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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia vol.49 no.2 Canoas July/Dec. 2016

 

ARTIGOS TEÓRICOS - PSICOLOGIA

 

A morte, a vida e os fenômenos de massa

 

Death, life and the mass phenomena

 

 

Ricardo Salztrager

UNIRIO. Programa de Pós-Graduação em Memória Social
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Programa de Pós-Graduação em Memória Social

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RESUMO

A proposta do artigo é analisar os diversos fenômenos de massa contemporâneos, visando problematizar o ponto de vista que destaca somente o papel de Eros (vida) na formação dos laços sociais. Tal ponto de vista, representado pela obra "O tempo das tribos" de Maffesoli, conduz à conclusão de que, nestas massas, há a construção de laços harmônicos entre semelhantes que se unem uns aos outros por empatia e ideais de comunhão. Para efetuarmos tal problematização, nos voltamos a alguns escritos de Freud que destacam que por detrás de todos os laços sociais, há um conflito entre Eros e Thanatos (morte) e também a alguns ensaios de Benjamin que valorizam o papel da morte na formação dos laços sociais. Assim, a morte será lida como uma tendência destrutiva, libertadora e criativa, que rompe com tudo o que se encontra constituído, para que algo de novo possa surgir.

Palavras-chave: Criação, Morte, Massas.


ABSTRACT

The purpose of the paper is to analyze the various contemporary mass phenomena aimed to questioning the view that only highlights the role of Eros (life) in the formation of social links. This view, represented by the work "The time of the tribes" from Maffesoli, leads to the conclusion that these masses, there is the construction of harmonious links between similars that join each other for empathy and fellowship's ideals. To effectuate such questioning, we turn to some writings of Freud highlighting that behind all social links, there is a conflict between Eros and Thanatos (death) and also some Benjamin's writtings that value the role of the death in the formation of social links. Thus death will be read as a destructive, liberating and creative force, that breaks everything is made so that something new can emerge.

Keywords: Creation, Death, Masses.


 

 

Introdução

Freud: a morte e os laços sociais

"O mal estar na civilização" (Freud, 1930/1995) é o mais famoso escrito psicanalítico que versa sobre o tema do social. Nele, encontramos certa ênfase na afirmação um tanto quanto enigmática, a princípio, de que por detrás de todos os laços sociais subjaz um conflito entre a vida e a morte. Trata-se, de acordo com a argumentação freudiana, de destacar a existência de uma luta incessante entre Eros e Thanatos inerente a toda e qualquer formação grupal.

Com efeito, uma análise superficial da questão dos laços sociais poderia convergir unicamente para o destaque do papel de Eros no processo civilizatório, já que seu propósito é, justamente, unir os sujeitos em pequenos grupos, famílias e até mesmo em raças e nações. No entanto, o ensaio freudiano vai mais além desta visada superficial ao colocar que ao lado de Eros, a morte também atua aí: "nesta luta consiste essencialmente toda a vida e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida" (Freud, 1930/1995, p.126).

Claro está que, aqui, vida e morte não devem ser tomadas em seus sentidos literais. Segundo o texto, alguns dos sentidos que se pode dar à morte são os de destruição, fragmentação e, até mesmo, liberdade. Em outros termos, a morte merece ser lida como uma tendência a se romper com tudo o que se encontra constituído, ou seja, a vida. Esta última, por sua vez, passa a representar aquilo que converge para uma concepção de segurança ou de manutenção de um mesmo estado de coisas. A morte, portanto, sempre atuaria contra esta tendência conservadora.

Por este viés, a ordem da novidade e da criação só pode ser concebida enquanto ligada à morte, cabendo à vida o apaziguamento desta tendência criativa – e, portanto, perigosa – através da construção de laços sociais cada vez mais estanques. Neste contexto, a afirmação crucial de que o homem moderno é aquele que trocou um quinhão de liberdade por um quinhão de segurança (Freud, 1930/1995) merece ser interpretada no sentido de o sujeito ser aquele que, optando pela vida, tenta silenciar o poder, de certo modo, revolucionário da morte.

