SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número42A identificação como efeito do processo tradutivo da sedução origináriaImportância da psicoeducação em grupos de dependentes químicos: relato de experiência índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.42 Canoas dez. 2013

 

ARTIGOS TEÓRICOS

 

Fatores protetivos e de risco para o uso de crack e danos decorrentes de sua utilização: revisão de literatura

 

Protective and risk factors for the use of crack and damages from its use: review of literature

 

 

Cristina Beatriz Sayago; Paola Lucena-SantosI; Fernanda RibeiroII; Marina Balem YatesII; Margareth da Silva OliveiraII

I Universidade de Coimbra/Portugal
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS

Endereço para contato

 

 


RESUMO

Introdução: Este estudo objetivou revisar pesquisas que relatam danos decorrentes do uso de crack e possíveis fatores protetivos ou de risco para o uso. Método: Foram realizadas buscas no PsycInfo, PubMed e LILACS. Os descritores utilizados foram: (Crack Cocaine) AND (Street Drugs OR Population Characteristics OR Epidemiology). Resultados: A facilidade de acesso do crack, uso frequente de cocaína injetável, cristais de metanfetamina, envolvimento em comércio sexual e variedade de drogas utilizadas nos últimos seis meses foram considerados fatores de risco para o uso. Não usuários de crack percebem o condicionamento vicário, informações fornecidas pela família e o medo de morrer como fatores protetivos para o uso da droga. O uso de crack pode causar danos físicos, problemas psiquiátricos, neurocognitivos e prejuízos sociais. Conclusão: O uso de crack está associado a danos físicos, mentas e sociais. Fatores protetivos e de risco devem ser considerados na elaboração de políticas públicas de saúde.

Palavras-chave: Cocaína crack, Danos sociais, Danos físicos.


ABSTRACT

Background: The aim of this paper was to review studies that describe the damage caused by crack and the possible protective or risk factors for this use. Method: The PsycInfo, PubMed and LILACS databases were searched using the following terms: (Crack Cocaine) AND (Street Drugs OR Population Characteristics OR Epidemiology). Results: The easy access to crack, the frequent use of injectable cocaine, crystal methamphetamine, the involvement in sex trade, and the variety of drugs used in the past six months were regarded as risk factors for drug use. For crack non-users, vicarious conditioning, information given by the family and fear of death were protective factors for drug use. The use of crack can cause physical damage, psychiatric and neurocognitive problems and social impairment. Conclusion: The use of crack is associated with physical, mental and social damage. Protective and risk factors must be contemplated in the design of public health policies.

Keywords: Crack cocaine, Social damage, Physical harm.


 

 

Introdução

A cocaína é um estimulante do sistema nervoso central que possui diversas formas de apresentação. Dentre elas, há a apresentação em sal hidrossolúvel (cloridrato de cocaína), o qual pode ser aspirado ou injetado, e as apresentações alcalinas, que podem ser fumadas. O crack é uma forma de apresentação da cocaína que pode ser fumada em "cachimbos" (Dualibi, Ribeiro & Laranjeira, 2008).

De acordo com a Organização Mundial de Saúde, o uso da cocaína em suas diversas formas, em países desenvolvidos, ocorre em torno de 1% a 3% dos habitantes ao longo de suas vidas. Nos EUA, os dados levantados no estudo do Substance Abuse and Mental Health Services Administration, demonstraram que o índice do uso de cocaína no período de 2002 a 2004 foram de 2,46% da população (Substance Abuse and Mental Health Services Administration [SAMHSA], 2006).

A cocaína é a segunda droga mais utilizada na Europa, perdendo apenas para a maconha (Organização Mundial de Saúde [OMS], 2010). Aproximadamente quatro milhões de europeus fizeram uso de cocaína, considerando somente o ano de 2009, o que corresponde a 1,3% da população. No mesmo período a prevalência de uso da droga entre europeus, de 15 a 34 anos, foi de 2,3%, sendo que 5,9% desta parcela da população relatou uso ao longo da vida (European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA], 2009).

No Brasil, o cenário de uso de cocaína é igualmente alarmante. Na região Sul, conforme o II Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas [CEBRID], 2005), houve aumento do percentual de pessoas que fizeram uso de crack ao longo da vida de 0,5% em 2001 para 1,1% em 2005.

