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Aletheia

Print version ISSN 1413-0394

Aletheia vol.49 no.2 Canoas July/Dec. 2016

 

ARTIGOS TEÓRICOS - PROMOÇÃO DA SAÚDE

 

Racionalidade comunicativa como meio de promover relações humanizadas no campo da saúde: um olhar segundo Habermas

 

Communicative rationality as a means to promote humanized health relations according Habermas' point of view

 

 

Claudio Schubert; Dóris Cristina Gedrat

Universidade Luterana do Brasil

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RESUMO

No campo da saúde, a comunicação acolhedora, objetiva e que considere as especificidades pessoais e culturais dos usuários é central para promover o bem-estar do paciente. A teoria da ação comunicativa que busca a consensualidade, de Habermas, é um excelente suporte teórico para desenvolver, tanto em âmbito pessoal, profissional ou institucional, ações que se desdobram num ambiente acolhedor no campo da saúde. Deste modo, o presente ensaio teórico busca desenvolver a ideia de que o atendimento junto aos usuários nas instituições de saúde pode ser mais qualificado e humanizado à medida que tiver como fundamento a ação comunicativa que busca a consensualidade.

Palavras-chave: Racionalidade comunicativa, Humanização, Relações interpessoais.


ABSTRACT

As far as health is concerned, welcoming and objective communication, which takes into account personal and cultural specificities of its users, is essential for promoting the patient's well-being. In this sense, Habermas' communicative action theory that searches consensuality is an excellent framework on which to base development in personal, professional and institutional levels of actions that take place in a welcoming environment as far as health is concerned. Thus this theoretical essay aims at developing the idea that customer care in health institutions can be better qualified and humanized as far as the communicative action is based on the search for consensuality.

Keywords: Communicative rationality, Humanization, Interpersonal relationships.


 

 

Introdução

A sociedade ocidental foi construída e desenvolve-se na contemporaneidade a partir da orientação de diferentes racionalidades. Estas se evidenciam nas ações dos sujeitos e das instituições na construção das estruturas sociais e nos modos como as relações entre as pessoas, grupos e entidades acontecem (Habermas, 2011). No Brasil, as relações entre as pessoas pertencentes às diferentes classes sociais, nas relações profissionais ou no atendimento e prestação de serviços no campo da saúde ainda está centrada em demasia numa comunicação unidirecional que pode ser identificada com uma racionalidade autoritária, impositiva e instrumental. Por isso faz sentido falar em potencializar a humanização do atendimento à saúde, pois métodos unidirecionais facilmente tornam-se desumanos, especialmente porque a individualidade dos usuários não é cuidada com o zelo necessário (Ramos & Bortagarai, 2012). Além das ações instrumentais, existem, no entanto, racionalidades que possibilitam construir vivências mais humanizadas no estabelecimento de relações, e entre elas destaca-se a ação comunicativa que objetiva construir consensos e que apresenta uma proposição de inter-relação humana totalmente oposta à unidirecional.

Desse modo, entre as racionalidades que Habermas (2011) detalha na Teoria da Ação Comunicativa, duas servirão de base teórica para a reflexão a ser desenvolvida no presente ensaio teórico: a) a racionalidade estratégica, que é unidirecional e facilmente instrumentaliza as relações com os desdobramentos de suas ações; b) o modelo de ação comunicativa que leva ao entendimento que é construído a partir de consensos. Na intenção de que o presente texto tenha sentido propositivo buscou-se esta proposta de racionalidade que tem potencial para construir consensos e assim servir como base teórica que fundamenta esta reflexão. Do mesmo modo, entende-se que este paradigma tem maior consistência e relevância social, a partir da qual é possível construir decisões consensuais. Habermas mesmo explica como compreende esta ação comunicativa que leva ao entendimento, o conceito de racionalidade comunicativa leva consigo conotações que em última instância se referem à experiência central da capacidade de reunir sem coações e de fundar um consenso que tem uma fala argumentativa na qual distintos participantes superam a subjetividade inicial de suas concepções e a mercê da comunidade de convicções racionalmente motivadas se asseguram simultaneamente da unidade do mundo objetivo e da intersubjetividade do círculo da vida social no qual se movem (Habermas, 1997).

