lembrança impressa não possui uma única procedência. Convém necessariamente distinguir entre duas espécies de traço: o traço de origem sensível, como o mostra o Filebo; e o traço de origem inteligível, como apresenta o Teeteto. Nesse sentido, a memória em Platão por vez se direciona ao reconhecimento das essências e do universal, por outra, reporta-se à realidade perceptível. No nosso entendimento, as críticas platônicas que se aplicam à memória relacionam-se, sobretudo, ao traço de origem sensível, cabendo à memória de raiz inteligível um destino mais sublime. Existiria, digamos, uma memória pura que resguarda a alma do caráter efêmero da percepção.

Nos diálogos da maturidade platônica, tais como o Teeteto e o Sofista, a discussão sobre a memória encontra-se entrelaçada às argumentações sobre a essência do conhecimento. Vamos reler o Teeteto desde 163d e o Sofista desde 235b. Estes diálogos não se debruçam, de forma direta, sobre a noção de memória, esta ideia apresenta-se, por assim dizer, de soslaio no âmbito de uma discussão mais ampla sobre a possibilidade ontológica do erro se inserir no processo do conhecimento. É devido a esta associação de ideias, entre memória e erro, que Paul Ricoeur (2007) ressalta que a memória traz o signo da suspeição, em decorrência do ambiente filosófico de sua investigação. De fato, a memória, nestes diálogos, encontra-se, por vezes, associada à ideia de imagem (eidolon), que na origem da tradição filosófica é compreendida como um segundo objeto, aquém do mesmo que lhe concedeu origem. Nesse sentido, a memória opera, segundo Ricoeur (2007): "(...) na esteira da imaginação" (p.25), que precisa ser entendida como uma arte de imitação, a qual produz apenas imagens e não realidades verdadeiras. Podemos observar, desse modo, a associação que há, no Platão do Sofista (2005), entre erro e imagem a partir da seguinte assertiva: "(...) se há engano, tudo se enche inevitavelmente de simulacros, de imagens e de ilusão" (236c). Do mesmo modo, uma referência semelhante é demonstrada quando Sócrates, no Teeteto (2003), fala sobre determinados discípulos que abandonam precipitadamente o exercício filosófico, "(...) preferindo o falso e o imaginário à verdade (...)" (163e).

A problemática sobre a memória encontra-se aprisionada numa aporia. Se a memória está enlaçada à imaginação, e se a imaginação produz apenas imagens, que não são entendidas como realidades verdadeiras, as lembranças só podem ser compreendidas como ficções, que, no melhor dos casos, retratam bem o objeto. Nesse sentido, a diferença, realizada pelo Platão do Sofista, entre duas artes de produzir imagens, não dissipa a associação entre imagem e irrealidade, apenas gera uma diferença com relação ao grau de fidedignidade. Conforme Platão (2005): "Agora lembremos que a arte de fabricar imagens devia compreender dois gêneros, um que copia (eikon), outro que faz simulacros (phantasma)". Mais adiante: "(...) ora, copia-se da maneira mais fiel quando, para realizar a imitação, tomamos emprestadas do modelo suas relações exatas (...)" (235d-236c). Em conformidade a isto, Ricoeur (2007) afirma: "Vemos até os três termos, eidolon, eikon e phantasia reunidos sob o vocabulário infamante do engano (...)" (p.31).

Contudo, tal como havíamos destacado, a associação entre memória e imagem e, dessa forma, entre traço e erro, se apresenta nas ocasiões em que a discussão nos diálogos está centrada sobre o traço (mnèma) de origem sensível. Este fato pode ser corroborado a partir do momento, no Teeteto, em que Platão (2004) estabelece uma oposição entre conhecimento e percepção. A partir de então, o que observamos é que a memória se desloca da sua relação com a percepção e se dirige às essências universais.

