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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.43-44 Canoas ago. 2014

 

ARTIGOS TEÓRICOS

 

Representações parentais: bases conceituais e instrumento de avaliação

 

Parental representation: conceptual basis and an instrument of assessment

 

 

Paula Casagranda Mesquita; Sílvia Pereira da Cruz Benetti

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RESUMO

O conceito da representação mental tem se tornado um constructo relevante na psicanálise, estando associado a diferentes denominações e definições. Desta forma, o objetivo deste artigo é abordar as bases conceituais do constructo da representação parental, na perspectiva da psicanálise contemporânea, a partir da contribuição da teoria das relações objetais e da teoria do apego. Além disso, buscou-se demonstrar as possibilidades de avaliação sobre as representações mentais, principalmente da representação parental sob a perspectiva da criança, destacando o instrumento MacArthur Story Stem Battery (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Ressalta-se que o entendimento contemporâneo do mundo interno de representações do indivíduo reflete um esquema complexo de transações dialéticas entre as experiências reais, as regras de organização do conhecimento interpessoal e a história pessoal. O MSSB indicou ser um instrumento amplamente utilizado em investigações, com características úteis para o trabalho clínico.

Palavras-chave: Representações parentais, Bases conceituais, Avaliação.


ABSTRACT

The concept of mental representation has become a relevant construct in psychoanalysis and is associated with different definitions. Therefore, the aim of this article is to discuss about the conceptual basis of the parental representation, in the modern psychoanalysis perspective, considering the contribution of the object-relations theory and the attachment theory. Moreover, the possibilities of evaluation of the mental representations – mainly of the parental representation on the child's perspective – using the instrument MacArthur Story Stem Battery (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003) – were evaluated. It is relevant to emphasize that the modern understanding of the inside world of representations of the person reflects a complex scheme of dialectical transactions among the real experiences, the rules of organization of the interpersonal knowledge and the personal history. The MSSB has been quite a useful instrument, with suitable characteristics for the clinical work.

Keywords: Parental representations, Conceptual basis, Evaluation.


 

 

Introdução

As primeiras experiências com os cuidadores na infância, tanto na perspectiva da psicologia do desenvolvimento, quanto da psicologia clínica, são consideradas como fundamentais para o desenvolvimento emocional do indivíduo (Stein, Siefert, Stewartd & Hilsenroth, 2010). Em consequência disso, a compreensão do processo e da dinâmica dos distintos elementos envolvidos na relação criança e cuidador tem recebido grande contribuição de diversas abordagens teóricas, as quais enfatizam tanto elementos comportamentais, no desenvolvimento do vínculo cuidador-criança, quanto intrapsíquicos e cognitivos. Tal é o caso da abordagem da teoria do apego e da psicanálise, bem como da teoria da cognição social. Na teoria do apego, a qualidade do vínculo estabelecido entre a criança e a mãe, bem como a internalização dessas experiências, resultam em modelos internos de funcionamento (Bowlby, 1984/2004), que gradualmente estabelecem estruturas afetivas e cognitivas que influenciarão o comportamento posterior do indivíduo, principalmente na dimensão relacional (Manashko, Besser & Priel, 2009). Já na perspectiva psicanalítica das relações objetais, a ênfase do entendimento se volta para os aspectos intrínsecos associados à representação do objeto. Por fim, a teoria da cognição social prioriza os esquemas ou scripts resultantes das interações (Lukowitsky & Pincus, 2011).

Comum a essas abordagens, porém, está a noção de que as características representacionais das figuras parentais funcionam como modelos que estruturam a maneira como o sujeito vivencia a si próprio e aos demais, como também organizam suas experiências, modulam o afeto e o comportamento e suas relações interpessoais (Waniel, Besser & Priel, 2006). Além disso, influenciam características da personalidade e se associam à manifestação de psicopatologia, já que níveis de sintomatologia são determinados por aspectos qualitativos dessas representações, resultantes de interações em que predominam experiências positivas versus situações de maior vulnerabilidade e risco (Priel, Besser, Waniel, Yonas-Segal & Kuperminc, 2007).

