RELATOS DE EXPERIÊNCIAS - PROMOÇÃO DA SAÚDE

 

O Teatro do Oprimido no enfrentamento do bullying: uma experiência com adolescentes escolares

 

The Theater of the Oppressed in coping with bullying: An experience with school adolescents

 

 

Lidiane Cristina da Silva Alencastro^{1, I}; Wanderlei Abadio de Oliveira^{2, II}; Marta Angélica Iossi Silva^{3, I}

^IEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP)
^IIFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP)

Endereço para correspondência

 

 

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RESUMO

O bullying escolar representa um fator vulnerabilizante para o processo adolescer, motivando impactos nos âmbitos físicos, psicológicos, sociais e de aprendizagem, em que os profissionais da saúde se apresentam como importantes atores nas práticas de promoção da saúde, de combate e enfrentamento deste fenômeno. O objetivo do estudo é descrever a experiência de implementação de uma intervenção, com o Teatro do Oprimido, para combater e auxiliar o enfrentamento do bullying entre adolescentes escolares, na perspectiva da promoção da saúde. A intervenção foi realizada com 136 adolescentes do 1º Ano do Ensino Médio de uma escola de Cuiabá- MT. O corpus da experiência foi sistematizado a partir de impressões registradas em anotações diárias, durante a intervenção, composta por jogos teatrais e um Teatro-Fórum. A experiência na intervenção demonstrou que a estratégia auxilia na abordagem do bullying entre os adolescentes e pode ser utilizada de forma intersetorial pela área da saúde nas escolas.

Palavras-chave: Bullying, Adolescentes, Saúde escolar.

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ABSTRACT

School bullying is a vulnerabilizing factor for the adolescent process, motivating impacts in the physical, psychological, social and learning environments, in which health professionals present themselves as important actors in health promotion, combat and coping with this phenomenon. The objective of the study is to describe the experience of implementing an intervention, with the Theater of the Oppressed, to combat and assist the confrontation of bullying among school adolescents, with a view to promoting health. The intervention was carried out with 136 adolescents from the 1st Year of High School of a school in Cuiabá-MT. The corpus of the experience was systematized from impressions recorded in daily notes, during the intervention, composed of theater plays and a Theater-Forum. The experience in the intervention demonstrated that the strategy assists in the approach of bullying among adolescents and can be used in an intersectoral way by the health area in schools.

Keywords: Bullying, Adolescents, School health.

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Introdução

A adolescência possui diferentes conceituações, representando um momento do desenvolvimento, marcada por transformações e que não pode ser resumida em apenas à questão etária (Fonseca, Sena, Santos, Dias, & Costa, 2013). Este período se constitui como uma fase de transformação em que os adolescentes buscam construir sua individualidade, independência e maturidade nos níveis financeira, pessoal e/ou social (Fonseca et al., 2013; Luz et al., 2018). Esse momento do ciclo vital também expõe as pessoas a diversas situações de vulnerabilidades, principalmente no que se refere à saúde, que podem afetar e interferir no processo de adolescer. Nesse sentido, é imperativa a necessidade de atenção no cuidado e promoção da saúde dos adolescentes.

Profissionais de saúde exercem papel fundamental na implementação de estratégias que aproximem os adolescentes às ações que buscam a promoção do cuidado e protagonismo em termos de saúde, bem como a prevenção de agravos e manutenção de um estilo de vida saudável (Luz et al., 2018). Para tanto, as ações na área devem envolver os setores da saúde e educação na intenção de que os adolescentes exerçam sua autonomia e tenham espaço para apresentar suas perspectivas e demandas específicas de cuidado, valorizando o acolhimento, a escuta, o vínculo e a integralidade da atenção (Luz et al., 2018).

Atualmente, além da educação sexual, prevenção ao uso de álcool e outras drogas que já representaram as temáticas centrais das atividades de saúde junto a adolescentes, tem-se destacado a necessidade de ações voltadas também para o combate e prevenção das situações de violência, bem como do bullying escolar (Brandão et al., 2014; Cortez & Silva, 2017; Paz et al., 2018). Este último fenômeno, especificamente, apresentase como um fenômeno mundial, multifatorial e pertinente no contexto escolar dos adolescentes (Olweus, 2013). Olweus (2013) define bullying ou vitimização entre pares como comportamentos negativos e/ou agressivos que são realizados intencionalmente e repetidamente, marcado pelo desequilíbrio de poder ou força entre vítimas e agressores. Autores apontam que as consequências do bullying permeiam várias esferas da vida, motivando impactos nos âmbitos físicos, psicológicos, sociais e de aprendizagem (Santos, Perkoski & Kienen, 2015). Zequinão et al. (2017) identificaram relação entre o baixo desempenho escolar e a participação em situações de bullying, em que os envolvidos se apresentaram como agressor, vítima ou espectador.

