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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.40 Canoas abr. 2013

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Vivências familiares de pacientes com reinternação psiquiátrica1

 

Family experiences of patients with psychiatric rehospitalization

 

 

Vanessa Machado; Manoel Antônio dos Santos

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

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RESUMO

Objetivou-se analisar as vivências familiares de pacientes com reinternações psiquiátricas, do ponto de vista dos próprios pacientes. Utilizou-se abordagem qualitativa com entrevistas semiestruturadas envolvendo 22 pacientes com reinternação psiquiátrica. A interpretação dos dados fundamentou-se no paradigma emergente da Atenção Psicossocial. A análise dos dados apontou a ambivalência de sentimentos presente na relação familiar, os limites dos cuidados, o não saber como agir por parte da família diante da intensidade dos seus sentimentos e comportamentos. Identificou-se o estigma associado ao transtorno mental e como ele se manifesta nas relações familiares. Foram atribuídos significados à decisão da família pela internação: único recurso diante do desconhecimento de como conduzir a situação, solução temporária que alivia a sobrecarga familiar e, assim, a internação incorporando o cotidiano da família. A partir da análise dos relatos, podemos apreender a importância da inclusão da família, como protagonista, no conjunto de intervenções em saúde mental.

Palavras-chave: Reinternação psiquiátrica, Vivências familiares, Atenção Psicossocial.


ABSTRACT

The aim of the study was to examine the family experiences of patients with psychiatric rehospitalization, from the viewpoint of patients themselves. A qualitative approach was used with semi-structured interviews applied to 22 patients with psychiatric rehospitalization. Data interpretation was based on the emerging paradigm of Psychosocial Care. The data analysis indicated the ambivalence of feelings present in the family relationship, the limits of care, family´s lack of knowledge about how to act before the intensity of their feelings and behaviors. It was identified the stigma that mental illness carries and how it manifests itself in family relationships. Family´s decision for admission was related to the following meanings: only resource against not knowing how to handle the situation, temporary solution that relieves family burden and, thus, admission incorporating the daily activities of the family. Analyzing the reports, it was evident the importance of including the family, as leading figure, in the set of mental health interventions.

Keywords: Psychiatric rehospitalization, Family experiences, Psychossocial Care.


 

 

Introdução

A partir do processo de desinstitucionalização, que culmina no modelo de atenção comunitária, os cuidados com o paciente portador de sofrimento mental passou a ser de responsabilidade da família, embora, em muitos casos, esta não se sinta tão preparada. Por outro lado, nos encontramos em um momento da desinstitucionalização em que o novo modelo de atenção, embora proponha substituir as internações de longa permanência, se depara com um desafio: a reinternação psiquiátrica recorrente, fenômeno também conhecido como revolving door (Machado & Santos, 2011).

Ao longo das transformações ocorridas na assistência à saúde mental, as relações entre familiar e usuário, especialmente no que se refere aos cuidados, também estiveram sujeitas aos processos de mudanças do mundo contemporâneo (Luzio, 2010). O cuidado dirigido à pessoa com sofrimento mental, circunscrito aos muros do manicômio, era de incumbência exclusiva da psiquiatria. Essa prática implicava a retirada do paciente do contexto familiar, medida que funcionava como alívio da sobrecarga da família e também como recurso de afastamento do paciente do contexto responsável por seu adoecimento (Melman, 2006; Rosa, 2011).

Após a Segunda Guerra Mundial, a medicina higienista, a psiquiatria moral e a psicanálise contribuíram para a supervalorização e idealização da família formada por laços consanguíneos. Essa concepção, ao outorgar à família o lugar exclusivo e obrigatório dos afetos, produziu a intensificação das relações familiares e, em consequência, a culpabilização do contexto familiar pelo adoecimento do paciente (Melman, 2006).

A partir da década de 1990, a família passou a constituir um dos mais importantes eixos das políticas sociais, o que implicou sua convocação para assumir algumas responsabilidades, como o cuidado com a pessoa com sofrimento mental (Luzio, 2010). Conforme aponta Saraceno (1999), de cúmplice das internações a família tornou-se aliada e protagonista das estratégias de reabilitação psicossocial. Contudo, como seria previsível, são inúmeras as dificuldades nessa nova função assumida pela família, a qual se encontra, frequentemente, envolvida em situações conflitantes, que são fontes de sobrecarga física, emocional e material.

