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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.45 Canoas dez. 2014

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

A percepção dos usuários sobre a abordagem de álcool e outras drogas na atenção primária à saúde

 

The users' perception on the approach of alcohol and other drugs in primary health care

 

 

Maristela Person CardosoI,II; Rafaela Dall AgnolII; Carina TaccoliniII; Karen TansiniII; André VieiraIII; Alice HirdesII,III

I CAPS AD Reviver de Caxias do Sul, RS
II Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul
III Universidade Luterana do Brasil

Endereço para contato

 

 


RESUMO

O uso e abuso de álcool e drogas configuram-se como um significativo problema de saúde pública. A Reforma Psiquiátrica preconiza a substituição do sistema manicomial por redes de cuidado extra-hospitalar. Nesse âmbito, a Atenção Primária à Saúde constitui-se em um espaço privilegiado para ações de intervenção no território. A pesquisa teve como objetivo conhecer a percepção dos usuários sobre as abordagens dos profissionais da Atenção Primária. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada com usuários de álcool e outras drogas em atendimento em Unidades Básicas de Saúde de Caxias do Sul, RS. Os resultados evidenciam que o acolhimento promovido pelos agentes comunitários de saúde e a proximidade geográfica da unidade de saúde propiciam o vínculo; o preconceito da sociedade frente ao uso de drogas é considerado um fator que favorece a continuidade da adicção; a influência do contexto social do usuário configura-se como um fator de risco; a identificação e o fortalecimento de redes sociais saudáveis atuam como fatores de proteção.

Palavras-chave: Atenção primária à saúde, Saúde mental, Usuários de drogas.


ABSTRACT

The addiction on alcohol and drugs is an important public health problem. The Psychiatric Reform proposes the replacement of the asylum system for non-hospital care networks. In this context, the primary health care is a privileged place for interventions in the territory. The research aimed to know the perception of users on the approaches of professionals in the Primary Health System. This is a qualitative research carried out with alcohol and drug users receiving care at Basic Health Units from Caxias do Sul, RS. The results show that welcoming promoted by community of health workers and the geographical proximity with the health unit facilitates building attachment; the prejudice of society about drug users was considered a factor that favors the continuity of addiction; the social context of drug users appears as a risk factor; identifying and strengthening healthy social networks is a protective factor.

Keywords: Primary health care, Mental care, Drug addiction.


 

 

Introdução

O consumo de substâncias psicoativas (SPAs) vem se expandindo mundialmente. As SPAs interferem não somente em nível biológico, mas em todo o contexto biopsicossocial dos indivíduos que as consomem, tornando-os vulneráveis às situações de risco (Cardoso, Santos, Thomas, & Siqueira, 2013), e acarretando graves consequências, principalmente, para adolescentes e adulto-jovens (Nader et al., 2013), as quais aparecem nas várias esferas da vida cotidiana, comprometendo vínculos afetivos, trabalho, trânsito, família, saúde e contribuindo na disseminação do vírus HIV (Campos, Albuquerque, Almeida, & Santos, 2013).

Historicamente, a questão do uso abusivo e da dependência de álcool e outras drogas têm sido abordada por uma ótica predominantemente médico-psiquiátrica. Nessa perspectiva, as implicações psicossociais são pouco consideradas na compreensão global do problema. O abuso de substâncias vem sendo associado à criminalidade e práticas antissociais (Brasil, 2003). A complexidade do problema e o número de pessoas envolvidas com drogas faz com que o abuso e a dependência de substâncias psicoativas sejam uma importante questão de Saúde Pública. O consumo de álcool e outras drogas constituiu-se em um desafio para as equipes de Estratégia da Saúde da Família (ESF), particularmente no que tange às questões do cuidado integral da pessoa e da promoção da saúde (Amarante, Lepre, Gomes, Pereira, & Dutra, 2011). As diretrizes básicas do Sistema Único de Saúde (SUS) têm garantido aos usuários dos serviços de saúde mental e aos dependentes de álcool e outras drogas a universalidade de acesso e o direito à assistência, bem como a integralidade no cuidado, com ênfase na reabilitação e reinserção social (Larentis & Maggi, 2012). Cumpre-se, assim, a Lei 10.216 de abril de 2002. (Brasil, 2002).

A Política Nacional do Ministério da Saúde para a Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas preconiza que definir políticas públicas para a promoção de mudanças nos diferentes níveis envolvidos requer: mudanças individuais de comportamento; mudança de crenças e normas sociais; ações de informação e prevenção; diversificação e ampliação da oferta de serviços assistenciais; adoção de políticas de promoção da saúde que contemplem ações estruturais nas áreas de educação, saúde e de acesso a bens e serviços. Essa política contempla também a discussão das leis criminais de drogas e a implementação de dispositivos legais para a equidade do acesso dos usuários às ações de prevenção, tratamento e redução de danos; a revisão da lei que permite demissão por justa causa por uso de drogas por funcionários; a discussão do impedimento da testagem de uso de drogas, realizada de forma compulsória em empresas e escolas públicas (Brasil, 2004).

A abstinência não pode ser o único objetivo a ser alcançado (Brasil, 2004). Quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos que necessariamente lidar com as singularidades e com as diferentes possibilidades de escolha. Deve-se acolher sem julgar o que cada usuário necessita, sempre levando em conta o seu desejo e participação. Nesse sentido, a abordagem de Redução de Danos (RD) pode ser uma alternativa. A estratégia de RD reconhece cada usuário na sua singularidade, reflete sobre alternativas que estão voltadas não só para a abstinência, mas para a defesa de sua vida. Assim, cuidar significa aumentar o grau de liberdade e corresponsabilidade dos sujeitos (Brasil, 2004). Isso implica a construção de vínculo com os profissionais que também passam a ser corresponsáveis pela vida daquele usuário.