Dessa forma, considerando que esse fenômeno interfere diretamente nas etapas de desenvolvimento e na saúde dos adolescentes, se apresentando como fator vulnerabilizante para o processo adolescer, os profissionais da saúde representam importantes atores para a realização de intervenções e práticas de promoção para combater o bullying escolar, bem como auxiliar em seu enfrentamento. Para tal, a escola representa um importante lócus de atuação, por representar o local onde os adolescentes se interagem mais fortemente com seus pares (Pureza, Marin & Lisboa, 2016).

Nesse sentido, no que se refere às estratégias utilizadas em ações de combate ao bullying escolar, o teatro e a dramatização se destacam como ferramentas lúdicas e criativas capazes de suscitar diálogos, de criar sentimentos, expectativas e sensações, bem como de promover a construção coletiva de conhecimento por meio da reflexão crítica da realidade e valorização da autonomia e singularidade do sujeito (Brandão et al., 2014; Lopes et al., 2014). Assim, o presente estudo tem como objetivo descrever a experiência de implementação de uma intervenção, com o Teatro do Oprimido, para combater e auxiliar o enfrentamento do bullying entre adolescentes escolares na perspectiva da promoção da saúde.

O Teatro do Oprimido de Augusto Boal

O Teatro do Oprimido é uma metodologia teatral criada pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal na década de 1970 (Baraúna, 2013). Sua concepção foi inspirada na obra de Paulo Freire "Pedagogia do Oprimido", em que Freire caracteriza a primeira concepção de "oprimido-opressor" e idealiza um método pedagógico libertador, na qual os oprimidos desvelam o mundo da opressão por meio da transformação de sua prática (Baraúna, 2013).

Boal, ao criar a metodologia do Teatro do Oprimido, buscava responder suas experiências e inquietações em fazer um teatro com envolvimento de todos, rompendo a dicotomia entre teatro e plateia (Oliveira & Araújo, 2014). Assim, esse Teatro busca a transformação do espectador, até então passivo, em protagonista da ação teatral, como um sujeito capaz de criar e transformar a realidade/cena apresentada, defendendo a ideia de que o teatro representa uma linguagem que é iminente a todos (Dall'Orto, 2008; Oliveira & Araújo, 2014).

Além disso, Boal constituiu o Teatro do Oprimido como um método dialógico, com liberdade e autonomia para que cada pessoa pudesse construir seu caminho e seus desfechos no palco (Baraúna, 2013). O teatrólogo sistematizou várias modalidades de Teatro do Oprimido de acordo com contextos sociais específicos, com a produção teatral e com objetivos a alcançar, que ao longo de sua trajetória, disseminou-se como suas técnicas. Essas técnicas possuem aplicabilidade em lutas sociais e/ou políticas sejam no trato com problemas pontuais de uma região ou macroestruturais referentes a um país inteiro (Boal, 2013). Não obstante, independentemente de sua aplicabilidade, a proposta esteve e está direcionada para a luta dos oprimidos (Boal, 2013).

Nesse estudo, dentre as variadas técnicas do Teatro do Oprimido, utilizou-se a modalidade de Teatro Fórum que representa a técnica do arsenal do Teatro do Oprimido mais democrática, conhecida e praticada mundialmente (Boal, 2013). No Teatro Fórum, os espectadores, titulados de "spect-atores", são convidados por um curinga (pessoa que faz o papel de mediador, coordenando as ações entre os personagens e as ideias do grupo) a entrar em cena, atuando teatralmente, buscando soluções e estratégias para uma ação encenada, revelando, assim, sentimentos, pensamentos, desejos, estratégias e um leque de possíveis alternativas sugeridas por eles, assinalando o inicio da transformação social da realidade (Boal, 2013).

 

Método

O presente estudo apresenta-se como um relato de experiência sobre a implementação de uma intervenção com Teatro do Oprimido, de combate e enfrentamento ao bullying escolar. A intervenção compôs a parte estrutural da Tese de Doutorado intitulada "Enfrentamento do bullying na escola: O Teatro do Oprimido como estratégia de intervenção" que propôs um estudo quase-experimental, em que alunos de uma escolaintervenção participaram da intervenção com Teatro do Oprimido. Logo, o estudo em tela apresenta a experiência de uma intervenção realizada com 136 adolescentes estudantes do 1º Ano do Ensino Médio de uma escola pública estadual de Cuiabá, capital de Mato Grosso, Brasil. O corpus da experiência foi sistematizado a partir de impressões registradas em anotações diárias, durante a intervenção. Assim, as impressões foram organizadas e estruturadas conforme as seguintes categorias: Operacionalizando uma intervenção com Teatro do Oprimido na escola; O Teatro do Oprimido como estratégia de intervenção; A representatividade da intervenção com Teatro do Oprimido para a comunidade escolar. A escolha do referido período escolar se justifica por representar a transição do Ensino Fundamental Ciclo II para o Ensino Médio, momento (transição de ciclos) considerado como de maior vulnerabilidade para a ocorrência do bullying (Olweus, 2013). Como critérios de inclusão foram definidos: ser adolescente, idade compreendida entre 10 a 19 anos de acordo com a Organização Mundial da Saúde; estar matriculado no 1º Ano do Ensino Médio da escola selecionada para o estudo e estar presente no momento da intervenção. Assim, o presente estudo foi realizado, em dias alternados com objetivo de minimizar a interferência no desenvolvimento das aulas e das atividades escolares, no período de setembro a dezembro de 2016.

