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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.50 no.1-2 Canoas jan./dez. 2017

 

ARTIGO TEÓRICO - PROMOÇÃO DA SAÚDE

 

A saúde ambiental na cidade: novas territorialidades e a construção de espaços saudáveis

 

Environmental health in the city: new territorialities and the construction of healthy spaces

 

 

Marla Kunh1, I; Gehysa Guimarães Alves2, II; Nádia Teresinha Schröder3, II; Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts4, III

ICoordenadoria Geral de Vigilância em Saúde
IIUniversidade Luterana do Brasil
IIIEspaço Terapêutico Bororó 25

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho é de revisão teórica e tem como objetivo refletir sobre a saúde ambiental e a construção de espaços saudáveis, promotores da saúde. Assim, fez parte deste estudo a investigação sobre a interface saúde e ambiente na promoção da saúde; a territorialidade e a saúde ambiental na cidade. Pode-se concluir que os fatores que contribuíram para a crise nas cidades são espaços múltiplos e complexos. No entanto, a falta de gerenciamento ambiental integrado e de redes intersetoriais fazem com que não se consiga olhar para o território de forma mais integradora, e não se perceba como o processo saúde/doença é influenciado pelo território no qual vivem as pessoas.

Palavras-chave: Saúde ambiental, espaço saudável, territorialidades, promoção da saúde.


ABSTRACT

This work is of theoretical review and aims to reflect on environmental health and building healthy spaces, health promoters. So, was part of this study research on the interface and environmental health in health promotion; and territoriality and environmental health in the city. It can be concluded that the factors that contributed to the crisis in the cities are multiple and complex. However, the lack of integrated environmental management and intersectoral networks make if you can't look at the territory of more integrative way, and is perceived as the health / disease process is influenced by the area in which people live.

Keywords: Environmental health, healthy space, territoriality, health promotion.


 

 

Introdução

A saúde esteve presente no processo de reconstrução da democracia no Brasil, tendo como um dos marcos a concretização do Sistema único de Saúde/SUS. Embora os avanços reconhecidos da universalização, integralidade e participação social, o SUS que está presente, seja nas unidades de saúde ou nos ambulatório e hospitais, difere do idealizado pela Reforma Sanitária. Esta desarmonia existente entre o desejado e o real é resultado de mudanças no contexto político, social e econômico brasileiro e da globalização (Netto, Carneiro & Aragão, 2006). Apesar dos grandes avanços obtidos com a consolidação do SUS, como a descentralização da gestão, a criação dos Fundos de Saúde, o fortalecimento da rede pública, o aumento da cobertura de serviços de nível básico, o funcionamento dos conselhos de saúde, o desenvolvimento do sistema nacional de vigilância da saúde, e a política de medicamentos genéricos, ainda identificam-se importantes dilemas e grandes desafios. Neste contexto, parcelas significativas da população brasileira são submetidas à desestabilização de práticas socioespaciais e laços de sociabilidade em decorrência de processos desterritorializantes (Haesbaert, 2004). Consequentemente, esta situação, proporciona a introdução de novos padrões e hábitos culturais, os quais interferem diretamente em dimensões de acesso a saneamento ambiental, e de alterações nos padrões alimentares e de moradia. Acarretam a incidência de doenças, tais como as de veiculação hídrica, entre as quais as zoonoses, ligadas aos fatores biológicos do ambiente.