Para desenvolver a presente reflexão buscou-se dialogar com um documento referência para potencializar a humanização das relações na área da saúde: o HumanizaSUS (Brasil, 2004) do Ministério da Saúde. Este documento tem como foco principal os públicos atendidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas seus parâmetros podem servir como referenciais para o campo da saúde como um todo. O HumanizaSUS (Brasil, 2004) estabelece a política de humanização e entre os diferentes tópicos abordados tangencia como os processos comunicativos deveriam se estabelecer. Fica bastante evidente, no documento como um todo e especificamente nas vezes em que fala do papel da comunicação no processo, que um novo paradigma de relações comunicativas se faz necessário no universo da saúde no Brasil. Nas suas diretrizes gerais para a implementação da Política Nacional de Humanização nos diferentes níveis de atenção no primeiro tópico fala em "ampliar o diálogo entre os profissionais, entre os profissionais e a população, entre os profissionais e a administração, promovendo a gestão participativa" (Brasil, 2004, p.12). Assim, o HumanizaSUS (Brasil, 2004) aproxima-se bastante, nos seus objetivos de concretização da proposta, da racionalidade habermasiana que busca os entendimento pela construção de consensos.

Para a construção de uma relação que seja humana, dialógica e consensual no campo da saúde o valor confiabilidade entre as partes tem grande relevância, pois os "usuários, de modo geral, ao avaliarem o cuidado prestado, reconhecem quando os profissionais demonstram respeito, atenção, elo de afetividade, confiança e credibilidade" (Schimith, Simon, Brêtas, & Budó, 2011, p.482).

Nesse aspecto, a ação comunicativa do profissional na condução das suas ações em relação ao paciente deve fortalecer a confiabilidade, proporcionando-lhe maior autonomização, compreensão e apoio no processo. Dizem que "se a concentração econômica salta aos olhos em várias estatísticas, nem nos damos conta do quanto (e como) o direito de falar e ser ouvido é também fortemente concentrado, excluindo amplas parcelas da população do debate público" (Araújo & Cardoso, 2015, p.126). Isso significa que nem sempre a comunicação interpessoal no campo da saúde é humanizadora. Referindo ao atendimento clínico de uma instituição lembram que os vínculos estabelecidos com superficialidade, as "raras atitudes de acolhimento e de respeito com o outro, distanciamento na produção de cuidado em saúde e comportamentos inoportunos entre colegas marcaram vivências cotidianas ainda distantes dos ideais de humanização" (Binz, Menezes Filho & Sauper, 2010, p.28). Por isso a importância em buscar estabelecer relações interpessoais a partir de uma base teórica que tenha no seu fundamento a dialogicidade. Desse modo, pode-se perceber identificação próxima com a base teórica de Habermas que será desenvolvida na continuidade com o foco nas inter-relações do campo da saúde.

Assim sendo, no presente ensaio teórico, constata-se que uma racionalidade que possibilita e fomenta ações comunicativas na busca por consensos na área da saúde e na busca por soluções conjuntas é promissor aos usuários, agentes de saúde, gestores, população em geral e ao Estado.

Ação comunicativa e sua relação com a promoção da saúde e o desenvolvimento humano.

Habermas entende que numa ação orientada ao entendimento, a relação entre sujeito e mundo social acontece de maneira reflexiva e não diretiva. Consequentemente, supõe-se que os sujeitos dominam as relações linguisticamente estabelecidas na sociedade e nela se movimentam de modo cooperativo na busca por entendimentos (Habermas, 2011). Os sujeitos em interação fazem uso de seus atos de fala no qual revelam suas intencionalidades com o intuito de esclarecer o sentido do fato, isto é, o porquê da ação que tem por objetivo a concretização de determinadas finalidades.

O conceito de ação comunicativa força ou obriga a considerar também os atores como falantes e ouvintes que se referem a algo no mundo objetivo, social e subjetivo e se inter-relacionam reciprocamente a esse respeito com pretensões de validez que podem ser aceitas ou colocadas em situação de juízo (Habermas, 1997).

