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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.51 no.1-2 Canoas jan./dez. 2018

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA - PSICOLOGIA

 

O câncer de mama em mulheres: um relato de experiência sob a perspectiva fenomenológica

 

The breast cancer: An experience report in a phenomenological approach

 

 

Jamil Torquato de Melo Filho1; Monalisa de Cássia Fogaça2

Universidade Nove de Julho – UNINOVE

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo objetivou analisar o discurso de pacientes com câncer de mama do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher em São Caetano do Sul/SP, além de verificar a capacidade de resiliência por meio da Escala dos Pilares da Resiliência. Discutiu-se também sobre a formação da identidade acadêmico-profissional e capacidade analítico-perceptiva do estagiário de Psicologia frente às experiências proporcionadas por meio do relato de experiência. A faixa etária das entrevistadas variou entre 42 e 89 anos. Como resultado verificou-se discursos de muito pesar, abandono, pouca perspectiva futura e instabilidade emocional das pacientes quando se referiam à doença e o que esta lhes causa, evidenciando baixa resiliência. Tais resultados podem ajudar profissionais a (re)pensar a atenção, o cuidado e o acolhimento proporcionados às pacientes com câncer de mama em meio à rotina clínico hospitalar.

Palavras-chave: Câncer; Psico-oncologia; Fenomenologia.


ABSTRACT

The objective of this study was to analyze the speech of patients with breast cancer in a phenomenological approach. The resilience is assessed by Resilience Pillars of Scale. The patients with breast cancer, aged 42 to 89, were surveyed in the waiting room of the Integrated Attention Center of women's health (Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher), in São Caetano do Sul-SP, Brazil. It was found in the speeches a feeling of great regret, abandonment, low expectations and emotional instability of patients when they referred to the disease and causes, demonstrating low resilience. It also discussed the about effect in the formation of academic and professional identity and analytical skills psychology intern face the experiences provided by reporting experience. The results can help professionals to (re)think the attention and care provided to patients with breast cancer into clinical routine.

Keywords: Cancer; PsychoOncology; Phenomenology.


 

 

Introdução

O câncer de mama hoje é o segundo tipo de câncer mais comum entre as mulheres do Brasil e do mundo, respondendo por cerca de 25% dos casos novos da doença a cada ano, sendo estimados, somente para 2016, a ocorrência de 57.960 (Instituto Nacional do Câncer [INCA], 2016).

Ainda que a evolução no tratamento tenha trazido claros benefícios aos pacientes oncológicos, o enfrentamento do câncer de mama ainda consiste numa experiência de intenso estresse e sofrimento psicológico, desde o diagnóstico até as etapas de tratamento, onde a falta de informações adequadas e a mistificação da doença são ainda barreiras a serem transpostas pelos profissionais da saúde (Veit & Carvalho, 2010). O Instituto Nacional do Câncer (INCA, 2011) traz uma definição deste como sendo um conjunto de mais de 100 doenças que têm em comum o crescimento desordenado de células que tendem a invadir tecidos e órgãos vizinhos.

Na descrição de Veit e Carvalho (2010), os autores ressaltam que a origem da patologia geralmente está relacionada a diferentes fatores, que podem ser fisiológicos, psíquicos, ambientais e sociais sendo relevante avaliar a realidade individual de cada paciente a fim de identificar quais deles contribuíram para o desencadeamento da doença, tomando como base o sofrimento emocional, o psicossocial e o medo inerente da patologia. Os autores descrevem ainda que, por definição técnica, trata-se de uma denominação genérica para modificações em estruturas celulares que resultam em formações tumorais, que migram por via sanguínea ou linfática para outros órgãos do corpo, gerando metástases que podem resultar no óbito.

Segundo Miyazaki e Amaral (1995), fatores teratogênicos também representam 80% da probabilidade de causas da doença e estão representados por hábitos alimentares, uso excessivo de álcool e drogas, ao uso de determinados medicamentos, radiação solar, poluição, fatores ocupacionais, como por exemplo, a profissão exercida pelo sujeito, entre outros aspectos.