Assim, diversos estudos registram a alta prevalência do consumo de crack. Estes altos índices de consumo são considerados um problema preocupante em termos de saúde pública mundial, sendo no Brasil elevado ao status de epidemia (epidemia do crack) (Pulcherio, Stolf, Pettenon, Fensterseifer & Kessler, 2010). Quando o crack é utilizado, o mesmo é absorvido rapidamente pelos pulmões e, imediatamente, seus efeitos fisiológicos e subjetivos aparecem (Paquette, Roy, Petit & Boivin, 2010). O impacto dos problemas físicos associados ao seu uso é de extrema relevância, uma vez que usuários de crack apresentam complicações pulmonares (Mançano et al., 2008), alterações neuropsicológicas (Cunha, Nicastri, Gomes, Moino & Peluso, 2004), promiscuidade sexual, maiores taxas de doenças sexualmente transmissíveis, envolvimento na criminalidade e maiores índices de mortalidade (Ribeiro, Dunn, Sesso, Dias & Laranjeira, 2006; Schifano & Corkery, 2008).

Desta forma, o presente estudo visa realizar uma revisão de literatura acerca dos danos decorrentes do uso de crack, assim como identificar possíveis fatores protetivos e de risco para o uso da droga.

 

Método

Para o presente estudo, foi feita uma busca de referências bibliográficas nas seguintes bases de dados eletrônicas: PsycInfo, PubMed (Medline) e LILACS. Foram selecionados tanto artigos empíricos, como artigos de revisão de literatura, publicados entre os anos de 2000 e 2011. Os descritores utilizados na língua inglesa foram: (Crack Cocaine) AND (Street Drugs OR Population Characteristics OR Epidemiology), de acordo com os Medical Subject Headings (MeSH), publicados pela National Library of Medicine. Os descritores utilizados na língua portuguesa, de acordo com os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS), publicados pela BIREME, foram: (Cocaína Crack) AND (Drogas Ilícitas OR Perfil de Saúde OR Características da População OR Epidemiologia). Também foram selecionados capítulos de livros, artigos que constavam nas referências dos trabalhos encontrados e pesquisas de centros e associações de reconhecida importância na área de dependência química. Todos os trabalhos escolhidos para análise deveriam ter o texto completo disponível na língua inglesa, portuguesa ou espanhola.

Possíveis fatores protetivos e de risco para o uso de crack

O crack é considerado cada vez mais como uma droga de fácil obtenção. Um estudo realizado em 2005, de âmbito nacional, mostrou que houve aumento na facilidade de obter drogas. Enquanto que, em 2001, 36,1% dos brasileiros referiram ser muito fácil obter o crack, em 2005, este percentual subiu para 43,9%. Com relação ao uso de drogas, aumentou o percentual de pessoas que relataram ter visto frequentemente outras pessoas sob o efeito de drogas nas vizinhanças, de 33,6% para 36,9%. Quanto à venda de drogas, o percentual de pessoas que relataram terem visto traficantes vendendo drogas nas vizinhanças aumentou de 15,3% para 18,5% (CEBRID, 2005).

O aumento do percentual de brasileiros que fizeram ou fazem uso de crack possivelmente está relacionado, dentre inúmeros fatores de ordem econômica e política, a mudanças no seu acesso, estratégias de mercado e forma de uso. A aquisição do crack é considerada simples, rápida e pública, o que pode ser um fator associado ao uso da droga. Entre os fatores ligados à facilidade de acesso está a comercialização do crack na forma de "farelo", que é mais barato do que a pedra e de fácil adulteração (Inciardi et al., 2006; Oliveira & Nappo, 2008a). No entanto, observa-se que pessoas submetidas a constantes ofertas da droga, muitas vezes não a utilizam. Este aspecto, que pode ser considerado protetivo para o uso de crack, foi estudado na pesquisa de Sanchez, Oliveira e Nappo (2005) que contou com um grupo de pessoas que nunca havia experimentado drogas na vida e outro grupo que fazia uso diário das mesmas. O estudo observou que o grupo de não usuários, citou como principal motivo para o não uso de crack, as informações fornecidas pela família acerca das consequências devastadoras do uso da droga. Em segundo lugar, estava a experiência pessoal do entrevistado, baseada na observação direta dos efeitos negativos do uso de drogas em seus amigos e familiares, como danos físicos e morais e a impossibilidade de realização de metas pessoais devido à dependência. Além destes fatores, percebidos por eles como protetivos para o uso de drogas, também foi citado o medo de morrer em consequência de fatores relacionados ao uso de drogas. A maioria dos não usuários residia com os pais em um ambiente, percebido por eles, como harmônico e de cumplicidade. Em contraste, os usuários de crack percebem que os seguintes fatores estão relacionados ao uso de drogas: brigas, abuso no lar, existência de histórico de consumo de drogas por parte da família, falta de carinho, união, apoio e atenção dos pais e o fato de não residirem com os genitores, seja em virtude de abandono, indiferença, morte ou separação.