Em função desses aspectos, conforme Lukowitsky e Pincus (2011), o constructo da representação mental tornou-se uma ferramenta de base panteórica, que fornece conhecimentos essenciais para o entendimento dos aspectos intrínsecos ligados à representação do self e dos demais. Especialmente na psicanálise contemporânea, pesquisas sobre o desenvolvimento infantil têm integrado conceitualmente conceitos da teoria da relação objetal e da teoria do apego, oferecendo marcos teóricos importantes para o estudo da personalidade, da psicopatologia e do processo terapêutico.

Com base nesse entendimento, um corpo expressivo de trabalhos, focalizando a identificação de características do processo de desenvolvimento emocional, tem se dirigido para o estudo e compreensão das características das representações mentais de crianças e adolescentes acerca das figuras cuidadoras. O interesse principal desses trabalhos é priorizar a identificação daqueles elementos associados à psicopatologia, visando, portanto, o aprimoramento das intervenções, bem como o desenvolvimento de ações preventivas em saúde mental. Nessa direção, a compreensão dos fatores interpessoais e intrapessoais na construção das representações parentais das crianças, especialmente da representação materna, tornou-se foco de pesquisas, principalmente nas situações de maior vulnerabilidade de desenvolvimento (Priel, Besser, Waniel, Yonas-Segal & Kuperminc, 2007). Diante disso, no âmbito da pesquisa empírica, especialmente na avaliação da representação parental e/ou da representação materna, distintos contextos têm sido investigados, tais como crianças no contexto da adoção (Priel, Kantor & Besser, 2000), crianças institucionalizadas (Pinhel, Torres & Maia, 2009; Sousa & Cruz, 2010), no âmbito da violência doméstica (Stover, Van Horn & Lieberman, 2006) e nos casos de negligência e abuso (Hodges, Steele, Hillman, Henderson & Kaniuk, 2003).

Paralelamente a esse interesse, o próprio avanço dos trabalhos colocou um desafio aos pesquisadores acerca da avaliação e interpretação do constructo. Dessa maneira, verificou-se a necessidade de aprimoramento de instrumentos capazes de investigar as representações mentais acerca das figuras parentais em crianças e adolescentes.

Uma das aproximações resolutivas baseia-se nas técnicas avaliativas que utilizam narrativas infantis sobre as experiências com cuidadores, as quais têm se mostrado como um recurso fértil de investigação das singularidades das representações de crianças e adolescentes acerca das figuras parentais. Observa-se que a partir da idade de 4-5 anos, as crianças comunicam seus modelos representacionais em narrativas válidas e eliciadas por histórias incompletas que funcionam como dispositivos de avaliação de padrões interativos de cuidado e relacionamento familiar (Yoo, Popp & Robinson, 2013).

Um dos instrumentos desenvolvidos com base nesses pressupostos é o MacArthur Story Stem Battery (MSSB, Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Trata-se de um método que utiliza narrativas para estudar áreas que abrangem tanto o desenvolvimento moral quanto a expressividade emocional, o comportamento pró-social, a representação parental, os mecanismos defensivos, a regulação emocional e as estratégias de resolução de conflitos (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Trabalhos investigativos, utilizando-se do MSSB, têm se valido de abordagens oriundas de aportes psicanalíticos e socioconstrutivistas, que resultaram em informações importantes sobre as representações de cuidado e proteção parental e os mecanismos defensivos das crianças frente ao conflito nas relações familiares (Holmberg, Robinson, Corbitt-Price, & Wiener, 2007).

Assim, o objetivo deste artigo é discutir inicialmente as bases conceituais sobre a noção de representação mental com base na contribuição da teoria do apego e das relações objetais. A seguir, apresenta-se o instrumento MacArthur Story Stem Battery (MSSB), como uma técnica de avaliação infantil importante para a investigação das características da representação parental em crianças em situação de maior vulnerabilidade, tais como violência e maus-tratos, adoção e psicopatologia parental.