A refutação da tese de Protágoras: uma memória inteligível para além da percepção

Consideremos o Teeteto(151d-191d), neste diálogo, examinamos a contestação, feita por Sócrates, da tese segundo a qual o conhecimento é percepção. O que seria então, pergunta Sócrates a Teeteto, o conhecer? Neste diálogo, podemos discernir uma equivalência entre percepção e sensação. Percepção é tanto a apreensão sensorial como também o prazer e a dor ou o desejo e o temor, entre outros que poderiam ser citados. A tese central, trabalhada na primeira parte do texto, diz respeito à contestação da tese relativista de Protágoras, também defendida pelo personagem Teeteto, segundo a qual o homem é medida de todas as coisas. O que seria esta tese senão a declaração de que a verdade se apresenta aos homens a partir de suas próprias sensações? Dessa forma, se todos os homens conhecem a partir de suas percepções, como elucidar a essência dos sábios? De acordo com Sócrates-Platão (2003): "Se cada um é medida de seu próprio conhecimento (...) como Protágoras é um sábio (...) que se crê justificado a ensinar os demais?" (234c). Platão utiliza, nesse momento, o argumento de que conhecimento é uma aptidão, que distingue sábios e ignorantes, para contrapor a tese protagoreana de que conhecimento é apenas uma percepção.

Não obstante, para além dessa discussão, uma outra corrente de pensamento se oferece com o intuito de ampliar a investigação a respeito da relação entre conhecer e perceber. Assim, pondera Sócrates, se ver é tomar conhecimento de um objeto a partir da visão, o que acontece quando fechamos os olhos? Pergunta capciosa que visa por em cheque o tema de Protágoras levando em consideração a memória, a qual se apresenta a partir de uma ausência, sendo a memória uma "(...) representação presente de uma coisa ausente (...)" (Ricoeur, 2007, p.27). Dito de outra forma, a memória presentifica um objeto não a partir de sensações visuais, auditivas, dentre outras, que se tem do mesmo, e sim, a partir de um outro trabalho, o de reminiscência (anamnèsis). De acordo com o Sócrates-Platão: "Suponhamos que viemos a saber alguma coisa; que, desse mesmo objeto, ainda tenhamos, ainda conservamos a lembrança: é possível que (...) quando nos recordamos dele, não saibamos aquilo mesmo que estamos recordando?". Essa mesma questão é reapresentada no Sofista (2005) da seguinte maneira: "(...) o que é capaz de se tornar presente em algum lugar, ou de estar ausente, admitirão que é certamente alguma coisa que existe?" (235b).

O que se exprime, aqui, é o questionamento do valor veritativo da recordação. Dito em poucas palavras: a recordação é, ou não é, algo que existe? Contudo, a lembrança não mais pode ser compreendida apenas como uma irrealidade, pelo fato de se opor à percepção, a memória se direciona ao conhecimento das origens.

Em contrapartida, as incoerências anunciadas por Sócrates a fim de contradizer a tese do homem-medida não se mostram, de todo, convincentes. O próprio Sócrates demonstra sua insatisfação ao indagar a Teeteto: "(...) que argumento nos forneceria Protágoras para defender sua tese?". Inicia-se, assim, a chamada Apologia de Protágoras, momento do diálogo em que Sócrates retoma os principais argumentos que Protágoras eventualmente utilizaria em sua defesa. Dessa maneira, de acordo com Sócrates, Protágoras denunciaria: "(...) você pensa que alguém concordaria com a ideia de que a recordação, de uma impressão passada, permanece tal como foi no momento em que ocorreu (...)?". O que Sócrates põe em relevo, a partir desta contra-argumentação, é a relação entre o relativismo protagoreano e a tese do devir universal de Heráclito. No entanto, se tudo é movimento e fluxo universal, o que baliza a tese de que conhecimento é percepção, não conseguiríamos formular nenhuma ideia segura a respeito do mundo e, consequentemente, o núcleo da linguagem estaria profundamente comprometido. Conforme Sócrates-Platão: "Os que sustentam esta doutrina deveriam estabelecer uma nova forma de falar (...)". (242a).

É, pois, chegado o momento em que Platão se questiona acerca do sentido perene das coisas mundanas. De acordo com o filósofo, deve necessariamente existir algo que conserva o ser, para que o conhecimento possa ter lugar. Em outras palavras, se a percepção do mundo é algo particular e contextual, como anunciava Protágoras, o que nos garante que o conhecimento seja um dado objetivo sobre as coisas? O conhecimento necessita manter-se, desse modo, afastado da sensação-percepção, precisa estar referido a um princípio fora do corpo.