A mudança da percepção ambiental planetária vem influenciando a visão conceitual de saúde no Brasil. Embora essa formulação conceitual esteja ainda em processo, já é possível perceber a construção de agendas comuns na relação saúde/ambiente. é importante o olhar sobre a saúde a partir da ampliação de indicadores e de uma análise transversal: condições de alimentação, habitação, ambiente, educação, renda, trabalho, emprego, lazer, liberdade, acesso à posse da terra e a serviços de saúde (Cohen, Kligerman, Monteiro, Cardoso & Barcelos, 2011). Esse processo de construção da referência conceitual da interface entre saúde e ambiente, com vistas à implementação de uma política de saúde para este fim, recoloca na ordem do dia a necessidade de "aprimoramento" do atual modelo de atenção do SUS. A agenda da promoção da saúde deve ser compreendida em uma dimensão na qual a construção da saúde é realizada fundamentalmente, embora não exclusivamente, fora da prática das unidades de saúde, ocorrendo nos espaços do cotidiano da vida humana, já que passou a ser compreendida como qualidade de vida. Diante dessa complexidade, não pode ser mais responsabilidade exclusiva do setor saúde, seus problemas devem ser enfrentados a partir de ações intersetoriais e interdisciplinares (Heidmann, Almeida, Boehs, Wosny & Monticelli, 2006). Necessita de um Estado capaz de reduzir as diferenças e assegurar a igualdade de oportunidades, possibilitando a realização das melhores opções possíveis para garantir a sua saúde (Alves, 2006). Assim, o grande desafio atual está em construir uma cidade saudável, desenvolvendo políticas públicas capazes de promovê-la, e investindo em ações que incidam positivamente na vida das pessoas (Silva, Sena, Grillo & Horta, 2010).

Seja nos ambientes dos processos produtivos e na dinâmica da vida das cidades e do campo, deve-se buscar compreender o ambiente como um território vivo, dinâmico, reflexo de processos políticos, históricos, econômicos, sociais e culturais, no qual se materializa a vida humana e a sua relação com o universo (Neto, et al., 2006). Nesta perspectiva, as ações de saúde ambiental devem ser desenvolvidas de forma a observarem os riscos gerados por processos produtivos que afetam a saúde humana.

No conceito de espaço está incluída a habitação definida como: refúgio físico (casa) no qual o indivíduo reside com sua família sob um mesmo teto; meio exterior (entorno) do refúgio físico (casa), caracterizado pelo ambiente físico e psíquico e, por fim, os vizinhos (grupo de indivíduos), ou seja, aqueles que habitam o refúgio físico e são identificados como comunidade (Cohen, 2004). A caracterização de habitação saudável, necessário para a saúde física, psíquica e emocional, deve ser realizada levando-se em consideração determinadas condições: permanência segura; urbanização segura, obtida a partir de infraestrutura e de espaços adequados e suficientes para um ambiente sadio; serviços básicos de qualidade; bens de consumo seguros e eficientes; ambiente externo no qual seja possível de se estabelecer a comunicação e a colaboração adequada com a comunidade; e hábitos comportamentais que possam promover a saúde (OPS, 2006).

A habitação saudável se transformou em um campo teórico, prático, metodológico e de intervenção que aborda os problemas de saúde e seus determinantes e deve ser vista como uma estratégia fundamental para a promoção da saúde (Cohen, et al., 2011). Esse ambiente foi conceituado de forma ampla englobando, além das dimensões físicas, os fatores sociais, políticos, econômicos e culturais, com ênfase na necessidade do desenvolvimento de ambientes saudáveis, um dos campos da promoção da saúde (Declaração de Sundsvall, 1991). Pensar no ambiente como um habitat humano é direcionar o olhar para o perfil de saúde da população brasileira, observando o quadro de saúde atual e os diferentes contextos socioambientais em que esta está inserida. Este cenário é composto por diferentes questões. A primeira revela, predominantemente, doenças cardiovasculares e neoplásicas, respectivamente primeira e terceira causas de óbito no país, cuja tendência crescente nos últimos dez anos acompanha o envelhecimento da população. Aqui se considera os efeitos das condições genéticas, de vida e trabalho vivenciados pelas populações, principalmente aquelas expostas a determinados poluentes ambientais. A segunda são as Doenças Infecto-parasitárias, nitidamente determinadas pelas condições socioambientais. A terceira são as causas externas, que englobam os acidentes e violências. Esses se constituem como acontecimentos socioambientais produtores de traumas, lesões e doenças (Neto, et al., 2006).

