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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.47-48 Canoas dez. 2015

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA

 

Reflexões de uma experiência de oficina terapêutica infantil no CAPSIA: os Sonhadores

 

A workshop experience therapy with child at CAPSIA: the Dreamers

 

 

Jéssica Brandt; Fernanda Bender; Ana Luisa Teixeira de MenezesI

I Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC)

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RESUMO

Este trabalho busca apresentar contribuições a partir das reflexões oriundas da experiência interdisciplinar que integrou o estágio do Curso de Psicologia e o projeto de extensão PET – Saúde1 da área da Fisioterapia da Universidade de Santa Cruz do Sul, no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e Adolescência de Santa Cruz do Sul. Este local atende crianças e adolescentes em situações de transtornos e sofrimentos psíquicos. O presente trabalho tem como objetivo apresentar, a partir de um caso, os resultados possíveis através do uso dos sonhos segundo a visão da Teoria Analítica Junguiana como um instrumento para o trabalho em oficinas. Neste sentido, o método se revelou muito positivo, pois percebemos grandes avanços no paciente, já que demonstrou melhoras tanto nas suas relações sociais como também pessoais. Desta forma, o trabalho com os sonhos se mostra como ferramenta riquíssima para intervenção terapêutica no processo de oficina, já que auxilia na busca de saúde psicossocial.

Palavras-chave: Sonho infantil, Criança, Teoria Junguiana.


ABSTRACT

The objective of this paper is to present reflections of interdisciplinary experience that integrated the stage psychology course of UNISC and the extension project PET – Saúde of physiotherapy area on a CAPSIA (Psychosocial Care Center for Children and Adolescents) of Santa Cruz do Sul. It is a health center that serves children and adolescents in situations of disorders and mental suffering. We use dreams, based on Jungian theory, as an intervention method. Here we present a case to demonstrate the positive results of using this method, as we see great advances in the patient, both showing improvements in their social relationships as well as personal. Working with dreams proved to be a very rich tool for therapeutic intervention aiding the child in their psychosocial health-seeking process.

Keywords: Sleep, Child, Children Jungian Theory.


 

 

Introdução

O presente trabalho busca teorizar a experiência de uma oficina terapêutica de sonhos, realizada por profissionais e estudantes de Psicologia e de Fisioterapia em atividades de estágio da graduação e de extensão da UNISC, que tiveram como objetivo contribuir com um método que busque proporcionar uma prática mais humanizada. Este trabalho é fruto das reflexões advindas do encontro interdisiciplinar tanto da Psicologia como da Fisioterapia.

É cada vez mais comum os sonhos aparecerem nos relatos das crianças durante o trabalho terapêutico. Normalmente surgem diante da dificuldade em dormir, por causa dos pesadelos, sem ter algo específico que lhes cause angustia. Todavia, outras crianças justamente sonham com aquilo que lhe causa medo.

Estudar os sonhos possibilita um encontro com o inconsciente, ampliando horizontes do cotidiano do sujeito. Trazer este tema à luz do processo terapêutico é uma maneira de enriquecer o trabalho com crianças. Os sonhos serão analisados com base na concepção Junguiana.

Paralelo aos sonhos, outro material que também é muito utilizado pelas crianças são as histórias infantis, sejam os contos de fada ou mesmo as histórias inventadas pelas crianças ou pelos meios de comunicação através de desenhos animados, músicas e desenhos. Os sonhos e as histórias infantis possuem uma raiz mitológica, e por isso, é tão necessário o conhecimento e estudo sobre os mitos e sobre a raiz arquetípica do pensamento da criança. (Franz, 1981).

Neste artigo iremos, de uma forma introdutória, destacar o campo de linguagem da criança como arquetípico, enquanto um universo simbólico que envolve o conhecimento dos sonhos e expressões do inconsciente, como os que serão destacados no artigo, numa perspectiva dos estudos pautados no inconsciente coletivo. (Jung, 2007).