Diante da complexidade deste contexto patológico vem crescendo, em importância e reconhecimento, a atuação de profissionais, não médicos, no auxílio e tratamento aos diagnosticados e não diagnosticados que vivenciam o cotidiano da doença no trato com entes queridos. Dessa forma, surgem especialidades como a Psico-oncologia que, segundo Costa Junior (2001), um campo interdisciplinar da saúde, junção entre a Psicologia e a Oncologia, que tem como objetivo estudar e compreender a influência de fatores psicológicos e comportamentais presentes no processo de descoberta, desenvolvimento, tratamento e reabilitação de pacientes com câncer.

Para Porto (2013), a importância da detecção precoce da doença resulta no sucesso do tratamento, enfrentamento e reabilitação do paciente oncológico. Sendo assim, a Psico-oncologia e seus profissionais têm por função mediar todas essas etapas progredindo para a cura ou levando a morte.

A carência de informação sobre a doença gera no paciente e na sociedade em geral o medo da morte, do sofrimento e da dor que pode agravar o processo de tratamento inclusive o afastamento da possibilidade de diagnóstico precoce sendo a informação real e correta instrumento para a desmistificação da patologia visando à aceitação ao tratamento do futuro paciente ora diagnosticado (Veit & Carvalho, 2010). Diante disso, o papel da Psico-oncologia, juntamente com outros profissionais interdisciplinares, é encontrar maneiras mais eficientes e rápidas para que as chances de vida do paciente oncológico aumentem (Costa Junior, 2001).

Muitos desafios ainda precisam ser superados por se tratar de uma área de estudo jovem tendo seu primeiro Congresso realizado no Brasil em 1989 e a Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia fundada no ano de 1994 (Sociedade Brasileira de Psico-Oncologia [SBPO], 2016).

A estabilidade do indivíduo com seu meio externo, incluindo familiares e amigos, são necessários para que o desenvolvimento da doença e a somatização desta no corpo não se intensifiquem, uma vez que o câncer desmascara situações antes camufladas e que agora são importantes fatores que determinam ou determinarão o processo de enfrentamento do tratamento e cura da doença pelo esforço e/ou aceitação do indivíduo, já que nenhum aspecto é exclusivo do câncer, mas é na realidade oncológica que eles se manifestam com extrema intensidade (Veit & Carvalho, 2010).

Embora vários aspectos sobre os efeitos psicossociais do câncer sejam conhecidos, compreendemos que a experiência do câncer de mama é ampla e envolve diferentes momentos com significados distintos e com implicações na vida diária e nas relações entre a mulher e as pessoas do seu contexto social (Bergamasco & Angelo, 2001).

O diagnóstico de câncer de mama faz com que a mulher sinta que sua identidade feminina está sendo questionada, já que a mama é, dentre tantas outras, símbolo de feminilidade e de saúde em todas as etapas de vida da mulher. É nesse momento que o Psicólogo entra em ação, já que após esse diagnóstico uma gama de sentimentos como angústia, ansiedade, depressão, raiva, tristeza, desespero, impotência, desamparo e medo permeiam a vida da paciente (Gomes & Silva, 2013).

O trabalho do Psicólogo torna-se de grande valia tanto para a família quanto, e principalmente, para a paciente, que tem a oportunidade, como menciona Maluf, Jo Mori e Barros (2005), de expressar todas as angústias, medos e incertezas frente ao câncer, verbalizando conteúdos que possivelmente não contaria a um amigo e/ou familiar, com a diferença que estará tendo o suporte de um profissional preparado para esse tipo de escuta e que poderá continuar a acompanhá-la durante todo esse processo.

Diante do exposto, a Fenomenologia e as filosofias da existência têm a nos oferecer, no que tange ao contato com pacientes diagnosticadas, um olhar que se volta para o presente momento vivenciado por estas pacientes. Sendo assim, Neves (2008) menciona que Edmund Husserl, fundador da Fenomenologia, foi inicialmente tocado pela verdade na qual quem começa a investigação dos fatos nunca conseguirá recuperar as essências. Especifica ainda que o princípio da Fenomenologia é ir "às coisas mesmas", e a base de seu método é a intuição eidética,3 ou seja, ater-se às características de formas ou imagens.