Este estudo integra o Programa de Educação para o Trabalho em Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (PET-Saúde Mental) do Ministério da Saúde, desenvolvido em parceria com a Universidade de Caxias do Sul, RS. O Pet Saúde Mental prevê a qualificação de acadêmicos de diferentes áreas do conhecimento para as necessidades do SUS, assim como a iniciação em pesquisa. A ampliação das intervenções direcionadas ao álcool e outras drogas no território perpassa necessariamente pela capacitação de recursos humanos, no qual sejam levados em consideração os princípios e pressupostos da reforma psiquiátrica brasileira. Assim, as Unidades Básicas de Saúde, em razão de estarem situadas na comunidade, constituem-se em um recurso essencial para a promoção, prevenção, tratamento e reabilitação de usuários de substâncias psicoativas.

Cardoso et al., (2013) afirmam que para uma maior efetividade das ações de atenção à saúde é necessário compreender e valorizar o conhecimento dos sujeitos a respeito de suas condutas comportamentais, valores culturais e informações que possam servir de proteção e prevenção ao consumo de drogas. Desse modo, este estudo teve por objetivo conhecer a percepção dos usuários sobre as ações desenvolvidas pelos profissionais da Atenção Primária à Saúde, com vistas à identificação das ações consideradas relevantes na abordagem do uso e abuso de álcool, crack e outras drogas.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com usuários de álcool e outras drogas, vinculados às Unidades de Saúde da Família de Caxias do Sul, RS. A rede de saúde mental do município iniciou-se em 1995, com a criação do ambulatório CAIS Mental, que atende todas as faixas etárias e transtornos mentais, incluindo transtornos associados ao consumo de álcool e outras drogas. Atualmente a rede de serviços contempla 4 CAPS: 1 CAPS infantil, 1 CAPS para atendimento de portadores de transtornos mentais graves e 2 CAPS ad 24h, além de 3 Serviços de Residenciais Terapêuticos. O CAPS álcool e outras drogas Reviver presta atendimento 24 horas a usuários de álcool e outras drogas e dispõe de leitos para desintoxicação. O serviço localiza-se geograficamente em uma região de vulnerabilidade psicossocial e constituiu-se como um dos primeiros CAPS três turnos do Estado.

O atendimento em saúde mental nas UBSs teve início em 2007, a partir do apoio matricial em saúde mental a cinco UBS da zona urbana. Em 2010 originou-se uma Equipe Volante de Apoio Matricial central na Secretaria Municipal de Saúde. Assim, com vistas a responder os objetivos da pesquisa, foram entrevistados 10 usuários de álcool e outras drogas em atendimento pelas equipes da ESF e que recebem supervisão e apoio de equipes matriciais. Foram elencados como critérios de inclusão dos usuários das UBS: dependentes de álcool ou outras drogas, acompanhados pelas equipes da ESF no território, com supervisão e apoio de equipes matriciais. Foram selecionadas as pastas dos usuários em acompanhamento sistemático pelas equipes da ESF nas 4 Unidades de Saúde do município que dispunham do apoio matricial em saúde mental (UBS Mariani, UBS Fátima Alta, UBS Fátima Baixa, UBS Vila Ipê) e dessas sorteadas os 10 participantes do estudo. Os sujeitos do estudo eram todos homens adultos, com idade compreendida entre 25 e 60 anos.

Para a coleta dos dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas. A entrevista semiestruturada consiste em um roteiro de entrevista que objetiva apreender o ponto de vista dos atores sociais do objeto da pesquisa. Este contém poucas questões e é um instrumento utilizado para orientar uma "conversa com finalidade". Deve permitir o aprofundamento da comunicação, é um guia a facilitar a entrevista. Não se pode constituir numa amarra, deve ser o facilitador da abertura. (Minayo, 2010). As entrevistas foram realizadas nas dependências das UBSs e nas residências dos sujeitos da pesquisa de forma individualizada, estando presente apenas o entrevistado e o entrevistador. Foram realizadas no período compreendido entre outubro e dezembro de de 2011. Foi realizada a adequabilidade do instrumento de pesquisa semiestruturado, através da aplicação de projeto piloto. O roteiro contemplou questões como o atendimento e suporte dos profissionais das Unidades de saúde da Família nas questões relacionadas ao uso de drogas; as situações que levaram ao uso de drogas pela primeira vez; as situações que favorecem a manutenção do uso; os fatores protetores que impedem a utilização de SPAs nos diferentes domínios da vida dos sujeitos.

Para a análise dos dados foi utilizada a análise de conteúdo na modalidade temática, proposto por Minayo (2010): a ordenação, a classificação e a análise final dos dados. A ordenação dos dados inclui: a transcrição das entrevistas; a releitura do material; a organização dos relatos em determinada ordem, de acordo com a proposta analítica. Essa etapa é um processo hermenêutico, em que o pesquisador se apropria do material empírico.

A classificação de dados é constituída pela etapa de leitura horizontal e exaustiva dos textos e pela leitura transversal. A leitura horizontal e exaustiva dos textos é determinada pela leitura de cada entrevista. Nesta fase, cada frase, palavras, adjetivos e sentido geral do texto são observados. Esse exercício inicial, denominado "leitura flutuante", permite a apreensão das estruturas de relevância dos sujeitos, as ideias centrais sobre o tema. (Minayo, 2014, p.358). Esse exercício resultará na construção das categorias empírícas, que posteriormente, serão confrontadas com as categorias analíticas, previamente estabelecidas no referencial teórico.