A fim de resolver este impasse o Platão do Teeteto (2003) propõe o modelo do bloco de cera. Em suas palavras:

Pois bem, concede-me propor (...) que nossas almas contêm em si um bloco maleável de cera (...) Pois então, digamos que se trata de um dom da mãe das Musas, Mnemosýne: exatamente como quando, à guisa de assinatura, imprimimos a marca de nossos anéis, quando pomos esse bloco de cera sob as sensações e os pensamentos, imprimimos nele aquilo que queremos recordar, quer se trate de coisa que vimos, ouvimos ou recebemos no espírito (191d).

Nessa ocasião, vislumbramos a associação entre lembrança e impressão (tupos), relembramos, dessa forma, o que uma vez registramos em nossa alma. Desse modo, o traço inscreve a lembrança de uma presença que não mais existe. Segundo Platão no Teeteto: "Aquilo que foi impresso, nós o recordamos e o sabemos (...) ao passo que aquilo que é apagado, ou aquilo que não foi capaz de ser impresso, nós esquecemos, isto é, não o sabemos" (163d). A memória mantém com a impressão (tupos) uma relação consubstancial. Ora, Platão não se refere, neste lugar, a qualquer tipo de impressão, mas, sim, a um gênero particular que pode ser compreendido como uma inscrição interiorizada. A controvérsia levantada por esta impressão-afecção é dupla. Primeiro, como a lembrança é conservada? Segundo, que relação de significância ela mantém com respeito ao acontecimento da realidade? Dito em poucas palavras: como a lembrança permanece, e qual é a sua relação com o acontecimento marcante? Conforme o exemplo do bloco de cera é a alma que recebe a impressão, isto é, o traço mnêmico inscreve-se na alma. É devido a esta relação inerente entre alma e lembrança-impressa que Platão (n.d.), no Fedro (2004), empreende uma crítica à escrita, uma vez que esta se refere a uma marca externa sobre as quais se estabelecem os discursos escritos.

A alma como o princípio do vivente procede da memória, todo conhecimento é uma forma de lembrança. A discussão que trazemos não é tanto a relação que a memória mantém com a alma, e sim, a problemática com relação à origem do traço, que, em última instância, funda a distinção entre duas memórias: uma que se dirige à verdade e uma outra que se refere à falsidade e ao erro. A alma, quando em contato com a dimensão mundana, apresenta um esquecimento da verdade universal, uma vez que a memória resguarda apenas o traço de origem sensível, de maneira que esta anamnese do traço é necessariamente misturada ao falso. Conforme Platão (2004) no Fedro: "(...) toda a alma que segue a de um deus, contempla algumas das Verdades (...) Mas, quando não pode seguir os deuses, quando devido a um erro funesto ela se enche de alimento impuro, de vício e esquecimento, torna-se pesada e precipita-se sem asas ao solo". (39a).

Que a memória, no Teeteto, encontra-se associada a uma doutrina geral do conhecimento, significa, dessa forma, compreendê-la numa esfera transcendental, de modo que memória, neste caso, não alude simplesmente às percepções de um determinado indivíduo. Para além de toda e qualquer afecção psicológica ou subjetiva, relembrar-se é, também e acima de tudo, se eximir de uma existência mundana. A memória platônica, referida a Mnemosýne, desloca-se de uma associação com a cronologia mundana para uma relação com o cosmos. Desse modo, vemos o Platão do Teeteto (2003) afirmar: "O mal (...) está necessariamente ligado à natureza mortal e ao nosso mundo. Por isso, é preciso fugir dele o quanto antes (...) uma fuga que consiste em assemelhar-se a divindade (...) semelhança que se produz no conhecimento" (166b).

A memória que trabalhamos a partir do Teeteto é uma memória que provém dos deuses e a eles se dirige. Esta memória, que excede o traço de origem sensível, preserva a alma da condição mortal da existência humana. Platão, em muitos de seus diálogos, ressalta não temer a morte e, ao mesmo tempo, acreditar na preservação da alma. Se a alma é eterna ela não pode estar sujeita à incerteza da condição mundana. Com relação a isso, Bernard Baas (2001) afirma que Platão se "(...) esforça em apagar os traços de origem sensível para consagrar todo o élan de seu desejo para reavivar os únicos traços inteligíveis que balizam sua ascensão em direção à aparição do Bem" (p.8). Mais precisamente, a memória de origem inteligível resguarda o ser da morte, ou seja, Platão admite apenas uma morte, a do corpo.