Para entender a linha tênue entre o que pertence ao acadêmico entrevistador e o que pertence à paciente é necessário trazer o significado de emoções apresentado por Machado, Facci e Barroco (2011) em releitura a Smirnov (1969), onde as emoções e os sentimentos se desenvolvem e se modificam, são constitutivos da personalidade e permeados pelas vivências e história de cada ser humano. É importante ressaltar que existe diferença entre emoções e sentimentos, sendo que a primeira corresponde mais a satisfação de necessidades orgânicas relacionadas com as diferentes sensações que o indivíduo pode sentir quando em contato com estas, e a segunda, que está mais voltada a necessidades culturais e espirituais onde ambas aparecem durante todo o desenvolvimento histórico da humanidade.

Frente ao contexto apresentado, descreve-se, neste artigo, um relato de experiência no qual o objetivo principal foi analisar o discurso das pacientes na sala de espera do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher, em São Caetano do Sul, no estado de São Paulo sob a ótica da Fenomenologia. De modo mais particular, também discutiu-se o efeito na formação da identidade acadêmico-profissional e capacidade analítico-perceptiva do estagiário de Psicologia frente às experiências proporcionadas por estudos extracurriculares no preparo deste para o exercício da futura profissão.

 

Método

Este estudo consiste num relato de experiência, de abordagem crítico-reflexiva, sobre a vivência do autor junto às pacientes oncológicas do Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher [CAISM], localizado no município de São Caetano do Sul, São Paulo, sob a ótica da Fenomenologia e as filosofias da existência. É também parte integrante de um projeto de pesquisa que tem como um dos objetivos avaliar a resiliência4 em mulheres mastectomizadas e/ou diagnosticadas com câncer de mama.

Foram analisados os discursos das participantes quando em resposta à Escala dos Pilares da Resiliência. Não somente as possíveis respostas foram aqui observadas como o aberto discurso de associação livre estabelecido na relação entre entrevistada e o acadêmico de psicologia sendo que, em diversos momentos antes, durante e depois da aplicação assuntos diversos e pertinentes emergiam dessa relação sempre provenientes das pacientes permitindo que, para este artigo, as análises qualitativas fossem a premissa da construção deste saber/conhecimento.

A Escala dos Pilares da Resiliência, segundo a editora do teste, auxilia no processo de diagnóstico, desenvolvimento pessoal, gestão de pessoas, entre outros e fornece previsão do comportamento do indivíduo no que se refere às respostas resilientes de situações adversas, nesse caso, especificamente, o câncer de mama. Tal aplicação desta Escala é submetida por profissionais da saúde em geral no campo individual, familiar, escolar, empresarial ou qualquer outro setor servindo como instrumento de apoio no auxílio da identificação de características que torne capaz o indivíduo no enfrentamento de adversidades. A Escala conta com 90 itens subdivididos em 11 subescalas sendo elas: Aceitação Positiva de Mudança (APM); Autoconfiança (AC); Autoeficácia (AE); Bom Humor (BH); Controle Emocional (CE); Empatia (E); Independência (I); Orientação Positiva para o Futuro (OPF); Reflexão (R); Sociabilidade (S) e Valores Positivos (VP).

As pacientes participantes deste relato tinham idade entre 42 e 89 anos, com formações desde o ensino fundamental à superior completo. Foram desde trabalhadoras a donas de casa e/ou aposentadas, que, não necessariamente, eram arrimo de família e pertencentes a toda e qualquer classe social. Foi entregue também, em duas vias, um termo de consentimento livre e esclarecido para que fosse registrado o comprometimento não somente do acadêmico pesquisador como também das pesquisadas. A aprovação da pesquisa pode ser identificada sob o número 1.409.521 concedido pela Comissão de Ética da Universidade Nove de Julho, São Paulo.

Quanto aos procedimentos, às participantes abordadas eram aquelas que aguardavam consulta clínica no centro de atenção anteriormente citado a fim de passarem por primeiro atendimento, retorno e/ou acompanhamento clínico com médico(a) oncologista. Todas as informações e esclarecimentos sobre a pesquisa foram transmitidas pelo pesquisador deste estudo quando este propunha a participação delas no exercício de preenchimento do questionário.

 

Referencial teórico

Optar pelo referencial teórico da Fenomenologia significa adentrar ao universo filosófico. Lopes e Souza (1997) em releitura a Rezende (1990) e Heidegger (1993) explica que, o pesquisador quando em contato com suas inquietações busca o fenômeno através de quem vivencia determinada situação. Diante desta escolha, cria-se uma opção de estilo próprio de trabalhar, pensar, agir, discursar e se posicionar diante do problema. Nesta maneira diferenciada, Heidegger (1993) denomina para o pesquisador uma posição diferenciada de olhar, traduzida em atitudes, que o colocam em suspensão a qualquer teoria, crença, concepção e conhecimento prévio para ir à busca da pré-compreensão.