O segundo momento da classificação dos dados é o da leitura transversal de cada subconjunto e do conjunto em sua totalidade. Nessa fase, com base na identificação das estruturas de relevância, são realizados movimentos classificatórios que permitem agrupar o que foi exposto por temas. Posteriormente, o investigador realiza um movimento que busca agrupar em unidades de sentido, interpretando o que foi abordado como relevante e representativo para o grupo investigado (Minayo, 2014). Na análise final, são realizados movimentos que vão dos dados empíricos para o referencial teórico e vice-versa.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade de Caxias do Sul, sob o número 184/11. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) conforme determina as diretrizes e normas reguladoras de pesquisa envolvendo seres humanos estabelecidas pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 1996). Nesse momento, foram realizados os procedimentos para esclarecimentos sobre a pesquisa. Aos participantes, foi assegurado o direito de aceitar ou se recusar a participar da pesquisa, bem como o de se desvincular do estudo em qualquer momento de sua realização. Os dados das entrevistas ficarão sob a guarda dos pesquisadores durante cinco anos e após serão destruídos. Os participantes serão identificados por letras e números, de forma a preservar o anonimato (E1, E2, E3...).

 

Discussão

Na análise dos dados, após extraídas as estruturas de relevância das falas dos entrevistados, foram identificadas cinco áreas temáticas: a contribuição das Unidades de Saúde da Família na atenção à usuários de álcool e outras drogas; os fatores de risco ao uso e abuso de drogas; o uso de SPAs como busca de alívio para o sofrimento e as dificuldades; a percepção sobre os prejuízos decorrentes do uso; os fatores que auxiliam na recuperação do usuário.

As Unidades de Saúde da Família na atenção a usuários de álcool e outras drogas

Esta área temática aborda as ações realizadas pelos profissionais nas Unidades Básicas de Saúde que tem implantada a Estratégia Saúde da Família. As entrevistas evidenciam o importante papel dos Agentes Comunitários de Saúde nas demandas desses usuários, assim como a facilidade de acesso a esses profissionais. Dentre as lacunas relatadas pelos participantes está a necessidade de trabalhar a promoção e prevenção do uso e abuso de álcool e outras drogas dirigidas à adolescentes e o incremento de atividades de grupo.

Em relação às Unidades de Saúde da Família, os entrevistados referiram sentirem-se acolhidos pelo serviço e possuírem facilidade de acesso aos trabalhos realizados pelos Agentes Comunitárias de Saúde que visitam suas famílias e por outros profissionais. Evidencia-se a proximidade entre sujeito e equipe, com formação de vínculo e aporte em caso de necessidade. "A UBS para mim foi uma benção, porque eles estão toda hora por aí, sabendo se tu estas doente, como está. Principalmente, a [agente comunitária de saúde] está sempre por aí" (E1). "Tem uma nota 10. Eu vejo da parte deles ali da UBS [...] Eles estão ajudando ao máximo o pessoal aqui do [bairro], quem está procurando" (E2).

O Agente Comunitário de Saúde (ACS) está mais próximo dos usuários de drogas e de todo o seu contexto, além de ser a primeira pessoa de referência para a assistência à saúde (Barros & Pillon, 2007). Nesse sentido, representa papel fundamental nas práticas, descentralizando o foco da doença, característico do saber do médico e da instituição de saúde. Possui, também, facilidade de acesso e formação de vínculo com o usuário, por já estar inserido em um ambiente natural, contribuindo ainda na elaboração de projetos terapêuticos desenvolvidos na comunidade, além de promover o cuidado e a afetividade com os moradores (Delfini, Sato, Antoneli, & Guimarães, 2009). Assim, a ação dos agentes em conjunto com outros profissionais, torna-se uma arma poderosa na promoção da saúde mental (Lancetti, 2008). O vínculo é construído a partir da necessidade de apoio do usuário e da escuta e postura acolhedora dos profissionais. Ele atua como um elemento terapêutico e é um recurso que qualifica o trabalho em saúde (Campos, 2003). "[...] a UBS, eu não tenho o que reclamar, sempre dando ajuda para nós [...] se preciso conversar sempre estão dispostos a ouvir". (E10).

O Agente Comunitário de Saúde (ACS) está mais próximo dos usuários de drogas e de todo o seu contexto, além de ser a primeira pessoa de referência para a assistência à saúde (Barros & Pillon, 2007). Nesse sentido, representa papel fundamental nas práticas, descentralizando o foco da doença, característico do saber do médico e da instituição de saúde. Possui, também, facilidade de acesso e formação de vínculo com o usuário, por já estar inserido em um ambiente natural, contribuindo ainda na elaboração de projetos terapêuticos desenvolvidos na comunidade, além de promover o cuidado e a afetividade com os moradores (Delfini, Sato, Antoneli, & Guimarães, 2009). Assim, a ação dos agentes em conjunto com outros profissionais, torna-se uma arma poderosa na promoção da saúde mental (Lancetti, 2008). O vínculo é construído a partir da necessidade de apoio do usuário e da escuta e postura acolhedora dos profissionais. Ele atua como um elemento terapêutico e é um recurso que qualifica o trabalho em saúde (Campos, 2003). "[...] a UBS, eu não tenho o que reclamar, sempre dando ajuda para nós [...] se preciso conversar sempre estão dispostos a ouvir". (E10).