Por meio destas ações comunicativas onde os participantes são falantes e ouvintes simultaneamente, os sujeitos buscam se entender sobre sua própria situação, podendo, assim, coordenar de comum acordo seus próprios planos. Esse acordo comum entre os sujeitos interessados em determinado assunto acontece de modo integrado e cooperativo. Esta é uma prática distinta da visão unidirecional que normalmente existe nas instituições onde um emite as informações e os outros a recebem passivamente. É por isso que na prática unidirecional a fragmentação e a verticalização das relações compromete o trabalho em equipe bem como o atendimento aos usuários. (Brasil, 2000).

É nesse sentido que a compreensão habermasiana pode auxiliar quando diz que um sujeito que queira se orientar pelo entendimento deverá iniciar, com sua emissão, três pretensões de validez. Ou seja, a pretensão de que o enunciado que está fazendo seja verdadeiro (ou que se cumpram, em efeito, as condições de existência do conteúdo proposicional mencionado); de que a ação pretendida é correta por referência a um contexto normativo vigente (o de que o contexto normativo a que a ação se refere é legítimo) e; de que a intenção manifestada do falante é, em efeito, a que o falante expressa (Habermas, 1997).

Isso significa que os sujeitos em interação, na busca pelo entendimento, apresentam suas pretensões daquilo que julgam ser válido por intermédio de atos de fala. Essas pretensões de validez podem ser classificadas em "pretensões de verdade, pretensões de correção, pretensões de sinceridade" (Habermas, 1989, p.79). a) As pretensões de verdade se referem aos aspectos do mundo objetivo, isto é, da totalidade de elementos nele existentes. Segundo Habermas quando "um falante faz um enunciado, conta algo, explica algo, expõe algo, diz algo ou discute algo, busca um acordo com o ouvinte sobre a base de um reconhecimento de uma pretensão de verdade" (Habermas, 1999, p.395). b) As pretensões de correção, por sua vez, dizem respeito ao mundo social, isto é, referem-se à totalidade das relações interpessoais que estão reguladas de modo legítimo pelo grupo social. c) E, por último, as pretensões de sinceridade dizem respeito ao mundo subjetivo próprio, isto é, àquele universo de vivências ao qual os sujeitos têm acesso e a partir do qual formam sua interioridade (Habermas, 1989).

Assim o pensamento de Habermas assinala que o "essencial para a ação orientada ao entendimento é a condição de que os participantes realizem de comum acordo seus planos em uma situação de ação definida em comum" (Habermas, 1997, p.493). Com essa estratégia, são eliminados dois riscos: a) o perigo de que aconteça um entendimento falido, ou seja, um mal-entendido ou um desentendimento; b) um plano de ação falido, ou seja, o risco de que essa ação possa fracassar, pois se evita que seja construído sobre um jogo de aparências.

Segundo Habermas (2011) para que uma ação possa ser exitosa, é necessário e fundamental que haja entendimento por parte dos envolvidos. O entendimento é a chave central para que os participantes possam alcançar seus fins via ação comunicativa. É por isso que as falas autorizadas presentes nos processos comunicativos das áreas da educação, relações profissionais e saúde tendem a ser cada vez mais inócuas, pois se diz aquilo que é o politicamente correto e com isso se minimiza o outro como sujeito, se vê nele somente um receptor de informações.

A construção de relações nas ações práticas no campo da saúde

Muito sinteticamente é possível dizer que desde o início da cultura grega, especialmente a partir dos filósofos pré-socráticos, a unidade do ser humano entre corpo e mente era compreendida como algo indissociável (Bornheim, 1993). A consequência deste paradigma foi de que nos períodos posteriores as inter-relações comunicativas entre pacientes e médicos se baseavam na confiança, na familiaridade e no respeito integral às crenças e valores dos indivíduos (Binz et al., 2010). Esta unidade começou a se dissolver a partir da ciência moderna, que tem o filósofo Descartes como representante de destaque, onde a compreensão crescente foi de que a mente deve dominar o corpo e determinar os procedimentos com base no verificável concretamente (Reale & Antiseri, 2004). A ideia das enfermidades serem psicossomáticas foi perdendo espaço conceitual e prático. Como consequência desta nova forma de compreensão acontece um esfriamento das relações humanas e um distanciamento entre pacientes, médicos e profissionais da saúde. "Estes rumos possibilitaram a construção do modelo biomédico de atenção à saúde, caracterizado pelo biologicismo, centrado na figura do médico, individualista e extremamente especializado, com ênfase na medicina curativa e na exclusão de práticas alternativas" (Binz et al., 2010, p.29). A partir desta racionalidade, a comunicação entre os setores que formam as instâncias da área da saúde também foi sendo alterada, de conceitos que se caracterizam em relações mais próximas para processos emocionalmente mais distanciados, onde a razão lógica cada vez mais ocupa os espaços antes reservados às manifestações da sensibilidade.