Os autores Feijoo e Mattar (2014) esclarecem que, para Husserl (2007), foram centrais dois elementos no processo de gênese da Fenomenologia: a concepção de método e a noção de intencionalidade. Husserl (2007), ao criar a Fenomenologia, estava interessado em investigar o fenômeno da consciência suprimindo todas as perspectivas naturalizantes e assumindo uma postura antinatural frente ao fenômeno da consciência. Num segundo momento, ao prescindir da ideia de substancialidade subjetiva aos atos, alcançou a essência do ato, ou seja, os fenômenos.

Com essa investigação, Husserl (2007) precisou de uma redução fenomenológica em que o pesquisador suspende todas as teorias acerca da consciência, e posteriormente, descreve na medida em que acompanha a constituição desta, consciência em atos e por último explicita a experiência alcançando sua essência, ou seja, no caso da consciência, a intencionalidade.

A Fenomenologia encontra-se presente também nas filosofias da existência mais especificamente em Heidegger, Sartre e Merleau-Ponty ao desenvolverem seus estudos sobre as temáticas existenciais (Feijoo & Mattar, 2014). Neves (2008), quando traduz os pensamentos de Jean Paul Sartre em "Esquisse d'une théorie des émotions", nos faz refletir sobre o início da Fenomenologia que podemos atrelar com os conteúdos e discursos expressos pelas pacientes dentro da realidade oncológica.

A proposta de usar o referencial teórico da Fenomenologia é como descreve Lopes e Souza (1997), de buscar a compreensão do humano em seu cotidiano vivencial por meio da descrição do fenômeno5 diante do fato vivenciado pelas pacientes. Dessa forma, é necessário flexibilizá-la e dar lugar à experiência das essências e dos valores, é preciso reconhecer que somente as essências permitem classificar e inspecionar os fatos. Importante também será analisar que sem recorrer implicitamente à essência da emoção seria impossível experienciar a vivência (Neves, 2008).

A Fenomenologia foi, dentre outros, o método que melhor serviu para conduzir à estrutura ou a dinâmica em que o fluxo da vida acontece em cotidianidade, pois diz respeito ao transcender de si mesmo, rompendo com o pressuposto de que é o sujeito que posiciona as coisas ou de que as coisas existem independentemente da consciência como mencionam Feijoo e Mattar (2014).

 

Resultados e discussão

A Psicologia é uma ciência que se debruça ao estudo do indivíduo de diversas formas. Sendo assim, a construção deste saber para os estudantes, baseia-se, não somente, nos conceitos e técnicas trazidos à tona durante a graduação como também a experiência de vida que este traz consigo. O contato com pacientes diagnosticadas fez com que as emoções do acadêmico de Psicologia aflorassem e criassem uma transferência empática durante a breve relação estabelecida, uma vez que a abordagem a pacientes oncológicos envolve sentimentos que são difíceis de ser administrados, tanto por parte dos profissionais, como por parte das pessoas em geral (Gomes, Skaba & Vieira, 2002). Mas, antes disso, foi necessário perceber que cada encontro propunha maleabilidade, não somente na forma de abordagem bem como desde uso do tom de voz e acolhimento por parte do pesquisador, a fim de estabelecer que esse primeiro e provavelmente único contato pudesse enriquecer a pesquisa.

Diante disso, foi possível perceber que algumas pacientes sentiam-se interessadas em saber minúcias do que estava sendo pesquisado e, por muitas vezes, sentiam-se acolhidas pelo acadêmico para compartilhar/contribuir com fatos como sua história de vida e sobre a descoberta da doença até o presente momento. Vemos aqui, nessa relação, a descrição que outrora já era imaginado que aconteceria como exposto no artigo de Maluf, Jo Mori e Barros (2005) quando em pesquisa ao impacto psicológico do câncer de mama. Em contrapartida, tiveram também aquelas que com muita resistência sentiram-se acuadas em responder o questionário mesmo sabendo que nada do que ali tivesse escrito contribuiria para sua identificação.

