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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.41 Canoas ago. 2013

 

RESENHA

 

Mal-estar do homem contemporâneo ou o estado das coisas

 

 

André Preissler Loureiro Chaves

Universidade Luterana do Brasil. Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ULBRA)

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Tão estranho quanto sentir dor,
é não sentir quando se devia.
Moacyr Scliar

O tempo é o espaço interior.
O espaço é o tempo exterior.
Novalis

 

Um começo

Desde já me pergunto: do que precisamos falar e como, ao buscarmos resenhar o livro de Joel Birman, Cadernos sobre o mal. E já me amparo em Freud, para quem, segundo Lacan, "Tudo o que vai em direção à realidade exige não sei que temperança, um certo baixar o tom". Um tatear, sem presunção, como nos ensina Montaigne. Em quem o que há de mais belo é justamente a sua paciência na aproximação com algum tema. Aqui se seguirão algumas notas, apenas.

Gostaria de iniciar pelo princípio, pelo livro fundamental O Mal-Estar na Civilização, que ainda ecoa profundamente na maneira como compreendemos a vida. A obra-prima de Freud ainda nos assombra. E aproveitar para fazer referencia à tradução, publicada no Brasil, ao final do ano de 2011, realizada por Paulo Cesar de Souza (tradutor, também, de Nietzsche e Brecht). E de a celebrarmos, acostumados que estávamos a conviver com traduções problemáticas. E não apenas no Brasil.

Slavoj Zizek (em seu livro Em defesa das causas perdidas, 2011) comenta a respeito das opções nas traduções (desde o título). Em inglês, por exemplo, o título costuma ser traduzido como "A civilização e seus descontentamentos". Perdendo-se assim, segundo ele, com o que concordo, a oportunidade de jogar com a oposição entre cultura e civilização:

• o descontentamento está na cultura, em seu rompimento violento com a natureza;

• enquanto a civilização pode ser concebida exatamente como a tentativa secundária de remendar tudo, de "civilizar" o corte, de reintroduzir o equilíbrio perdido e dar uma aparência de harmonia.

Bem, a maneira como Freud descreve as patologias do processo civilizatório e o preço que pagamos para "socializar" (na falta de uma expressão mais adequada) nossas pulsões e desejos encontrou eco profundo na maneira de compreendermos a estrutura de nossas formas de vida.

E se nos perguntarmos sobre a razão para tamanha influência, talvez a melhor resposta seria: com a noção de "mal-estar", Freud nomeou uma modalidade de sofrimento social que parece assombrar a modernidade.

E pelo menos uma ideia importantíssima ficou: a noção de que aquilo que chamamos de "sofrimento psíquico" está profundamente vinculado ao impacto, em nossas vidas, dos imperativos da vida social. Daí a ideia de que todo sofrimento psíquico é um modo de expor (de somatizar) experiências sociais malogradas. Justamente disto que trata o belo e grave Cadernos sobre o Mal.

 

O objeto e o desafio cognitivo contemporâneos

Joel Birman fala desta nossa época onde a crueldade e seu caráter tóxico e disseminado se constituem o objeto e o desafio cognitivo contemporâneos. E os sintomas apontados, permitam-me, facilmente detectáveis:

- exibição cruel de feridas (feridas no duplo sentido: corpóreas e anímicas)

- ações e compulsões violentas

- depressões

- despossessão

- e a isto se soma o contraste entre um nível forte de descarga pulsional e uma, talvez, baixa capacidade de simbolização (e a perda desta mediação). Apoio-me, aqui, em Terry Eagleton que nos lembra no seu O problema dos desconhecidos: um estudo da ética (2010): "A ordem simbólica tanto é protetora quanto repressora, assim como o Real é transformador e traumatizante".

Vamos observar cada um desses sintomas, a partir das reflexões de Birman.

Crueldade/Perversão

Os perversos que me preocupam não são os de Richard Von Krafft-Ebing (psiquiatra austro-alemão) que na sua obra "Psicopatologia Sexual" (1886) introduz pela primeira vez os conceitos de sadismo, masoquismo e fetichismo. Os perversos que me preocupam, também descritos por Contardo Calligaris, são os que gozam com a dor, a humilhação ou o aniquilamento físico-moral dos mais frágeis, desorientados e desamparados.

Permitam-me, aqui, descrever uma instalação do artista paulistano Nuno Ramos, chamada 111, numa alusão ao Carandiru e ao massacre, exposta na Bienal de Arte de São Paulo realizada em 2006 – que curiosamente teve a seguinte temática: "Como viver juntos?". O que havia de insólito nesta instalação?

Sabemos que a instalação é um esforço do artista em enfrentar o espaço tridimensional, colocando nele elementos em número suficiente, nem a mais (pois tudo vira ruído), nem a menos (pois não haveria elementos suficientes para, dali, emergir um significado). O que, então, encontrávamos nesta instalação, ao entrarmos na Sala?

No chão, cota Zero, 111 paralelepípedos. Tendo, sobre cada uma das pedras, o nome de um dos presos, escrito em logotipo de imprensa. Sobre estas pedras pisávamos. Havia outros elementos, mas um em especial, era um conjunto de fotos dispostas no teto, ao fundo: fotos de satélite (e sua sofisticação tecnológica), localizando o Brasil, o Estado de São Paulo, a Cidade de São Paulo, o Bairro do Jabaquara, a vizinhança, o Carandiru, tiradas no exato momento da invasão.

O que havia? Que ponto de interrogação havia entre estas cotas? A pergunta: Como nos colocamos, como nos posicionamos, diante disto?