No CAPSIA, a equipe é multidisciplinar, pois o quadro funcional conta com quatro psicólogos; um fonoaudiólogo; três psiquiatras; um terapeuta ocupacional, que é também coordenador do serviço; um enfermeiro; um técnico de enfermagem; um assistente social; um educador físico; um redutor de danos e um nutricionista. Além da equipe técnica, existe uma equipe de apoio, sendo duas secretárias, uma servente, um vigilante e um motorista. Soma-se a este quadro a presença de estagiários da psicologia, enfermagem, assistência social da Universidade de Santa Cruz do Sul, residentes do hospital Santa Cruz do Sul das áreas da Psicologia e Serviço Social, e, ainda, uma bolsista do PET – Saúde.

No que concerne ao trabalho de oficina terapêutica, esta é uma forma de tratamento oferecido aos pacientes, tendo em vista a maior integração social e familiar, a manifestação de sentimentos e problemas, o desenvolvimento de habilidades corporais, a realização de atividades produtivas, o exercício coletivo da cidadania. Essas oficinas são atividades realizadas em grupo com a presença e orientação de um ou mais profissionais, monitores e/ou estagiários do serviço.

Em 2014, houve a necessidade de se criar uma nova oficina terapêutica, devido à grande demanda de pacientes no serviço. Em vista disto, o grupo surgiu a partir do diálogo entre os distintos trabalhos do Pro – PET e da Universidade de Santa Cruz do Sul, com profissionais da área da psicologia e fisioterapia.

O Grupo dos Sonhadores – nome este dado posteriormente pelos próprios integrantes do grupo – teve como foco as crianças com 7 a 12 anos de idade de ambos os sexos que estavam em tratamento no CAPSIA.

A oficina ocorreu semanalmente com duração de uma hora e trinta minutos. Em todos os encontros, o método utilizado foi o sonho como recurso lúdico-terapêutico, através de desenhos, pinturas, conversas, atividades como recortes e outras brincadeiras e jogos.

Como suporte teórico para a prática nesta oficina, tivemos como apoio o campo da psicologia, que contribui com os conhecimentos de Carl Gustav Jung para compreender os sonhos. Ele foi um psiquiatra e psicoterapeuta suíço que fundou a psicologia analítica. Jung propôs e desenvolveu os conceitos da personalidade extrovertida e introvertida, arquétipos e o inconsciente coletivo. Seu trabalho tem sido influente na psiquiatria e no estudo da religião, literatura e áreas afins (Jung, 2007).

É que os sonhos revelam muito mais do que ocultam. Jung propõe que, se o sonho é um produto psíquico como outro qualquer, então não tem por que supormos que sua natureza e finalidade são diferentes dos outros conteúdos da psique. A partir disto, infere que devemos tratar os sonhos analiticamente "como qualquer outro produto psíquico" (Jung, 2007, p.450).

O sujeito, para Jung, segundo Storr (1974), é quem deve buscar apaziguar seu sofrimento, e por isso, devemos levar em consideração a grande importância que tem o sujeito na busca da sua própria saúde. Portanto, os trabalhadores da saúde irão auxiliar este processo, incentivando-o na busca das resoluções para as suas dificuldades emocionais, já que os psicofármacos são uma resposta aos transtornos e sintomas físicos, não alcançando a questão emocional também presente no sujeito.

Em vista disso, sempre após a confecção de qualquer atividade, no grupo dos Sonhadores, oportunizávamos um momento para as crianças falarem sobre o trabalho desenvolvido na oficina, e assim, irem se conectando ao seu self, buscando, portanto, a sua saúde.

Storr (1974, p.110) nos traz a importância do processo de individuação para a criança e o adolescente e que este é diferente dos adultos: "a tarefa do indivíduo, durante a primeira fase de sua vida, consiste em estabelecer-se no mundo, cortar os vínculos da infância que ligam aos pais, arranjar um parceiro sexual e iniciar uma nova família".

Desta forma, o trabalho com a infância e a adolescência revela-se diferente do com o adulto, pois a criança tem o objetivo de atingir a maturidade e não a individuação (Fordham, 2002). Esta fase inicial se deterá, portanto, no fortalecimento do ego de maneira a poder controlar seu mundo interior e exterior.