Diante destas possibilidades, os fenômenos encontrados no discurso, comportamento e emoção das pacientes eram para cada qual diferente em sua apresentação e/ou manifestação bem como o que consequentemente era causado no acadêmico tendo este também, inevitavelmente, fixado seu olhar sobre as características da Escala dos Pilares da Resiliência que eram despertados em seu próprio manejo com as pacientes. Mediante tal apresentação, a Fenomenologia foi essencial para que o fenômeno, seu objeto de interesse, ali apresentado por cada uma das pacientes, pudesse ser investigado.

Várias mulheres encontravam-se em sofrimento pela descoberta da patologia, seja por estarem em idade avançada, seja por terem que enfrentar tal situação e rotina sozinhas. Projetavam no atendimento clínico, oferecido pelo(a) médico(a), afetos e momentos de cuidados que não tinham em suas casas por parte de seus familiares em geral e muitas vezes descreviam que este momento (fenômeno) era para elas um dos mais importantes do mês e/ou semestre, já que era ali que elas podiam se expressar sem medo e podiam tirar dessa relação forças para enfrentá-lo diariamente.

Tais relatos traziam consigo muito pesar, como o de uma paciente que declarou ter sido abandonada pelo marido após este ter descoberto seu câncer de mama. Sua autoconfiança, bom humor e sociabilidade, segundo ela, estavam cada dia mais abalados. Relata ainda que este era o momento que mais precisava de alguém do seu lado para lhe apoiar, pois o tratamento e a rotina médica não eram fáceis de aceitar e lidar.

Foi possível perceber que mais do que o câncer pode causar fisicamente, o abandono contribui para a instalação da doença de forma acelerada causando pouca perspectiva futura, pós-diagnóstico, gerando menor aceitação positiva para mudança. Abandono esse, mais evidente quando em relatos de pacientes mastectomizadas que tinham sua feminilidade dilacerada e eram, como a anterior, muitas vezes deixadas por seus maridos. Ao contrário das pacientes que aparentavam a afirmavam estarem abatidas pela nova situação instalada em suas vidas, outras poucas, se apropriavam desta para criarem forças e lutarem contra algo que na fala de muitas a elas não pertenciam.

Como proposto na Fenomenologia e evidenciado nesse artigo, a relação de troca entre o acadêmico e paciente afirma que, mais do que a investigação e vivência com a patologia instalada, foi possível enxergar por trás desse contexto, mulheres com experiências, desejos, vontades, angústias e medos ora potencializados diante da rotina hospitalar. Os relatos abrangem mais do que o tratamento em si, são uma forma de explicitar a necessidade que a mulher, ora diagnosticada, têm diante deste contexto a fim de entender não somente a patologia e suas consequências bem como quem ela era, é, e será desse momento em diante.

Para voltar "às coisas mesmas", a essência, a investigação parte do pressuposto doença instalada, mas com isso pode-se apenas ter parte fragmentada da paciente exposta. Outra observação importante é o medo de responder o questionário de forma "certa" mesmo quando explicado que não há respostas corretas ou erradas. O mesmo também foi instrumento norteador que serviu para que determinados discursos fossem pautados durante cada instante da pesquisa.

A rotina ambulatorial de acompanhamento dessa patologia que, pode em sua maioria ser tão severa, incluiu também momentos de carinho em forma de palavras e gestos. Uma das pacientes pediu para dar um beijo no rosto do acadêmico e, acompanhada de sua irmã, declarou a importância que tinha sentido em poder contribuir para a pesquisa. Para ela, tinha valido toda a dificuldade enfrentada, desde sua locomoção de casa ao CAISM até o sorriso de alegria e felicidade que em suas palavras expressou com a seguinte frase: "Espero que eu tenha ajudado e espero que você como futuro profissional que será, possa ajudar muitas outras mulheres nessa situação, pois nem sempre temos a atenção que deveríamos e gostaríamos de ter".

Fazer parte do cotidiano dessa patologia envolve lidar com sentimentos que são difíceis de ser administrados, tanto por parte dos profissionais, como por parte da paciente diagnosticada, e esse fenômeno é o que mais interessa, uma vez que nele possibilidades podem ser construídas e ajudam no processo de tratamento além de também estarem presentes na Escala dos Pilares da Resiliência como forma de controle emocional e empatia (Scorsolini-Comin, Souza & Santos, 2008).