O perfil epidemiológico brasileiro, alterado com a incorporação crescente de novos agravos à saúde, decorrentes da industrialização e urbanização tardia e acelerada, exige um novo modelo de vigilância à saúde com ênfase na promoção da saúde. Na compreensão da epidemiologia de doenças ligadas ao meio, é fundamental que o espaço seja visto como categoria de análise, sob pena de não contemplar processos importantes da realidade. Assim, a saúde ambiental tem o desafio de observar a saúde na perspectiva da vida cotidiana das pessoas, dos determinantes da saúde e da configuração do território no qual vivem os sujeitos e convivem com a pluralidade existente neste espaço. é nesta perspectiva que se construiu a reflexão presente neste artigo.

A interface saúde e ambiente na promoção da saúde

A partir de 2000, o Ministério da Saúde passou a considerar que a vigilância ambiental em saúde é composta pelo conjunto de ações que atuam sobre o conhecimento e detecção de mudanças nos fatores determinantes do meio ambiente e que interferem na saúde humana. Esse campo tem como atribuição a recomendação de medidas de prevenção e controle dos fatores de risco e das doenças ou agravos relacionados ao ambiente (Brasil, 2004).

No Brasil, na década de 1980, foram promovidas iniciativas que construíram, no setor saúde, ações de Vigilância Ambiental, (Brasil, de 1988; Brasil, 1990). No entanto, é a partir do ano 2000 que o Ministério da Saúde formulou a Vigilância em saúde ambiental. Para que proponha ou recomende políticas públicas de saúde, é preciso que se conheça o território para o qual essa política se destina, assim, o olhar geográfico tem significativa contribuição para o conhecimento da complexidade socioespacial urbano. Na maioria das vezes, esse planejamento não teoriza sobre as bases de um urbanismo que tem dificuldade de pensar sobre o fluxo como um modo de morar, sua apresentação da "cidade território" e da "cidade natureza". O lugar de trabalho, o espaço em que o homem mora, por mais breves que sejam, configuram-se em quadros da vida que tem determinação importante na sua produção (Santos, 2002). O reconhecimento deste espaço é essencial para compreender a realidade e planejar ações que possam intervir positivamente na vida e na saúde humana.

Nas considerações teóricas sobre a descentralização populacional nas cidades, cada vez mais extensiva das novas áreas industriais, verifica-se um espaço urbano fragmentado e disperso, em que se podem distinguir os diversos usos com diferentes conteúdos sociais, desde zonas de pobreza absoluta aos conjuntos residenciais fechados. A maior parte das grandes cidades atualmente se constitui em mosaicos urbanos-socioambientais segregados (Menegat & Almeida, 2004).

Quando os usos que grupos sociais distintos estabelecem em uma dada área passam a ser convergentes, os conflitos podem vir à tona. A ideia de territórios superpostos (Souza, 1995) permite contemplar mais eficazmente esses conflitos. Nesses casos, o mais relevante não é a disputa de classes, mas sim a segregação espacial urbana. Há uma cartografia urbana divida em zonas civilizadas (Hobsbawan & Ranger, 1984) e zonas "selvagens". Os traços que marcam esta distinção são variados e correspondem a uma gama infinita de características, diversidades que pode ser acrescida também do caráter muito ambíguo de algumas dessas noções. Cada identidade corresponde a um território e as diferenças sociais são significativas na medida em que estão relacionadas a um espaço (Gomes, 2002). é neste território que as desigualdades sociais tornam-se evidentes e a condição de vida entre moradores de uma mesma cidade mostram-se diferenciadas, evidenciando diversas formas e jeitos de viver na/a cidade. As relações entre saúde coletiva e território, a partir de uma perspectiva histórica, permitem analisar, por um lado, como as vinculações dos seres humanos com os territórios foram influenciadas pelas representações atinentes aos fenômenos da saúde e da doença e, por outro, como a organização e a gestão da saúde pública condicionaram configurações territoriais e por elas foram condicionadas (Carvalho, 2002).