Os usuários relataram a necessidade de se ter, nas Unidades de Saúde e nos Centros Comunitários, projetos de lazer e intervenção, como oficinas e palestras que incluam a temática da drogadição e que sejam atrativos à sua inserção no serviço. As trocas de experiências nos grupos estimulam a iniciar ou a dar continuidade ao tratamento: "[...]. porque no postinho ali eu acho que nunca foi feito nada sobre droga ou coisa assim [...] agora nós estamos usando o postinho para fazer uma pesquisa para uma professora [...] a pesquisa é também sobre droga: o lado bom e o lado ruim do bairro, o lado saúde e o lado que não é saúde" (E4). "Mas, eu ainda acho que a UBS tem pouco trabalho nessa parte com os adolescentes". (E7).

O trabalho com grupos em Unidades de Saúde é um recurso significativo à obtenção da promoção de saúde, é um espaço de atenção comprometido com a cidadania e a solidariedade e uma estrutura onde as pessoas interagem e criam vínculos. Os grupos propiciam mudanças nas atitudes de cuidado com a saúde, partindo da realidade dos pacientes e priorizando o homem em suas potencialidades. A partilha de experiências contribui para o processo de motivação ao tratamento, pela interação e diálogo do coletivo (Silveira & Ribeiro, 2005). "Eles estão com um projeto bom [...]. Claro, palestra serve como autoajuda. Tu vais ali, tu vais porque tu queres, ninguém vai te obrigar a ir. E tem um papel fundamental, passar informação. [...] eu vou para conversar porque é bom tu dividir experiências. Alguma coisa tu vais aproveitar do que os caras falam [...]". (E5).

As entrevistas evidenciam que os Agentes Comunitários de Saúde são reconhecidos pelos usuários no trabalho desenvolvido nas Unidades de Saúde e no atendimento. Os agentes e o trabalho realizado nos grupos representam um papel importante para promoção e prevenção de saúde. Os grupos, priorizando a troca de vivências e a busca de alternativas ao uso e ou abuso de SPAs, são um recurso importante para a manutenção da abstinência e superação do uso de substâncias psicoativas. O vínculo, o acolhimento e as relações dialógicas com os usuários são aspectos importantes nas práticas em saúde.

Os fatores de risco ao uso e abuso de drogas

Os adolescentes constituem o grupo de maior vulnerabilidade ao uso de drogas, por estarem em fase de transição corporal e psíquica, bem como por apresentarem necessidade de viver novas experiências e sensações (Brusamarello, Sureki, Bomile, Roehrs, & Maftum, 2008). Os jovens se deparam com a curiosidade em vivenciar o que acontece ao utilizar determinada substância, não considerando os efeitos da mesma, e esquecendo a possibilidade da adicção desde o primeiro contato com a droga. Pode-se agravar este processo pelo sentimento de onipotência que é característico dessa faixa etária, ou até mesmo pela pressão que os adolescentes sentem dos pais e da sociedade, exigindo que estabeleçam um projeto de vida, no intuito de torná-los independentes de proteção e cuidados alheios.

Mesmo apresentando conhecimentos sobre os malefícios das drogas ilícitas, o desejo de experimentar o novo ou ainda a coragem ou estratégias de enfrentá-los supera os problemas decorrentes do uso abusivo de substâncias. Os sujeitos utilizam as substâncias psicoativas por estas apresentarem valores e simbolismos específicos que variam de acordo com o contexto histórico e cultural, em setores como o religioso/místico, social, econômico, medicinal, psicológico, climatológico, militar, e na busca do prazer (Lessa, 2008). "É uma coisa que todo mundo, quando chegou o crack em Caxias em 96 – 97, para ver como é. Mais é curiosidade" (E2); "Curiosidade. Porque o ser humano eu acho que ele gosta de coisas novas, sendo boas ou sendo ruins...". (E4). As entrevistas evidenciam que a curiosidade emerge como um elemento importante na decisão de escolha dos sujeitos na experimentação das drogas, independente dos riscos envolvidos.

Em busca da autoafirmação, muitas vezes o sujeito precisa sentir que é aceito pelo seu círculo de convívio, tendendo a aceitar as ofertas de SPAs de amigos. Apesar da liberdade de escolha, a influência desses está entre os fatores relatados com mais frequência nos motivos que levaram os sujeitos a tornarem-se usuários de drogas ilícitas. "Eu saí do exército, daí me entrosei com a turma. Mas, quando fui para o exército, lá eu via os caras [...]. Mas é o seguinte: dá uma bandinha ali, saiu da porta para fora... o colega encontra ali, vamos lá, eu pago uma para ti. Aí vamos então. É aquele detalhe. Vai lá tomar uma, já encontra outro. Quando vê está bêbado" (E6). "Eu acho que foi mais para impressionar meus amigos. Andava com meus amigos e eles usavam [...] e porque tu ficas no meio ali, daí se tu não usas é careta [...] e um pouco também para se misturar. Porque se tu usas, está sendo igual a eles e eu queria ser igual aos meus amigos" (E7).