Outro desafio para o qual o momento atual solicita enfrentamento é a reinternação psiquiátrica. Embora as internações atualmente não sejam mais de longa permanência, a institucionalização dos pacientes acontece, em muitos casos, mediante repetidas internações relativamente breves em diferentes hospitais, o que caracteriza o uso frequente da internação (Dalgalarrondo, 1995; Mello & Furegato, 2007; Parente et al., 2007; Passos, 2009). A taxa de reinternação é um indicador multifatorial, que reflete, além das condições do paciente, aspectos sociofamiliares, adesão ao tratamento, organização e qualidade da assistência prestada pela rede de serviços de saúde mental (Castro, Furegato & Santos, 2010; Machado & Santos, 2011; Morgado & Lima, 1994; Parente et al., 2007).

A literatura da área estuda a problemática a partir da perspectiva dos familiares que a vivenciam. Todavia, há carência de pesquisas que investiguem o ponto de vista dos pacientes em relação às suas próprias vivências familiares. Este estudo teve como objetivo analisar as vivências familiares de pacientes com múltiplas reinternações psiquiátricas, do ponto de vista dos próprios pacientes.

 

Método

Foram incluídos no estudo 22 pacientes reinternantes em um hospital psiquiátrico público de um município do interior do Estado de São Paulo, sendo 12 homens e 10 mulheres, com idades entre 17 e 58 anos; 14 eram solteiros, cinco casados e três viúvos ou divorciados; apenas três exerciam atividade remunerada e oito recebiam algum tipo de benefício assistencial. Os critérios de inclusão foram: apresentar, no mínimo, duas internações psiquiátricas ao longo da vida no hospital onde foi realizada a pesquisa; estar de alta médica do hospital; ser residente no município onde se localiza a instituição psiquiátrica.

A amostra de conveniência foi selecionada de uma série consecutiva de pacientes que receberam alta do hospital no período de outubro a dezembro de 2008, e que preencheram os critérios de inclusão. Para a coleta dos dados, foi elaborado um roteiro temático de entrevista semiestruturada, constituído a partir da literatura da área, associada aos interesses da pesquisa e à experiência anterior dos pesquisadores. Inicialmente, foi realizado um pré-teste, que mostrou a necessidade de efetuar algumas adaptações no roteiro, o que foi contemplado na versão final do instrumento. As entrevistas foram audiogravadas e realizadas em situação face a face em local reservado. O material coletado foi transcrito literalmente e na íntegra.

As entrevistas foram analisadas de com acordo com a análise de conteúdo do tipo temática (Bogdan & Biklen, 1999). A interpretação dos dados foi fundamentada no paradigma emergente da Atenção Psicossocial, aqui compreendida como corpo teórico-prático e ético. Esse paradigma emerge no atual contexto de transição paradigmática, a partir da crise do paradigma da racionalidade científica, e orienta as práticas que vêm sendo constituídas no campo da saúde mental no território brasileiro (Costa-Rosa, 2000; Costa-Rosa, Luzio & Yasui, 2003; Luzio, 2010; Santos, 2000).

Em relação aos cuidados éticos, o presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Saúde – Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto –USP (protocolo nº 229/2008).

 

Resultados e discussão

A partir da leitura detalhada e exaustiva do corpus, constituído pelas transcrições na íntegra e literais das entrevistas, foram construídas as seguintes categorias temáticas: Vivenciando as relações familiares de forma ambivalente; Sofrendo o estigma da "doença mental" na família; Percebendo o significado atribuído à internação pelo familiar.

Vivenciando as relações familiares de forma ambivalente

Alguns participantes, embora reconhecessem tacitamente a importância do vínculo estabelecido com seus familiares, e até mesmo admitissem uma convivência positiva entre eles, demonstraram os limites dessas relações e, por conseguinte, das possibilidades de cuidado.