Os sonhos também nos fornecem conteúdo do inconsciente coletivo, pois conforme Jung (2000, p.19) explica "os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos". Estes são aqueles encontrados nas figuras simbólicas, nos mitos, contos de fada. Portanto, são utilizados pelo sujeito para auxiliá-lo neste processo de soluções simbólicas, conforme já citado anteriormente.

Fordham (2002) reforça:

Não resta dúvida de que os sonhos têm significados duradouros, revelando de forma clara e espetacular, importantes padrões na vida. Como os temas das brincadeiras, as fantasias e também as lembranças, eles ajudam a esclarecer períodos críticos dos anos de formação do desenvolvimento individual, persistindo e desembocando em características maduras do adulto (Fordham, 2002, p.63).

É importante resgatar os diversos sentidos e conhecimentos que os sonhos tiveram para a humanidade. Inicialmente, os sonhos eram desprezados pela ciência. Contudo, eles sempre foram do conhecimento da humanidade. Tanto que alguns filósofos se desbruçaram de tal maneira sobre eles que, conforme Meneses (2000, p.1) nos esclarece, "Talvez o mais completo tratado sobre interpretação de sonhos que tenha chegado às nossas mãos, da antiguidade clássica, seja a Onirocrítica, de Artemidoro de Daldis, que viveu em Êfeso, no século II d. C.". Mas foi com a psicanálise que o sonho ganhou, finalmente, reconhecimento diante da ciência.

A partir de então, sua utilização ganhou cada vez mais espaço no mundo científico e diversos trabalhos e pesquisas surgem. Neste cenário, temos a pesquisa de Fernandes (1949), que explica, no seu artigo, as influências que as crianças sofrem do meio em que vivem e o quanto a análise de sonhos, bem como as fantasias infantis, podem auxiliar na compreensão de como estão se processando estas questões na criança. Foi possível percebermos, na prática, como os sonhos vêm sendo utilizados como mecanismos para uma compreensão mais abrangente do indivíduo e, consequentemente, um melhor atendimento.

Meneses (2000) também contribui com estudos interessantes sobre os sonhos:

O sonho, o poema e aqueles que os interpretam estão do lado do mythos; o sonho, como todo produto humano, é historicizado. Se o inconsciente é a-histórico, as formações do inconsciente são históricas. E mais: o sonho não representa apenas uma manifestação psíquica individual; ele está impregnado do social. Nesse espaço próprio, que parece tão individual, do sonhador, imiscui-se o social: suas escolhas imagéticas são buscadas no arsenal de imagens que sua civilização e sua cultura lhe oferecem (Meneses 2000, p.1).

Os estudos sobre os mitos auxiliam para melhor compreender os sonhos. Para isso, é necessário entender sobre o inconsciente coletivo trazido por Jung. Neste sentido, ele se utiliza dos seus estudos arqueológicos para pesquisar nas antigas civilizações e percebe padrões.

Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. [...] Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos. [...] estamos tratando de tipos arcaicostravessãoou melhor travessão – primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos (Jung, 2000, p.15-16).

O mito não pertence ao concreto, ele está neste plano do inconsciente coletivo, nos proporcionando uma outra dimensão que nos amplia, portanto, a compreensão sobre os sonhos:

Começa hoje a compreender-se uma coisa que o século XIX nem sequer podia pressentir: que o símbolo, o mito, a imagem, pertencem à substância da vida espiritual, que se pode camuflá-los, mutilá-los, degradá-los mas que nunca se poderá extirpá-los. [...] Assim, os mitos nada mais são do que o inconsciente tentando se comunicar, e utiliza os símbolos, as imagens, para se expressar (Eliade, 1991, p.12-19).

Felizmente, os sonhos estão sendo amplamente estudados e nos proporcionam ricas reflexões, já que são materiais de trabalho. Eliade (1991) ainda nos esclarece sobre a importância da imaginação, sendo justamente este o objetivo do grupo Os Sonhadores.