Fica claro também que o potencial disruptivo da morte não cessa de se manifestar nos mais variados empreendimentos que visam refreá-lo da parte de quem opta pela segurança da vida. Sob este prisma, denuncia-se a precariedade destes empreendimentos subjetivos de cada vez mais se unir aos outros em unidades grupais imaginariamente fortes para lá se sentirem razoavelmente seguros. Com efeito, a análise freudiana converge para a afirmação de que tais empreendimentos são sempre ilusórios, pois a morte sempre se presentifica no mecanismo de estruturação destes laços.

Temos, aqui, uma discussão bastante atual no sentido de que, na contemporaneidade, observamos o florescimento de um conjunto de agrupamentos que designamos de "fenômenos de massas". Estes, de um modo geral, se estruturam através da disseminação da ilusão de que o mal estar subjetivo pode ser facilmente remediado a partir de sua inclusão em algum ou vários destes grupos. Dentro da nomenclatura "fenômenos de massa", podem se inserir as tribos, entidades locais ou os vários agrupamentos cujos laços se formam, de acordo com Maffesoli (2006), graças a um forte sentimento de empatia entre alguns sujeitos. Nesta mesma linha de raciocínio, em "Psicologia das massas e análise do eu", Freud (1921/1995), os define enquanto aglomerações passageiras nas quais os enlaces são criados por um interesse ou sentimento comum. É graças a tal empatia ou aspiração semelhante que as massas se disseminam no campo social contemporâneo e asseguram sua continuidade, ainda que por curto espaço de tempo. Como exemplos, podemos mencionar as multidões que se juntam ao redor de um ídolo midiático qualquer, os grupos de adolescentes que se adornam com uma mesma vestimenta e valorizam o mesmo estilo de vida, as novas congregações religiosas que difundem a ilusão de que uma cura milagrosa recairá sobre aqueles que nelas se inserem, além dos grupos que frequentam grandes festivais na esperança de obtenção de uma espécie de explosão orgástica.

Em todas estas formações massificantes são observados fenômenos muito semelhantes. Dentre eles, destacamos a ausência de uma organização complexa ou razoavelmente estável, além de uma sensibilidade ou emoção compartilhada que se espalha de forma contagiante entre seus membros. Igualmente importante é o fato de todas elas possuírem uma inscrição local, já que um espaço propício na sociedade contemporânea é, de fato, oferecido para a expressão de cada uma delas. Também vislumbramos, em seus domínios, uma extrema valorização do tempo presente: em geral, é nelas inexistente uma atitude projetiva qualquer, seja na forma de um plano, ideia ou intencionalidade voltada para o futuro. Para os que lá se inserem, importa o prazer momentâneo e, às vezes, até instantâneo, que ali podem ilusoriamente alcançar.

Nossa argumentação conduz para a hipótese de que a proliferação destes fenômenos de massa na cena contemporânea é consequência do declínio do poder institucional tradicional. Em outros termos, dada a relativa falência daquilo que comumente se designa por "autoridade simbólica"1, as massas vêm se constituindo e ganhando força, justamente, por se configurarem enquanto modalidades alternativas de criação de laços sociais. Nestas massas, tudo se passa como se o encontro com alguns semelhantes ou o deixar-se levar por uma mesma emoção ou sentimento possa remediar uma condição de desamparo que, no entanto, é sempre recorrente. E é justamente aqui que se manifesta o conflito entre a vida e a morte: com o intuito de silenciar a relativa morte das instituições tradicionais, observamos a forte tendência do sujeito contemporâneo de, nestas massas, criar laços sociais ilusoriamente sólidos a serviço da vida. Vejamos como se dá este processo.

Os fenômenos de massa contemporâneos

A eficácia das instituições tradicionais é um dos objetos de estudo de "Psicologia das massas e análise do eu" (Freud, 1921/1995). Neste ensaio, elas são situadas enquanto organizações estáveis e duradouras que fornecem as mais diversas garantias para os que ali se ajuntam. Inserido nestas instituições, o sujeito encontra alguns modelos identificatórios que, de certo modo, servem de sustentáculo para orientar sua vida em sociedade. Tais modelos remetem, por sua vez, aos valores propagados pelas instituições, ou seja, hábitos, costumes e regras de convivência que – nos termos de Foucault (1996) – prescrevem comportamentos normais ou desviados em função da lógica disciplinar. É, portanto, a este modelo identificatório encarnado pelos líderes das instituições tradicionais que remetemos a designada "autoridade simbólica".

