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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.47-48 Canoas dez. 2015

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

O psicodiagnóstico no trabalho em equipe multiprofissional em unidade de internação psiquiátrica de crianças e adolescentes em hospital geral

 

Psychological assessment: its role in the multidisciplinary team in a Children's and Adolescents' Psychiatric Unit of a general hospital

 

 

Juliana Unis CastanI; Nilve JungesI; Fernanda Rohrsetzer CunegattoII

I Hospital de Clínicas de Porto Alegre
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

Endereço para contato

 

 


RESUMO

O psicodiagnóstico, ferramenta de uso exclusivo do psicólogo, possibilita o acesso a características emocionais e aspectos cognitivos do paciente de forma relativamente breve e consistente. Mostra-se um recurso importante para auxílio diagnóstico e planejamento terapêutico no hospital geral. Diante disso, realizou-se um levantamento de psicodiagnósticos executados pelo Serviço de Psicologia no ano de 2015, solicitados pela equipe da Psiquiatria da Infância e Adolescência de um hospital geral universitário, a fim de descrever a demanda da psicologia frente à equipe multiprofissional e suscitar questões sobre esse processo. Os resultados apontam para heterogeneidade de transtornos específicos e escassez de instrumentos de avaliação de personalidade validados para essa população. Conclui-se sobre a importância do psicodiagnóstico para auxílio na elaboração do Plano de Tratamento Singular e para acompanhamento sistemático de doenças que tendem a ser crônicas.

Palavras-chave: Psicodiagnóstico, Internação psiquiátrica, Infância e adolescência.


ABSTRACT

Through psychological assessment, psychologists are able to evaluate emotional and cognitive features in a relative small amount of time. It is a valuable tool to help multidisciplinary assistant team in formulating a diagnosis and planning treatment. This article reveals the demand of the Psychology Service of a university general hospital considering the needs of the Children and Adolescents Psychiatric Unit. The results show a variety of diagnosis and the shortage of psychological tools and tests for this specific age. The conclusion highlights the importance of the psychological assessment as a tool for writing the Individualized Treatment Plan as well as to keep track of illnesses that tend to be chronic.

Keywords: Psychological assessment, Children and Adolescents Psychiatric Unit, Brazil.


 

 

Introdução

O psicodiagnóstico, ferramenta de uso exclusivo do psicólogo, é um procedimento sistemático para obtenção de amostra de comportamento que permite o acesso a aspectos do funcionamento cognitivo e emocional do indivíduo de forma relativamente rápida e padronizada e considerando determinados padrões da população em questão (Stenzel, Paranhos & Ferreira, 2012). Segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2003), a Avaliação Psicológica é um procedimento técnico-científico realizado através de técnicas e instrumentos validados, com o intuito de coletar dados que tragam informações sobre os fenômenos psicológicos, compreendidos como resultantes da relação do sujeito com a sociedade. Dessa forma, essa avaliação permite um conhecimento das características do indivíduo, considerando não só suas dificuldades, mas também os recursos que dispõe para lidar com conflitos e situações adversas.

Há três finalidades básicas para avaliação psicológica: diagnóstico, avaliação de tratamento e meio de comunicação (Stenzel et al., 2012). Com o objetivo de diagnóstico, esta avaliação permite explicar processos e funcionamento mentais que se traduzem em comportamentos e atitudes que, muitas vezes, o indivíduo não tem acesso conscientemente, não conseguindo, desta forma, verbalizar. Com a finalidade de avaliação de tratamento, os resultados padronizados permitem que se tenha noção sobre progresso no tratamento, assim como evolução da doença. A terceira finalidade, meio de comunicação, refere-se tanto ao paciente, que por vezes não consegue verbalizar sobre suas angústias e sofrimento, como à equipe multidisciplinar, sendo os achados dos instrumentos, integrados na história de vida passada e atual do indivíduo, uma contribuição exclusiva do psicólogo. Além disso, cabe ressaltar que informações objetivas e quantificáveis são, por vezes, melhor compreendidas e aceitas por outros membros da equipe.