Outra questão que pode influenciar os indivíduos quanto ao uso de crack é a percepção da população acerca da gravidade da droga. Em 2005, 77,1% dos entrevistados no II Levantamento Domiciliar Sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil (CEBRID, 2005) consideraram grave o uso de crack de uma a duas vezes na vida. Com relação ao uso diário da droga, o número de pessoas que consideravam esse tipo de uso grave subiu para 98,8% do total de entrevistados. Dessa forma, registrou-se que a percepção da população, no que tange ao risco que um indivíduo corre ao fazer uso de crack, varia conforme a intensidade do uso. Entretanto, percebe-se que a maioria da população se preocupa até mesmo com a experimentação do crack, o que pode ser um fator relacionado ao não uso da droga.

Além dos fatores protetivos, alguns estudos também tem se ocupado em investigar fatores de risco para o uso de crack. Em Washington, foi realizada pesquisa com amostra final de 152 usuários de crack internados (sendo 37% mulheres, n=56), em centro de tratamento de usuários de álcool e drogas (Lejuez, Bornovalova, Reynolds, Daughters & Curtin, 2007). O estudo analisou a relação entre gênero e frequência de uso atual (últimos 12 meses), frequência de uso na vida e diagnóstico de dependência de crack. Como resultado, foi registrado que as mulheres dependentes de crack evidenciaram maior uso da droga (tanto atual, como na vida) e foram significativamente mais propensas à dependência de crack, quando comparadas aos homens. O tratamento estatístico dos dados verificou se a diferença potencial entre os gêneros se dava em todas as drogas (maconha, álcool, heroína e fenciclidina – droga alucinógena) ou se acontecia exclusivamente quanto ao uso de crack. Não houve diferença entre os sexos com relação às outras drogas, sendo, portanto, o sexo feminino considerado fator de risco para o uso de dependência de crack.

Em Montréal, estudo de coorte prospectivo identificou fatores de risco associados ao primeiro uso de crack entre jovens de rua de 14 a 23 anos de idade (Paquette et al., 2010). Ao todo 858 jovens foram recrutados, sendo que não foi possível obter informações de seguimento de 38 deles. A pesquisa verificou que o número de tipos de drogas usadas nos últimos 6 meses aumentou o risco de uso de crack, sendo que quanto maior o número de outras drogas utilizadas, maior o risco de começar a fazer uso de crack.

Estudo de seguimento de 10 anos, realizado com usuários de múltiplas drogas provenientes de Vancouver/Canadá (Werb et al., 2010), investigou os fatores de risco associados ao início do uso de crack. No total, 1.603 usuários de drogas injetáveis foram recrutados. No início do estudo, 7,4% dos participantes relataram já ter feito uso de crack. Esta taxa, ao final do período de estudo subiu para 42,6%. O uso frequente de cocaína injetável, cristais de metanfetamina injetável, envolvimento em comércio sexual foram considerados preditores independentes para iniciação ao uso de crack nesta amostra.

Danos físicos e mentais

O uso crônico de cocaína, em suas diversas formas, pode resultar em problemas sexuais, diminuição da capacidade de julgamento, convulsões, problemas pulmonares, dor toráxica, arritmias cardíacas, problemas circulatórios, transtornos psicóticos induzidos por substâncias, derrames, crises hipertensivas e hipertermia (National Institute on Drug Abuse [NIDA], 2009).

O crack, enquanto substância psicoativa ilícita, pode alterar o funcionamento neuronal com consequente modificação do desempenho das funções cerebrais, tais como o processo do pensamento normal, sensopercepção, atenção, concentração, memória, coordenação motora, nível intelectual, entre outros (Mattos, Alfano & Araújo, 2004). O julgamento moral, a tomada de decisões e a resolução de problemas ficam prejudicados devido ao consumo de crack, pois estas habilidades estão sediadas no córtex pré-frontal, uma das áreas do cérebro mais prejudicada pelo uso desta substância. É importante ressaltar que o efeito da cocaína é difuso, causando danos em diversas áreas do cérebro, como as relacionadas à memória e sensopercepção (Oliveira et al., 2009).

No Brasil, estudo que comparou grupo de dependentes de crack (n=15) com grupo de não usuários (n=15) encontrou que o uso de crack está associado a prejuízos neurocognitivos principalmente nas seguintes funções: atenção, fluência verbal, memória visual, memória verbal, capacidade de aprendizagem e funções executivas (Cunha et al., 2004).