De acordo com Freud (1921/1995), a estrutura e o dinamismo destes grupos tradicionais – os exemplos mencionados são a Igreja e o Exército – se sustentam a partir da criação da ilusão subjetiva de que seus líderes amam a todos com uma dose equivalente de sentimento. No contexto destes grupos, cada sujeito constrói laços libidinais, por um lado, com a figura do líder e, por outro, com os demais membros da instituição. O líder é, assim, apresentado como um modelo para os sujeitos que, ao se identificarem com seus valores e atributos, passam também a se identificar uns com os outros, reconhecendo-se enquanto semelhantes.

Assim, é basicamente desta estrutura libidinal que depende o bom funcionamento destes grupos. E quando a ilusão subjetiva referente ao amor do líder se desvanece e, com ela, todos os demais laços ali constituídos se dissolvem, instaura-se o fenômeno do pânico. A estrutura do grupo se esfacela, cada sujeito passa a se preocupar apenas consigo e o pânico aparece como consequência da quebra de todas as ilusões de segurança outrora eficazes. O sujeito agora está sozinho e é nesta condição que terá que enfrentar o perigo (Freud, 1921/1995).

De acordo com nossa leitura, a partir da quebra desta ilusão, o sujeito contemporâneo se encontra diante de um impasse: ou ele valoriza a morte destas instituições e – com todo o quinhão de liberdade que esta morte lhe proporciona – aposta no que pode surgir de novo daí ou, então, opta pela vida e, com isto, constrói novos agrupamentos que lhe permitirão manter a ilusão de segurança. Os que escolhem pela segunda alternativa, geralmente o fazem em virtude de um saudosismo e se empenham na busca de compensar, a qualquer custo, algo que fora perdido. E é por isto que as diversas cesuras da vida contemporânea acabam, em muitos casos, por favorecer o recolhimento subjetivo em alguns dos fenômenos de massa emergentes. Deste modo, eles possibilitam o encontro de pontos de referências alternativos que funcionariam como novos sustentáculos para o reposicionamento subjetivo no corpo social.

Em respeito a este ponto, alguns questionamentos devem ser necessariamente trazidos à tona: por que a insistência na nostalgia e na mobilização compensatória que acaba por criar as grandes massas? Será que estas mesmas massas realmente conseguem satisfazer o sonho do sujeito contemporâneo de nelas construir laços sociais harmônicos com seus semelhantes? Ou será, pelo contrário, que elas só fazem exacerbar, de maneira ainda mais contundente, o sentimento de exclusão subjetiva?

Tais questionamentos encontram suas razões quando verificamos, em nossa prática clínica, que os sujeitos fortemente marcados pelos discursos, estilos de vida e rituais das massas, geralmente, malogram no propósito de ali encontrarem qualquer tipo de harmonia ou consolo. No entanto, cabe assinalar que não almejamos, com isto, construir uma argumentação que exacerbe a valorização de qualquer espécie de individualismo, no sentido de que, frente a tal estado de coisas, seja mais saudável isolar-se dos outros do que incluir-se em uma destas massas. Trata-se, apenas, de destacar que este ideal de comunhão é ilusório, assim como é ilusória a expectativa de que, nestas massas, o sujeito encontrará segurança e bem estar. Segundo nosso entender, as massas representariam uma tentativa de silenciar o conflito entre a morte e a vida inerente a quaisquer laços sociais e o fazem, justamente, mediante este fortalecimento imaginário das tendências ligadas à vida, como se isto pudesse neutralizar o poder disruptivo das tendências vinculadas à morte.