Dentre os fatores encontrados para preencher a lacuna existente entre a escolha racional e as necessidades e desejos individuais, encontra-se o contexto social em que o sujeito convive. Estar em contato com pessoas adictas na comunidade ou região em que vive poderá servir de incentivo e/ou continuidade na utilização de SPAs: "Esse bairro aqui... se o cara quiser parar de fumar... é ir embora daqui, senão, é terrível esse bairro [...] esse bairro aqui é perseguido pela droga" (E5). "No tempo de piá no colégio, via a piazada fumando no colégio e daí comecei". (E4). As estratégias de prevenção são classificadas de acordo com a população que pretendem alcançar: estratégias de prevenção universal, prevenção seletiva e prevenção indicada. Essas estratégias se diferenciam de acordo com a possibilidade de o público-alvo estar mais ou menos inserido em grupos de risco; ou seja, pela associação de características individuais, grupais, do ambiente ou da probabilidade de ocorrência de um transtorno ou doença em algum momento de suas vidas (Campos & Figlie, 2011).

As substâncias psicoativas foram e são consumidas em diversas culturas com finalidades terapêuticas, religiosas e, devido ao caráter hedonista presente na história da humanidade, como modo de obtenção de prazer (Firmino & Queiroz, 2009). Um fator menos ressaltado dentre os entrevistados, foi a diversão: "O que me levou a usar foi festa" (E10), onde parte dos jovens buscam uma maneira de tornarem-se mais "soltos" em locais com aglomerados de pessoas. O hedonismo parece explicar o consumo dessas substâncias que ajudam a dançar a noite inteira, inibindo o medo e aumentando a sociabilidade (Calado, 2007).

As análises efetuadas permitem inferir que o contexto (um membro da família que faz uso de drogas lícitas ou ilícitas, amigos, o território geográfico) exerce influência para o uso e abuso de SPAs. Nesse sentido, deve-se considerar a liberdade de escolha dos sujeitos, mediante informação, para que esses tenham clareza sobre a predisposição inerente aos riscos ao uso abusivo de drogas. As ações de promoção e prevenção devem cotejar os diferentes aspectos da vida do indivíduo, além de reforçar políticas públicas de inclusão e fortalecimento da advocacy. Esse termo "refere-se à busca de apoio para os direitos de uma pessoa ou uma de causa" (Campos & Figlie, 2011, p.492).

O uso da droga como busca de alívio para o sofrimento e as dificuldades

Nesta área temática, percebe-se que os usuários entrevistados relatam o uso de drogas como uma forma de lidar com o sofrimento psíquico (frustrações, perdas) comuns da vida, assim como utilizam a mesma em busca de tranquilidade em meio à dificuldade encontrada em relação a estes enfrentamentos. A dependência de drogas é um estado mental e, muitas vezes físico, que resulta da interação entre um organismo vivo e uma droga psicoativa e sempre inclui uma compulsão de usar a droga para experimentar seu efeito psíquico ou evitar o desconforto provocado pela sua ausência (Rosenstock & Neves, 2010) "[...] acabava usando porque aquilo deixava a gente mais alegre. A gente se soltava mais". (E7).

Considera-se sofrimento psíquico, um conjunto de mal-estares e dificuldades de conviver com a multiplicidade contraditória de significados da vida relacionada às dificuldades de operar planos, definir o sentido da vida. Ou ainda relacionada ao sentimento de impotência e de vazio (Amarante et al., 2011), espaço fértil e produtivo para o uso abusivo ou dependente de drogas. "Acho que alguns distúrbios da pessoa mesmo, que leva a pessoa a usar e se esconder um pouco. Um pouco não. Acho que bastante. Se esconder bastante atrás da droga. [...] Alguma coisa na família, numa relação no dia a dia [...]" (E2). "Minha mãe é tudo, mas o meu pai sempre foi muito ausente, e agora ele tenta correr atrás, só que agora não tem, não precisa mais [...] tudo o que ele fez quando eu era menor, isso resultou bastante, sabe?" (E4). Dentre os fatores de risco no domínio familiar estão: o uso de álcool e drogas pelos pais ou irmãos; o isolamento social entre os membros da família; o padrão familiar disfuncional; a falta de figura paterna; a falta de envolvimento dos pais dos pais na vida dos filhos; ausência de regras ou ambiguidade em relação ao uso de substâncias (Brasil, 2004; Campos & Figlie, 2011).

A ambivalência da experiência do dependente, entre o prazer e o sofrimento, a aventura e a autodestruição, devem ser consideradas no contexto de uma sociedade que oferece uma multiplicidade de drogas. Um mundo onde o uso de drogas parece ser experimentado como uma prática de busca de gozo ou alívio da tensão individual gerada pelo stress e pela depressão de uma sociedade hiperativa. (Fonseca & Lemos, 2011). "A gente toma para ficar tontinho [...] aí fica bom, ameniza. Interessante isso aí. Que ameniza a pessoa, te tranquiliza, te deixa numa boa" (E6). A droga cria uma espécie de muro, que barra momentaneamente aquilo que é insuportável para o sujeito. Nesse sentido, parece ser uma boa opção para o enfrentamento do que é considerado insuportável (Firmino & Queiroz, 2009).

O homem lança mão de veículos inebriantes para modificar e/ou alterar sua percepção e humor, tendo como consequência, na maioria das vezes, uma alteração do comportamento (Lessa, 2008). O uso de drogas é visto como solução para alívio dos problemas existentes no âmbito familiar e do trabalho, constituindo-se em uma banalização do uso de SPAs, sabendo-se que seus efeitos são prejudiciais à saúde, à família, ao trabalho e à sociedade como um todo (Martins, Zaitone, Francisco, Spindola, & Marta, 2009).