Só do homem moderno depende, dizíamos "despertar" esse inestimável tesouro de imagens que ele traz consigo; despertar as imagens, para contemplá-las na sua virgindade e assimilar a sua mensagem. A sabedoria popular tem frequentemente exprimido a importância da imaginação para a própria saúde do indivíduo, para o equilíbrio e riqueza da sua vida interior. [...] Ter imaginação" é gozar de uma riqueza interior, de um fluxo ininterrupto e espontâneo de imagens. [...] Etimologicamente, "imaginação" é solidária com imago, "representação, imitação" e com imitor, "imitar, reproduzir". Desta vez a etimologia faz eco tanto das realidades psicológicas como da verdade espiritual. A imaginação imita modelos exemplares – as Imagens – reprodu-las, reatualiza-as, repete-as sem fim. Ter imaginação é ver o mundo na sua totalidade; portanto, o trabalho com sonhos e imaginação e a missão das imagens consistem em mostrar tudo o que permanece refratário ao conceito. [...] Assim se explica a desgraça e a ruína do homem que "não tem imaginação": ele está isolado da realidade profunda da vida e da sua própria alma (Eliade, 1991, p.20).

Em contrapartida, aliado aos aspectos psíquicos, tivemos também o suporte teórico dos conhecimentos oriundos da fisioterapia. Verificamos que o trabalho com a fisioterapia é um potente aliado para exercer um impacto positivo sobre a função do indivíduo, incluindo mudanças em aspectos físicos, cognitivos e sociais. A fisioterapia dispõe de inúmeras possibilidades terapêuticas capazes de aprimorar a funcionalidade motora, auxiliando a reestruturação dos aspectos físicos e psíquicos do indivíduo, promovendo, assim, seu processo de reabilitação. A atuação do fisioterapeuta na equipe de saúde mental é necessária, tanto em serviços ambulatoriais e hospitalares quanto em hospitais dia, centros de convivência e de atenção psicossocial e, ainda, cooperativas de trabalho, fazendo da fisioterapia uma somatória terapêutica na Psiquiatria. (Silva; Pedrão & Miasso, 2012).

A fisioterapia tem como propósito o estudo do movimento humano em todas as suas formas de expressão e potencialidades, tanto nas suas alterações patológicas, quanto nas suas repercussões psíquicas e orgânicas, com objetivos de preservar, manter, desenvolver ou restaurar a integridade de órgão, sistema ou função. A escassez de estudos na área, a pouca inserção dessa categoria profissional nos serviços de saúde mental e o não reconhecimento desse profissional, demonstram a necessidade de mais estudos que discutam as possíveis abordagens da fisioterapia na saúde mental (Barbosa & Silva, 2013). É por isso que o presente trabalho também buscou problematizar a importância desta área na prática da saúde mental, já que todos os conhecimentos possuem um viés promotor de saúde.

Desta forma, a oficina do Grupo dos Sonhadores teve como método de trabalho os conhecimentos do campo da psicologia como também da fisioterapia, ambos com o objetivo de proporcionar um tratamento mais humanizado, de forma mais plena para as crianças e adolescentes deste serviço, e para isso, buscamos trabalhar o desenvolvimento holístico do ser, numa perspectiva interdisciplinar.

Recorte clínico e análise numa perspectiva metodológica junguiana

Através de uma menina de sete anos de idade, da oficina do Grupo dos Sonhadores, o presente trabalho buscará demonstrar os resultados obtidos com a utilização dos sonhos como método de intervenção terapêutica neste serviço.

Esta será chamada pelo nome fictício de Amanda. Amanda foi encaminhada pela Estratégia de Saúde da Família (ESF), por estar apresentando dificuldades de relacionamento, apropriação de objetos que não eram seus, enurese noturna, bem como, mentindo. Após acolhimento no ano de 2011, esta permaneceu no serviço com plano terapêutico inicial de avaliação com o médico psiquiatra. Este prescreveu Fluoxetina e Ácido Valproico, pois, além das queixas de desatenção na escola e de dificuldades relacionais, percebeu-se depressão pela morte da sua mãe. Diante de melhoras, mantém-se a Fluoxetina e ampliou-se o plano terapêutico, incluindo-se a Sala de Recursos na escola e participação em oficina no CAPSIA.