Eu tô morando com uma irmã minha. Tem hora que a gente se dá bem, tem hora que num se dá bem. Aí eu saio, sem rumo. (E10)

Meu pai me leva lá no médico. Ele tenta dá remédio pra mim: 'toma... L.'. Me agradando, sabe? A minha casa onde eu moro é casa normal, mas eu se dô melhor com minha mãe. Converso com ela. Com meu pai eu se dô mais. Meu pai num é muito bom não. Ele é meio bravo às vezes. Aqui, eu recebo visita do meu pai. Um dia ele veio aqui, ele queria me vê. Aí eu saí no portão, fui lá fora atendê ele. Eu cheguei, abracei ele. O meu pai, ele num é ruim. Eu gosto dele. Tem que gostá, então eu vô odiá ele? Num posso odiá, tem que gostá, tem. Eu tô vendo que ele me ajuda porque eu tô atrapaiada. Vô fazê uma coisa que é pior pra mim [...] Eles tão vivendo na casa deles. Vive normal, é uma família. Eu tô no hospital e eles vive lá. (E9)

Eles até tenta fazê, sabe? Mas é porque a gente acha que a gente tá bem e aí fica teimando com os filho. Fala: 'não, tô fazendo direito' e os filho, coitado, fica sem sabê o que fazê. (E5)

Meus filho, eles têm amor a mim, mais eles são jovens, sabe? Tem a vida deles, não entende minhas necessidade. Então, não tão do lado, larga eu sozinha quando preciso. (E12)

Como pode ser apreendido nas falas desses participantes, os sentimentos ambivalentes, o se dar bem e não se dar bem, o gostar e não gostar, o estar perto e o se afastar, que são movimentos intrínsecos às relações humanas, parecem exacerbados quando se tratam de famílias nas quais o sofrimento mental se apresenta de forma exacerbada. Diante de tal situação, impregnada de sentimentos contraditórios, a família não sabe como agir e acaba apresentando atitudes e comportamentos que, na percepção dos pacientes, não contribuem para sua melhora. Estudos de Silva e Santos (2009a, 2009b) mostraram a intensidade de angústia que o início e desenvolvimento do transtorno mental evocam na relação familiar, acentuando os embaraços inerentes às relações humanas.

Além disso, a fala da segunda participante traz a divisão entre o "viver em casa" e o "estar no hospital", como marca de ruptura na convivência, uma vez que, com as seguidas internações, perde-se espaço no contexto familiar, tanto em termos reais e objetivos, como em termos simbólicos inerentes às relações (Rosa, 2011; Vasconcelos, 2002). Na mesma direção, os pacientes entrevistados por Salles e Barros (2009) relataram que a internação psiquiátrica provocava a ruptura das atividades cotidianas, das relações e do lugar sociofamiliar que ocupavam.

Sofrendo o estigma da "doença mental" na família

Em torno da doença mental cristalizam-se percepções, atitudes e ideias baseadas em interpretações muitas vezes equivocadas, como se pode vislumbrar nas falas a seguir:

Eu num sô dona da minha casa quando tô em casa, quem comanda tudo lá são eles e eu me sinto excluída. (E5)

Eu queria que eles me entendessem, me escutasse. Eu sô depressiva, eu tô em tratamento, se eu fico deitada no quarto escuro, pra eles é preguiça, é vagabundice, é porque eu num quero fazê nada. Não, é porque eu simplesmente preciso ficá num quarto escuro, quieta. Eles num entende a minha doença, eles acha que, a partir do momento que eu sair daqui, eu tô boa, eu sarei, num preciso mais tomá remédio, num preciso mais nada. (E11)

Historicamente, os "doentes mentais" constituíram uma categoria social submetida a discursos desqualificadores e desumanizantes, que promoveram a exclusão e discriminação social. O pouco que se conhece sobre transtorno mental é carregado de conotação negativa, que culmina no preconceito e no estigma (Silva & Santos, 2009a). Um dos participantes relatou a forma como se relacionava com sua família, especialmente no que se refere à recusa familiar em falar sobre o transtorno mental, evidenciando o silêncio que envolve o assunto.

Num sei o que eles acha do meu problema, das minha internação. Nunca falei disso com a minha família. (E1)

A gente num conversa muito sobre minha doença. Acho que ele num gosta desses assunto. (E3)

Eu evito ao máximo falar dos meu problema com meus filho. Eles também num fala muito não. Eles esconde das pessoa que eu tô aqui. (E7)

Diante da vergonha ou da negação do transtorno mental, bem como frente às dificuldades inerentes à convivência, muitas famílias "optam" por calar a experiência estranha e incomum imposta pelo sofrimento mental. Estudo de Silva e Santos (2009b) com mães de pacientes com transtorno mental grave e persistente mostraram que elas comentam pouco sobre o adoecimento do filho, o que os autores interpretam como defesa contra a angústia em se deparar com a situação dolorosa, marcada pela frustração de expectativas e pela autoculpabilização.