Pensando nestas três finalidades, fica claro o impacto e potencial do psicodiagnóstico na avaliação e tratamento de um indivíduo. Ao se tratar de crianças e adolescentes, há de se ter um cuidado extra visto que são indivíduos em fase de desenvolvimento, com personalidade em formação e significativamente suscetíveis ao meio. Conforme Gauy e Guimarães (2006), a avaliação dessa população é complexa devido a características intrínsecas ao desenvolvimento, além da dificuldade de crianças e adolescentes em expressar e reconhecer suas emoções. Borsa e Muniz (2016) reforçam esta ideia referindo que este período do desenvolvimento, especialmente das crianças, pode limitar a maneira como percebem e lidam com os problemas emocionais, o que deve ser considerado em uma avaliação psicológica.

Diante disso, a avaliação psicológica com crianças e adolescentes mostra-se um processo complexo. São necessários ajustamentos na aplicação dos testes, iniciando pelas instruções que devem adaptar-se a compreensão da criança, passando pelo estabelecimento de um bom rapport, até o envolvimento da criança em um clima de jogo, que torne a avaliação parte de uma situação lúdica (Krug, Bandeira & Trentini, 2016). Além de adaptar a técnica, é necessário lançar um olhar cuidadoso para os resultados, visto que a interpretação dos dados deve considerar as diferentes fases do processo de desenvolvimento e a influência do meio, representado por referências externas, como família, escola e pares. Nesse sentido, ressalta-se a escassez de instrumentos padronizados e validados para essa população como um fator dificultador desse processo (Borsa & Muniz, 2016).

Segundo a resolução 07/2003, do Conselho Federal de Psicologia (CFP, 2003), que versa sobre a elaboração de documentos escritos por psicólogos, o laudo ou relatório psicológico, fruto do psicodiagnóstico, deve atentar para o local, objetivo e forma que se dá o processo de avaliação. Sabe-se que a subjetivação é um processo dinâmico que é influenciado por fontes sociais, econômicas, políticas e históricas, estando atrelado ao tempo e local onde ocorre a avaliação. Nesse sentido, Borsa e Muniz (2016) reiteram a importância de considerarmos o contexto na interpretação dos dados obtidos. Assim, a avaliação no contexto hospitalar tem suas peculiaridades, as quais devem ser integradas na interpretação e integração dos resultados.

Internação psiquiátrica de crianças e adolescentes

Com o advento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, a partir da década de 1970, e a publicação da Lei 10.216 (Brasil, 2001), a qual dispõe sobre os direitos e a proteção da pessoa portadora de transtorno mental, preconiza-se que a internação psiquiátrica em hospital geral seja indicada apenas quando recursos extra-hospitalares mostrarem-se insuficientes, estando associada, portanto, a momentos de crise aguda. A construção de políticas públicas específicas para crianças e adolescentes é recente, de forma que as principais contribuições nesse cenário dão-se através da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (Brasil, 1990) e a Portaria 1.608 (Brasil, 2004) que institui o Fórum Nacional sobre Saúde Mental de Crianças e Adolescentes, a qual busca oferecer subsídios para a criação de novas políticas a fim de qualificar o atendimento a esta população.

Psicodiagnóstico na internação psiquiátrica de crianças e adolescentes

No ambiente hospitalar, o psicodiagnóstico possibilita conhecimento do paciente de forma relativamente breve, consistente e aprofundada, fornecendo subsídios tanto para fins diagnósticos, como também para orientar encaminhamentos e outras intervenções multidisciplinares. Cabe destacar que o psicodiagnóstico neste contexto vai além da busca por uma psicopatologia, buscando elucidar o funcionamento psíquico, através da identificação de forças e fraquezas do funcionamento emocional, entendendo comportamento, crenças e atitudes dos indivíduos (Schneider, Gomes, Lichtenstein & Oliveira, 2014). Nesse sentido, a avaliação psicológica em crianças contribui para auxiliar no planejamento terapêutico considerando características de organização do sujeito, suas facilidades e dificuldades, desejos e necessidades, assim como potenciais e entraves do contexto em que está inserido (Saullo, 2012).