Filebo: prazer e memória sensível

A passagem do Filebo (33c-40c) que trazemos para análise distingue-se do exame realizado no Teeteto, fundamentalmente, no que se refere à relação que a memória mantém com a percepção. Não dizemos aqui que Platão não empreende uma distinção entre memória sensível e inteligível, contudo, o filósofo não se abstém de investigar o movimento que a alma realiza em direção aos prazeres corpóreos. Trata-se, neste diálogo, de investigar a essência do prazer e, devido ao exame em questão, a memória está radicalmente associada ao corpo, ou, mais precisamente, à incerteza e à inconstância da sensação. Conforme Platão (2009): "Supões que alguns dos estados emocionais corpóreos (...) penetrem tanto o corpo quanto a alma, provocando um abalo que tanto afeta os dois em comum quanto cada um individualmente".

A percepção, conforme Platão no Filebo, diz respeito à conexão da alma e do corpo, já a memória refere-se à preservação da percepção. Contudo, como podemos entender a ligação que a alma estabelece com o corpo a partir da percepção? A resposta a essa questão não poderia vir de outro lugar que não da investigação da memória. De acordo com Platão, a dimensão corpórea abrange apenas o que ocorre no momento presente, no corpo não permanece traço do que uma vez ocorreu. Tendo em vista essa linha de raciocínio, o filósofo realiza a análise dos casos da fome e da sede, especialmente, da sede. Ora, se o corpo só considera o atual e o imediato, quando o mesmo experimenta a sensação de falta não pode recorrer a si mesmo para experenciar a sensação de estar saciado, não poderia sentir-se repleto na ausência. Dito de outra forma, o desejo, que aqui Platão assimila a fome e a sede, é sempre desejo de alguma coisa que não se apresenta no momento da falta. Na experiência da ausência o desejo se orienta para a sensação de plenitude. No entanto, se é o corpo que experimenta a sede é a alma que possui o registro da experiência satisfatória. Nesse sentido, é apenas a partir de sua vinculação com a alma que a sensação da sede pode ser contraposta ao desejo de estar saciado, uma vez que este desejo reconhece o objeto responsável pela sensação de repleção.

A memória resguarda, na alma, o registro da plenitude do desejo encaminhando, dessa forma, o movimento da alma em direção ao objeto faltante. Nas palavras do filósofo: "(...) mostrando que a memória é o que nos conduz para os objetos do desejo, provou que todo impulso, desejo e princípio que atuam em todo ser vivo são da alma". O que Platão sustenta é que todo e qualquer desejo estão situados na alma, ou seja, fora do corpo. "Esse discurso determina que concluamos que não temos desejo corpóreo".

Como havíamos observado no Teeteto, o exame da memória se afasta da relação com a percepção. Neste diálogo, a memória encontra-se direcionada ao desvelamento das origens. A reminiscência (anamnèsis) está relacionada ao conhecimento, recordar é, pois, um exercício de busca de uma verdade universal. Tendo em vista a inspiração concedida por Mnemosýne, o ato de rememoração coincide com a ciência, de onde advém o princípio de que em Platão conhecer é lembrar. Em contrapartida, a análise do Filebo nos encaminha para um outro arrazoamento acerca da memória a partir da sua relação com a esfera do sensível. Por mais que memória e desejo estejam vinculados à alma, não deixam de fazer referência ao corpo e à percepção. É bastante difundida a passagem no Filebo onde Platão diz da alma que ela é um livro, no qual um escritor escreve tanto as coisas verdadeiras, quanto as falsas. Nas palavras do filósofo: "A memória se liga às percepções, e somadas aos sentimentos que lhes estão associados parecem, por assim dizer, escrever palavras em nossas almas (...)"(2009). Nesse sentido, o Filebo é um diálogo essencial na investigação da memória devido à análise mais apurada realizada acerca do traço de origem sensível.