Em sua maioria, as pacientes, tinham apenas um familiar que as acompanhavam de perto durante o tratamento e o CAISM proporcionava a elas um ambiente familiar de cuidado e atenção, com participação das (os) recepcionistas, enfermeiras (os), estagiárias (os), entre outros, que compõem o corpo profissional do espaço.

Importante ressaltar que, a resiliência pouco esteve presente nos relatos pesquisados. Diante desta amostragem, notou-se que alguns aspectos da Escala dos Pilares da Resiliência demonstravam-se prejudicados nos discursos proferidos pelas pacientes o que evidenciou nos resultados corrigidos, como por exemplo, a autoconfiança, o controle emocional e a orientação positiva para o futuro. Entende-se que por se tratar de uma patologia tão severa e ao mesmo tempo silenciosa, a dúvida sobre o desenvolvimento ou a estagnação desta, proporciona incômodo de tais aspectos fragilizando a paciente diagnosticada.

Em contrapartida, algumas subescalas foram identificadas na correção do teste como menos prejudicadas, mostrando aspectos positivos presentes nas estratégias de enfrentamento, a fim de vencer a doença. Algumas demonstravam bom humor, empatia, independência e sociabilidade. Entende-se que, a partir dos relatos pesquisados, a rotina clínico-hospitalar proporciona maior contato com outras mulheres que vivenciam a mesma situação e enfrentamento proporcionando a troca de experiências e conhecimentos acerca da patologia. Não somente nos discursos pôde-se perceber tal ocorrência como na observação da própria recepção do CAISM.

Para ilustrar a análise referida anteriormente é possível descrever que numa das coletas de dados e aplicação do questionário o acadêmico teve a oportunidade de sentar-se entre duas pacientes que trocavam informações acerca da doença e compartilhavam também fatos de suas vidas pessoais o que reforça que o ambiente da clínica propicia tais relações e pode contribuir, mesmo que de forma sutil, em práticas positivas de enfrentamento da patologia.

Pode-se também perceber que, mesmo tendo sido avisadas que o que mais importava era a primeira e espontânea resposta do questionário, as pacientes, por motivos diversos como dificuldade de enxergar ou algum comprometimento motor, contavam com a ajuda do acadêmico para ler e preencher as respostas, e acabavam por "tentar" camuflar aspectos reais de sua personalidade e/ou opinião que puderam ser contornados pela subjetividade alerta do mesmo quando este aproveitava desses momentos para deixá-las mais à vontade, a fim de evocar discursos que pudessem ser contraditórios e que o ajudassem a desvendar o sentido que faziam daquele momento.

Tal conduta por parte das pacientes pôde ser entendida como uma forma de autoproteção contra qualquer tipo de julgamento que pudesse explicitar algo socialmente não aceito, como por exemplo, muitas pacientes não conseguiam admitir o fato de serem ranzinzas, não bem-intencionadas, nem sempre ajudar o próximo, não ser tolerante com divergências de pensamento e até mesmo dificuldade em aceitar a perda da esperança diante de um problema, e não queriam assim que os outros as vissem dessa forma, mais especificamente, nesse caso, o acadêmico.

Por se tratar da recepção de um ambulatório não somente o acadêmico estava atento as respostas bem como outras pacientes que por motivos diversos estavam, também, aguardando atendimento seja com o(a) médico(a) oncologista seja com outras especialidades. Diante disso, cabe reforçar o que anteriormente foi esclarecido que, o manejo na condução da pesquisa incluía o tom de voz utilizado pelo acadêmico na intenção de não deixar exposta a pesquisada. Vale ressaltar que a pesquisa não se tratava de um atendimento psicoterápico, sendo assim, não houve qualquer quebra de sigilo das informações visto que se tratava apenas de respostas pertencentes a um questionário.

Algumas pacientes declararam que moravam sozinhas e assim preferiam continuar, pois dessa forma, podiam conquistar autoconfiança suficiente para lutar por melhor qualidade de vida mantendo ainda sua independência, já que para elas depender dos outros acarretaria mais tristeza do que a própria patologia pode causar. Em contraponto, foi perceptível o descontentamento de outras mulheres que por força maior, ou seja, idade ou até mesmo a própria patologia avançada, dependiam de filhos e/ou parentes que cuidassem delas potencializando sua pouca perspectiva futura, falta de independência e autoconfiança abalada como demonstravam seus relatos.