A metodologia de análise Junguiana propõe um caminho de interpretação simbólica. "O contexto do evento psíquico deve ser considerado no processo de observação (apreensão) e, ainda, no processo de elaboração de seu sentido e significado simbólicos (compreensão)." (Penna, 2013). No trabalho desenvolvido, consideramos cada elemento como um símbolo que será analisado, observando-se o contexto intrapsíquico em que o símbolo emerge, ou seja, a situação do sistema psíquico no que se refere à compensação energética entre consciente e inconsciente.

Ressaltamos os elementos que emergem tanto na proposição das estagiárias, como o sapo, quanto no que emerge da Amanda: o desenho das duas flores; a música Faz um milagre por mim; o sonho em que alguém a está perseguindo e quer matá-la, e a música Mãezinha, eu não sei rezar, como imagens e símbolos que ajudam no processo de desenvolvimento da consciência e ressignificação dos fatos que ocorreram em sua vida.

Para Jung (2014), o símbolo é uma emergência que antecipa o processo de conscientização do indivíduo, possibilitando o encontro com conteúdos inconscientes difíceis de entrar em contato de uma forma puramente intelectual. Por isso, o acontecimento dos sonhos e a importância de imagens vão ganhando uma força emocional e se transformando em símbolos. Para o autor acima citado, a psique é imagem. A vida é apreendida a partir da imagem.

No segundo semestre de 2014, Amanda, juntamente com mais duas crianças, comparecem no primeiro dia da oficina. Neste primeiro momento, explicamos o trabalho, questionamos sobre o que esperam deste trabalho e expomos a proposta: conhecer os sonhos. Com uma música, solicitamos aos participantes que fechem os olhos e busquem o primeiro sonho que viesse em sua mente. Com o auxílio de revistas e materiais escolares, cada um ilustra seu sonho e, após, cada um o relata. Amanda conta que o seu sonho é ser modelo, pois gosta de estar bonita e arrumada, contudo afirma que não pode, pois não se cuida e não sorri. Aqui percebemos baixa autoestima e a presença de tristeza em Amanda. Desta forma, propomos a confecção de um origami de sapo que simboliza a criança que pode pular todos os desafios. O sapo que pula foi um momento de aprendizagem, integração além de autorreflexão.

A imagem do sapo surge como um dispositivo para provocar um estado de transformação, tendo em vista que o sapo, enquanto um símbolo egípcio, é percebido como desenvolvimento da vida: "Após as cheias do Nilo, milhões de rãs surgiam de forma exuberante, como se por geração espontânea, do leito de sedimento que aqui é o emblema matéria por formar, antes da criação, e do intervalo entre a morte e o renascimento". (Taschen, 2012, p.190).

Esse é um exemplo de um símbolo arquetípico que pode ser amplificado na relação terapêutica. Neste caso, o sapo serviu como mediação para um diálogo simbólico.

Esses padrões arquetípicos são estudados por Jung (2000), que nos esclarece serem material do inconsciente coletivo, e eles serão mais bem compreendidos através da análise e estudo sobre os mitos.

Os mitos nos fornecem a estrutura básica da psique humana; já os contos de fadas, segundo o autor já citado, permitem estudar a "anatomia comparada da psique", mas, diferentemente dos mitos, possuem "material consciente cultural muito menos específico e, consequentemente, eles oferecem uma imagem mais clara das estruturas psíquicas" (Franz, 1981). Da mesma forma, os sonhos podem ser utilizados para perceber a psique do sujeito, todavia o sonho, diferentemente dos mitos e dos contos infantis, nos "fornece uma nova mensagem que nem o analista nem o paciente conhecem de antemão". (Franz; 1981, p.30).

Na semana seguinte, o momento com tinta foi aproveitado para dar vazão à criatividade. Cada um colocou no papel aquilo de que gosta e, no final, compartilhou com os demais. Amanda desenhou duas flores. Muito orgulhosa, explica que as flores são ela e sua mãe. Além de socializar, a atividade proporciona o despertar da criatividade e com ela, os sentimentos. Neste caso, a saudade da mãe, já falecida, aparece no seu trabalho, que embora colorido e realizado com alegria, demonstra uma tristeza por trás de tudo.