O uso de crack também pode causar danos nas vias respiratórias (como tosse, redução da função pulmonar, expiração comprometida e enfisemas), no aparelho cardiovascular (aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial, efeito vasoconstritor e parada cardíaca), além de necrose muscular, problemas neurológicos e psiquiátricos (Laranjeira, Jungerman & Dunn, 2003).

No Brasil, uma das formas de utilização do crack é através de latas de cerveja/refrigerantes, juntamente com folhas de alumínio (Pechansky et al., 2007). Acredita-se que o alumínio é um produto tóxico ao sistema nervoso central e esquelético. A exposição crônica ao alumínio pode alterar os níveis séricos deste metal no sangue, que pode provocar alterações no funcionamento neurológico e cognitivo (Yokel & McNamara, 2001). Estudo realizado com 71 usuários de crack do sexo feminino, avaliou os níveis séricos de alumínio dos participantes. Do total, 78,9% (n=59) faziam uso de crack em latas de alumínio. Destes, 22% apresentaram nível sérico de 6mg/l, valor acima do ponto de corte de referência (Pechansky et al., 2007).

O emagrecimento excessivo, com potencial de comprometimento do sistema imunológico, é um dos efeitos comuns em usuários de crack. Esta perda de peso provavelmente é influenciada pelo fato de frequentemente os usuários realizarem longas caminhadas em busca da droga e pela perda de apetite, efeito comum do crack. Dessa forma, o usuário de crack torna-se mais vulnerável às enfermidades e, ao mesmo tempo, potencial transmissor de doenças infectocontagiosas, devido aos seus comportamentos sexuais de risco (Fischer et al., 2010; Lejuez, Bornovalova, Daughters & Curtin, 2005), como as relações sexuais não desejadas e/ou desprotegidas, as quais aumentam o risco de transmissão de doenças sexualmente transmissíveis entre os usuários do crack (Nutt, King & Phillip, 2010).

Em recente estudo brasileiro, de cunho qualitativo, realizado com 30 usuários de crack (Ribeiro, Sanchez & Nappo, 2010), os participantes relataram que a paranoia, fissura e aumento de agressividade, gerados pela droga, podem aumentar a ocorrência de lesões corporais decorrentes de brigas. Semelhantemente, os comportamentos sexuais de risco realizados sob o efeito do crack, foram citados pelos usuários como danos decorrentes da droga. Nesse sentido, um estudo analisou as taxas de infecção pelo HIV e intensidade de uso de crack entre 1.723 mulheres usuárias de crack provenientes de 22 diferentes localidades ao redor dos Estados Unidos. As participantes eram mulheres não usuárias de drogas injetáveis, ou seja, pessoas em que a exposição ao vírus HIV seria através de comportamentos sexuais de risco. A pesquisa revelou que as participantes que faziam uso de crack com maior frequência e intensidade se envolviam mais frequentemente em comportamentos sexuais arriscados – principalmente para sustentar o uso da droga (Hoffman, Klein, Eber & Crosby, 2000).

Na Florida, estudo foi conduzido com amostra de 3.555 participantes, divididos em 4 grupos distintos: (1) usuários de cocaína injetável, (2) usuários de crack e de cocaína injetável, (3) usuários de crack e (4) grupo controle de não usuários de drogas. As taxas de prevalência de HIV positivo foram, respectivamente, de 45,1%, 30,5%, 20,1% e 7,3%. Quanto ao grupo de usuários de crack, em específico, o estudo revelou que a infecção por HIV era cerca de 2,2 vezes mais provável entre os usuários, do que entre os não usuários de crack. O estudo ainda revela que, 48,3% das mulheres usuárias de crack relataram troca de sexo por dinheiro ou drogas, contrastando com a prevalência de mulheres do grupo de usuários de cocaína injetável que o relataram, a qual foi de 29,4% (McCoy, Lai, Metsch, Messiah & Zhao, 2004).

Danos sociais

Usuários de crack apresentam pior ajustamento no trabalho, lazer, gestão financeira e convívio familiar quando comparados a não usuários (Cunha, Bechara, Andrade & Nicastri, 2010). Em virtude de estarem frequentemente envolvidos com o uso, com a busca da droga ou recuperando-se de seus efeitos, os dependentes de crack passam a divergir de amigos e familiares, tanto com relação aos interesses, como em relação aos padrões de comportamento e ao tipo de vocabulário. Assim, o isolamento social, a negligência das necessidades corporais e a ruptura dos laços familiares e de outras relações podem acabar levando os usuários de crack a entrar para a "marginalidade" (Seleghim, Marangoni, Marcon & Oliveira, 2011) a qual é intensificada pelo envolvimento dos usuários em atividades ilícitas (Oliveira & Nappo, 2008b).