Bases conceituais: representação mental, teoria das relações de objeto e teoria do apego

O conceito da representação mental tem se tornado, há mais de quatro décadas, um constructo relevante na psicanálise, estando associado a diferentes denominações e definições que abrangem desde a representação do objeto, da representação da palavra ou coisa, da representação do self, até a representação psíquica dos objetos internos e externos (Zanatta & Benetti, 2012, Beres & Joseph, 1970). Na perspectiva da psicanálise contemporânea, trabalhos sobre as representações mentais, especialmente em relação à figura materna têm utilizado, em sua maioria, a contribuição da teoria das relações objetais (Waniel, Priel & Besser, 2006) e da teoria do apego (Stover, Van Horn & Lieberman, 2006).

Na abordagem psicanalítica, a teoria das relações objetais considera que as relações com os objetos primários são internalizadas ou introjetadas formando a base do processo identificatório que regula os estados afetivos internos originados da energia pulsional. As experiências internalizadas do eu com o outro servem como base para a construção de estruturas representacionais complexas, que seriam as representações de objeto, as quais incluem esquemas conscientes e inconscientes de si e do outro, funcionando como modelos através dos quais as experiências afetam o comportamento, os sentimentos e a cognição (Priel et al., 2007).

A teoria psicanalítica das relações de objeto sustenta que é através das relações com os demais que se constituem os blocos fundamentais da vida mental do sujeito. Nessa perspectiva, a ênfase no aspecto diádico e de reciprocidade no desenvolvimento psíquico se contrapõe, de certa forma, à ênfase exclusiva dos elementos pulsionais na estruturação psíquica do sujeito. O termo relacional inclui tanto o espaço interpessoal, abrangendo as interações entre o indivíduo e o mundo social, bem como as relações interpessoais externas, ou seja, o espaço intrapsíquico das próprias relações internas, a autorregulação e a regulação mútua (Sauberman, 2009).

É nessa matriz relacional com os objetos primários, essencialmente a mãe, que se desenvolvem as estruturas psíquicas, as quais se organizam a partir das representações dos objetos primários, principalmente entre as trocas iniciais com a mãe, que são internalizadas como uma representação mental do objeto. Dessa maneira, as experiências com as figuras cuidadoras iniciais são organizadas em modelos internos de funcionamento que, gradualmente, estabelecem estruturas afetivas e cognitivas que influenciarão o comportamento posterior (Manashko, Besser & Priel, 2009). As falhas na capacidade de representação objetal teriam efeitos prejudiciais no desenvolvimento psicológico da criança.

Por sua vez, a contribuição da Teoria do Apego fundamenta-se no entendimento de que a interação criança-figura cuidadora desenvolve-se tanto como resultado da capacidade parental de proporcionar a satisfação das necessidades da criança, como também da própria busca da criança por uma proximidade física com a mãe, que acontece nos primeiros anos de vida e permanece durante toda a primeira infância (Bowlby, 1984/2009). A Teoria do Apego enfatiza os comportamentos infantis na perspectiva de eliciar, desenvolver e manter o vínculo com as figuras cuidadoras. É somente por essa proximidade que a criança poderá construir uma representação da figura de apego que estabelecerá uma base segura para que ela possa explorar o ambiente. Dessa forma, o apego é compreendido como um conjunto de comportamentos do bebê que visam à proximidade com a mãe e à exploração do ambiente. Além disso, o apego também é influenciado pelo modo como os pais, ou substitutos deles, se comportam, cuidam, confortam e protegem a criança, bem como os seus afetos e sentimentos com relação a ela (Bowlby, 1984/2009; Ainsworth, 1969). Entretanto, a teoria do apego também destaca o aspecto representacional dos vínculos iniciais, descrevendo como as interações estabelecidas com os cuidadores irão determinar os modelos internos de funcionamento, associados aos estilos de apego. Isso porque, com base nos padrões de apego, o sujeito constrói modelos internos do mundo e de si próprio neste mundo (Bowlby, 1984/2004, p. 254).