O trabalho em questão tem como objetivo apresentar dados referentes à realização de psicodiagnóstico junto à equipe multidisciplinar em leitos de internação psiquiátrica da infância e adolescência de um hospital geral no ano de 2015. Além disso, busca-se possibilitar uma reflexão sobre os dados apresentados a fim de suscitar questionamentos e repensar a prática nesse cenário.

 

Método

Os dados retratados neste trabalho referem-se seis leitos destinados à infância e adolescência de internação psiquiátrica em hospital geral, sendo quatro leitos para adolescentes e dois para crianças. Trata-se de um hospital escola, integrante da rede hospitais universitários do Ministério da Educação, o qual, além de oferecer serviços assistenciais à comunidade, configura-se como área de ensino e busca promover a realização de pesquisas científicas e tecnológicas.

A internação de crianças e adolescentes na especialidade da psiquiatria dá-se, basicamente, pelo risco de auto e/ou heteroagressão, além de tentativa de suicídio e/ou sofrimento emocional intenso. É indicada quando recursos extra hospitalares mostram-se insuficientes para lidar com as demandas e necessidades daquele indivíduo e sua família. Um responsável, geralmente um familiar, acompanha a criança ou adolescente ao longo do período de internação, sendo este um fator de segurança e conforto emocional para o menor, além de uma possibilidade de observação e intervenção para a equipe assistente, que atua não somente focada na criança/adolescente mas também em seu contexto familiar.

Os dados apresentados neste estudo foram obtidos através do sistema de tecnologia da informação do hospital, em que campos do prontuário do paciente são resgatados e transpostos para uma planilha do programa Excel. Desta forma, foi possível realizar um levantamento do número de avaliações psicológicas realizadas e caracterizá-las de acordo com idade, gênero, tipo de convênio na internação, diagnóstico na alta, além de obter-se o tempo, em dias, entre internação e solicitação de exame de psicodiagnóstico e entre solicitação deste exame e liberação dos resultados no sistema. Neste levantamento foram utilizados os filtros do período de 01/01/2015 a 31/12/2015 e da idade entre 2 anos e 17 anos e 11 meses, sendo estes os balizadores da busca.

O atendimento às crianças e adolescentes internadas em unidade psiquiátrica ocorre de forma multidisciplinar, contando com a participação de profissionais da psiquiatria, psicologia, enfermagem, pedagogia, serviço social, nutrição e educação física. Essas reuniões ocorrem semanalmente e tem a duração de aproximadamente uma hora e meia, sendo que em torno de 45 minutos destinam-se à discussão entre a equipe assistente, enquanto a outra parte desse processo tem a participação do paciente e seus familiares, juntamente com equipe assistente. Através destes encontros, é possível integrar diferentes pontos de vista e percepções do paciente, assim como cada especialidade pode fazer apontamentos e sugestões considerando seu nicho profissional.

Através destas reuniões, elabora-se o Plano Terapêutico Singular – PTS. Segundo a Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde, o PTS é um instrumento de trabalho que possibilita a participação, reinserção social e construção de autonomia para o usuário e seus familiares (Brasil, 2007). Dessa forma, equipe, paciente e familiares identificam facilidades e dificuldades, assim como necessidades e desejos, do indivíduo e sua rede, podendo articular encaminhamentos desde a internação.

Durante o ano de 2015, nesta instituição, o psicodiagnóstico fazia parte do fluxo de atendimento dos pacientes internados, sendo esta a principal contribuição da psicologia nestas equipes. É através do psicodiagnóstico que o profissional da psicologia vai conhecer de forma mais aprofundada o paciente e seu contexto e, assim, contribuir para o diagnóstico e planejamento terapêutico. As avaliações psicológicas são realizadas por estagiários ou alunos de especialização em psicologia, sendo supervisionados por psicóloga contratada do hospital, a qual mantém contato frequente com equipe. Cada encontro com paciente gera material a ser supervisionado e discutido, seja em forma de relato, entrevista dialogada ou levantamento de testes.