A intervenção propôs dois momentos, em que o primeiro correspondeu à realização de jogos teatrais, pertencentes ao arsenal do Teatro do Oprimido, como uma ação introdutória de sensibilização dos adolescentes em relação à temática. O segundo momento representou a encenação de um Teatro-Fórum, técnica pertencente à metodologia do Teatro do Oprimido, sobre o bullying e de autoria dos próprios adolescentes.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP/USP) sob o número CAAE 52025515.6.0000.5393, Ofício CEP-EERP/USP nº 069/2016. Os responsáveis pelos adolescentes, menores de 18 anos, permitiram a participação dos mesmos por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e os adolescentes manifestaram a anuência em participar do estudo por meio da assinatura do Termo de Assentimento.

Operacionalizando uma intervenção com Teatro do Oprimido na escola

A proposta de realizar uma intervenção, por meio de dramatização com a utilização da técnica do Teatro do Oprimido, para combater e auxiliar o enfrentamento do bullying no contexto escolar foi bem acolhida pela escola tanto por parte dos profissionais quanto dos adolescentes escolares que participaram das ações. Este fator representou um ponto positivo para implementação e operacionalização da intervenção, visto a importância do apoio da comunidade escolar, principalmente, nesta etapa inicial.

Por se tratar de uma intervenção na escola, para e com a participação dos alunos do 1º Ano do Ensino Médio, foi necessária a realização de um planejamento e cronograma junto à coordenação da escola, visando interferir o mínimo possível no andamento das aulas, bem como no desempenho escolar dos adolescentes. Penso, Brasil, Arrais e Lordello (2013) destacam a importância da parceria entre os profissionais de saúde e da escola para promover e desenvolver ações voltadas para promoção da saúde dos adolescentes no espaço escolar. Para que essa parceria se consolide é importante que as partes envolvidas entrem em consensos sobre as ações e como elas serão implementadas.

A intervenção foi composta por dois momentos. Em que o primeiro constituiu uma aproximação dos adolescentes com a pesquisadora responsável e de sensibilização deles em relação ao teatro e ao bullying. Foram trabalhados jogos grupais com diversas técnicas teatrais baseadas no Teatro do Oprimido, visando estimular a participação ativa e interação entre os participantes (Boal, 2015). Todos os jogos utilizados na intervenção fazem parte do arsenal do Teatro do Oprimido, contidos no livro "Jogos para atores e não atores" de Boal (2015). Esses jogos tratam da expressividade dos corpos como emissores e receptores de mensagens, pois, para Boal, na batalha do corpo com o mundo, começamos a sentir muito pouco do que tocamos, a escutar muito pouco do que ouvimos e a ver muito pouco do que olhamos, logo, para que o corpo seja capaz de emitir e receber mensagens é preciso que ele seja rearmonizado e desmecanizado (Boal, 2015). Assim, Augusto Boal dividiu seus jogos em cinco categorias: a primeira procura diminuir a distância entre o sentir e o tocar; a segunda, entre escutar e ouvir; a terceira busca desenvolver os vários sentidos ao mesmo tempo; na quarta, tenta-se ver tudo que se olha e, na quinta categoria, a finalidade é despertar e trabalhar a memória (Boal, 2015). A primeira fase da intervenção contemplou, em uma escala crescente, jogos de todas as categorias. Para evitar interrupções constantes das atividades escolares, os jogos foram aplicados, uma única vez, em cada turma de 1º Ano do Ensino Médio, com duração de 1h20min.