Araújo e Cardoso (2015), referindo-se à contemporaneidade, buscam descrever como a comunicação deveria ser compreendida no universo da saúde: como uma relação. Desse modo, esta compreensão se assemelha ao paradigma da ação comunicativa desenvolvida por Habermas. Nesse sentido, é possível sublinhar que a comunicação não pode ser compreendida fundamentalmente como "transmissão de informações, mas como relação, relação entre pessoas, ideias, textos, projetos, temporalidades, sentidos que nem sempre são concordantes ou simultâneos" (Araújo & Cardoso, 2015, p.117). Nesse aspecto, compreender a comunicação como um processo de relações envolve uma realidade social mais ampla que se corporifica num conjunto de manifestações, vozes, interesses e visibilidades. Assim, as relações envolvem diferentes interesses, conflitos, divergências, concordâncias, tensões e negociações.

A humanização das relações na saúde por meio de uma ação é uma elaboração contínua das relações de cidadania. "Trata-se, portanto, de olhar cada sujeito em sua especificidade, sua história de vida, mas também de olhá-lo como sujeito de um coletivo, sujeito da história de muitas vidas" (Brasil, 2004, p.9). Os processos comunicativos são centrais para possibilitar a integralidade da atenção à saúde, pois, é "numa comunicação em que os sujeitos sejam escutados de maneira qualificada e satisfatória, podem interagir e compartilhar suas vivências" (Schimith, et al., 2011, p.483). Uma comunicação que seja dialógica e se propõe a escutar o outro facilmente percebe e valoriza as especificidades culturais, comunitária e pessoais, o que numa racionalidade unidirecional não acontece.

Habermas (1989) detalha como se dá o processo de construção de uma relação que, segundo o filósofo, poderíamos chamar de consensual. Na medida em que um confia e aceita o discurso do outro, entram em vigor as obrigações que são uma consequência do passo anterior. a) Se o discurso for de ordem e instrução, o outro deve proceder seu cumprimento, como, por exemplo, seguir as prescrições do médico ou as orientações do agente de saúde. b) Se forem promessas e declarações evidenciadas, seu cumprimento deve ser executado pelo falante, no caso do médico ou do agente de saúde em proceder os respectivos encaminhamentos, como a realização de exames, por exemplo. c) No caso de acordos e contratos, os dois lados, isto é, falante e ouvinte, devem cumpri-los. Exemplificando, o médico ou o agente de saúde prescrevem e orientam os procedimentos e com isso geram expectativas que, se cumpridos estes procedimentos se obterá determinados resultados, e no caso do paciente, este deverá seguir e praticar as orientações do profissional da saúde. d) As recomendações e advertências com teor normativo também devem ser cumpridas pelas duas partes. Por exemplo, tanto o profissional da saúde como o paciente devem seguir as normatizações de controle de saúde existentes diante de determinadas moléstias (Habermas, 1989).

Segundo Araújo e Cardoso (2015) referindo-se aos princípios fundadores do SUS lembram que a "síntese de todo o movimento social que levou ao SUS, é o que afirma a saúde como um direito de todos os cidadãos, sendo sua garantia dever do Estado brasileiro".

Conforme Habermas (2011), consequentemente, a distinção entre um fato social reconhecido intersubjetivamente, o seu reconhecimento como norma aceita e efetivamente como fato concretizado constitui-se de diferentes passos do processo. Isso significa que, mesmo em relação a uma norma vigente, esta pode ser considerada legítima perante a organização social, mas encontrar resistência na sua aceitação junto aos grupos sociais aos quais se destina, isto é, nem toda a norma que tem sua pretensão de validez assegurada discursivamente tem necessariamente o reconhecimento concreto. E especificamente no caso do acesso à saúde no Brasil, a existência do SUS, sua normatização e aceitação destas regras pela população terá maior ou menor validez pela sociedade diante da concretização maior ou menor do potencial de atendimento e da qualidade dos serviços prestados. Assim, as normas que têm sua pretensão de validez reconhecida podem desempenhar uma dupla função, remetendo tanto à convicção de sua relevância quanto à recusa da mesma pela constatação da ineficácia na concretização da proposta. Isso mostra que, para ser duradoura, a norma também precisa encontrar na sociedade a sua validade prática e efetiva.