O reconhecimento do papel do território para a gestão da saúde ambiental é, portanto, um passo básico para a caracterização da população e seus problemas de saúde associados ao meio, pois permite o desenvolvimento de um maior vínculo entre os serviços de saúde e a população. é necessário compreender essa racionalidade a partir do espaço, entendida como fruto das redes, que se expressa por meio do conteúdo geográfico do cotidiano, conceito que ajuda a desvendar a produção urbana. Parte-se do entendimento de que a característica mais importante do lugar é de sua própria existência. A escala para análise do cotidiano são a copresença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contiguidade, reunindo na mesma lógica interna todos os seus elementos: pessoas, empresas, instituições, formas sociais e jurídicas e geográficas. Assim, identificam-se nos lugares, contextos de usos dos territórios diferenciados compreendidos como vulneráveis para a saúde humana (Santos, 2002).

Entendendo a cidade como difusa, que contém um número elevado de construções imobiliárias, condomínios de luxo estabelecendo-se em áreas de periferia, produzindo novas centralidades, compreende-se que este fenômeno geográfico produz um efeito significativo no campo da Promoção da Saúde, constituindo-se objeto constante de busca de conhecimento. Assim, é importante questionar quais os efeitos à saúde humana decorrentes do impacto ambiental dessas novas centralidades.

Para responder a essa pergunta, deve-se inicialmente considerar os processos de produção da forma urbana com característica de desordenados e sem planejamento, que favorecem a ocorrência de níveis crescentes de degradação ambiental. A contaminação do solo, do ar e da água por substâncias químicas representa riscos à saúde e a mobilidade ou transporte dessas substâncias pode interferir diretamente na saúde humana e nos ecossistemas, incluindo-se os materiais do "ambiente construído". O reconhecimento da multicausalidade e da importância dos contextos socioambientais e culturais, em que os problemas da vida cotidiana da cidade são conformados, é fundamental para, efetivamente, transformar os impactos negativos ao ambiente e, assim, melhorar a qualidade de vida da população. Os fatores de risco podem ter pesos diferentes para pessoas e comunidades. Isoladamente, nenhum fator de risco promove o impacto. Assim sendo, o mais importante para entender as causas e para definir medidas de prevenção, é entender a intervenção num contexto relacional, isto é, em rede (Tambellini & Câmara, 1998). Com isso, a construção de ações de saúde ambiental como promotoras da saúde requer que o contexto seja devidamente valorizado, incluindo os sujeitos moradores do lugar nesse processo. Para tanto, não só as bases de dados oriundos de levantamentos quantitativos são necessárias, como também devem ser integradas técnicas de análise do espaço cotidiano, que incluam dados qualitativos que explicitem os saberes e fazeres locais e a forma de pensar das pessoas e de grupos populacionais. Nesse sentido, categorias de análise conformadas em uma "matriz de saúde e ambiente" devem comportar níveis hierárquicos que possibilitem a compreensão da complexidade do problema e intervenções nos seus diferentes níveis e setores da gestão urbana. Este modelo de matriz, difundido pela Organização Mundial da Saúde (OMS), permite a contextualização dos problemas, sendo particularmente útil à hierarquização dos fenômenos e das possibilidades de intervenção (Kuhn, 2008.). é preciso partir do consenso de que, para abordar os problemas socioambientais, é necessário alcançar uma verdadeira articulação dos diversos setores da gestão local e obter um plano de intervenção integrado. Afinal, a intersetorialidade e a interdisciplinaridade exigem uma relação de cooperação no processo de ação. Com esse entendimento, fica claro que a intervenção em saúde ambiental exige uma articulação em rede, composta pela conexão de elementos que têm objetivos distintos, mas complementares entre si (Tambellini & Câmara, 1998).

A exploração da interface entre saúde e ambiente, sob o marco da sustentabilidade, compreende a instituição de uma política que expresse a multiplicidade de forças interativas geradas, nas quais há uma diversidade de "olhares" e "interesses" em torno da promoção da saúde humana e da vida no planeta. Os desafios que se tem que enfrentar se estende a toda organização social, desde a produção, distribuição e consumo de bens e serviços até as formas de organização do Estado e em suas relações com a sociedade e a sua cultura (Paim, 2000). A partir deles, verifica-se a necessidade de se realizar novas parcerias, de inovar, de criar ambientes favoráveis à sinergia e aproveitar os resultados e potencialidades de simbiose.