Como nos lembra Simon Schama, a grande arte tem péssimos modos. O silêncio das galerias pode levar a gente a acreditar, enganosamente, que as obras-primas são delicadas, acalmam, encantam, distraem. Mas nos aplicam, na verdade, uma chave-de-cabeça.

Ações e compulsões violentas

Vou, aqui, abordar apenas um aspecto: esta prontidão para ocuparmos sempre com violência o espaço público. Consumidores perplexos, não cidadãos, consumidores perplexos atolados na administração permanente do bem-estar.

Neste ponto, gostaria de seguir Roberto DaMatta (antropólogo), quando em entrevista para ZH (05/Março/2011), sobre o atropelamento dos ciclistas ocorrido em 25/Fevereiro/2011, no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre/RS, buscando compreender, afirma que:

"O trânsito no Brasil permite que a gente enxergue com clareza que os brasileiros sentem mal-estar diante da igualdade. Não é diante da desigualdade que temos mal-estar. Este sujeito tem um incômodo com a igualdade. A igualdade significando que o trânsito obriga você a esperar a sua vez".

Isso, tão simples, parece inadmissível. Que dificuldade é esta que temos com a igualdade? – pergunta-nos também Birman, em certo sentido.

Depressão

Estamo-nos perguntando pelos sinais de uma época. Difícil jornada. Uma difícil tarefa. Para Adauto Novaes, encontramo-nos num mundo que nos propõe uma vida de automatismos de toda a espécie, ingenuidade, inércia, velocidade, repetição (repetição e sua insidiosa intoxicação do mesmo).

Bem, inércia, velocidade, repetição. O que está por trás destes estados é a noção de tempo. Por isto, a noção de tempo é tão importante para entendermos as raízes da transformação psíquica.

Maria Rita Kehl, no livro O tempo e o cão: a atualidade das depressões (2009), toma como ponto de partida um dos pensamentos de Paul Valery em seu ensaio sobre a Crise do Espírito (La crise de l'esprit, 1919): "Não existe mais o tempo em que o tempo não contava". Vivemos o tempo da impaciência e da não reflexão, da rapidez da realização, das variações bruscas da técnica.

Kehl, ecoando as reflexões de Birman, convida-nos a pensar certo tipo de homem que vive neste mundo de forma muito original: um homem ao mesmo tempo ativo e miserável. Consciente, ele encarna a reação contra a vulgaridade da existência, em oposição ao Outro, que não se sente fora de sua época e que, ao contrario, não cessa de assumir com ela "um compromisso vergonhoso".

O homem descrito por Kehl se desdobra: aparente resignação para si e revolta contra o mundo. "Recusando um mundo no qual não pode viver de forma autêntica, refugia-se no pensamento, ou melhor, no diálogo do pensamento com o pensamento. Toma o silêncio como única linguagem que lhe convém, trabalha em silêncio os mistérios da conservação da vida e, silenciosamente, prepara intervenções no mundo. Essa figura trágica contemporânea é o depressivo, que faz de cada acontecimento, por menor que seja, "a coisa mais delicada do mundo", como delicada é a sua relação com o tempo, lento e reflexivo" (Novaes, 2009).

Despossessão

Estar des+apossado de algo: a despossessão psicológica, a despossessão social e a despossessão política, quem bem nos caracteriza Birman. A despossessão psicológica diz respeito a um sentimento de autodesvalorização das populações pobres em relação às ricas, ou de um país pobre em relação a um país rico.

Outra forma de despossessão é a social, que se manifesta pela completa impossibilidade de parcelas da população terem acesso aos mecanismos de êxito social, de atingirem o mínimo de prestígio e manterem relações sociais estruturadas e permanentes. A despossessão política é outro lado da pobreza contemporânea e diz respeito à incapacidade de certos grupos sociais terem qualquer participação efetiva na vida pública ou acesso aos mecanismos de interferência e ação política (Costa, 1997 apud Mariano, 2007).

 

Para um desfecho

As formas de violência e de agressividade representam um cenário de horror que apavora a todos. Provocam debates que têm eco em diversos campos e disciplinas. Não sei se apenas olhando para o aqui e agora entenderemos o que ocorre hoje. Ou seja, ao que ou a quem devemos ser tributários? Ou, se preferirem: Qual o conhecimento necessário para pensarmos bem o que achamos que pensamos bem sobre hoje? Nestes Cadernos, Birman propõe uma inestimável discussão a partir da Psicanálise. Um livro, apesar de muito comentado, precisa ainda ser melhor compreendido.

 

Referências

Birman, J. (2009). Cadernos sobre o Mal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Eagleton, T. (2010). O problema dos desconhecidos: um estudo da ética. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.         [ Links ]

Kehl, M. R. (2009). O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo, Boitempo Editorial.         [ Links ]

Mariano, S. A. (2007). Traduções político-culturais de gênero na política de assistência social: paradoxos e potencialidades para o empoderamento das mulheres. Anais II Seminário Nacional Movimentos Sociais, Participação e Democracia. Florianópolis, UFSC.         [ Links ]

Novaes, A. (2009). Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. Rio de Janeiro, Editora Agir.         [ Links ]

Valery, P. (1919). La crise de l'esprit. Disponível em: <http://arkitectos.blogspot.com.br/2009/12/crise-do-espirito-de-paul-valery-1871.html> Acessado em: <setembro de 2013>         [ Links ].

Zizek, S. (2011). Em defesa das causas perdidas. São Paulo: Boitempo Editorial.         [ Links ]

 

Endereço para contato
E-mail: andreplc@terra.com.br

Recebido em outubro de 2013
Aceito em abril de 2014

 

André Preissler Loureiro Chaves: Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ULBRA)

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