Sendo assim, o processo de psicodiagnóstico pode ser descrito da seguinte maneira: ao receber a consultoria, a psicóloga contratada contata o aluno que irá realizar a avaliação. Após discussão com a equipe multiprofissional que acompanha o caso, é feita revisão detalhada do prontuário. De forma conjunta, em supervisão, o caso é discutido e a bateria de testes é selecionada. Apesar de haver uma bateria de testes predeterminada, durante o processo, é possível acrescentar ou retirar instrumentos de acordo com a demanda observada. No primeiro contrato com paciente e familiar, são explicados objetivo e processo do psicodiagnóstico, além de ressaltar limites de confidencialidade, considerando que os resultados que forem relevantes para o tratamento serão compartilhados em equipe. Após consentimento de paciente e resoponsável, é iniciado o processo propriamente dito. Cabe ressaltar que esse processo demanda certa flexibilidade, pois se baseia nas necessidades do paciente, familiares e equipe, assim como pode requerer algumas adaptações por conta da rotina hospitalar.

Inicia-se com entrevista de anamnese com responsáveis pelo paciente, seguido por entrevista clínica ou hora do jogo diagnóstica, dependendo da idade. Então, são aplicados instrumentos psicológicos, com vistas a esclarecer aspectos do funcionamento emocional e cognitivo. De forma geral, é utilizado algum instrumento da escala Wechsler (WISC-IV, WAIS-III ou WASI) para avaliação de aspectos cognitivos. Para questões de personalidade, de acordo com faixa etária, utiliza-se HTP, Rorschach, Pirâmides Coloridas de Pfister-versão infantil e CAT-A. Ao final, realiza-se a integração dos resultados dos instrumentos com observações e dados advindos de entrevistas e hora de jogo, além de informações do prontuário e das discussões em round. Essa integração é traduzida em forma de laudo psicológico, sendo este o produto final da avaliação psicológica, que fica disponível no prontuário eletrônico do paciente. A devolução dos resultados faz parte do processo, sendo realizada em três momentos: para paciente, familiares e equipe.

Tendo em vista este processo, o trabalho em questão apresenta um levantamento dos psicodiagnósticos executados pelo Serviço de Psicologia no ano de 2015, solicitados pela equipe da Psiquiatria da Infância e Adolescência. Cabe ressaltar que, como os resultados aqui apresentados e as discussões feitas são baseadas nos registros e observações dos profissionais, e desenvolvidas dentro das atividades de assistência, a tramitação desta proposta em Comitê de Ética não foi cabível. Entretanto, todos os princípios éticos do sigilo foram respeitados.

 

Resultados

Conforme descrito anteriormente, em 2015, o psicodiagnóstico fazia parte do fluxo de atendimento das crianças e adolescentes internados na psiquiatria, sendo solicitado para todos os que possuíam condições de executá-lo e que não tinham realizado no último ano. As condições resumem-se, basicamente, a ser capaz de comunicar-se com profissional, seja de forma verbal ou não verbal, o que exclui, essencialmente, casos graves de Retardo Mental. Indivíduos que realizaram esta avaliação no período de um ano não a realizam novamente devido a efeitos de aprendizagem e validade dos instrumentos.

Dessa forma, ao longo do ano de 2015, do total de 41 internações na especialidade da Psiquiatria da Infância e Adolescência, o Serviço de Psicologia recebeu 34 solicitações de avaliações. Destas, 32 foram concluídas e liberadas no sistema com êxito, o que corresponde a aproximadamente 94% das solicitações realizadas. Duas solicitações foram canceladas devido à alta hospitalar antes do término da avaliação. Metade das avaliações concluídas era de pacientes internados por convênio SUS, enquanto a outra metade diz respeito a internações através de convênios privados.

Dos pacientes avaliados, quase 60% eram do sexo masculino, enquanto um pouco mais de 40% era do sexo feminino. Com relação à idade, mais da metade tinha entre 13 e 16 anos, sendo que 22% estavam na adolescência inicial (13 e 14 anos) e 39% estavam na adolescência intermediária (15 ou 16 anos). Não foi realizada nenhuma avaliação com indivíduos menores de 7 anos e havia entre 10 e 15% para cada uma das faixas de 7 e 8 anos, 9 e 10 anos, e 11 e 12 anos (Figura 1).