A memória (mnèma) precede a reminiscência (anamnèsis), uma vez que a lembrança é a restauração do traço inscrito. No Teeteto, a anamnese se direciona ao conhecimento; já no Filebo, o traço reevocado é de origem sensível. Em contrapartida, em nenhuma das duas dimensões da memória o ato de reminiscência é algo passivo, pelo contrário, diz respeito à recuperação de um conhecimento (memória inteligível) ou de uma percepção (memória sensível) outrora experimentada: "Voltar a lembrar – escreveu a respeito Paolo Rossi (2010) – implica um esforço deliberado da mente; é uma espécie de escavação ou de busca voluntária entre os conteúdos da alma (...)" (p.16; grifo nosso).

Aproveitando a metáfora da escavação introduzimos o pensamento de Freud sobre a memória, pois que na teoria freudiana não nos falta referência ao trabalho de investigação efetivado pela memória. Nesse sentido, Freud afirma que "(...) a cura psicanalítica (...) desvenda que uma certa resistência se opõe à devolução de cada uma das lembranças perdidas, e que é preciso compensar essa magnitude mediante um trabalho" (1899/2007, p.287). O essencial a ser demarcado aqui é a noção de trabalho, que enfatiza a qualidade dinâmica do processo de rememoração.

O trabalho da memória freudiana apoia-se, sobretudo, no seu caráter inventivo (Erdichten). Em Freud, o traço mnêmico é irredutível à percepção. Dito de outra forma, em Freud a memória transcende a esfera do sensível, não sendo apenas a re-apresentação de um material vivenciado. Contudo, se podemos demarcar um certo desvio da memória freudiana com relação à percepção, é inverossímil afirmar que esta memória não conserva uma ligação estreita com a realidade material. Se a memória se revela como uma realidade autônoma toda a problemática acerca de sua origem necessita ser repensada. Nesse sentido, a memória freudiana é essencialmente fruto da percepção, todavia, tanto a conservação do traço (mnèma) quanto sua reevocação são pensados a partir de um grau maior de complexidade.

Freud no rastro de Platão?

De acordo com o Platão do Sofista (2005): "Como o lobo se parece com o cão, e o que há de mais selvagem ao que há de mais doméstico, se não nos quisermos enganar, é necessário, antes de tudo, manter-nos sempre prevenidos contra as semelhanças, pois trata-se de um gênero muito escorregadio" (194a). Tenhamos sempre em mente estes preceitos ao relacionarmos a Psicanálise e a Filosofia. Não buscamos, desse modo, um gênero simples de semelhança, entre estes dois construtos teóricos, que nos impele a afirmar que aquilo que foi dito por Platão, Freud o diz também. Sabemos o quanto esta tarefa pode ser arriscada. Procuramos, em contrapartida, estender à psicanálise aquilo que Safatle (2008) denomina como forçagem. Nas palavras do filósofo: "(...) forçagem que levou a filosofia a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho" (p.9).

Esse gênero de investigação, ao menos para Freud, não era, de modo algum, estranho. O psicanalista assumia suas heranças e, muitas vezes, demonstrava particular franqueza com relação a isso. Este fato pode ser evidenciado até mesmo no que se refere aos conceitos fundamentais da psicanálise. O dualismo pulsional, por exemplo, que Freud sustenta no decorrer de sua obra sob várias facetas, é atribuído, de determinada forma, a Empédocles (Freud, 1937a/2007). Contudo, a originalidade do discurso freudiano reside na forma como ele trabalha suas heranças, trata-se de uma ideia paradoxal de fidelidade, de onde é "(...) permitido permanecer fiel ainda na infidelidade (...)" (Freud, 1907 [1906]/2007, p.28). Isso significa, mais precisamente, que Freud se faz fiel ao espírito da filosofia grega sem necessariamente ser fiel a sua letra.

Com relação à memória, é interessante observarmos a diferença essencial, traçada por Freud, entre a psicanálise e o pensamento de Empédocles. Segundo ele (1937a/2007):

(...) o ensinamento de Empédocles aproxima-se tanto da teoria psicanalítica das pulsões, que ficaríamos tentados a sustentar que as duas são idênticas, não fosse pela diferença de a teoria do filosofo grego ser uma fantasia cósmica, ao passo que a nossa se contenta em reivindicar validade biológica (p.247).