Melman (2006) identifica, nesses quadros graves, rastros de um intenso sentimento de culpa por parte da família, a ponto de se ver impedida e impotente ao enfrentar adequadamente a situação, o que pode contribuir para que os familiares se isolem do contexto familiar mais amplo ou da comunidade em geral. Silva e Santos (2009a, 2009b), no mesmo sentido, também identificaram o sentimento de culpa nos familiares, que os faz constantemente se interrogarem sobre "onde foi que eu errei?" ou os leva a se recusarem a reconhecer a situação com realismo, ou seja, como não transitória. Nesse sentido, torna-se importante reconhecer a necessidade de intervenções que contribuam para o deslocamento da postura de autoculpabilização para a postura de corresponsável na reabilitação psicossocial, sem a qual a sobrecarga familiar pode tornar-se demasiadamente pesada (Silva & Santos, 2009b).

No fragmento de fala reproduzido a seguir, nota-se o sentimento de desconforto da paciente diante da visita de uma tia, a quem não via havia certo tempo, e que mostrou estranheza frente ao seu comportamento:

Num tem ninguém que atende minhas necessidades na hora da crise. Só o contrário, minha família olha pra mim e eles num dão nem crédito. Um dia aconteceu um fato interessante, tinha uma tia que já fazia mais de mês que num ia na minha casa, aí eu peguei e coloquei a mesa rapidinho, fui fazê o café pra recebê elas e elas ficaram parada no portão, assustada só porque eu falei: 'entra tia, eu tava dormindo ainda, mais se a senhora veio, entra'. Outra tia ficou preocupada porque eu tinha ido na casa dela e tinha limpado. Eles estranharam, mais eu tava bem! A gente cai no descrédito, e muito grande! Fora o preconceito que fica, né? Isso é muito ruim pra mim porque até a gente conquistá de novo, até a gente buscá de novo, a gente acaba se sentindo na obrigação de fazê algo pra pessoa acreditá na gente. (E6)

Nessa fala fica patente a percepção que a paciente tem de "ter caído em descrédito" perante os familiares, devido aos momentos em que mostrou desequilíbrio emocional ou comportamentos incongruentes, como são as manifestações do transtorno mental. O sentimento de perda revelado pela paciente é pungente, intensificado quando ela reconhece o quanto teria que lutar para conquistar novamente a confiança daqueles que a cercavam. Isso indica que o processo de reabilitação implica se confrontar com inúmeras perdas impostas pelo transtorno mental, o que leva à busca de reparação iminente pelos estragos causados no modo como se é visto pela sociedade. Os familiares, por não terem uma real compreensão desse processo, muitas vezes julgam erroneamente o paciente e se mantêm distantes ou não conseguem compreender a densidade dessa experiência dolorosa de confronto com as perdas progressivas que a pessoa acometida vivencia. Somada a isso está a percepção, não menos dolorosa, de ser incluído na categoria social de paciente psiquiátrico, vivenciada como um lugar de exclusão, desconfiança e desqualificação por parte dos familiares e do entorno social.

Percebendo o significado atribuído à internação pelo familiar

Alguns entrevistados comentaram sobre a decisão da família por sua internação. Em alguns casos, mostraram compreender a decisão, uma vez que afirmam, resignados, que na opinião do familiar essa seria a melhor forma de ajudar.

Meu pai me colocô aqui porque ele acha que o hospital vai me ajudá. É o jeito que ele pensa. O que ele faz pra me ajudá. (E4)

Minha mulher me acompanha no médico só quando é pra me interná. É sempre assim, quando ela acha que eu tô dando trabaio em casa, ela qué me interná. (E8)

Eu sei que eu dei muito trabalho, que uma crise num é fáci, mais a gente sempre espera mais dos irmão. Digamos que eu fiquei assim um pouco frustrado em relação ao que poderiam ter feito mais por mim, mas num reclamo não porque eu sei que é difícil, né, tratá um doente mental [...] As vez o único jeito que eles vê é interná mesmo. (E2)