O desenho das duas flores foi compreendido como uma tentativa da Amanda de elaboração da dualidade dos sentimentos vividos na morte de sua mãe. A imagem do duplo para Jung (2007) é uma tentativa de organização psíquica, de síntese das dualidades vividas como sendo antagônicas. A simbolização representa a tentativa de integrar os conteúdos inconscientes à consciência.

Em outro momento, nos utilizamos da música na oficina. Cada participante canta aquela de que gosta e Amanda canta muito bem a música Faz Um Milagre em Mim, do cantor Régis Danese. (Vagalume, 2015).

Como Zaqueu eu quero subir / O mais alto que eu puder / Só pra Te ver, olhar para Ti / E chamar / sua atenção para mim / Eu preciso de Ti, Senhor / Eu preciso de Ti, oh Pai / Sou pequeno demais / Me dá a tua paz / Largo tudo pra Te seguir / Entra na minha casa/ Entra na minha vida / Mexe com minha estrutura/ Sara todas as feridas / Me ensina a ter Santidade / Quero amar somente a Ti / Porque o Senhor é meu bem maior / Faz um milagre em mim. (Vagalume, 2015).

Além dos demais cantarem junto, proporcionando um momento de entrosamento, Amanda consegue expor seus sentimentos, pois, conforme a letra da música revela, é importante a superação diante das dificuldades da vida.

O conteúdo da música que revela um diálogo com o divino, vai ao encontro da ideia de Jung (2007) sobre a busca redentora da criança da salvação, da integração dos opostos e o quanto a criança é percebida como um símbolo de abandono e de amparo divino. Para o autor acima citado, a criança possui um impulso de autorrealização, de superação, representada pelo próprio nascimento, da saída do útero para o enfrentamento da vida.

Ressaltamos o quanto interpretar os movimentos simbólicos da Amanda colaborou no processo terapêutico, num caminho de ampliar a potência da criança, considerando seu contexto familiar, mas podendo adentrar numa perspectiva arquetípica, para além do contexto pessoal.

Explicar sobre o que é um sonho para crianças menores é um momento de grande importância, já que, muitas vezes, acontece confusão entre sonhos oníricos com os sonhos de vida, aquilo que gostaríamos de fazer. Desta forma, explicamos que, quando deitamos à noite e acordamos com uma lembrança nova durante a manhã seguinte este é um sonho onírico, ou seja, um sonho. Neste momento, Amanda conta sobre já ter acordado com uma lembrança nova que a deixou triste. Sonha que alguém a está perseguindo e quer matá-la. Diz que acordou com um sentimento muito triste. Este espaço, de contar o sonho, já é uma experiência por si só de grande auxílio terapêutico, pois tomar consciência dos sonhos já possibilita uma nova elaboração do material, lembrando que estes são cheios de significados para o sujeito.

Através de três sonhos infantis de um menino – com o homem peludo; de uma menina com a boneca e o monstro; de um menino com o pai como gigante ameaçador – Jung (2011) relata o quanto os conteúdos de medo e de insegurança podem estar constituindo o mundo inconsciente e psíquico da criança.

O inconsciente da Amanda mostra uma situação e sentimentos de que ela está sendo perseguida, não se sente segura nem na escola, em seus espaços de aprendizado, e na família como espaço de intimidade. Essas imagens oníricas vão sendo conectadas com a profunda tristeza da criança e com seu movimento de enfrentar e de superar adversidades, mesmo que isso pareça difícil de realizar dentro de um plano humano, como a música acima explicita.