Em primeiro lugar, em relação às atitudes éticas o documento HumanizaSUS diz que são "éticas porque tomam a defesa da vida como eixo de suas ações" (Brasil, 2004, p.8). Isso significa que as ações éticas devem estar presentes nos processos que se estabelecem entre os sujeitos. Assim, pode-se compreender que ética é a prática de ações que são positivas para a coletividade, para a organização e para o sujeito. Assim, a ética é a segurança de que as relações que estão se estabelecendo entre os sujeitos são verdadeiras e que os atores envolvidos estão sendo sinceros. Segundo Habermas, o fato de "que um falante possa motivar racionalmente um ouvinte à aceitação de semelhante oferta não se explica pela validade do que é dito, mas, sim, pela garantia assumida pelo falante" (Habermas, 1989, p.79). Isso significa que essas inter-relações acontecem via ações dos sujeitos que são comunicativas. No "agir comunicativo um é motivado racionalmente pelo outro para uma ação de adesão" (Habermas, 1989, p.79). Esta atitude ética acontece pelas ações que são comunicativas, pois é pelas inter-relações que os atores estabelecem entre si que as relações são construídas e onde a presença da ética se faz necessária. É importante lembrar que a Organização Mundial de Saúde tem como propósito fortalecer e ampliar a colaboração entre os setores da educação e da saúde, articulando valores éticos (Buss & Filho, 2007). Este processo da construção de ações com base na ética somente é possível numa dinâmica onde existe participação de todos os envolvidos no processo. E este envolvimento acontece, segundo a compreensão de Habermas, pela comunicação.

Em segundo lugar, conforme o documento HumanizaSUS (Brasil, 2004), em relação às atitudes estéticas sabe-se que o ser humano, diferentemente dos outros animais tem a capacidade criativa onde constrói normatizações que regulam sua vida. Assim, estas atitudes são "estéticas porque estão voltadas para a invenção das normas que regulam a vida, para os processos de criação que constituem o mais específico do homem em relação aos demais seres vivos" (Brasil, 2004, p.8). O filósofo Aristóteles ensina que a capacidade criativa do homem se dá por meio da linguagem e é exatamente isso que acontece na construção de relações no campo da saúde. Aqui como linguagem se pode compreender a verbal, visual, gestual, a metalinguagem, etc, que são recursos decisivos quando acontece uma inter-relação entre as pessoas. Segundo o pensamento aristotélico, o homem como um ser sociável tem capacidade de externar a palavra (lógos). "O homem só, entre todos os animais, tem o dom da palavra; a voz é sinal da dor e do prazer, e é por isso que ela foi também concedida aos outros animais" (Aristóteles, 2009, p.16).

A terceira atitude, conforme consta no documento HumanizaSUS, para alcançar a qualificação da atenção e da gestão em saúde é a postura política: "Políticas porque é na pólis, na relação entre os homens que as relações sociais e de poder se operam, que o mundo se faz" (Brasil, 2004, p.8). Novamente o filósofo Aristóteles pode nos ajudar a compreender o sentido da política e da pólis (cidade). Para ele, a função da pólis é proporcionar bem-estar ao cidadão. Como ser político, o homem se reúne e se organiza numa comunidade. Nisso, conforme Aristóteles consiste a diferença entre o ser humano e o animal, pois o homem não tem um ambiente que lhe é naturalmente dado, mas precisa construí-lo. Na organização da pólis o ser humano revela o seu ser político, pois a cidade precisa ser administrada corretamente. Entende-se aqui o correto dentro dos princípios da democracia grega e não de um governo tirano. Por isso, a pólis adquire um significado tão importante para o cidadão.