Cabe também ressaltar que, em nosso recorte da questão, não entraremos na discussão sobre se uma massa é fundamentalmente alienada ou se, pelo contrário, é capaz das mais altas realizações sociais, políticas ou culturais. Do mesmo modo, não tocaremos na questão da apropriação das massas por um líder qualquer com fins políticos ou mercadológicos e sobre como a massa poderia ou não por ele se deixar influenciar. Também não partiremos da diferença entre, por exemplo, os conceitos de "massa", "multidão" (Hardt & Negri, 2012) e "público" (Tarde, 2005), visto que tal classificação não é objeto de estudo dos autores que pretendemos trabalhar. Com efeito, temos, aqui, questões bastante pertinentes, mas que só serão examinadas em outras ocasiões. Interessa-nos apenas, a partir de agora, confrontar as concepções de Maffesoli e de Benjamin sobre os laços sociais, partindo do pressuposto de que estes dois autores possuem pontos de vista divergentes em relação ao tema. O primeiro tem grande interesse nas massas contemporâneas, tal como é demonstrado em "O tempo das tribos: o declínio do individualismo nas sociedades de massa" (Maffesoli, 2006). No entanto, seu exame é fortemente marcado pela tonalidade ilusória do ideal de comunhão nas massas que, justamente, tentamos problematizar. Já no que diz respeito a Benjamin, pode-se dizer que as massas não se constituem como objetos centrais de seus estudos, ainda que este seja o tema de "A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica" (Benjamin, 1936a/1985) e "Sobre alguns temas em Baudelaire" (Benjamin, 1939/1994), dois de seus principais escritos. No entanto, nossa análise não se voltará exatamente sobre estes ensaios. Nos centraremos em outros de seus textos – como "Experiência e pobreza" (Benjamin, 1933/1985) e "O narrador" (Benjamin, 1936b/1985) – que examinam o tema da morte, valorizando-a enquanto possibilidade para o advento do novo. O confronto entre a obra destes dois autores será permeada por um importante apontamento do livro de Nancy (1990) "La communauté désoeuvrée".

Maffesoli e Benjamin: vida ou morte?

O ponto central da obra de Maffesoli (2006) é a afirmação de que, nas massas contemporâneas, o que está em jogo é o sentimento subjetivo de pertencimento a uma espécie comum: em uma massa, tem-se o sonho de abolir a lacuna existente entre o sujeito e os outros e, assim, realizar o desejo de tornar-se semelhante aos seus parceiros. Trata-se, em suma, do intuito de construir laços harmônicos junto àqueles que, por um ou mais aspectos, julgamos semelhantes. Com isto, almeja-se apagar as sutis diferenças, de modo a se uniformizar hábitos e comportamentos. Em si, a massificação se daria pela ilusão subjetiva contundente da cultura contemporânea de que só temos valor se pertencermos a algum ou alguns destes grupos.

Conforme esta acepção, as massas se definem, em linhas gerais, como agrupamentos cujos laços se fazem por razões empáticas. Trata-se de ressaltar que o que mais nelas se sobressai é o perder-se subjetivo numa coletividade. Procuramos aqueles que pensam e sentem como nós e é isto o que assegura a perduração de uma massa. Ela, a princípio, não possuiria nenhum intento político ou mesmo finalidade que vá além da simples preocupação de se estar junto com os outros. Daí a proposta de examinar os fenômenos de massa pelo viés da estética, entendida como a faculdade de sentir e de experimentar (Maffesoli, 2006) que, em si, conduz a um meio possível de reconhecer-se.

A este ponto de vista estético, soma-se a abordagem religiosa das massas contemporâneas, no sentido de que, etimologicamente, o termo "religião" conduz à ideia de religare, religação. Com esta acepção, valoriza-se também o poder instituínte das massas, ou seja, a força incessantemente renovada do estar junto e de criar uma espécie de comunhão com os outros. Favorece-se, aqui, o papel da proximidade entre os sujeitos massificados, bem como o aspecto emocional e caloroso de uma determinada massa (Maffesoli, 2006).

Ainda de acordo com esta linha de raciocínio, teríamos na base de um fenômeno de massa uma série de laços de atração e de repulsão que favorecem o agrupamento de alguns sujeitos. No entanto, tais ligações não são tão rígidas tal como as que ocorrem nas instituições tradicionais. Elas remetem antes a uma ambiência na qual nos agrupamos sem uma finalidade maior do que aquela de simplesmente pertencermos ou participarmos de algo. Daí a afirmação de que "cada grupo é, para si mesmo, seu próprio absoluto" (Maffesoli, 2006, p.152-153). É esta autossuficiência da massa, ainda que momentânea, o que dá a impressão de seu fechamento em si mesma, como um lócus isolado das outras massas e instituições ainda efetivas.

É neste contexto que o ritual adquire importância nas massas. Justamente por exprimir de modo incessante o retorno do mesmo, os rituais fortalecem cada vez mais os laços que ali se fazem. O ritual pode ser definido como uma espécie de código que delimita a maneira de se estar com os outros, solidificando, assim, todos os laços identificatórios destes grupos. Através dele, a massa encontra a possibilidade de, constantemente, reconhecer-se como aquilo que ela é. Os costumes, os gestuais, as vestimentas e as experiências selam alianças, atenuam oposições e restauram laços que, por uma razão ou outra, foram abalados. Com o ritual, portanto, a união é permanentemente reassegurada e a massa tende a durar (Maffesoli, 2006).