Nessa perspectiva, é necessária a ampla articulação com os movimentos sociais, com vistas a fortalecer esta agenda no âmbito dos canais formais da democracia, mas priorizando o fortalecimento dos instrumentos de democracia direta e assegurando com que esses participem do processo de construção, legitimação e validação desta política. Parece importante delimitar, dentro do campo da saúde ambiental, que a questão local, com seus territórios dinâmicos, configura-se na escala a ser pensada nas reflexões relacionadas a este campo. Nesta direção, o espaço deve ser visto como conjunto de "fixos e fluxos". Os primeiros elementos são fixados em cada lugar e permitem ações que modificam o próprio lugar. Os fluxos recriam as condições ambientais e sociais e redefinem o espaço (Santos, 2002). As questões ambientais apresentam-se incorporadas às práticas cotidianas da cidade, assim o método e a ação da saúde ambiental devem contemplar conhecimentos técnicos, mas, sobretudo, o envolvimento no mundo da vida. O processo de produção de uma "cidade ambientalmente saudável" que não contar com essa visão tende a ser somente ideológico ou puramente teórico, impedindo o enfrentamento das dinâmicas socioespaciais urbanas que produzem "novas territorialidades" e "novos lugares" na vida cotidiana da cidade.

O território é um campo de forças e as relações de poder operam neste espaço (Souza, 1995). Sendo assim, o território seria fundamentalmente um espaço definido por um lado, por e a partir de relações de poder, por outro, um instrumento de exercício de poder, em sua essência. A produção de um território a partir desse espaço possui uma importância primordial na compreensão da natureza do conceito em questão (Raffestin, 1993).

As visões sobre o conceito de território devem ter como parâmetro a diferenciação entre posições materialistas e idealistas. As primeiras são caracterizadas pela predominância das características físicas e materiais na definição do conceito; as segundas são marcadas pela defesa do território como definido, principalmente, pelo "valor territorial", no sentido simbólico. Entre as posições materialistas estão as abordagens do território sobre o prisma naturalista, econômico e jurídico-político. Num outro extremo, encontra-se totalmente imersos numa perspectiva social, aqueles que, como muitos marxistas, consideram a base material, em especial as "relações de produção", como o fundamento para compreender a organização do território. Num ponto intermediário, há a leitura do território como fonte de recursos (Haesbaert, 2004).

No que se refere à oposição entre as perspectivas materialistas e idealistas de território Haesbaert (2004) propõe uma perspectiva integradora, buscando, assim, a superação da dicotomia material/ideal, considerando que o território envolve, ao mesmo tempo, a dimensão espacial material das relações sociais e o conjunto das representações sobre o espaço. Envolve um conjunto desigual de forças, o controle político e econômico do espaço e sua apropriação simbólica. Sendo assim, o território, seria o resultado do entrecruzamento de múltiplas relações de poder, sejam aquelas mais diretamente ligadas a fatores econômico-políticos, isto é, de ordem mais material, sejam aquelas relacionadas às questões de caráter mais cultural, com ênfase no poder simbólico. Essa perspectiva somente é possível a partir da compreensão do espaço como um "[...] híbrido entre natureza e sociedade, entre política, economia e cultura, e entre materialidade e "idealidade", numa complexa interação tempo-espaço" (p.79) e, portanto, um espaço múltiplo e nunca indiferenciado (Haesbaert, 2002). Desse modo, essa abordagem relacional do território conforma-se enquanto tal não apenas pela definição deste dentro de um conjunto de relações histórico-sociais, mas também por abarcar uma complexa relação entre processos sociais e espaço material.