O sucesso tem sido buscado com frequência por meio do uso de substâncias químicas que podem causar dependência. Viagra para o sucesso sexual, anabolizantes para o sucesso esportivo, antidepressivo para a vitória sobre a ansiedade, a preocupação, a culpa ou a raiva, vistas como manifestações do insucesso emocional. Em um mundo mediado pela comunicação de massa e eletrônica, a experiência dos indivíduos parece marcada por uma busca constante de sensações e mudanças. A própria exclusão, porém, é um móvel a partir do qual se constrói uma identidade. Os territórios da marginalização são também lugares identitários (Fonseca & Lemos, 2011).

Os relatos dos entrevistados evidenciam que o uso das drogas é uma estratégia que os usuários lançam mão, no momento da dor, do sofrimento, da incapacidade de enfrentar as duras e frequentes frustrações e perdas que a vida apresenta todos os dias. Não podemos ignorar o papel da droga em uma sociedade, onde sofrer, sentir dor, não pode fazer parte da vida daqueles que buscam constantemente estar no controle. As equipes de saúde podem ter um papel fundamental estando atentas para as demandas dos usuários, respeitando as escolhas de cada um, se apropriando da temática álcool e outras drogas, conhecendo a sua realidade, a sua história de vida, e deste modo criando um vínculo que pode ser a ponte necessária para o auxílio tão desejado no momento do sofrimento.

A percepção dos prejuízos provenientes do uso de drogas

Esta área temática aborda a percepção dos usuários de drogas psicoativas sobre os prejuízos que o uso das mesmas representa não somente para a sua vida, mas também para a família, as pessoas próximas e a comunidade em geral. São chamados de domínios, pelos profissionais de prevenção, os diferentes aspectos da vida de uma pessoa: relacionamento familiar, relacionamento entre amigos, ambiente escolar, comunitário, de trabalho e o próprio indivíduo. Cabe ressaltar que os achados de pesquisas atuais não permitem mais considerar as questões da prevenção apenas por um foco. Atualmente, a tendência dos programas de prevenção é atuar de maneira multifatorial, sendo possível que, além do individual, outros domínios também recebam a atenção preventiva (família, escola, comunidade, trabalho, entidades religiosas, de lazer, de saúde) (Campos & Figlie, 2011).

Um fator prejudicial percebido dentre os entrevistados são as perdas causadas pelo uso de drogas, implicando em mudanças drásticas no estilo e qualidade de vida dos usuários. Dentre as implicações que a necessidade de manter o uso e/ou abuso traz para as suas vidas, encontram-se diversos tipos de infrações, como por exemplo, o roubo: "Depois do crack, daí sim até roubar, já fui preso. Isso aí leva o cara em um monte de coisas ruins". (E3). Outra fala traz a questão da perda dos vínculos afetivos: "eu não ganhei nada, só perdi [...] eu tinha perdido tudo, tudo, meus filhos, minha mulher [...] só quem viveu isso daí, sabe como é... a gente não tem paz, não tem tranquilidade no coração, em lugar nenhum". (E1). Estudos nacionais e internacionais têm demonstrado a ocorrência significativa de mortes e doenças associadas ao uso indevido de álcool. Relatos de violência doméstica, lesões corporais, tentativas de homicídios consumados, assim como outras situações de conflitos interpessoais, são cada vez mais evidentes em contextos nos quais o álcool se faz presente (Brasil, 2004).

A necessidade da venda de bens como solução encontrada para a compra das substâncias psicoativas está entre os prejuízos relatados pelos entrevistados: "[...] leva a desgraça, o que eu tinha eu vendi tudo... moto, casa, roupa, o que eu tinha vendi tudo..." (E9). A fala mostra que o desejo de manter a adicção é intenso e a única alternativa encontrada para tal, no momento de exacerbação da vontade de consumi-la, é vender o que tem por um preço normalmente inferior ao que vale, ou até mesmo trocar pela droga.

Os principais fatores que reforçam a exclusão social dos usuários de drogas: a associação do uso à delinquência, sem critérios mínimos de avaliação; o estigma atribuído aos usuários, promovendo a segregação social; a inclusão do tráfico como geração de renda de populações mais empobrecidas; a utilização de mão de obra de jovens; a ilicitude do uso que impede a participação social dos usuários; o tratamento legal de forma igualitária a todos os segmentos da "cadeia organizacional do mundo das drogas", desigual em termos de penalização e alternativas de intervenção (Brasil, 2004). "Experiência que tem é que todo mundo sabe, o cara só faz coisas ruins, o que não presta" (E5). "Eu tenho vontade de cheirar cocaína de novo e "loló". Mas eu lembro o que eu fui e o que eu sou hoje, e que isso não vale à pena" (E7). Quando em estado de lucidez da consciência, o sujeito (re) pensa as suas escolhas e o seu comportamento no mundo das drogas, bem como as possibilidades que a abstinência pode lhes proporcionar.

O preconceito da sociedade, também se configura como uma perda ocasionada pelo uso de drogas. Este é um fator agravante para a continuidade do uso e ou abuso. O receio do estigma caracteriza-se, muitas vezes, como uma barreira para a procura por tratamento. A sociedade ainda estigmatiza os usuários de drogas, dirigindo a eles um olhar de desprezo, como se estes não tivessem mais o direito à vida e a convivência nos mesmos locais que os não usuários. As falas evidenciam que o tratamento e a (re) inserção dos usuários de drogas psicoativas é difícil em razão de sentirem-se "intrusos" e marginalizados perante a sociedade. "[...] alguém rouba e tu passou naquela rua e não foi tu. E aí, como é que vai ser? É a palavra de um viciado contra a palavra de um trabalhador [...] Quem vai perder é o viciado [...] e depois se morrer, ninguém vai sentir falta. Porque se for para a polícia, esse daí é só mais um e deu." (E1); "[...] o fulano de tal lá é ex-presidiário, fulano de tal usa droga até morrer, fulano de tal é isso, é aquilo, daí caí minha casa é 90, 30 dias numa empresa [...]". (E10).