 

 

Com relação ao diagnóstico na alta, foi possível perceber heterogeneidade considerando transtornos específicos. Entretanto, quase metade (47%) das crianças e adolescentes possuía diagnóstico de Transtornos do Humor (F30-F39), sendo 25% na linha do transtorno afetivo bipolar e 22% dentro do espectro das depressões (episódio depressivo grave com sintomas psicóticos, episódio depressivo grave sem sintomas psicóticos, episódio depressivo moderado, transtorno depressivo recorrente). Quase um quinto (19,4%) dos indivíduos receberam diagnóstico na linha da conduta (F90- F98), enquanto 8,3% na linha da ansiedade (F40-48), sendo a mesma porcentagem para transtornos da linha da esquizofrenia (F20-F29). Além destes, em menor quantidade, também havia diagnósticos de transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de cannabis, anorexia nervosa, transtorno de identidade sexual na infância (1 indivíduo cada) e retardo mental moderado (dois pacientes) (Figura 2).

 

 

A média de tempo de internação dos pacientes na Unidade de Psiquiatria da Infância e Adolescência foi de 45 dias, sendo o mínimo de 4 dias e o máximo de 115 dias. Em média, o exame de psicodiagnóstico foi solicitado pela equipe médica na primeira semana de internação do paciente, sendo o resultado liberado no sistema, em média, um mês após a solicitação.

 

Discussão

O psicodiagnóstico no ambiente hospitalar apresenta algumas peculiaridades. O fato de caracterizar-se como um espaço de internação influencia a dinâmica da avaliação psicológica. Nesta experiência, o número de solicitações canceladas frente ao processo desenvolvido não foi significativo, o que possivelmente é um reflexo do trabalho junto à equipe multiprofissional e da participação efetiva da psicologia nos espaços de discussão.

De acordo com os resultados supramencionados, a maioria (em torno de 60%) das crianças e adolescentes avaliados era do sexo masculino. Essa realidade é semelhante em um centro hospitalar em Lisboa, Portugal, como mostrado pelo estudo de Encarnação, Moura, Gomes, e da Silva (2011). Trata-se de um estudo retrospectivo que buscou descrever a população atendida por uma equipe de psiquiatria da infância e adolescência vinculada a um centro hospitalar de Lisboa, entre os anos de 2004 e 2007. Esta pesquisa apontou que pouco menos de 70% dos pacientes eram meninos.

No presente estudo, os resultados mostraram que, em relação a idade, a maior parte das avaliações destinavam-se a pacientes adolescentes na fase inicial e intermediária. Neste período da vida, o sujeito se depara com uma série de conflitos, perdas e conquistas a elaborar. Na fase inicial da adolescência, vivenciam-se as primeiras ressignificações das etapas do desenvolvimento psicossexual experimentadas na infância, tal situação soma-se às mudanças corporais da puberdade que se iniciam na pré-adolescência e convocam o sujeito a elaborar uma série de transformações e redirecionar seus investimentos. Já na fase intermediária da adolescência, as contradições instauradas na fase inicial são experimentadas de forma mais intensa e aprofundada. Nesta fase, o jovem tende a investir em novos objetos de amor e gradualmente abandonar as figuras paternas, neste momento já internalizadas. Esta vivência visa possibilitar a construção da identidade e o reconhecimento de si mesmo enquanto sujeito de desejo, separado dos pais. Assim, espera-se que esta fase, apesar de marcada por sentimentos geradores de medo e angústia, desperte, concomitantemente, esperança e possibilidade de novos investimentos (Macedo, Azevedo & Castan, 2009).

Dessa forma, percebe-se o quanto esta época de mudanças tanto corporais como psíquicas, em que a personalidade está se consolidando, é propícia para o surgimento de conflitos e angústia. Soma-se a isso o contexto e situação de vida individual e familiar, com aspectos de suporte e/ou vulnerabilidades sociais, o que, por vezes, pode agravar questões inerentes ao desenvolvimento. Assim, ainda sem recursos adequadamente desenvolvidos para lidar com angústia, conflitos e sentimentos contraditórios, as crianças e adolescentes podem demonstrar sintomas por vezes incapacitantes ou que coloquem sua vida ou de outros em risco, necessitando internação psiquiátrica.