A partir desses indícios relatados, fomos propondo um caminho de reconstituição e ressignificação das histórias de vida das crianças, a fim de que pudessem olhar para novas possibilidades de reconstrução de suas emoções, tão explicitadas no rosto. Ao recortarem diversos olhos, bocas e narizes, confeccionaram um rosto onde puderam criar diversos rostos. Falamos sobre cada sentimento possível ao criarmos um rosto. Outra atividade proposta foi assistir ao filme Frozen produzido pela Walt Disney Animation Studios, em 2013. Com esta atividade, o grupo se mobilizou bastante, pois ao confeccionarmos um cartaz a partir da música Let It Go (Idina Menzel) (Vagalume, 2015) do filme anteriormente citado, o grupo discutiu e apresentou ótimo senso crítico diante das dificuldades da vida. Amanda, além de ficar bem atenta ao filme, conhecia todas as músicas, cantando-as. Na música citada, a letra fala sobre a importância de fazermos reparos. Após discussão, o grupo chega à conclusão de que tudo precisa de reparos e que, conforme a música, o amor pode consertar. Cada um desenha algo que, com amor, pode ser reconstituído. Amanda desenha uma menina e uma casa cheia de amor, carinho, brincadeiras e paz. O filme não só desperta a criatividade e a concentração, mas sentimentos. Amanda novamente lembra-se da sua família e do quanto eles são importantes na sua vida.

Essa atividade representa o que Boechat (2014) fala da terceira via, no diálogo entre consciente e inconsciente, a dimensão criativa, do indivíduo perceber-se como um ser criativo e transformador.

Atividades ao ar livre também são fontes de riquíssimo trabalho. A oficina terapêutica dos sonhos se utiliza do passeio ao ar livre para recordar de algum sonho que o caminhar, interagir com a natureza e as pessoas, podem suscitar. Isto foi o que aconteceu neste dia: ao brincarmos na praça da cidade e caminharmos pelas ruas, muitas histórias e lembranças foram revividas. Amanda nos conta de um sonho que teve com árvores e sua mãe. Questionada sobre como era antes de dormir, nos conta sobre músicas que a mãe lhe cantava antes de dormir quando ainda viva. Com a ajuda dos demais, cantamos as músicas pelas ruas da cidade. Ao retornarmos, após alongamento, utilizamos o desenho para registrar os sonhos recordados durante a atividade.

Muito interessante é que a atividade física seguida de um momento de conversa se mostra uma prática muito eficiente. Com as energias mais baixas, as crianças conseguem relaxar e conversar de maneira mais concentrada. Neste dia, a conversa foi mais aprofundada, e as crianças conseguiram realizar mais reflexões.

Também é interessante notar as músicas que Amanda traz para os encontros, pois são de grande significado. Além das lembranças que a música evoca, a letra por si só é de uma beleza que acalma e fortalece "Mãezinha do céu, eu não sei rezar/ Eu só sei dizer que eu quero te amar / Azul é seu manto, branco é seu véu / Mãezinha, eu quero te ver lá no céu" (Vagalume, 2015), reforçando a importância do trabalho simbólico no processo terapêutico com crianças.

Neste momento, vai ficando mais claro que Amanda está passando por um processo de tentativa de resolução do conflito da morte da sua mãe, admitindo seu amor e mostrando uma aceitação da morte tendo o céu como um lugar divino. A cor azul mostra um aspecto reflexivo e o branco, um encontro com um estado de branquitude numa linguagem alquímica, para que novas cores surjam. (Hillman, 2011). Ou seja, surge a revelação de um símbolo como uma necessidade de desligamento da origem conflitiva expressa pela conformação de que a mãe está no céu, protegida e que elas podem se encontrar nesse céu, lugar não mais de perseguição, mas de paz, de reflexão e de comunicação amorosa.

 

Considerações finais

O presente artigo visou demonstrar a importância da articulação entre dois campos de conhecimento e, assim, confirma os benefícios do trabalho interdisciplinar, já que os conhecimentos da Psicologia e da Fisioterapia se mostraram muito eficientes na prática terapêutica dentro da saúde mental, integrando a dimensão simbólica e física, bem como duas perspectivas de atuação universitária: graduação e extensão. E, sem dúvidas, o presente trabalho também oportunizou às acadêmicas em formação, experienciar a prática das teorias aprendidas em salas de aulas, através de trabalho em equipe, com respeito e ética.