Sabemos que uma cidade é como uma associação, e que qualquer associação é formada tendo em vista algum bem; pois o homem luta apenas pelo que ele considera um bem. "As sociedades, todas elas, portanto, propõem-se algum lucro – especialmente a mais importante de todas, visto que pretende um bem mais elevado, que envolve as demais: a cidade ou a sociedade política" (Aristóteles, 2001, p.11).

A humanização das relações no campo da saúde

O processo de comunicação que considera todos os envolvidos falantes e ouvintes simultaneamente numa ação continuada é central para a ideia de humanizar os contextos de relações no campo da saúde. A compreensão de uma ação comunicativa integrada considera as especificidades dos sujeitos inseridos em contextos de transformações onde as modernas tecnologias da comunicação pode desempenhar um papel importante. Considera-se que a maioria dos usuários da saúde tem acesso, com maior ou menor intensidade, às tecnologias de informação. Esses grupos sociais que de um ou outro modo estão permanentemente conectados não se satisfazem mais com as mensagens unidirecionais, pois aprenderam a ser emissores de informações, por mais restrita que essa prática possa ser. Desse modo, buscam uma participação ativa e efetiva no seu dia a dia, especialmente em se tratando de temas ligados a saúde. Nesse aspecto é importante que os profissionais da saúde tenham habilidades para bem usar as tecnologias de comunicação nos serviços prestados (Binz et al., 2010). Isso significa que uma interação mais intensa entre usuários, gestores e agentes de saúde precisa ser vista como uma política permanente e não somente como um programa localizado no tempo e no espaço (Brasil, 2004).

A partir da perspectiva habermasiana é fundamental alargar essa compreensão, onde a comunicação passa a ser vista como um processo no qual a informação é apenas um dos elementos das inter-relações sociais e pessoais que o autor chama de ação comunicativa (Habermas, 2011). O texto HumanizaSUS (Brasil, 2004) vai nessa direção quando fala da necessidade de existir uma política transversal onde sejam "ultrapassadas as fronteiras, muitas vezes rígidas, dos diferentes núcleos de saber/poder que se ocupam da produção da saúde".

Isso significa estreitar os vínculos com os usuários dos diferentes sistemas de saúde e, nesse aspecto, uma ação comunicativa horizontal se faz necessária, especialmente se o usuário consegue perceber a presença de sentimentos e emoções dos interlocutores (Ramos & Bortagarai, 2012).

A comunicação como promotora da saúde e humanizadora das relações tem a presença marcante da participação dos setores envolvidos nas ações de saúde. Assim o procedimento unidirecional que tem como foco principal a informação na relação emissor-receptor, torna-se limitado, por isso é central "perceber a comunicação não como mera transmissão de informações, mas como relação, relação entre pessoas, ideias, textos projetos, temporalidades, sentidos que nem sempre são concordantes ou simultâneos" (Araújo & Cardoso, 2015, p.117).

A comunicação vista como um processo relacional extrapola o papel unidirecional de bem informar, pois se percebe que nesta compreensão a comunicação integra uma realidade maior onde existem "conflitos, divergências, tensões e negociações" (Araújo & Cardoso, 2015, p.117) e onde, fundamentalmente, é necessária uma racionalidade includente para dar conta do processo. Para que a humanização possa acontecer no atendimento prestado é fundamental que ela seja efetuada com ações interdisciplinares.

É preciso desenvolver outras atitudes, como escuta ativa e qualificada, empatia, humildade, reflexão crítica e comprometimento, assim como habilidades intimamente correlatas, como as de comunicação, pois não se concebe interdisciplinaridade sem relacionamento, relacionamento sem comunicação, e comunicação sem atitudes (Binz et al., 2010).

Nesse sentido, a comunicação humanizadora no campo da saúde supõe a troca de saberes entre pacientes, familiares e a equipe de profissionais da saúde por meio de uma ação dialógica. "Trata-se, então, de investir na produção de um novo tipo de interação entre os sujeitos que constituem os sistemas de saúde e deles usufruem, acolhendo tais atores e fomentando seu protagonismo" (Brasil, 2004, p.8).