As falas anteriores trazem o estigma a que usuários estão sujeitos, como a responsabilização prévia por furtos e o preconceito duplo dirigido às pessoas, quando na condição de usuários e ex-detentos. Essa situação deixa uma margem limitada de possibilidades de reinserção social, contribuindo tanto para a continuidade do uso, como para a prática de delitos, corroborando um círculo vicioso. Esses resultados corroboram que o desemprego ou subempregos e a discriminação de qualquer espécie são fatores de risco no ambiente comunitário e político (Campos & Figlie, 2011). A violação dos Direitos Humanos e dos Direitos de Cidadania tem sido uma prática constante em nossa realidade e os fatores que contribuem para essa situação são muitos e de várias ordens. Ela expressa, em grande medida, o grau de violência de nossas relações sociais e o nível de intolerância da sociedade em conviver democraticamente com as diferenças (Brasil, 2001).

Os fatores motivadores para a redução do consumo

Esta área temática aborda os fatores que auxiliam na recuperação do usuário de álcool e outras drogas, dentre os quais, a importância dos laços afetivos, a obtenção e manutenção de novas redes sociais e a reconquista da independência. A rede social representa os vínculos existentes na vida do ser humano, tanto os advindos de laços sanguíneos quanto os adquiridos ao longo da existência, como amigos e conhecidos (Souza & Kantorski, 2009). Através desses, se dá o apoio social, termo que define sentimentos e valores transmitidos ao próximo, gerando confiança e afeto (Pinho, Oliveira, & Almeida, 2008; Souza & Kantorski, 2009).

A recuperação dos usuários de álcool e outras drogas depende de diversos fatores, os quais podem vir a facilitar e garantir a permanência no tratamento. A reabilitação psicossocial procura proporcionar ao usuário autonomia para sua reestruturação individual, de modo a auxiliar na sua reinserção social (Lussi, Pereira, & Junior, 2006). Assim, no que diz respeito ao tratamento, os profissionais devem refletir sobre o contexto em que o usuário está inserido, considerando a influência da rede social nos diferentes momentos da abordagem, ou seja, tanto na descoberta da dependência, quanto no processo de reabilitação, na busca da abstinência ou na escolha em reduzir os danos (Souza, Kantorski, & Vasters, 2011).

Estudos mostram que redes sociais positivas que proveem suporte e apoio à reabilitação do paciente, representam um fator protetor à recaída e abandono do tratamento, assim como, contribuem para a abstinência (Garmendina, Alvarado, Montenegro, & Pino, 2008; Souza et al., 2011). As entrevistas evidenciam que a família atua como um importante fator motivador protetor para a redução e ou abstinência do uso de drogas lícitas e ilícitas. "Minha família em primeiro lugar. Agora eu estou conquistando um pouco meus familiares, de mãe, irmão, que não queriam nem me ver pintado de ouro" (E1). "Pelo meu filho, resolvi começar a parar. E também por esse susto que eu levei de ser ameaçada" (E7). Percebe-se, nas falas dos entrevistados, que não somente o fato de contar com o apoio familiar, mas também a reparação das relações afetivas representa um fator motivador para permanecer em abstinência. A iminência da morte, mediante ameaças pelo não pagamento das drogas, também apareceu como um fator que motiva o usuário a repensar o uso.

No cultivo das redes sociais, novos ambientes podem vir a proporcionar experiências saudáveis que auxiliam na reabilitação, como igrejas e a prática da religiosidade (Souza et al., 2011). Via de regra os usuários mantém o hábito de lazer ao dirigir-se a bares ou clubes que os deixam suscetíveis à recidiva do uso, a igreja apresenta-se como uma alternativa de manutenção do convívio social, além de fomentar o desenvolvimento de valores. "Não sou muito religioso, nada, mas o que me ajudou também um pouco foi muito a Bíblia, a igreja. O que me fortaleceu muito foi isso, a fé" (E1). "[...] o remédio para eu poder sair dessa vida foi só a Palavra de Deus, mesmo" (E2). Pesquisa realizada com usuários de crack, vinculados a oficinas de espiritualidade conclui que a espiritualidade exerce um poder agregador, promove o cuidado integral, fortalece os mecanismos de enfrentamento e potencializa as práticas de promoção da saúde (Backes et al., 2012).

A partir das falas dos entrevistados, observamos que a espiritualidade estimula a esperança dos usuários. O apego a uma prática saudável e o fortalecimento individual por meio da fé permitem novas interações sociais e reforçam o suporte social, possibilitando ao usuário, através de uma crença, a força necessária para permanecer afastado do uso de drogas lícitas ou ilícitas. "Não dá para deixar de ter fé. Porque, eu agora o que eu puder falar de Deus, de 10 em 10 minutos eu falo" (E5). De outro lado, a rejeição a valores espirituais ou religiosos constitui-se como um fator de risco no domínio individual (Campos & Figlie, 2011). Entretanto, estudo realizado com acadêmicos de Enfermagem objetivando investigar o uso de álcool e a espiritualidade concluiu que a espiritualidade pode não atuar como um fator protetor. O estudo sugere que outras variáveis podem ser preditoras ao uso e abuso de álcool (Pillon, Santos, Gonçalves, & Araújo, 2011). Esse resultado corrobora que diferentes domínios exercem influência para o uso e abuso de substâncias e necessitam ser contextualizados em uma perspectiva integrada.