Ainsworth (1969) explicita que neste laço afetivo que caracteriza o apego há uma ligação recíproca entre a interação da criança e o comportamento materno. Sendo assim, a mãe influencia a forma e a intensidade do apego, quando é presente ou ausente, quando aceita ou rechaça a criança, ou mesmo quando ocorrem situações de dificuldades no estabelecimento do vínculo e a consequente manifestação de transtornos do apego. As interações no contexto familiar e a qualidade do vínculo mãe-bebê formam a base para a construção das representações que afetam a forma como a criança interpreta e interage com a realidade, no desenvolvimento da sua autoestima, da autoconfiança e da sua sociabilidade. Assim, o aspecto representacional dos vínculos iniciais, com base nas interações estabelecidas com os cuidadores, irão determinar os modelos internos de funcionamento, associados aos estilos de apego (Custódio & Cruz, 2008).

Independente da especificidade de cada constructo, Priel et al., (2007) destacam que o aspecto representacional dessas interações ou a representação das figuras parentais integra elementos tanto da teoria das relações de objeto quanto da teoria do apego. Refletindo sobre os posicionamentos da teoria das relações de objeto e da teoria do apego, Priel, Kantor e Besser (2000) consideram que em ambos os modelos a representação de objeto é que media as respostas da criança e as expectativas dos outros. Assim, as representações acerca das figuras parentais são compreendidas como evidências das experiências interpessoais reais e de fatores intrapsíquicos, sendo justamente os aspectos do desenvolvimento do apego, como da representação objetal o foco de investigações sobre o papel dessas internalizações precoces no desenvolvimento do comportamento, da cognição e do afeto do indivíduo ao longo da vida. Evidencia-se, por conseguinte, que o entendimento contemporâneo do mundo interno de representações do indivíduo reflete um esquema complexo de transações dialéticas entre as experiências reais, as regras de organização do conhecimento interpessoal e a história pessoal.

Representação parental: estratégias de avaliação

Conforme Emde, Wolf e Oppenheim, (2003), a tradição do trabalho clínico com crianças demonstrou que, ao produzir narrativas, a criança manifesta características fundamentais de seu mundo interno, incluindo temas emocionais, conflitos e defesas frente às situações de vida. Desta forma, as crianças desenvolvem representações mentais que codificam as experiências de si mesmas e de seus pais, que depois influenciam as histórias construídas por elas (Clyman, 2003). Em termos conceituais, as representações narrativas podem ser consideradas como multideterminadas, mas são essencialmente influenciadas pelas percepções das crianças de suas experiências de vida. Por conseguinte, os fundamentos teóricos das abordagens psicanalíticas das relações objetais e da teoria do apego, bem como do cognitivismo, têm proporcionado elementos interpretativos fundamentais para a avaliação e o entendimento dessas representações.

Um dos incentivos ao desenvolvimento da MSSB foi o desenvolvimento de uma aproximação sistemática do estudo do mundo emocional das crianças. A técnica narrativa do MSSB iniciou-se com base no trabalho do grupo de pesquisa organizado por Bretherton, Emde, Openheimn e Wolf e, alicerçados no trabalho já realizado com o Attachment Story Completion Task (ASCT), que avaliava o apego; assim, introduziram novas lâminas com temáticas relacionais e pró-sociais. Inicialmente, a técnica consistia de 30 narrativas, que são inícios de histórias, chamadas de histórias-tronco. Hoje, porém, trabalha-se com um total de 15, sendo que duas não são avaliadas e têm a função de introduzir e finalizar a aplicação. Embora se tenha elaborado essas 15 histórias, elas são aplicadas a partir do tema que se quer estudar. Além disso, as crianças utilizam uma família de bonecas para desenvolver e finalizar as histórias (Hodges, Steele, Hillman & Henderson, 2003).