O uso de crack está associado à marginalização social (Fischer et al., 2006). À medida que a dificuldade de utilizar somente a quantidade planejada aumenta, os dependentes procuram formas de obter dinheiro para a compra da droga. Dentre estas formas de obtenção, são comuns os furtos dentro da própria residência, além de assaltos, roubos, envolvimento com o tráfico e prostituição. Estes comportamentos favorecem a má reputação, a desagregação familiar, a criminalidade e a violência (Nutt et al., 2010).

Ainda quanto aos danos sociais, não é infrequente, entre usuários de crack, a sua sujeição à práticas que contrariam suas vontades, para que possam obter maior quantidade da droga. Oliveira e Nappo (2008b) apontaram a existência de usuários de crack do sexo masculino que, apesar de se autodeclararem heterossexuais, praticavam sexo com outros homens em troca de dinheiro. A chamada prostituição compulsória (onde o marido oferece sua esposa por determinado período aos traficantes ou a outros usuários) também foi identificada nesta pesquisa. A prática mais comum de prostituição foi o sexo oral em virtude de ser, segundo a percepção dos entrevistados, a forma que menos comprometeria sua sexualidade.

O aumento do uso de crack ocasiona uma série de problemas na sociedade, sendo um dos principais a violência. Entre os problemas de violência mais relacionados ao uso de drogas estão os acidentes de trânsito, tráfico de drogas, criminalidade, brigas entre amigos e conflitos familiares, os quais são apontados como uma das causas de mortalidade em usuários de crack (Ferreira Filho, Turchi, Laranjeira & Castelo, 2003; Noto & Galduróz, 1999). A associação entre o uso de crack e risco aumentado de envolvimento em problemas legais é descrita por vários estudos (Ferri, Gossop, Rabe-Hesketh & Laranjeira, 2002; Hough, McSweeney & Tumbull, 2001; Seddon, 2000).

Usuários de crack, quando comparados à população geral, apresentam maiores taxas de mortalidade, sendo mais observadas as causas associadas às infecções pelo HIV e os homicídios. Estes ocorrem principalmente em virtude de problemas judiciais, envolvimento com o tráfico, disputa entre pontos de venda de droga e confrontos com a polícia (Azevedo, Botega & Guimarães, 2007; Ferreira Filho et al., 2003; Kessler & Pechansky, 2008; Oliveira & Nappo, 2008a; Ribeiro et al., 2006; Ribeiro et al., 2010). Em um estudo de meta-análise, Kuhns, Wilson, Maguire, Ainsworth e Clodfelter (2009) identificaram que, de 28.868 exames toxicológicos de vítimas de homicídio de cinco diferentes países, 11% foram positivos para metabólitos de cocaína. Com relação ao tipo de homicídio, encontrou-se uma relação direta entre uso de cocaína e morte por arma de fogo.

Riscos sociais decorrentes da ilegalidade da droga, os quais incluem o não honrar dividas com traficantes, risco de ser assassinado pelos mesmos ou colocar a vida de sua família em risco, assim como a perda de vínculos e a detenção policial, são mencionados por usuários de crack como danos decorrentes do uso da droga (Ribeiro e cols., 2010). Por fim, outro dano social decorrente do uso do crack são os comportamentos que decorrem da fissura provocada pelo próprio uso. Em virtude dela, os usuários se sujeitam a atividades de risco para obterem a droga, trocam pertences, roubam, se endividam, manipulam pessoas e se prostituem, o que pode resultar no rebaixamento dos valores pessoais dos usuários (Chaves, Sanchez, Ribeiro & Nappo, 2011).

 

Conclusão

Dentre os possíveis fatores protetivos e de risco para o uso de crack, podem ser considerados fatores de risco a facilidade de acesso da droga. Em contraste, a preocupação marcante da população em relação à experimentação do crack pode ser considerada um fator protetivo para o uso. O sexo feminino foi apontado como fator de risco para o uso e para a dependência do crack. Em usuários de crack que utilizam outras drogas em associação, o uso frequente de cocaína injetável, cristais de metanfetamina e o envolvimento em comércio sexual foram apontados como fatores de risco para o início de uso de crack. Semelhantemente, o número de tipos de drogas utilizadas nos últimos seis meses está positivamente correlacionado com o risco de começar a fazer uso de crack. Usuários da droga percebem que o histórico familiar de uso de substâncias psicoativas, brigas e situações de abuso na família e o fato de não residirem com os genitores como fatores de risco para o uso de drogas. Como fatores protetivos, não usuários de crack percebem o condicionamento vicário (aprendizado a partir da observação das consequências indesejadas que outras pessoas obtiveram ao usar o crack), as informações fornecidas pela família e o medo de morrer como fatores protetivos para o uso da droga.