Outro fator importante na recuperação de usuários de SPAs, é a garantia das necessidades básicas do ser humano através de políticas públicas. A presença destas possibilita o favorecimento das redes sociais (Souza et al., 2011). Entre as necessidades básicas encontra-se o trabalho e o rendimento financeiro do indivíduo. A existência de renda, que permite a sustentação econômica, os investimentos em si e na família, a qualidade de vida, a prática de atividades de lazer foram citados pelos usuários como fatores que subsidiam os objetivos de abstinência e reabilitação. "[...] dinheiro para ir para a praia, dinheiro para ir ao mercado comprar o que eu gosto de comer, ter um bom emprego o que está difícil por causa da minha folha corrida que está péssima". (E10).

As entrevistas evidenciam que o uso de drogas e o abandono do tratamento têm como consequência as recaídas e, na presença dessas, manter a frequência ou justificar as faltas no trabalho representam dificuldades para a inserção no mercado de trabalho formal. Isso, muitas vezes, resulta em demissão ou permanência breve em diversos empregos, percebendo-se muito comumente, a prática de trabalho informal, o que gera baixa renda. Sem renda mensal ou abaixo das necessidades, o usuário fica propenso a situações de vulnerabilidade social, o que muitas vezes torna-se um obstáculo para a abstinência.

Com base nas evidências obtidas, observa-se que o rendimento monetário, através da substituição de gastos com as consequências advindas da dependência pela aquisição de condições de vida dignas e a obtenção de qualidade de vida, reduzem a suscetibilidade à recaídas. As entrevistas evidenciam a importância de identificação e fortalecimento das redes sociais saudáveis, bem como a reconquista das que se dissiparam ao longo da manutenção da adicção como uma forma de incentivar a permanência no tratamento e a abstinência.

 

Considerações finais

O uso de substâncias psicoativas apresenta-se como um processo complexo, em razão dos diferentes domínios da vida dos indivíduos que podem estar envolvidos, sendo considerado assim, um problema multifatorial. Os dados evidenciam que o entorno geográfico e as redes sociais dos indivíduos podem se constituir como fatores de risco ou de proteção. Essas redes podem favorecer aos indivíduos manter-se no uso de drogas ou podem oferecer recursos para o indivíduo integrar-se à vida social.

A família e a prática da espiritualidade, incluindo o ambiente na qual ela se dá, como também a expectativa de reaver a independência, através da obtenção de renda e permanência em vínculo empregatício, são referidos como fatores que auxiliam na sustentação do tratamento e na abstinência. Tais recursos devem ser explorados pelos profissionais nos projetos terapêuticos singulares, tanto no tratamento como na reabilitação psicossocial.

As entrevistas evidenciam que o uso da droga é uma estratégia de esquiva do sofrimento psíquico, desencadeado por relações familiares conflituosas e como busca de alívio para o sofrimento e as dificuldades. Entretanto, tal fuga potencializa o estigma dos usuários pelos próprios familiares, pela comunidade, além do autoestigma. Nesse sentido, é papel das equipes de saúde estar preparadas, mediante o estabelecimento do vínculo e de escuta qualificada, despida de preconceito, para a abordagem à família e ao usuário. Assim, consideramos a importância da capacitação para os profissionais da APS, haja vista, o território ser por excelência o local para intervenções de promoção, prevenção e tratamento ao uso ou abuso de substâncias psicoativas.

Pode-se depreender que as ações realizadas pela ESF são relevantes para a recuperação e proteção da saúde de pessoas acometidas por essa realidade. Percebese o reconhecimento por parte dos usuários, que o serviço prestado pelas Unidades Básicas, sobretudo dos Agentes Comunitários de Saúde, propicia a aproximação dos usuários do tratamento e a formação de vínculo por meio de visitas domiciliares, grupos e pela prática do acolhimento. Em razão dos Agentes Comunitários de Saúde atuarem na "linha de frente" devem ser previstas capacitações para esse grupo, considerando que muitos não tem subsídios teórico-práticos para lidar com situações que envolvem o uso de substâncias psicoativas.

Uma limitação do estudo diz respeito às entrevistas terem sido realizadas somente com usuários vinculados à Estratégia Saúde da Família, com apoio e supervisão de equipes matriciais. Nessas unidades de saúde, em regra, é contemplada atenção integral pelos profissionais. Possivelmente em outro cenário, como o das Unidades Básicas de Saúde tradicionais, os resultados seriam menos promissores no que tange a abordagem de usuários de substâncias psicoativas.

 

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Endereço para contato
E-mail: alicehirdes@gmail.com

Recebido em abril de 2015
Aceito em agosto de 2015

 

 

Maristela Person Cardoso – Enfermeira do CAPS AD Reviver de Caxias do Sul, RS. Preceptora do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas.
Rafaela Dall Agnol – Acadêmica de Farmácia. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul, RS.
Carina Taccolini – Enfermeira. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul, RS.
Karen Tansini – Enfermeira. Residente em Vigilância em Saúde pela Escola de Saúde Pública de Porto Alegre, RS. Bolsista do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul, RS.
André Vieira – Psicólogo. Doutor em Psicologia do Desenvolvimento. Professor da Universidade Luterana do Brasil.
Alice Hirdes – Enfermeira. Doutora em Psicologia Social. Tutora do Pet Saúde Mental Álcool e Drogas da Universidade de Caxias do Sul, RS. Professora da Universidade Luterana do Brasil.

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