A oficina terapêutica se embasou na teoria Analítica Junguiana, nos seus trabalhos psicoterápicos e, a cada encontro, propôs momentos para a criança "alcançar um estado psíquico de fluidez, mudança e crescimento, onde nada está eternamente fixo e, menos ainda, petrificado" (Maroni, 1999).

Nas atividades realizadas, os integrantes foram incentivados a fabular, a narrar, a criar e viver imagens através de desenhos com lápis de cor, tinta, bem como nos jogos, filmes, teatros, e ainda, no manuseio de massa de modelar e argila. Para Jung (STORR, 1974), as dificuldades emocionais que o sujeito enfrenta devem ser simbolizadas e as diversas técnicas de que o grupo se utiliza, justamente visam alcançar este processo.

As soluções simbólicas são obtidas através de um trabalho árduo, já que este só ocorre "quando uma pessoa é suficientemente rija para tolerar os opostos, em seu íntimo; é então que uma solução simbólica pode fazer sua aparição" (Storr, 1974, p.100).

Portanto, o Grupo dos Sonhadores, a cada encontro, experienciou diferentes propostas de atividades vinculadas aos sonhos na perspectiva Junguiana, já que estes estimulam a fantasia criativa, sendo de vital importância para o processo de crescimento e fortalecimento do ego (Storr, 1974).

O autor acima citado afirma que "muitos sonhos originam-se no "inconsciente pessoal" do paciente, isto é, dizem respeito aos seus problemas emocionais cotidianos, às relações interpessoais, a resíduos da infância." (Storr, 1974, p.108). Portanto, a oficina é um espaço onde se possibilita esta alteração do conteúdo inconsciente, "o qual se modifica através de sua conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência individual na qual se manifesta" (Fordham, 2002, p.17).

Além das atividades artísticas citadas, destacamos que o próprio relato dos sonhos já é um dispositivo psicoterápico riquíssimo. Logo, a utilização dos sonhos se revela como um importante aliado para o trabalho, pois pudemos assim melhor conhecer e trabalhar com as crianças, potencializando o processo de consciência. Além disso, os sonhos também nos serviam como guia de trabalho e, muitas vezes, eram o próprio material terapêutico.

O espaço clínico em formato de oficina se revela como um local de grandes aprendizagens, e de promoção de saúde. Além disso, a oficina se mostrou tão eficiente quanto um trabalho individual, já que conseguiu provocar reflexões e benefícios nas crianças ao simbolizar os sofrimentos através da utilização dos sonhos.

Compreendemos o processo terapêutico da Amanda como uma construção simbólica que permitiu a ela que conteúdos inconscientes fossem se integrando a uma dimensão consciente, possibilitando uma integração e resolução de conflitos. A saída é a descoberta dos recursos criativos que permitem uma elaboração das dualidades, do que antes parecia ser insuportável, quando pensado apenas na esfera humana. O apelo ao divino é um movimento integrador das funções psíquicas inconscientes. Quando afloram, deixam de ocupar um espaço tão persecutório e amedrontador, justamente porque a criança vai tendo condições de objetivar o que antes era tão nebuloso e inconsciente.

Desta forma, confirmamos a importância da prática clínica, proposta por Jung (2014) enquanto um modo de ativar as imagens e os símbolos, num constante dialogo com os processos imaginativos e criativos, através dos quais cada criança pode ir reconstruindo sua própria história e infância.

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: luisa@unisc.br

Recebido em setembro de 2015
Aceito em dezembro de 2015

 

 

Jéssica Brandt: Graduada em Psicologia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) – Santa Cruz do Sul.
Fernanda Bender: Graduada em Fisioterapia pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC) – Santa Cruz do Sul.
Ana Luisa Teixeira de Meneses: Doutora em Educação (UFRGS); Professora do Departamento de Psicologia e do Mestrado em Educação da UNISC e Supervisora acadêmica de Psicologia.
1 PET – Saúde é um Programa de Educação pelo Trabalho para a saúde, Portaria Interministerial nº 421, de 03 de março de 2010, inspirado pelo Programa de Educação Tutorial- PET, do Ministério da Educação.

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