Segundo nosso entender, as práticas dos rituais possuem uma importante função quando a questão é compensar algo que se perdeu através da constituição de laços sociais massificantes. No entanto, conforme ressaltamos acima, este sonho saudosista e compensatório tem que ser necessariamente problematizado, já que observamos que esta tentativa de resgate, por vezes, acaba por promover uma fragmentação ainda maior, ao invés de propiciar harmonia e fraternidade. Ou seja, as massas contemporâneas, ao invés de viabilizarem o ideal fusional e a homogeneidade entre seus membros, podem acabar, pelo contrário, trazendo rupturas ainda maiores, além de dissimetrias ainda mais incisivas.

Nesta perspectiva, fica claro que este ideal compensatório e saudosista está unicamente a serviço da vida, bem como também estão os ideais ilusórios de harmonia e fraternidade nas massas. Em outros termos, trata-se de destacar que aquele que valoriza o conflito entre vida e morte subjacente aos laços sociais, jamais poderia falar deste ideal de fusão e comunhão e, muito menos, pensar em qualquer espécie de homogeneização nestas grandes massas. Onde há morte e vida, não há apenas fusão, mas também, rompimento. Não há apenas homogeneidade, mas também, dissimetrias. Assim como não há apenas fraternidade, mas também, disrupção.

Deste modo, a análise de Maffesoli (2006) sobre as massas contemporâneas se dirige apenas para um dos aspectos da questão: ao enfatizar o sonho subjetivo de abolir a lacuna existente entre ele e os outros ou ao destacar a tentativa de, nas massas, se apagar as diferenças entre os sujeitos, temos aqui um exame da questão que se volta somente para as tendências ligadas à vida. A mesma conclusão pode ser obtida quando observamos a importância concedida ao fundamento religioso das massas. Com isto, fala-se apenas em ligações, em fortalecimento de alianças e em diluição das oposições, como se unicamente à vida coubesse o papel de constituir laços sociais.

No entanto, conforme destacamos, mais importante do que a tentativa de modelar uma espécie de essência em comum com os outros é pensar na interrupção ou fragmentação subjacentes à constituição de quaisquer laços sociais. De acordo com esta visada, qualquer entrelaçamento ou rede portaria um inacabamento que, em si, insiste em se manifestar nas mais variadas tentativas de cessá-lo, interrompê-lo ou suspendê-lo. Neste aspecto, os ideais de fraternidade ou de comunhão devem ser problematizados na medida em que algo da ordem da morte e do desligamento vai sempre se presentificar nas mais variadas tentativas de união ou gregarismo. Claro está que tal inacabamento não deve ser necessariamente visto enquanto ligado ao campo da insuficiência ou da falta. Pelo contrário, ele pode ser considerado numa acepção que Nancy (1990) qualifica como eminentemente ativa. Adjetivado desta forma, o inacabamento passa a ser algo que nos conduz para além dos nossos projetos, vontades e empreendimentos, fazendo retornar algo da ordem da surpresa, da criação ou do novo nas redes de laços sociais de uma configuração grupal qualquer.

Este mesmo ponto de vista está presente em alguns escritos de Benjamin. Em "Experiência e pobreza" (Benjamin, 1933/1985), por exemplo, ele nos remete à parábola de um pai que, no leito de morte, conta aos filhos sobre a existência de um enorme tesouro enterrado nos vinhedos da família. Ao saberem do fato, os filhos se põem a cavar todo o terreno sem, no entanto, se deparar com tesouro algum. Enfim, com a chegada do outono, as vinhas da família começam a produzir mais do que em qualquer outro lugar, e só então eles descobrem que a felicidade e a riqueza se encontram no trabalho.

Para Benjamin, a importância desta parábola está em sua serventia por ilustrar algo que se encontrava perdido em sua época: a transmissão de uma experiência pela via de um saber. Experiência que, segundo Gagnebin (2009), se inscreve no tempo na medida em que é transmitida de geração à geração, tendo como pano de fundo uma tradição a ser compartilhada. Ademais, tais experiências conduziriam a uma prática comum, pois os conselhos, orientações ou ensinamentos a elas subjacentes devem ser seguidos por aqueles que os recebem.