O uso de crack pode resultar em danos, dentre os quais estão os problemas sexuais, convulsões, derrames, crises hipertensivas, problemas pulmonares e cardiovasculares, necrose muscular, lesões corporais decorrentes de brigas, comprometimento do sistema imunológico, infecção por HIV e doenças sexualmente transmissíveis. A exposição crônica ao alumínio, para pessoas que o utilizam para o uso de crack, pode resultar em alterações no funcionamento neurológico e cognitivo. Usuários de crack podem apresentar problemas psiquiátricos como transtornos induzidos por substâncias, alterações do funcionamento neuronal, com hipoativação do córtex pré-frontal e prejuízos neurocognitivos relacionados à atenção, memória, capacidade de aprendizagem, fluência verbal e funções executivas.

Dentre os prejuízos sociais, observa-se que usuários de crack apresentam pior ajustamento com o trabalho, lazer, gestão financeira e convívio familiar. Os dependentes de crack passam a divergir de amigos e familiares, propiciando maior isolamento social. Juntamente com isso, usuários da droga negligenciam suas necessidades corporais e frequentemente se envolvem em atividades ilícitas, o que favorece a marginalização social. A emissão de comportamentos que favorecem a má reputação, a criminalidade e a violência, como troca de pertences, endividamentos, roubos, assaltos, manipulação de pessoas, envolvimento com o tráfico e com a prostituição, além dos furtos dentro da própria residência, são frequentes entre usuários de crack. Estes se submetem inclusive à práticas sexuais que contrariam sua vontade, a fim de que possam obter maior quantidade da droga, o que pode resultar em um rebaixamento de seus valores pessoais. Riscos sociais decorrentes da ilegalidade da droga são citados como responsáveis pelas maiores taxas de mortalidade, por homicídios, entre usuários de crack.

Embora não se trate de uma revisão sistemática, este estudo sintetiza achados registrados na literatura científica, de maneira que possa ser um recurso útil para a prática clínica de profissionais de saúde, futuras pesquisas na área e construção de novas políticas públicas de saúde. Sugere-se que sejam continuamente realizados estudos de revisão de literatura relacionados à complexa problemática do crack e suas diversas interfaces, os quais sintetizam importantes informações que podem facilitar a formação continuada dos profissionais de saúde mental.

 

Referências

Azevedo, R. C. S., Botega, N. J. & Guimarães, L. A. M. (2007). Crack users, sexual behavior and risk of HIV infection. Revista Brasileira de Psiquiatria, 29(1), 26-30.         [ Links ]

Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas [CEBRID]. (2005). II Levantamento domiciliar sobre o uso de drogas psicotrópicas no Brasil: estudos envolvendo as 107 maiores cidades do país. Brasília: CEBRID, UNIFESP.         [ Links ]

Chaves, T. V., Sanchez, Z. M., Ribeiro, L. A. & Nappo, S. A. (2011). Fissura por crack: comportamentos e estratégias de controle de usuários e ex-usuários. Revista de Saúde Pública, 45(6), 1168-1175 .         [ Links ]

Cunha, P. J., Bechara, A., Andrade, A. G., & Nicastri, S. (2010). Decision-making deficits linked to real-life social dysfunction in crack cocaine-dependent individuals. The American Journal on Addictions, 20(1), 78-86.         [ Links ]

Cunha, P. J., Nicastri, S., Gomes, L. P., Moino, R. M. & Peluso, M. A. (2004). Alterações neuropsicológicas em dependentes de cocaína/crack internados: dados preliminares. Revista Brasileira de Psiquiatria, 26(2), 103-106.         [ Links ]

Duailibi, L. B., Ribeiro, M. & Laranjeira, R. (2008). Profile of cocaine and crack users in Brazil. Cadernos de Saúde Publica, 24(4), 545-557.         [ Links ]

European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction [EMCDDA] (2009). State of the drugs problem in Europe: Cocaine and crack cocaine – Prevalence and patterns of use. Disponível em: <//www.emcdda.europa.eu/html.cfm/index91354EN.html> Acessado em : < 28 de dezembro de 2011>.