Outra característica imputada ao conceito de território consiste na ideia de que ele só existe diante de um forte enraizamento, pois são antes de tudo relações sociais projetadas no espaço e, dessa forma, podem formar-se e dissolver-se, constituir-se e dissipar-se de modo relativamente rápido, e ser mais instáveis que estáveis ou ter existência apenas periódica apesar de regular (Mendonça, 2002). A base material (física) é o espaço (uma paisagem urbana), e torna-se território a partir do momento em que se estabelece algum tipo de apropriação sobre essa base física. As formas com que os diferentes grupos se relacionam ao território estabelecem relações de apropriação direta ou simbólica.

A territorialidade consiste na forma de relacionar-se e de apoderar-se, direta ou simbolicamente, de um território. O fenômeno também se aplica à ideia de sobreposição, criando territorialidades difusas, descaracterizadas. Pode ser associado ao fenômeno da globalização, no qual a confluência de fluxos, a inserção dos espaços em redes complexas, torna-os partícipes de territorialidades locais e diversas (Haesbaert, 2004). Diferentes formas de territorialidade vão desde o manejo do território até questões como o respeito à sua dimensão abstrata e espiritual.

A territorialidade e a saúde ambiental na cidade

O conhecimento desses novos lugares e novas territorialidades nas cidades é fundamental para a detecção de qualquer mudança nos fatores determinantes e condicionantes do meio ambiente que interferem na saúde humana, podendo com isso atingir sua finalidade de recomendar e adotar medidas de prevenção e controle dos fatores de riscos e das doenças ou agravos relacionados à variável ambiental. As cidades brasileiras, geralmente, apresentam graves problemas urbanos, que afetam desigualmente os diferentes grupos sociais, ocasionados por uma segregação socioespacial. O processo de ocupação dos terrenos urbanos passou a ser determinado pelo interesse dos proprietários desses terrenos e dos empreendedores imobiliários, sem levar em consideração qualquer o interesse social. Dentro desta perspectiva, observase a ausência de propostas de áreas verdes, parques e áreas de lazer que favoreçam a qualidade ambiental e a convivência da população. Além disso, verifica-se também como consequência a ocupação inadequada de áreas ambientalmente frágeis originando bairros periféricos superpovoados (Carvalho, 2013).

A exclusão urbanística, representada pela gigantesca ocupação do solo urbano, é ignorada na representação da "cidade oficial". Ela não cabe nas categorias do planejamento modernista/funcionalista, pois mostra semelhança com as formas urbanas pré-modernas. A cópia de modelos e importação dos padrões do primeiro mundo, aplicados a uma parte da cidade, contribuiu para que essa fosse marcada pela modernização incompleta ou excludente. A construção de ações em saúde ambiental requer que o contexto seja devidamente valorizado. Assim, a dimensão territorial passa a ser uma estratégia interessante para a saúde ambiental, partindo de um sistema complexo e necessitando do estabelecimento de um diálogo entre saberes (técnico/local), que envolvem as diferentes áreas do conhecimento historicamente construído e os saberes dos lugares e dos territórios da nossa cidade. Desta forma entende-se o compromisso da saúde ambiental em repensar conhecimento, uma vez que o cidadão é quem acaba por gerir o seu entorno. Isso pode ser favorável se ele reconhecer que vivem em determinado território e que pode interferir em sua configuração de sua participação tiver como base o conhecimento deste local (Menegat & Almeida, 2004). Considera-se, assim, que um trabalho local pode conduzir a uma gestão territorial integrada do ambiente se as ações forem ao encontro das necessidades da população e de acordo com os saberes locais que emanam da vida cotidiana. Os processos históricos podem não ser percebidos nos lugares, e é justamente por isso que, ao se trabalhar com as relações espaciais deve-se sempre articular local/ global. é muito importante analisar o lugar para além de sua concepção locacional, com enfoques interligados com o mundo vivido dos indivíduos e das comunidades, seus lugares, suas territorialidades (Haesbaert, 2004).