O instrumento (MSSB) tem sido amplamente utilizado na investigação das representações parentais, porque permite capturar a continuidade das reações das crianças através de histórias em que elas enfrentam um dilema que revela aspectos de seu mundo interno (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Além das representações parentais, a avaliação das narrativas tem potencial para acompanhar as mudanças nas representações internas, quando a criança é colocada em um novo ambiente, principalmente no caso de crianças adotadas (Hodges et al., 2003). Também é possível avaliar o estilo e a coerência da narrativa, os conflitos familiares, a culpa, os medos, a ansiedade, a regulação emocional, as reações diante da não satisfação dos desejos, temas orais, entre outros (Warren, 2003). Segundo o autor, a abordagem do jogo narrativo tornou-se útil para estudar crianças em risco e com transtornos identificados, pois fornece uma medida obtida diretamente da criança sobre temas e representações em relação às experiências de relacionamentos interpessoais.

O MSSB foi avaliado em seus modos de padronização em várias pesquisas (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003; Robinson & Mantz-Simmons, 2003). Um dos trabalhos que investigava as representações parentais e as defesas em crianças maltratadas constatou que o instrumento têm modos padronizados e confiáveis para a utilização clínica e para a aplicação na pesquisa, mostrando-se adequado para a investigação de características particulares dos grupos (Hodges et al., 2003). Atualmente, o interesse dos pesquisadores tem se deslocado para o nível representacional, utilizando as narrativas como forma válida e eficaz para captar a qualidade dos modelos internos dinâmicos nas crianças (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003; Maia, Ferreira, Veríssimo, Santos & Shin, 2008).

No âmbito da violência doméstica, Stover, Van Horn e Lieberman (2006) investigaram as representações maternas em um grupo de 40 crianças com idades entre 2 e 5 anos, com história de violência doméstica, utilizando-se do instrumento MSSB (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003). Meninos de pais divorciados e que haviam presenciado violência entre o casal tinham uma representação materna mais negativa, principalmente nos casos em que as visitas dos pais eram menos frequentes. Para os autores, esses meninos percebiam a falta de contato com o pai como culpa da mãe. Já as meninas representavam as mães de forma mais positiva. Esse resultado nas crianças do sexo masculino sugere uma diferença importante na relação da mãe com o filho, comparando-se à filha. Mães que identificaram características de seu ex-parceiro em seu filho podem, sem saber, moldar o comportamento e as crenças sobre a criança, resultando em representações maternas mais negativas nos meninos.

Ao examinar as representações parentais, ainda no âmbito dos maus-tratos, Stronach, Toth, Rogosch, Oshri, Manly e Cicchetti, (2011) investigaram 92 crianças em idade pré-escolar, vítimas de maus-tratos, e 31 crianças sem experiência de maus-tratos. A avaliação das narrativas do MSSB (Emde, Wolf & Oppenheim, 2003) permitiu identificar que as crianças vítimas de maus-tratos tiveram menores índices de apego seguro e maiores índices de apego desorganizado do que as crianças não maltratadas. As representações parentais identificaram figuras negativas e as representações do self das crianças associavam-se a imagens grandiosas e poderosas de si mesmas.

Sousa e Cruz (2010), numa investigação com crianças portuguesas, analisaram o modo como as experiências de maus-tratos estão associadas ao processo de construção dos modelos representacionais das figuras parentais de crianças institucionalizadas. Participaram deste estudo 22 crianças em idade escolar e institucionalizadas. Como instrumento foram utilizadas as narrativas no MSSB, comparadas com narrativas de crianças não institucionalizadas. As primeiras representavam as figuras parentais como menos sensíveis e responsivas às suas necessidades e desejos, e menor atribuição de um final positivo às narrativas.