É nesse aspecto que a compreensão da ação comunicativa orientada ao entendimento pode contribuir, pois nesta racionalidade os sujeitos não se referem mais a intenções do mundo objetivo, dado e estabelecido, mas "relativizam suas emissões sobre algo no mundo tendo presente a possibilidade de que a validez delas pode ser posta em questão por outros atores" (Habermas, 1997, p.493). Segundo o pensamento habermasiano, a busca pelo entendimento funciona como elemento que coordena a ação dos envolvidos, conforme ele mesmo explica.

Os participantes na interação se colocam de acordo sobre a validez que pretendem que tenham suas emissões, quer dizer, reconhecem intersubjetivamente as pretensões de validez que reciprocamente iniciam de uns para outros. Um falante faz valer uma pretensão de validez suscetível de crítica ao referir-se com sua emissão pelo menos a um mundo e faz uso da circunstância de que tal relação entre ator e mundo seja acessível em princípio a um enjuizamento objetivo para desafiar seu próximo a fim de que ele tome uma postura racionalmente motivada (Habermas, 1997).

Isso significa que não existe verdade inquestionável, mas a ação comunicativa precisa ser construída entre as partes envolvidas no processo social. Nesse aspecto, não tem espaço a ideia unidirecional existente num percentual das nossas instituições que entendem ser o papel principal do agente da comunicação informar, esclarecer e orientar ações e campanhas. Em determinadas situações estas ações se justificam e são necessárias, mas é imprescindível alargar esse paradigma e perceber que as ações comunicativas precisam desenvolver-se na ideia da relação entre os envolvidos num determinado processo.

E nesse aspecto Habermas nos ajuda quando diz que a "situação de ação interpretada circunscreve um âmbito tematicamente aberto de alternativas de ação, de condições e meios para a execução de planos" (Habermas, 1997, p.494). Assim, para uma ação orientada ao entendimento, o sujeito tem como suporte o mundo da vida e as restrições que as circunstâncias impõem na execução desse plano são vistas como elementos ingredientes dessa situação.

Isso significa que "nunca somos os primeiros ou os únicos a falar sobre algum assunto e quando produzimos ou lemos um livro, fazemos ou assistimos a um programa de rádio, televisão ou mergulhamos em qualquer outro texto, estamos de alguma forma dialogando com parte deste repertório social que nos antecede" (Araújo & Cardoso, 2015, p.117). É isso que o documento do Ministério da Saúde na sua política de humanização propõe quando assinala que a "utilização da informação, da comunicação, da educação permanente e dos espaços da gestão na construção de autonomia e protagonismo de sujeitos e coletivos" (Brasil, 2004, p.10).

Habermas completa esse pensamento quando diz que é fundamental "mostrar que não podemos entender o que significa provocar linguisticamente efeitos no ouvinte se antes não sabemos o que significa dizer que falante e ouvinte podem chegar a um acordo sobre algo com a ajuda de atos comunicativos" (Habermas, 1997, p.499).

Para tal, o processo comunicativo humaniza o contexto na medida em que cria relações virtuosas entre as partes. Por isso é fundamental abrir mão de paradigmas unidirecionais, nos quais o emissor é o sabedor da verdade e os receptores são os destinatários que precisam incorporar e aceitar essas verdades prontas e acabadas. Compreende-se que a comunicação é uma rede formada por muitos fios, que correspondem às vozes sociais que expressam os discursos, opiniões, saberes, sentimentos diferentes, que circulam em muitas e variadas direções. Essa dinâmica aproxima-se mais dos processos comunicacionais, mesmo os não virtuais, pois essa riqueza de vocês e conexões esta presente na comunicação, quer seja mediada por tecnologias ou não (Araújo & Cardoso, 2015).

Quando Habermas (2011) fala de uma ação comunicativa que busca o entendimento, ele supõe que exista uma relação entre as partes envolvidas no processo que busca objetivos comuns e faz isso com uma intencionalidade que tem como base a consensualidade. Deste modo, não existem verdades prontas, mas cada qual entende que seu argumento tem validade, mas para tal precisa ouvir o outro na ideia de um comportamento metodológico dialético.

E nesse aspecto, quando se busca refletir sobre o processo comunicativo que possa humanizar as relações em determinado contexto pressupõe-se que a população, tida como 'público-alvo', 'receptores' da comunicação institucional, pouco ou nenhum acesso teve aos meios e espaços de expressão e debate. Entende-se porque a democratização da comunicação é reivindicada por movimentos da saúde, junto com o acesso ampliado e facilitado às informações necessárias para a participação e o controle sociais. "Nessa luta, movimentos e entidades reivindicavam também o direito de falar, serem tratados como interlocutores e não apenas como destinatários de mensagens e campanhas" (Araújo & Cardoso, 2015, p.121).