Sobre este declínio da experiência, Benjamin escreve:

Quem encontra ainda pessoas que saibam contar suas histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? (Benjamin, 1933/1985, p.114)

Segundo o nosso entender, temos, na citação acima, questionamentos extremamente atuais na medida em que, também em nossa época, as experiências comunicáveis e transmitidas estão cada vez mais escassas. Em outros termos, com a relativa morte da "autoridade simbólica", o sujeito contemporâneo teria dificuldade em encontrar modelos identificatórios que trazem consigo experiências, palavras, ensinamentos ou valores que funcionem como guias para suas inserções na cultura. Daí – conforme destacamos tantas vezes acima – a emergência da massificação enquanto tentativa nostálgica de resgate de uma continuidade perdida.

É justamente neste ponto que o texto benjaminiano nos auxilia na análise crítica a este empreendimento saudosista, compensatório e vinculado unicamente às tendências ligadas à vida. Para o autor, a pobreza das experiências comunicáveis conduz necessariamente à barbárie. No entanto, a figura da barbárie é por ele enfatizada numa acepção positiva: ela impeliria o sujeito a "começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar para a direita e nem para a esquerda" (Benjamin, 1933/1985, p.116). Trata-se de destacarmos a possibilidade de se agir a partir de uma tábula rasa ao invés de simplesmente nos contentarmos em, a todo e qualquer custo, resgatar algo perdido.

Daí o elogio benjaminiano a figuras importantes como o pintor Klee que, rejeitando qualquer forma de nostalgia, recusa a imagem do homem solene de épocas passadas para "dirigir-se ao contemporâneo nu, deitado como um recém nascido nas fraldas sujas de nossa época" (Benjamin, 1933/1985, p.116). Também o romancista Scheebart que coloca seus personagens para habitar casas de vidro. Segundo Benjamin, em uma casa de vidro nada pode se fixar, justamente, por ela ser dura e lisa. Nela, o morador está impossibilitado de deixar quaisquer rastros, ao contrário do que acontecia nas grandes casas burguesas do século XIX repletas de bibelôs, mobílias, pinturas e fotografias que carregavam consigo os hábitos e grande parte da história de seus moradores. Daí os sentimentos de cólera quando algo se quebrava ou se perdia nestas casas. Também nas estruturas de aço de Bauhaus, nenhum vestígio poderia ser deixado.

Trata-se, portanto, em conformidade com o texto benjaminiano, de diante da pobreza da experiência, libertarmo-nos de todo o passado para ver o que pode disto resultar. Ou, em outros termos, fazer sobressair nossa capacidade de renúncia e de abertura para um futuro incerto, a fim de que algo de novo possa advir. Por este viés, a morte de toda autoridade passa a ser encarada não como propriamente um perigo, mas como uma chance de dela nos despojarmos e, assim, criarmos laços sociais não mais baseados em antigas referências. Neste sentido, o tema da morte é positivado numa acepção em muito parecida à de Freud e de Nancy.

O mesmo encaminhamento pode ser delineado a partir da leitura de "O narrador" (Benjamin, 1936b/1985), ensaio escrito logo após "Experiência e pobreza". O contexto agora é o da morte da figura do narrador – outrora tão valorizada – e de todas as consequências a serem dela derivadas. Com efeito, a época de Benjamin traz consigo certa extinção das narrativas tradicionais, bem como o lamento pela escassez de pessoas que saibam devidamente contar uma história. As grandes narrativas foram, nestes tempos, progressivamente substituídas no gosto popular seja pelos romances, seja pela leitura meramente informativa. Com isto, se perdiam todas as experiências que poderiam ser obtidas da escuta ou leitura das histórias contadas por alguém.

Para Benjamin (1936b/1985), o apogeu histórico da faculdade de narrar uma experiência teria ocorrido dentro do sistema corporativo medieval no qual trabalhavam juntos representantes das duas grandes classes de mestres da arte narrativa: os camponeses e os marinheiros comerciantes. Os primeiros ganhavam suas vidas sem jamais sair de seus países, o que os levava a conhecer como ninguém suas histórias e tradições. Os segundos adquiriam experiências a partir das grandes viagens a terras distantes. Assim, a experiência do camponês aliada a dos marinheiros fazia da arte narrativa algo a ser valorizado numa época distante daquela em que Benjamin viveu.