Conforme moção do Conselho Nacional de Saúde (2007), a proliferação de múltiplos riscos ambientais de natureza física, química ou biológica, decorrentes da introdução de novos processos produtivos, poluindo o solo, a água, o ar e os alimentos. Tais riscos se difundem para além do entorno dos empreendimentos, seja pelas vias e dutos que transportam produtos perigosos; seja pela contaminação por energia eletromagnética em toda a extensão das linhas de transmissão elétrica, por exemplo; seja pelo descarte inadequado de resíduos perigosos. Eles são causa de acidentes e numerosas doenças ocupacionais e ambientais de graves implicações para a saúde humana e acometem de forma iníqua particularmente os grupos sociais mais vulneráveis.

Em relação aos instrumentos do direito ambiental existentes, um dos mais relevantes e que o setor saúde deve se apropriar e criar capacidade técnica para participar de forma mais incisiva é o procedimento de licenciamento ambiental, cujos instrumentos possibilitam avaliar se um determinado empreendimento é sustentável ou não. Neste sentido, por meio do envolvimento nos licenciamentos ambientais de grandes empreendimentos nas cidades, a Vigilância em Saúde Ambiental pode introduzir critérios, além dos estabelecidos pelo órgão municipal de meio ambiente, referentes aos determinantes e condicionantes da saúde humana. Nesses critérios deve estar incorporado o Princípio da Precaução, que determina que não se produzam intervenções no ambiente sem antes haver estudos sobre as consequências à saúde humana e ao ambiente (Porto, 2007).

é necessário identificar prioridades, com base na ética ecológica, que possibilitem a concretização de espaços urbanos saudáveis, que se traduzam em promoção da qualidade de vida e na defesa do ambiente. Portanto, não é o risco causado por uma determinada atividade que deve pautar a tomada de decisões de políticas públicas saudáveis, mas, sim, se aquele empreendimento é realmente necessário ou não, tendo em vista o bem-estar da coletividade (Leff, 2013). Desta maneira, a incorporação de temáticas ambientais, como a poluição das águas, ar, solo, as radiações ionizantes e não ionizantes, os desastres naturais, acidentes com produtos perigosos, substâncias químicas nas discussões acerca da gestão da saúde, podem ativar e acelerar as mudanças pretendidas no sentido da produção de saberes para "des-construir", "de-codificar", "re-construir" e problematizar a interface entre saúde e ambiente no âmbito da promoção da saúde.

 

Considerações Finais

Os fatores que contribuíram para a crise nas cidades são múltiplos e complexos, dentre eles destaca-se a falta de gerenciamento ambiental coordenado, integrado e de redes comunitárias e intersetoriais, pois esses são fundamentais para a promoção de um viver mais saudável e com mais qualidade.

A saúde ambiental necessita de um olhar geográfico para os fenômenos de saúde/ doença, pois é na cidade, dinâmica, dispersa, periurbana, industrial e, sobretudo, complexa que tudo acontece. Com esta leitura do espaço, acredita-se que se afirma e reforça a necessidade de ações promotoras da saúde como um processo estruturante de mediação das distintas territorialidades urbanas. Esse jeito de fazer saúde constitui-se como uma prática social que aponta para a produção de modos de vida diferenciados, que desenvolvem lugares sustentáveis e promovem a saúde física e emocional.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: marla@sms.prefpoa.com.br

Recebido em junho de 2017
Aprovado em setembro de 2017

 

 

1 Marla Kunh: Assistente Social, Mestre, Coordenadoria Geral de Vigilância em Saúde, Av. Padre Cacique, no 372, 6º andar, CEP: 90810-240, Fone: 51-93152759.
2 Gehysa Guimarães Alves: Socióloga, Doutora, Universidade Luterana do Brasil, Av. Farroupilha, no 8001, Canoas, RS, CEP: 92450-900, Fone 51-99653939.
3 Nádia Teresinha Schröder: Bióloga, Doutora, Universidade Luterana do Brasil, Av. Farroupilha, no 8001, Canoas, RS, CEP: 92450-900, Fone 51-99189766.
4 Denise Rangel Ganzo de Castro Aerts: Médica, Doutora, Espaço Terapêutico Bororó 25, Rua Bororó 25, Tristeza, Fone 51-999873696.

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