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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.51 no.1-2 Canoas jan./dez. 2018

 

RESENHA - PSICOLOGIA

 

Precisamos de um livro!

 

 

Paula Sarmento Leite1

Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre/RS

Endereço para correspondência

 

 

A leitura do livro "Crônica dos afetos – a psicanálise no cotidiano", de Celso Gutfreind, é uma experiência lúdica, explosão de sabores e sensações. A obra começa com uma introdução sobre as origens ou o nascimento de um psicanalista e avança com alguns casos ficcionais, revelando a prática da psicanálise antes da sua teoria. Fala de questões técnicas, como a transferência; aborda detalhes do ciclo vital e a parentalidade; traz o amor, enquanto centro da vida e da psicanálise, entre outras narrativas. São crônicas que transitam pelo estrangeiro da psicanálise (a literatura) e por esta razão são psicanalíticas em si, não foram estrategicamente pensadas ou previamente definidas em sua ordem e seu objetivo, marcando seu sustento no que há de mais espontâneo e criativo do funcionamento mental.

A riqueza dos temas, sua diversidade, torna impossível uma resenha em termos do conteúdo do livro. Injustiça seria resumir! Contudo, o mais revelador está relacionado com a forma da obra, o estilo que o autor utiliza para escrevê-la e a particularidade de compartilhar com o leitor este percurso. De uma maneira suficientemente íntima e não ambiciosa, Celso entrega o jogo das suas associações livres, cada capítulo é escrito com a mais pura matéria prima vinda da jazida do inconsciente. Sem esperar por este objetivo, sua leitura acaba sendo um raro exercício psicanalítico. O diálogo logo se estabelece, quase como um bate papo, que transmite o sentido mais verdadeiro das conversas estabelecidas dentro da sala de análise.

Ao considerar mais a forma do livro do que seu conteúdo, torna-se possível desenvolver três aspectos principais: a atenção aos pequenos (grandes!) tópicos do cotidiano, a sensibilidade e o humor. É na trama desses fios que o autor vai tecendo a sua narrativa. E a psicanálise, enquanto ofício, percurso e campo de reflexão, transborda e vai sendo delicadamente transmitida.

Quando Freud escreve, em 1901, "A Psicopatologia da vida cotidiana", evidenciou que alguns acontecimentos do dia a dia, como esquecimentos, trocas de nomes e números entre outros pequenos enganos, aparentemente pouco significativos em um primeiro olhar, denotariam, mais além, toda uma engenhosa trama associativa, estrutural e defensiva das nossas marcas mnêmicas mais profundas. Aprendemos com ele que os significados mais essenciais da nossa alma poderiam estar disfarçados em representações simples e não extraordinárias. Por isso mesmo a regra da associação livre, que sugere ao paciente falar sobre qualquer assunto, mesmo sendo ele aparentemente sem importância ou lógica, transformou-se em um dos pilares essenciais da técnica psicanalítica. Como dizia o poeta Manoel de Barros, Freud foi um apanhador de desperdícios. Estando atento às coisas miúdas, levou-nos aos descaminhos do inconsciente.

O cotidiano surge nas crônicas do livro como um personagem central. Celso narra histórias, casos, acontecimentos do dia a dia de um psicanalista. É de um caldo despretensioso de assuntos que nos deparamos com reflexões profundas, que permitem alinhavos imprevisíveis. Como no capítulo chamado "Se a força, se a fraqueza...", no qual se pergunta sobre o que mais contribui com o trabalho analítico, ou nos capítulos que falam sobre a complexa relação entre a religião e psicanálise, ou ainda, no capítulo sobre a insônia como elaboração.

A sensibilidade tem sido tema de importantes avanços na técnica psicanalítica. Os avanços teóricos em direção ao universo primitivo, o desenvolvimento emocional e a constituição precoce permitiram a compreensão de funcionamentos psíquicos mais frágeis, aquém da neurose e do recalcamento. Sujeitos em busca de uma identidade, nos quais a palavra ainda não figura como o todo da comunicação. E o trabalho precisa ir além da interpretação. Nessas análises, o analista precisa estar disponível de uma outra forma, tem de colocar, além da mente, sua alma e corpo no campo de trabalho, para gerar significados e representações. Um analista capaz de sustentar a regressão no setting, suportar angústias psicóticas e de dependência significa um analista sensível. Com seu afeto, sua elaboração interna, sua capacidade de manter a esperança e evitar invasões, será capaz de acompanhar o paciente na sua travessia.

Celso é um escritor sensível. O afeto permeia as palavras do livro, traz tons e sons ao texto. O afeto torna a palavra viva. As narrativas sobre a origem do psicanalista, sobre a primordial relação pais-bebê ou sobre os mais complexos temas da psicanálise, como dinheiro, tempo, medicação, tristeza, vazio, são como empatia em estado potencial. Promovem a possibilidade de nos reconhecermos como sujeitos e profissionais e trazem a sensação de que por algum segundo (ao menos!) não estamos sozinhos nessa história!

O humor é outro elemento importante na psicanálise. Para Freud o senso de humor era um sinal de um bom funcionamento psíquico, aquele sujeito capaz de não se render ao mal-estar advindo da brevidade vida e da civilização, brincando e fazendo piadas, era considerado mais saudável. Rir e rir de si mesmo seriam formas de lidar com os duros imperativos superegoicos e ideais sufocantes para produzir novo sentido ao sofrimento. O humor estaria assim livre para habitar o trabalho psicanalítico, imprimindo um estilo singular ao analista. Autores importantes, depois de Freud, como Ferenczi e Winnicott, descreveram a importância de o analista saber brincar e ser sensível ao paciente, em um trabalho cuja base será o jogo, a descoberta e a hospitalidade.

A perspectiva de uma experiência lúdica é oferecida ao leitor de "Crônica dos afetos, a psicanálise no cotidiano". As histórias, engraçadas ou não, são sempre humoradas, no sentido criativo e irreverente. Fazem pensar de forma não saturada, ou seja, suas ideias abrem caminho para a pescaria de novos questionamentos e o leitor pode ser ativo e brincar de ser coautor.

No capítulo chamado "Psicanálise, literatura e acolhida", Celso escreve: "Era uma hora incerta na madrugada. O mal-estar, embora vago, estava definido: eu precisava de um livro"! A subjetividade humana produz uma constante demanda de elaboração, somos a cada segundo afetados pelas realidades interna e externa. A leitura faz parte da área potencial, aquela área entre o dentro e o fora, que funciona como um porto seguro para nossos abismos. Da mesma forma, escrever parece ser uma forma de processar a intensidade presente no dia a dia da clínica. Há quem precise de um livro para escrever! Todos nós precisamos de um livro para ler!

 

Referências

Freud. S. (1901). A psicopatologia da vida cotidiana. Edição Standard Brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Gutfriend, C. (2016). Crônica dos Afetos: a psicanálise no cotidiano. Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

 

 

setaEndereço para correspondência
E-mail
: pauladsl@terra.com.br

Recebido em março de 2018
Aprovado em abril de 2018

 

1 Paula Sarmento Leite: Psicóloga, Psicanalista. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS. Membro Efetivo do Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre, Membro do Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre. Professora e supervisora do Instituto de Terapias Integradas de Porto Alegre/RS.

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