No que diz respeito à formação do pesquisador, essa experiência propicia tanto para o desenvolvimento de habilidades sociais como para reflexão e construção de uma identidade profissional em relação à realidade profissional futura (Scorsolini-Comin, Matias & Inocente, 2008). Inserir-se em um projeto de pesquisa contribui para o desenvolvimento acadêmico-profissional do estudante já que muitas vezes a instituição de ensino proporciona somente o básico necessário e não traz consigo o caráter de experiência de vida como este projeto/vivência, e sim, uma demanda mais voltada para cumprimento de carga horária obrigatória.

Ainda se faz necessário construir um saber dentro de sala de aula, talvez utópico, de profissionais que transpareçam e estejam voltados para o melhor desenvolvimento de suas futuras profissões e não apenas encarar o período de graduação como uma etapa a ser cumprida, ora por desejo próprio, ora por desejo de outrem. Compartilhar essa experiência e esse relato muito tem a contribuir para o despertar de estudantes e profissionais que estão voltados para promover melhor qualidade de vida e suporte para indivíduos que não tem o que estes podem oferecer. Dizer isto, não se refere apenas ao conhecimento científico adquirido, o acolhimento e atenção praticados, mas a humanidade que existe dentro de cada indivíduo.

 

Considerações finais

Procurou-se apresentar um relato de experiência sob a perspectiva da Fenomenologia cujo objetivo principal foi analisar o discurso de pacientes oncológicas, mais especificamente com câncer de mama quando em resposta ao questionário da Escala dos Pilares da Resiliência. Tentou-se, assim, investigar fragmentos do cotidiano das pacientes a fim de entender nesse processo diário quais fenômenos são apresentados e/ou compartilhados por elas na realidade hospitalar e enfrentamento da patologia. O conhecimento proporcionado pelo referencial teórico serviu de base norteadora para o pesquisador repensar a forma de "olhar o outro" e o acolhimento sem julgamento de modo a deixar fluir, de uma breve relação estabelecida, fatos e fenômenos ora investigados.

Este artigo buscou, não somente, explicitar um mero conhecimento adquirido na vivência do pesquisador através do relato, como pretendeu compartilhar perspectivas que podem ser adotadas quando em contato com um indivíduo dentro da realidade oncológica e o quanto a forma de posicionamento do profissional influencia também no enfrentamento da paciente junto à doença. Inevitavelmente, como limitação deste artigo, é importante ressaltar que esta produção é apenas um recorte temporal dentro de um contexto muito grande a ser pesquisado. Discutiu-se também que, a formação da identidade acadêmico-profissional e capacidade analítico-perceptiva do estagiário de Psicologia frente a tal experiência, proporcionou maior preparo deste para o exercício da futura profissão além de apresentar também possibilidades de atuação de outros profissionais no enfrentamento dessa doença.

 

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Veit, M. T., & Carvalho, V. A. (2010). Psico-Oncologia: um novo olhar para o câncer. O mundo da saúde, 34(4), 526-530.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail
: jamiltorquato@hotmail.com

Recebido em janeiro de 2017
Aprovado em abril de 2017

 

 

1 Jamil Torquato de Melo Filho: Acadêmico do Curso de Psicologia – Universidade Nove de Julho – UNINOVE. Autor correspondente: Praça Benedito Calixto, 150. Ap. 410, São Paulo/SP – CEP: 05406-040. (11) 99493.0434.
2 Monalisa de Cássia Fogaça: Professora Doutora do Curso de Psicologia – Universidade Nove de Julho – UNINOVE.

3Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=eid%E9tica> acesso em 1 de março de 2016.
4 Resiliência: Capacidade que um indivíduo ou uma população apresenta, após momento de adversidade, conseguindo se adaptar ou evoluir positivamente frente à situação. Disponível em: <http:// http://www.dicionarioinformal.com.br/resiliência/> acesso em 1 de março de 2016.
5
Fenômeno: Fato ou evento que pode ser objeto da ciência, que pode ser descrito e explicado do ponto de vista científico. Disponível em: <http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=eid%E9tica> acesso em 1 de março de 2016.

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