Seguindo este raciocínio, poderíamos delinear uma distinção semelhante, entre Platão e Freud, no que se refere à memória. Na teoria psicanalítica permanece a dualidade memória (mnèma) e reminiscência (anamnèsis). No entanto, Freud destitui a distinção entre os dois tipos de traço mnêmico. Não existe, desse modo, um traço que conserve a alma de sua morte. O psicanalista, diferentemente de Platão, não necessita preservar o indivíduo de sua morte. Freud sim, ao contrário do filósofo grego, era um pensador trágico.

A memória freudiana: entre sepultamento (Untergang) e construção

Talvez nenhum outro texto nos seja tão caro para o estudo da especificidade da memória em Freud do que o artigo Construções em Análise (1937b/2007). Isso devido ao indispensável desvio, promovido pelo psicanalista, entre memória e verdade histórica (Geschichte) e, em decorrência, entre memória e realidade material. Mais precisamente, Freud se interroga sobre o estatuto das lembranças que se apresentam em análise. Se o processo analítico diz respeito, grosso modo, à memória de cada um, as recordações não podem ser compreendidas simplesmente como a re-apresentação de um material outrora vivenciado. Em Freud, a relação entre passado e presente ou, de modo mais preciso, entre traço e reminiscência, é um tanto quanto mais complexa.

Freud afirma que o processo terapêutico consiste em fazer com que o paciente recupere as lembranças perdidas. "Todos nós sabemos que a pessoa que está sendo analisada tem de ser movida a recordar algo vivenciado e reprimido por ela (...)" (Freud, 1937b/2007, p. 260). No entanto, se o analista não vivenciou nem recalcou nada do material em consideração, seu papel não pode ser, por esse motivo, tal como o do analisante, recordar algo. A função do analista necessita estar referida a um outro princípio que não a da exclusiva retomada de um material experimentado. Que tarefa tem, então, o psicanalista? Conforme Freud, o analista precisa completar as lacunas deixadas pelo esquecimento. Dito de outra forma, o material que o analisante apresenta contém, digamos assim, vazios que dificultam a formação de um encadeamento significante entre as recordações. O analista é aquele que preenche estes vazios da memória tornando, o mais contínua possível, a "corrente das lembranças" (Freud, 1899/2007, p.303). Este trabalho é denominado por Freud como construção. Nesse sentido, se ao paciente cabe a tarefa de recordar, ao analista é atribuído o trabalho de construção, sendo estas as duas etapas da análise.

É evidente que o analista precisa sustentar seu trabalho nos indícios fornecidos a partir dos sonhos, atos falhos, repetições e outras formações do inconsciente. É somente a partir desta matéria prima que o analista pode construir. Trata-se, conforme Freud, de um trabalho que se assemelha à tarefa do arqueólogo, já que tanto um, quanto o outro, constroem a partir de indícios. Com suas palavras: "Seu trabalho de construção (...) mostra vastas semelhanças com o do arqueólogo (...) Na verdade é idêntico a ele, só que o analista trabalha em melhores condições, dispõe de mais material auxiliar, porque seu empenho se dirige a algo todavia vivo (...)" (Freud, 1937b/2007, p.261; grifo nosso).

A que se refere Freud quando assegura que o material psíquico não é destruído permanecendo, desse modo, vivo? Conforme o autor: "Todos os elementos essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira e em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis (...)" (Freud, 1937b, p.262). Sem dúvida alguma, Freud não nos aponta a ideia de um traço sempre presente a si, longe disso, a noção de memória em Freud é marcada por uma fragilidade essencial e inerente. Não podemos, portanto, atribuir ao traço mnêmico um caráter de substancialidade ou de plenitude. O traço freudiano funciona, melhor dizendo, como uma espécie de sinal, que contém exclusivamente o germe de uma recordação consciente.