A figura do narrador seria aquela dotada da faculdade de intercambiar experiências. Como os sábios, eles seriam magistrais no ofício de propagar ensinamentos e, através destes, atingir de modo instigante aqueles que os ouvem. Eles teriam o poder da transmissão – não apenas de suas próprias experiências, mas também de todas as outras que ouviram de outros narradores – e, assim, de contálas inteiras, fazendo-as passar de pessoa a pessoa. O narrador tem, portanto, uma função utilitária que consiste na transmissão de um provérbio, ensinamento moral, sugestão prática ou tudo aquilo que pode ser agrupado sob o nome de "conselho". Para Benjamin (1936b/1985), o conselho é tido como aquilo que jamais se fecha sobre si, não se tratando de, através dele, responder uma pergunta. Trata-se, pelo contrário, de algo que viabiliza a continuidade da experiência narrada. O conselho é algo que evita maiores explicações, não pretendendo, assim, almejar à exatidão. Cada ouvinte em potencial ficaria livre para interpretá-lo do modo como quiser, tendo como base a história contada. Também por trazer consigo todas as hesitações e angústias do narrador, o conselho admitiria infinitos desenvolvimentos (Gagnebin, 2009).

Trata-se, portanto, em conformidade com o texto benjaminiano, de salientar, em sua época, um curto-circuito na atividade de narrar uma experiência e de dar conselhos. E se tudo isto ocorre é porque "dar conselhos parece hoje algo de antiquado, é porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Em consequência, não podemos dar conselhos nem a nós mesmos nem aos outros" (Benjamin, 1936b/1985, p.200).

Temos, nesta passagem, certo lamento por algo que fora perdido, bem como todo o saudosismo por um conjunto de práticas que não encontravam mais lugar em seu tempo. No entanto, vale ressaltar que outras passagens do ensaio abrem espaço para além desse tom nostálgico sobre a questão. Este talvez seja o ponto mais surpreendente de sua abordagem.

Segundo Benjamin, se todo o processo de transmissão de uma narrativa vinha se extinguindo, isto se daria, justamente, porque naqueles tempos – assim como no nosso – o rosto da morte vinha assumindo outro aspecto. Ninguém mais conseguia ouvir os conselhos dos moribundos que, em seus leitos de morte, muito tinham a narrar. Isto porque, no decorrer dos séculos, a morte passou a se configurar como algo a ser insistentemente evitado, o que a impediria de exibir-se em toda a sua onipresença e força de evocação. De acordo com seus próprios termos, "a morte é cada vez mais expulsa do universo dos vivos" (Benjamin, 1936b/1985, p.207).

Por isto todas as práticas e políticas encarregadas de silenciar a morte ao máximo, tal como Benjamin observou nas instituições sociais de higienização e de promoção de saúde. Todas estas práticas conduziram os burgueses de seu tempo a habitarem espaços completamente depurados da morte e, mesmo diante de seu anúncio inevitável, os moribundos eram conduzidos aos tantos sanatórios e hospitais que vinham sendo construídos. Assim, em suas agonias, os homens eram destituídos de toda autoridade de narrar experiências – ao contrário do que ocorria na parábola de "Experiência e pobreza" –, restando-lhes o triste destino de morrer sozinhos e mudos (Benjamin, 1936b/1985).

Temos, portanto, um elo indissolúvel que liga o tema da morte à arte narrativa, de forma que quanto mais a primeira é evitada mais se extingue a faculdade de dar e receber conselhos. Nesta mesma perspectiva, o texto benjaminiano também abre espaço para uma metaforização e ampliação da temática da morte, de modo que ela passe a ser lida enquanto precondição geral de um ato de criação (Gagnebin, 2009). Conforme vimos acima em respeito ao conselho, foi ressaltado que seus ouvintes em potencial jamais seguem à risca a narrativa recebida. Pelo contrário, eles transformam as histórias narradas de modo a inventar algo de novo a partir delas. Assim, destacamos que o trabalho de transformar e de criar algo de novo a partir de um conselho implica necessariamente na promoção da morte do que fora narrado.