Para a participação de todos os envolvidos nessa construção seja efetiva, é necessário que haja equidade na comunicação. Talvez um dos princípios mais difíceis de levar à prática seja exatamente o da equidade, pois ele não só chama a atenção para as desigualdades nas condições de vida e saúde, como para a necessidade de tratar diferentemente os desiguais (Araújo & Cardoso, 2015). Comunicar é muito mais do que falar-ouvir, ou compartilhar a mesma língua. A capacidade de se comunicar é dada pela capacidade de contextualizar. Como os contextos estão continuamente se transformando, também a comunicação não pode ser um processo estanque e unilateral, onde o emissor sempre seja o sistema ou os agentes de saúde e o receptor os usuários.

 

Considerações finais

Percebe-se que a comunicação no ambiente das relações interpessoais é um tema complexo, mas de fundamental importância na intenção de potencializar a humanização no campo da saúde. Assim, no presente texto buscou-se demostrar que toda a comunicação humana está alicerçada em determinada racionalidade, ou racionalidades. Mesmo que a comunicação verbal seja a mais evidenciada, isso não significa que esta forma de expressão seja de fato a mais relevante nas inter-relações entre usuários, profissionais da saúde e familiares. O fundamental é perceber, e este é o enfoque central do presente ensaio teórico, que as ações comunicativas, sejam por meio de emissões verbais, escrita, iconografia, linguagem do corpo, atitudes comportamentais, mídias ou redes sociais refletem, na interação com o outro, paradigmas pessoais, institucionais e tradicionais arraigados na cultura e em determinadas racionalidades.

Assim é fundamental perceber que se o profissional da saúde tiver como base para a sua ação como indivíduo uma racionalidade unidirecional, na sua ação profissional, na interação com os usuários terá grandes chances de ativar uma comunicação instrumentalizada.

Por este motivo é necessário dar um passo em frente na reflexão, pois resolve muito pouco intensificar o uso de tecnologias ou redes sociais de comunicação se a base teórica, a racionalidade que fundamenta o profissional não for condizente com a proposição maior. Isso significa que para a concretização da proposta do HumanizaSUS (Brasil, 2004), no aspecto da inter-relações comunicativas, por exemplo, é pré-requisito que os profissionais da saúde estejam imbuídos com uma proposta de ação comunicativa que tem como consequências a proposição de consensos segundo compreensão de Habermas (2011), ou outras racionalidade e metodologias aderentes a este paradigma.

Nesse aspecto, sabe-se que o conceito de ambiente saudável é fundamental para a existência de uma comunicação integradora que precisa considerar o modo como as sociedades se organizam, constroem a reinterpretam os ambientes socioculturais, com as necessidades de cada grupo social, seus direitos e deveres à qualidade de vida (Focesi, 2007).

Por isso o texto HumanizaSUS (Brasil, 2004) fala em "implementar um sistema de comunicação e de informação que promova o autodesenvolvimento e amplie o compromisso social dos trabalhadores de saúde. A base a partir da qual uma proposta nesses moldes poderia ser concretizada encontra-se na racionalidade que busca o entendimento e assim contribui para a criação de ambientes saudáveis fundando-se no argumento dialógico racionalmente sustentável (Habermas, 2011).

 

Referências

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Endereço para contato
E-mail: claudio.schubert@ulbra.br

Recebido em: julho de 2017
Aprovado em: setembro de 2017

 

 

Claudio Schubert: Graduação em Comunicação Social – Jornalismo – e Teologia. É Doutor em Educação pela UFRGS. É docente do curso de Comunicação Social e integra a equipe de docentes do Programa de Pós- Graduação em Promoção da Saúde da ULBRA.
Dóris Cristina Gedrat: Graduação em Letras Português/Inglês pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Mestrado e Doutorado em Linguística Aplicada pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora no Programa de Pós-Graduação em Promoção da Saúde e no curso de Letras da Universidade Luterana do Brasil.

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