Acompanhando o raciocínio freudiano, a relação entre memória e realidade material melhor se esclarece. Nesse sentido, Freud (1937b/2007) aconselha aos que praticam a psicanálise que de modo algum recuem diante da possibilidade de fazer uma construção, qualquer que seja ela, por receio de apresentar ao paciente uma suposta elaboração incorreta que não condiga com sua verdade histórica. No entanto, preceito distinto a este se apresenta no artigo Análise terminável e interminável (1937a/2007), nas palavras de Freud: "(...) não devemos esquecer que o vínculo analítico se funda no amor à verdade, isto é, no reconhecimento da realidade objetiva (...)" (p.249). A condução de Freud é a seguinte: a memória está associada à verdade, mas a verdade em Freud não se esgota na dimensão da realidade objetiva. O psicanalista, tanto no estudo dos seus casos clínicos quanto nas suas apreciações antropológicas, dava ênfase ao "fator de dúvida" (1939 19[34-38]/2007, p.30). Mais detidamente, a permissão concedida por Freud à dúvida possibilita, aos que trabalham com a psicanálise, exceder o aspecto da realidade material.

Desse modo, a que se dirige Freud, quando não à realidade material, ao elaborar uma construção? Nas palavras do autor:

O caminho que parte da construção do analista deveria terminar na recordação do paciente, mas nem sempre ele conduz tão longe. Com bastante frequência não conseguimos fazer o paciente recordar o que foi reprimido. Em vez disso (...) produzimos nele uma convicção segura da verdade da construção, a qual alcança o mesmo resultado terapêutico que uma lembrança recuperada. (1937b/2007, p.267)

Nesse sentido, o sentimento de convicção, em Freud, equivale à verdade histórica ou, dito de modo mais preciso, tal sentimento de convicção é, com efeito, o verdadeiro sinal de que há incontestavelmente uma realidade efetiva para o indivíduo. Desse modo, a realidade de uma lembrança diz respeito unicamente à convicção que produz no indivíduo. A verdade do sujeito encontra-se, logo, relacionada à sua interioridade psíquica. Dessa forma, não é que a realidade interna esteja submetida à realidade material, em Freud trata-se exatamente do contrário, é a própria realidade exterior que é um desdobramento da realidade interior, ou seja, uma expressão da realidade psíquica. Com relação a este fato, Freud assegura: "O aparato psíquico não tolera o desprazer; tem de desviá-lo a todo custo, e se a percepção da realidade objetiva traz desprazer, ela – ou seja, a percepção – tem que ser sacrificada" (1937a/2007, p.239).

Contudo, não dizemos aqui que Freud sustenta uma interioridade pura e alheia a qualquer tipo de realidade vivencial. Para ele o indivíduo vive coagido pelos imperativos de uma estimulação externa. A realidade psíquica é, antes de tudo, o processamento desta realidade externa, que se apresenta, então, a partir dos traços mnêmicos. Portanto, a teoria psicanalítica não se dirige nem a uma interioridade isolada e intransponível nem a uma realidade puramente material. Ao falarmos de realidade psíquica temos que ter em mente que Freud jamais abandona o valor concedido à realidade material, nem sequer quando aborda as psicoses. Em suas palavras: "(...) há não apenas método na loucura (...) mas também um fragmento de verdade histórico-vivencial (Historisch)" (Freud, 1937b, p.269).

É interessante observarmos a ponderação feita por Freud no Construções..., logo após a associação feita entre recordação e sentimento de convicção. Segundo ele, quando o psicanalista relata ao analisante uma construção segue-se a este fato não uma lembrança condizente de todo com a elaboração do analista, mas sim, dito deste modo, recordações secundárias. Conforme o autor:

(...) em certas análises, a comunicação de uma construção obviamente apropriada evocou nos pacientes um fenômeno surpreendente (...) tiveram evocadas vívidas recordações – qualificadas de hipernítidas (Überdeutlich) por eles mesmos –, mas o que eles recordaram não foi o evento que era o tema da construção, mas pormenores relativos a esse tema (Freud, 1937b/2007, p.267)

Estas recordações, além de possuírem uma ressaltada nitidez, produzem no indivíduo uma crença em sua atualidade. Desse modo, as reminiscências não dizem respeito a um passado remoto e inerte, pelo contrário, fazem-se presentes para o indivíduo. Assim sendo, encontramos dois indícios que explicam a formação no indivíduo do sentimento de convicção: nitidez e atualidade da recordação. Nesse sentido, o preceito de que os analisantes sofrem de reminiscências pode ser melhor compreendido uma vez que diz respeito a um passado presentificado.