Diagnóstico psiquiátrico na infância e adolescência é um tema gerador de controvérsias entre profissionais. Assim, questões desenvolvimentais desse período, variáveis contextuais e receio de estigmatização do indivíduo colocam-se como pontos que podem justificar a preocupação dos profissionais em realizar um diagnóstico psiquiátrico nesta fase. Entretanto, quando o diagnóstico psiquiátrico é realizado com responsabilidade e através de exaustiva investigação sobre os diferentes aspectos da vida do sujeito pode associar-se à possibilidade de tratamento adequado e, assim, melhora da condição de vida e bem-estar (D'Abreu, 2012).

No levantamento desta pesquisa, praticamente metade (47%) das crianças e adolescentes possuía diagnóstico de Transtornos do Humor enquanto quase um quinto (19,4%) dos indivíduos receberam diagnóstico na linha da conduta. Em estudo para avaliar incidência dos distúrbios mentais em serviços ambulatoriais de saúde mental do interior do Rio Grande do Sul (RS), realizado entre os anos de 1997 e 2001, foram consultados cinco serviços públicos para crianças e adolescentes. O diagnóstico com maior prevalência foi Reação a estresse grave e Transtornos de ajustamento (F 43), seguido de Transtorno de conduta (F91) (Miranda, Tarasconi & Scortegagna, 2008). Em outro estudo, realizado em um ambulatório de saúde mental de um município no interior do RS, apenas 17,54% das crianças e adolescentes possuíam diagnóstico definido, sendo o diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) correspondente a 75% destes. (Duarte, Santos, Madeira, Lazzari & Lasta, 2015).

Apesar dos três estudos envolverem crianças e adolescentes com questões psiquiátricas em atendimento em insitutições públicas do Rio Grande do Sul, serviços ambulatoriais tendem a atender uma população menos grave do que aquela que necessita de internação psiquiátrica, o que pode auxiliar a explicar a diferença entre os dados. Já o estudo de Encarnação et al. (2011) aponta para uma realidade semelhante à observada no presente estudo, visto que 56% da população atendida tinha diagnóstico psicodinâmico na linha da Depressão. Entretanto, considerando o DSM-IV-TR, 30% possuia diagnóstico de Disordem Emocional e praticamente 25% Transtorno de Conduta e/ou TDAH.

Destaca-se que, para atender aos propósitos da demanda do paciente e da equipe multidisciplinar, é fundamental ir além do diagnóstico nosológico, considerando a compreensão dinâmica do funcionamento do paciente, sua personalidade em formação, história familiar, contexto e situação atual, entre outros. Cunha (2000) identifica a avaliação compreensiva como capaz de discriminar nível de funcionamento da personalidade, possibilitando o reconhecimento de relações entre funções do ego, defesas e capacidade de insight, aspectos importantes na indicação terapêutica.

Cabe ressaltar o cuidado necessário na integração dos resultados e na elaboração de um laudo, considerando as especificidades dessa faixa etária, com suas mudanças e estruturação da identidade. Assim, o laudo deve enfatizar que os resultados do psicodiagnóstico não devem ser vistos de forma cristalizada, destacando sua natureza dinâmica e circunstancial. Considerando este aspecto e a experiência advinda do trabalho com esse público, cabe destacar como um fator dificultador do processo a baixa quantidade de instrumentos de avaliação de personalidade validada para essa população no Brasil (Borsa & Muniz, 2016). Na Alemanha, em pesquisa realizada em 92 clínicas psiquiátricas de internação e ambulatoriais para crianças e adolescentes (BölteAdam-Schwebe, Englert, Schmeck & Poustka, 2000), todas mantém ao menos um inventário ou teste psicológico para auxílio diagnóstico e metade possui bateria invidual como rotina na admissão. Essa realidade reforça a crença nos instrumentos como ferramentas para acesso ao funcionamento emocional e mensuração de habilidades individuais, aspectos essenciais no planejamneto terapêutico.