É comum que familiares ainda compreendam a internação em hospital psiquiátrico como a única forma de tratamento, o que pode decorrer da dificuldade de manejar situações de crise, durante as quais se sentem angustiados, despreparados e sobrecarregados pelo convívio com o usuário (Fonseca, Generoso, Maia & Emmendoerfer, 2008; Rosa, 2011; Salles & Barros, 2007; Vianna & Barros, 2004). No mesmo sentido, Silva e Santos (2009a) mostram a dificuldade das mães de pessoas diagnosticadas com transtorno mental em conviver com o incompreensível, com aquilo que escapa ao sistema lógico-explicativo habitual; e, dessa maneira, sentindo-se confusas e perdidas, não sabem como contornar situações marcadas pela ausência de sentido, manifestada pelos comportamentos incoerentes e extravagantes. Diante desse retrato, pode-se pensar que a internação é um recurso que responde a um apelo expresso por aqueles que estão a sofrer diante do estranhamento e da impotência.

Por outro lado, tendo em vista as inúmeras sobrecargas que o cuidado imputa aos familiares, a internação psiquiátrica ainda é um dos recursos empregados por eles como estratégia de sobrevivência, uma vez que, em muitos casos, impõem-se a necessidade de exercer atividades que gerem renda para a subsistência material da família (Rosa, 2011). Assim, nos casos de reinternação psiquiátrica, a hospitalização acaba se incorporando ao cotidiano da família como mais um dos recursos assistenciais que fazem parte do cuidado (Rosa, 2011).

Nessa direção, os resultados dos estudos de Rosenblatt e Mayer (1982) mostraram que as reinternações estavam relacionadas à presença de altos níveis de carga física e afetiva, e à dificuldade nas relações familiares. Esses fatores, por sua vez, estavam associados à inadequação dos serviços no que concerne à continuidade do tratamento pós-alta. Com isso, percebe-se que, muitas vezes, a opção "única" pela internação é confirmada pela própria estrutura da rede de serviços existentes, que não dispõe de recursos extra-hospitalares suficientes ou eficazes para evitar a reinternação.

 

Conclusão

A análise dos relatos apontou a ambivalência de sentimentos que regulam as relações familiares, os limites dos cuidados, o não saber como agir por parte da família diante da intensidade dos sentimentos e dos comportamentos que os pacientes manifestam. Também foi possível identificar o estigma associado ao transtorno mental e o quanto seus traços negativos se apresentam nas relações familiares: a vergonha, o descrédito, as perdas e o esgarçamento dos laços sociais, a recusa em falar sobre o assunto. E, por fim, foram atribuídos significados à decisão da família pela internação: único recurso diante do desconhecimento de como conduzir a situação, solução temporária que alivia a sobrecarga familiar, de modo que a internação possa ser incorporada no cotidiano da família.

A partir dos relatos, podemos corroborar os resultados de outros estudos, que pontuam a importância da inclusão da família no conjunto de intervenções em saúde mental (Barroso, Bandeira & Nascimento, 2009; Borba, Schwartz & Kantorski, 2008; Mello, 2005; Randemark & Barros, 2005; Vianna & Barros, 2004). Por outro lado, nota-se que ainda há muito a se fazer para que, no contexto investigado, a família passe de culpada ou vítima à posição de corresponsável, aliada e protagonista do processo reabilitador (Luzio, 2010; Melman, 2006; Silva & Santos, 2009b).

 

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Endereço para contato
E-mail: vanesmachado@bol.com.br

Recebido em fevereiro de 2012
Aceito em outubro de 2013

 

 

Vanessa Machado: Psicóloga; Doutora; Programa de Pós-graduação em Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
Manoel Antônio dos Santos: Psicólogo; Professor Associado 3; Departamento de Psicologia, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
1 Estudo financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que proporcionaram o desenvolvimento do projeto de pesquisa intitulado "Avaliação de internações psiquiátricas na região de Ribeirão Preto, SP entre 1998-2004 e suas relações com a rede extra-hospitalar de saúde mental", processo nº 06/51736-6, sob a coordenação do Prof. Dr. Manoel Antônio dos Santos, que gerou o presente artigo. O projeto foi desenvolvido no período de 2006 a 2009 e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde – Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, protocolo nº 229/2008.