 

Considerações finais

A memória platônica, de origem inteligível, suspende a temporalidade da condição mundana. No Teeteto, a rememoração do passado tem como equivalência necessária o esquecimento do tempo presente. Em Freud, em contrapartida, a dimensão cronológica do indivíduo é redimensionada de tal forma que: passado, presente e futuro encontram-se entrelaçados. Conforme Freud: "Na verdade, a translação da pré-história esquecida para o presente, ou para uma expectativa de futuro, é, na verdade, ocorrência habitual (...)" (1937b/2007, p. 269). De fato, na teoria freudiana, o atual coincide com o próprio inconsciente. É somente a partir desta característica que as reminiscências podem manter "uma presença eficaz" (Freud, 1907/2007, p. 27). Contudo, que fator concede às lembranças este caráter de atualidade?

Freud nem sempre deixa claro esta relação singular que o passado sustenta com o presente. Todavia, talvez seja este o movimento próprio àqueles que introduzem uma teoria. Freud, em alguns de seus artigos, realiza isto que podemos denominar como uma síntese de sua obra. Contudo, muitas dúvidas relacionadas aos seus conceitos fundamentais ainda persistem. Quem sabe possamos entender este fato da seguinte forma: tentar compreender como um determinado pesquisador abre o caminho de suas formulações deve ser, comumente, trabalho de um outro investigador mais do que seu. Nesse sentido, toda teoria é, em última instância, também re-fundada, estando sempre aberta ao olhar do outro.

No que se refere à memória, Freud nos oferece indícios ricos da relação que as lembranças conservam com o momento presente, até mesmo quando discorre sobre um acontecimento histórico. Nesse sentido, Freud afirma o seguinte no que diz respeito ao personagem Moisés e aos textos bíblicos: "Quanto ao relato bíblico sobre Moisés e o êxodo, nenhum historiador pode considerá-lo senão como um piedoso fragmento de ficção no qual – a serviço de suas próprias tendências – foi retificada uma tradição remota" (Freud, 1939 [1934-38]/2007, p.32). Desse modo, desde que o social é para Freud uma expressão da realidade individual, podemos encontrar este mesmo trabalho de construção de uma ficção quando ele discorre acerca do processo analítico. Nas palavras do autor: "O efeito terapêutico relaciona-se com fazer consciente o recalcado (...) preparamos o caminho para a este fazer consciente mediante interpretações e construções (...)" (Freud, 1937a/ 2007, p.240).

Mais que um passado que se impõe ao presente, em Freud, é o próprio presente que atualiza o passado. Nesse sentido, podemos compreender que a construção, realizada pelo psicanalista, refunda o passado do analisante. Se as lembranças dizem respeito ao passado este tempo tem que ser compreendido como virtual. Conforme Freud: "A retificação, com posteridade (Nachträglich), do processo repressivo originário (...) seria então a operação genuína da terapia analítica" (Freud, 1937a/2007, p.230).

Assim, a originalidade da memória em Freud reside fundamentalmente na retificação (Nachträglich) que o presente concede ao passado. Dito de forma mais precisa, a partir do instante em que tentamos, como por exemplo numa análise, recuperar um acontecimento passado, em si, encontramos apenas uma ficção ou uma invenção dele mesmo. Desse modo, a memória em Freud não é marcada pela permanência de um objeto apreendido na realidade material, mas sim, pelos rearranjos posteriores concedidos aos indícios de realidade.

 

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Endereço para contato
E-mail: celina.lima@unifor.br

Recebido em maio de 2012
Aceito em junho de 2013

 

 

Maria Celina Lima Peixoto: Doutora em Psicologia pela Université Paris 13, Professora do PPG-PSI da Universidade de Fortaleza, Coordenadora do LEIPCS (Laboratório de Estudos e Intervenções Psicanalíticas na Clínica e no Social).
Débora Passos de Oliveira: Mestre em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (Unifor), Professora da Universidade de Fortaleza.