Ferreira Filho, O., Turchi, M., Laranjeira, R. & Castelo, A. (2003). Perfil sociodemográfico e de padrões de uso entre dependentes de cocaína hospitalizados. Revista de Saúde Pública 37(6), 751-759.         [ Links ]

Ferri, C. P., Gossop, M., Rabe-Hesketh, S., & Laranjeira, R. R. (2002). Differences in factors associated with first treatment entry and treatment re-entry among cocaine users. Addiction, 97(7), 825-832.         [ Links ]

Fischer, B., Rehm, J., Patra, J., Kalousek, K., Haydon, E., Tyndall, M. & El-Guebaly, N. (2006). Crack across Canada: comparing crack users and crack non-users in a Canadian multi-city cohort of illicit opioid users. Addiction, 101(12), 1760–1770.

Fischer, B., Rudzinski, K., Ivsins, A., Gallupe, O., Patra, J. & Krajden, M. (2010). Social, health and drug use characteristics of primary crack users in three mid-sized communities in British Columbia, Canada. Drugs: Education, Prevention and Policy, 17(4), 333-353.         [ Links ]

Hoffman, J. A., Klein, H., Eber, M. & Crosby, H. (2000). Frequency and intensity of crack use as predictors of women's involvement in HIV-related sexual risk behaviors. Drug and Alcohol Dependence, 58(3), 227-236.         [ Links ]

Hough, M., McSweeney, T. & Turnbull, P. (2001). Drugs and crime: what are the links? evidence to the home affairs committee inquiry into drug policy. London, UK: Drugscope.         [ Links ]

Inciardi, J., Surrat, H., Pechansky, F., Kessler, F., Von Diemen, L., Silva, E. & Martin, S. (2006). Changing patterns of cocaine use and HIV risks in the south of Brazil. Journal of Psychoactive Drugs, 38(3), 305-310.         [ Links ]

Kessler, F. & Pechansky, F. (2008). Uma visão psiquiátrica sobre o fenômeno do crack na atualidade. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, 30(2), 96-98.         [ Links ]

Kuhns, J. B., Wilson, D. B., Maguire, E. R., Ainsworth, S. A. & Clodfelter, T. A. (2009). A meta-analysis of marijuana, cocaine and opiate toxicology study findings among homicide victims. Addiction, 104(7), 1122-1131.         [ Links ]

Laranjeira, R., Jungerman, F. & Dunn, J. (2003). Drogas: maconha, cocaína e crack. São Paulo: Editora Contexto.         [ Links ]

Lejuez, C. W., Bornovalova, M. A., Daughters, S. B. & Curtin, J. J. (2005). Differences in impulsivity and sexual risk behavior among inner-city crack/cocaine users and heroin users. Drug and Alcohol Dependence, 77(2), 169-175.         [ Links ]

Lejuez, C. W., Bornovalova, M. A., Reynolds, E. K., Daughters, S. B. & Curtin, J. J. (2007). Risk factors in the relationship between gender and crack/cocaine. Experimental and Clinical Psychopharmacology, 15(2), 165-175.         [ Links ]

Mançano, A., Marchiori, E., Zanetti, G., Escuissato, D. L., Duarte, B. C. & Apolinário, L. A. (2008). Complicações pulmonares após uso de crack: achados na tomografia computadorizada de alta resolução do tórax. Jornal Brasileiro de Pneumologia, 34(5), 323-327.         [ Links ]

Mattos, P., Alfano, A. & Araújo, C. (2004). Avaliação neuropsicológica. Em: F. Kapczinski, J. Quevedo, I. Izquierdo, et al. Bases Biológicas dos Transtornos Psiquiátricos. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

McCoy, C. B., Lai, S., Metsch, L. R., Messiah, S. E. & Zhao, W. (2004). Injection drug use and crack cocaine smoking: independent and dual risk behaviors for HIV infection. Annals of Epidemiology, 14(8), 535-542.         [ Links ]

National Institute on Drug Abuse [NIDA] (2009). La cocaína. Disponível em: http://www.drugabuse.gov/es/publicaciones/infofacts/la-cocaina Acessado em: <28 de dezembro de 2011>         [ Links ].