Em todas as situações de vulnerabilidade retratadas nos estudos acima citados, as características das representações das figuras parentais indicavam que as vivências traumáticas estavam associadas tanto a conteúdos negativos acerca do cuidado e proteção parental quanto à própria representação de si mesmo. Em geral, os personagens dos pais são identificados como passíveis de rejeição ou agressão, refletindo suas representações e suas estratégias de regulamentação da emoção (Clyman, 2003).

Ao contrário, estudos com crianças sem indicadores clínicos e em contextos de pouca vulnerabilidade indicam que as temáticas das narrativas infantis apresentam figuras parentais benevolentes, atentas e disponíveis à criança quando esta enfrenta uma situação de conflito e angústia. Por exemplo, Von Klitzing, Kelsay, Emde, Robert, Robinson e Schmitz, (2000), num estudo longitudinal que contou com a participação de 652 crianças gêmeas, constatou que as narrativas no MSSB caracterizadas por temas agressivos e/ou incoerentes associavam-se a problemas de comportamento infantil. Ao contrário, crianças sem diagnóstico clínico produziram narrativas com temáticas positivas, resolutivas e figuras parentais colaboradoras.

Em síntese, os estudos até o momento indicam que a avaliação das representações das figuras parentais, através de instrumentos narrativos como o MSSB, oferecem dados importantes para o trabalho clínico e também para o desenvolvimento de intervenções que promovam práticas parentais positivas e afetivas. No geral, crianças em situação de vulnerabilidade e risco para problemas de saúde mental apresentam narrativas em que os temas de perigo, agressão desregulada e uma acentuada ênfase no papel infantil para a resolução de problemas (poder da criança) distinguem esse grupo das crianças que não apresentam risco.

Para além do aspecto avaliativo das representações de crianças, o MSSB também foi utilizado para identificar o resultado de intervenções clínicas dirigidas para grupos de risco. Toth, Maughan, Manly, Spagnola, e Cicchetti (2002), por exemplo, investigaram a eficácia de dois modelos de intervenção com crianças vítimas de maus-tratos. Esses modelos tinham como objetivo modificar as representações internas das crianças em relação ao self e aos demais, sendo que o primeiro consistia em psicoterapia parental e da criança e o segundo baseava-se em visitas domiciliares. As crianças que apresentaram maior modificação das representações de si e dos demais, avaliadas pelo MSSB, foram aquelas que se submeteram à psicoterapia. Outro estudo comparativo foi desenvolvido por Robinson, Herot, Haynes, e Mantz-Simmons (2000), que acompanharam durante os 2 primeiros anos crianças de mães em situação economicamente vulnerável e com poucos recursos emocionais. As avaliações identificaram maior regulação emocional e diminuição da agressão nas crianças que participaram do acompanhamento que incluía visitas domiciliares.

 

Considerações finais

Este artigo abordou, sob o ponto de vista teórico, a contribuição de abordagens psicanalíticas contemporâneas que se utilizam de conceitos da teoria das relações objetais e da teoria do apego para embasar a compreensão dos aspectos intrínsecos e comportamentais ligados às representações parentais em crianças e adolescentes. Da mesma forma, foi considerada a importância de técnicas de avaliação do constructo representação mental, o MSSB, instrumento que avalia aspectos representacionais, a expressividade emocional, o comportamento pró-social, os mecanismos defensivos, a regulação emocional e as estratégias de resolução de conflitos.

Dessa forma, o instrumento tem se mostrado uma ferramenta importante para a pesquisa e para o atendimento clínico de crianças e adolescentes em inúmeros contextos. Espera-se, portanto, ter contribuído para a discussão e sugestão de práticas em saúde mental que beneficiem populações de interesse.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: paula.cmesquita@yahoo.com.br

Recebido em julho de 2013
Aceito em outubro de 2013

 

 

Paula Casagranda Mesquita: Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica. Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
Sílvia Pereira da Cruz Benetti: Doutora em Psicologia. Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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