Daí a afirmação de que algo do narrador ainda permanece na história relatada, mas apenas enquanto meros vestígios a serem reinterpretados por parte dos seus ouvintes:

A narrativa [...] não está interessada em transmitir o 'puro em-si' da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro na argila do vaso. (Benjamin, 1936b/1985, p.205)

Nesta mesma linha de raciocínio, Benjamin também afirma que "somente uma memória abrangente permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas, por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte" (Benjamin, 1936b/1985, p.210). Portanto, nestas duas passagens, a morte é contemplada como precondição para o advento do novo. Daí a insistência de Benjamin em colocar que a memória do narrador é sempre breve. Suas histórias serão constantemente reapropriadas e reinventadas, transformando-se em fatos difusos articulados em uma rede que entrelaça todas as reapropriações e reinvenções por elas sofridas.

Assim, trazendo para a contemporaneidade estas considerações benjaminianas a respeito do elo que une morte e criação, mais uma vez, encontramos espaço para problematizar o viés saudosista e compensatório que tanto marca os laços sociais dos dias de hoje: por que tantas tentativas de evitar a morte já há muito anunciada disto que designamos de "autoridade simbólica"? Por que conservá-la a todo custo na forma de algum líder ou ideal valorizado pelas grandes massas? Por que, pelo contrário, não positivamos sua morte de modo a termos, com isto, a possibilidade de criar novas histórias, como "o personagem do rapaz que saiu de casa para aprender a ter medo"? (Benjamin, 1936b/1985, p.215).

Se, como Freud destacou, morte é disrupção ou se, como Benjamin bem delimitou, a morte é a chance de nos despojarmos de uma tradição, ela traria consigo um potencial fundamentalmente criativo. A morte destrói a vida, rompe com a segurança que ela ilusoriamente propicia e se opõe a quaisquer tentativas conservadoras. Se, por um lado, ela aponta para um fim, por outro, ela também indica que este fim é um recomeço. Tudo se passa como se a morte jamais se fechasse sobre si mesma, de modo a englobar, neste fechamento demolidor, toda a vida que ela destrói. Pelo contrário, desta destruição, sempre restarão ruínas e, é através delas, que poderá nascer uma nova vida.

Daí o potencial revolucionário da morte: é só a partir dela que uma nova vida pode advir. E, assim, morte e vida passam a ser igualmente valorizadas, ao contrário das tendências que problematizamos ao longo do texto que estimam somente aquilo que se encontra a serviço da vida. A morte, aqui, não representa apenas o fim da vida, mas também o seu início e, por que não dizer, sua precondição. Enquanto a morte não se fizer presente, a vida será estagnação. E se, de certo modo, a vida é até capaz de nos conduzir à constituição de novos laços, faz-se necessário denunciar que, por detrás destes mesmos laços, se esconderão sempre as mesmas tendências e clichês. Em outros termos, a vida, isenta e depurada da morte, pode até nos conduzir ao novo, mas este novo o é apenas em aparência. No fundo, ele talvez não passe do mesmo velho travestido – e muito bem travestido – de novo, como se subjacente a tal novidade, repousasse sempre a mesma invariante. Deste modo, a novidade, se tomada em sua acepção mais radical, só pode ser alcançada através da morte.

Assim, onde há morte e vida, não há apenas compensação e saudosismo. Há laços que se constroem e que se destroem para que se construam novos laços que também serão devidamente destruídos. Onde há vida e morte, há construções sucessivas que serão sempre dirigidas para suas destruições. O novo surge, aqui, na forma de um lampejo, no momento instantâneo em que a morte se faz presente. E, com ela, se inicia uma nova vida.

 

Referências

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Recebido em: junho de 2016
Aprovado em: abril de 2017

 

 

Ricardo Salztrager : Psicanalista, Mestre e Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Memória Social da UNIRIO. Programa de Pós-Graduação em Memória Social. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro.
1 Por "falência da autoridade simbólica" nos referimos, em linhas gerais, ao relativo declínio das instituições tradicionais. Nestas, seus líderes são dotados de uma espécie de autoridade (na família, o pai; na igreja, Deus; na escola, o professor, por exemplo) e, assim, se apresentam a todos os membros destas instituições enquanto símbolos do poder. A autoridade simbólica teria, dentre outras funções, a promoção da coesão do grupo e seu ordenamento através das leis e regulamentações que ela encarna.

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