Noto, A. & Galduróz, J. (1999). O uso de drogas psicotrópicas e a prevenção no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, 4(1), 145-151.         [ Links ]

Nutt, D. J., King, L. A. & Phillip, L. D. (2010). Drug harms in the UK: a multicriteria decision analysis. The Lancet, 376(9752), 43-59.         [ Links ]

Oliveira, L. G., Barroso, L. P., Silveira, C. M., Sanchez, Z. V. D., Ponce, J. C., Vaz, L. J. & Nappo, S. A. (2009). Neuropsychological assessment of current and past crack cocaine users. Substance Use & Misuse, 44(13), 1941-1957.         [ Links ]

Oliveira, L. & Nappo, S. (2008a). Crack na cidade de São Paulo: acessibilidade, estratégias de mercado e formas de uso. Revista de Psiquiatria Clínica, 35(6), 212-218.         [ Links ]

Oliveira, L. & Nappo, S. (2008b). Caracterização da cultura de crack na cidade de São Paulo: padrão de uso controlado. Revista de Saúde Pública, 42(4), 664-671.         [ Links ]

Organização Mundial de Saúde [OMS] (2010) Management of substance abuse: Cocaine. Disponível em: <http://www.who.int/substanceabuse/facts/cocaine/en> Acessado em: < 11 de novembro de 2010>         [ Links ].

Paquette, C., Roy, E., Petit, G. & Boivin, J. F. (2010). Predictors of crack cocaine initiation among Montréal street youth: A first look at the phenomenon. Drug and Alcohol Dependence, 110(1), 85-91.         [ Links ]

Pechansky, F., Kessler, F. H. P., Diemen, L. V., Bumaguin, B., Surrat., H. L. & Inciarti, J. A. (2007). Brazilian female crack users show elevated serum aluminum levels. Revista Brasileira de Psiquiatria, 29(1), 39-42.         [ Links ]

Pulcherio, G., Stolf, A. R., Pettenon, M., Fensterseifer, D. P., & Kessler, F. (2010). Crack: da pedra ao tratamento. Revista da AMRIGS, 54(3): 337-343.         [ Links ]

Ribeiro, L,, Sanchez, Z. & Nappo, S. (2010). Estratégias desenvolvidas por usuários de crack para lidar com os riscos decorrentes do consumo da droga. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 59(3), 210-218.         [ Links ]

Ribeiro, M., Dunn, J., Sesso, R., Dias, A. C. & Laranjeira, R. (2006). Causes of death among crack cocaine users. Revista Brasileira de Psiquiatria, 28(3), 196-202.         [ Links ]

Sanchez, Z., Oliveira, L. & Nappo, S. (2005). Razões para o não uso de drogas ilícitas entre jovens em situação de risco. Revista de Saúde Pública, 39(4), 599-605.         [ Links ]

Schifano, F. & Corkery, J. (2008). Cocaine/crack cocaine consumption, treatment demand, seizures, related offences, prices, average purity levels and deaths in the UK (1990-2004). Journal of Psychopharmacology, 22(1), 71-79.         [ Links ]

Seddon T. (2000). Explaining the drug-crime link: theoretical, policy and research issues. Journal of Social Policy, 29(1), 95-107.         [ Links ]

Seleghim, M. R., Marangoni, S. R., Marcon, S. S. & Oliveira, M. L. F. (2011). Vínculo familiar de usuários de crack atendidos em uma unidade de emergência psiquiátrica. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 19(5), 1163-1170.         [ Links ]

Substance Abuse and Mental Health Services Administration [SAMHSA] (2006). State Treatment Planning Areas: Marijuana, Cocaine & Pain Killers. Disponível em: <http://oas.samhsa.gov/subState2k6/cocaine.htm> Acessado em: < 23 de novembro de 2010>.

Werb, D., Debeck, K., Kerr, T., Li, K., Montaner, J. & Wood, E. (2010). Modelling crack cocaine use trends over 10 years in a Canadian Settin. Drug and Alcohol Review, 29(3), 271-277.         [ Links ]

Yokel, R. A. & McNamara, P. J. (2001). Aluminium toxicokinetics: an updated minireview. Pharmacology & Toxicology, 88(4), 159-167.         [ Links ]

 

 

Endereço para contato
E-mail: marga@pucrs.br

Recebido em agosto de 2012
Aceito em novembro de 2013

 

 

Cristina Beatriz Sayago: Psicóloga, Especialista em Terapia Cognitivo-Comportamental, Mestre em Psicologia (INFAPA – Instituto da Família).
Paola Lucena-Santos: Psicóloga, Doutoranda em Psicologia (Universidade de Coimbra/Portugal), Bolsista de Doutorado Pleno no Exterior (CAPES).
Fernanda Ribeiro: Acadêmica de Psicologia, Auxiliar de Pesquisa (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS).
Marina Balem Yates: Acadêmica de Psicologia, Auxiliar de Pesquisa (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS).
Margareth da Silva Oliveira: Psicóloga, Mestre em Psicologia, Doutora em Ciências da Saúde, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (PUCRS).

Creative Commons License