Assim, ao considerarmos as complexidades e diversidade desta faixa etária, a avaliação da psicologia auxilia o acesso a diferentes campos de interesse do indivíduo, possibilitando a expressão de suas habilidades e desejos. Essas informações servem de subsídio para equipe, paciente, familiares e rede elaborarem o PTS, reorganizando a vida do indivíduo, considerando encaminhamentos em seu contexto. Novamente, o papel da equipe multidisciplinar mostra-se relevante quando os interesses levantados pela psicologia e as habilidades exploradas pela educação física podem ser integrados com a realidade da criança ou adolescente, conforme avaliação do serviço social. Dessa forma, além das medicações e tratamento médico, o paciente e sua família têm suas necessidades abarcadas de forma integral.

Considerando o objetivo principal de uma internação psiquiátrica, a saber, proteção em caso de auto e/ou heteroagressividade, esbatimento dos sintomas e esclarecimento diagnóstico, o psicodiagnóstico mostra seu valor ao possibilitar o acesso a conteúdos latentes de forma relativamente rápida. Entretanto, em um hospital escola, em que a assistência e o ensino se conjugam, os processos se desdobram. Dessa forma, cada intervenção do aluno exige supervisão do material gerado por parte do profissional contratado. Isso possibilita que as necessidades do paciente e familiar sejam atendidas de forma ética, efetiva e competente, ao mesmo tempo em que o aluno desenvolve suas habilidades profissionais. Apesar de um pouco mais prolongado, o tempo para a realização de um psicodiagnóstico em uma internação psiquiátrica em hospital universitário mostrase válido, visto que permite o acesso a diversas facetas do desenvolvimento e da vida do indivíduo.

 

Conclusão

Considerando as mudanças desenvolvimentais e a necessidade de um olhar amplo para o sujeito, o psicodiagnóstico mostra seu valor em uma internação psiquiátrica na especialidade de crianças e adolescentes, ao possibilitar o acesso não só a déficits e dificuldades, mas também a facilidades, interesses e desejos, aspectos que devem ser considerados ao formular uma hipótese do funcionamento emocional do indivíduo assim como na elaboração de um Plano de Tratamento Singular. Além disso, compreendendo a gravidade e possível cronicidade de transtornos mentais de início na infância e adolescência, o psicodiagnóstico tem importante valor no acompanhamento do tratamento, visto que fornece medidas psicométricas, que possibilitam perceber a evolução do quadro e/ou do tratamento ao longo do tempo.

Assim, o psicodiagnóstico configura-se como instrumento que visa assegurar uma avaliação que contemple os diferentes aspectos da vida do indivíduo, relacionando os efeitos e características daquele sujeito de forma ampla e singular. Dessa forma, mostra-se como uma ferramenta fundamental na construção de hipóteses quanto ao funcionamento dinâmico e no planejamento terapêutico, através da contribuição no PTS.

Entretanto, cabe ressaltar que um dificultador desse processo é a escassez de instrumentos validados e disponíveis para a avaliação desse público (Borsa & Muniz, 2016). Assim, a avaliação conta com menos recursos que o desejável para avaliar um período importante e marcante da vida do indivíduo, onde descobertas estão sendo vivenciadas e planos para o futuro traçados. Percebe-se a necessidade de divulgação deste trabalho, para que outros profissionais e instituições da área da saúde possam usufruir do potencial de um exame aprofundado e conciso realizado por psicólogos especializados. Soma-se a isso a escassez de estudos considerando a avaliação psicodiagnóstica no contexto da internação psiquiátrica de crianças e adolescentes, área que deve receber incentivo para pesquisa.

 

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Endereço para contato
E-mail: jcastan@hcpa.edu.br

Recebido em setembro de 2016
Aceito em maio de 2017

 

 

Juliana Unis Castan: Mestre em Rehabilitation Counseling pela University of Maryland, EUA; Psicóloga Contratada do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Nilve Junges: Psicóloga Residente em Saúde Mental; Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Fernanda Rohrsetzer Cunegatto: Estagiária de Psicologia no HCPA; Acadêmica de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

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