O segundo momento da intervenção constituiu-se na organização e encenação de um Teatro-Fórum sobre o bullying, de autoria dos próprios adolescentes, destacando as principais situações por eles vivenciadas, os desafios que enfrentavam para superar a situação, o modo como se sentiam, as consequências negativas da violência, bem como formas de superá-las. Como havia dez turmas de 1ºAno do Ensino Médio na escola, optou-se por desenvolver duas seções de Teatro-Fórum. Dessa forma, cada encenação foi apresentada para cinco turmas, permitindo um número de alunos mais reduzido por apresentação, oferecendo mais oportunidade de participação e de organização por parte dos profissionais da escola. Na operacionalização desta fase, foi realizada uma lista com os adolescentes interessados em participar das equipes de estruturação e apresentação da encenação. Foram constituídas duas equipes organizadoras e cada uma apresentou sua encenação teatral para as cinco turmas, das quais eles não faziam parte, oferecendo-lhes a oportunidade de ser "espect-atores" na outra apresentação. Os encontros para organização das encenações foram realizados em dias e horários alternados, durante horário escolar, totalizando quatro encontros. Destaca-se que o Teatro do Oprimido e, em especial o Teatro-Fórum, valorizam as improvisações que refletem as visões de mundo e não a excelência da encenação como teatro convencional.

Inicialmente, durante o Teatro-Fórum, a encenação foi apresentada de forma convencional, abordando uma situação de bullying, como uma mostra de opressão que se deseja combater. O curinga do Teatro do Oprimido perguntou, em seguida à cena, se os "espect.-atores" estavam de acordo com a conduta e atitude do protagonista (oprimido) na cena. A partir de então, iniciou-se o revezamento com o protagonista, em que os "espect.- atores" apresentaram suas ideias, experiências, vivências e soluções de enfrentamento para a situação de bullying encenada. Ao final, totalizaram-se dezesseis dias de intervenção, em dias alternados, em que quatro foram destinados aos encontros com os adolescentes organizadores da encenação, dez dias contemplaram a realização dos jogos iniciais de sensibilização, e a encenação foi apresentada em dois dias.

As principais dificuldades encontradas na operacionalização da intervenção referem-se aos imprevistos ocorridos nos dias selecionados para as atividades. Destacam-se situações como falta de energia elétrica e ronda policial na escola, alterando assim a dinâmica das atividades escolares, fato que afetou também a intervenção. Nestes casos, a intervenção foi remanejada, com auxílio da coordenação e professores. Como fatores facilitadores, destacam-se o apoio e o empenho da coordenação e professores da escola em colaborar com a realização das ações que compuseram a intervenção com Teatro do Oprimido. Isso foi fundamental considerando uma situação diferente identificada em estudo que pesquisou a relação entre a saúde e a escola na perspectiva dos profissionais de saúde (Penso et al., 2013). Nesse estudo, os autores identificaram pouca integração entre os profissionais da saúde e da educação com dificuldades na implementação de ações de saúde inovadoras e criativas na escola (Penso et al., 2013). Contudo, ressalta-se que no Brasil, as políticas públicas para os adolescentes, tal como o Programa Saúde na Escola – PSE, preconizam a atuação intersetorial entre a educação e a saúde (Penso et al., 2013).

O Teatro do Oprimido como estratégia de intervenção

No primeiro momento em que os adolescentes escolares foram informados sobre a atividade com teatro já foi possível observar o entusiasmo em participar da ação proposta. Autores destacam o teatro como uma importante ferramenta nas práticas de intervenção com os adolescentes, pois elas possibilitam a interação entre os participantes, geram entusiasmo entre os envolvidos, bem como a troca de conhecimentos e experiências de forma lúdica e participativa (Cruz, 2017; Lopes et al., 2014). Na intervenção do presente estudo, com a metodologia do Teatro do Oprimido, pôde-se observar que os adolescentes participantes se envolveram na atividade de maneira descontraída, o que facilitou a manifestação de questionamentos e impressões em relação à temática abordada.

Na primeira fase da atividade, composta pelos jogos do arsenal do Teatro do Oprimido os adolescentes se mostraram curiosos e dispostos a conhecer a nova técnica que lhes foi apresentada. No início, alguns adolescentes se mostraram mais tímidos em participar dos jogos, no entanto, aos poucos foi perceptível a interação entre os colegas de turma, na qual os pequenos grupos de amigos foram se desfazendo, formando um grande grupo, em que toda a turma se envolveu na participação dos jogos, atingindo os objetivos propostos por Augusto Boal (2013). Para o teatrólogo, os jogos são essenciais para preceder qualquer técnica do Teatro do Oprimido, pois possuem duas características essenciais na vida em sociedade, que são as regras do jogo, como as leis em sociedade, e a liberdade criativa, que assim como na vida, contribuem para que o homem não se transforme em servil obediência, pois para Boal, "Sem regras não há jogo, sem liberdade, não há vida" (Boal, 2013; p.16). Logo, esta fase inicial favorece as esferas da criatividade do sujeito, por meio da desmecanização do corpo e da mente, alienados pelas ações cotidianas diárias (Boal, 2013).

Ainda na primeira fase da intervenção, após o último jogo que marca o início do Teatro-Fórum, uma adolescente afirmou se sentir à vontade e pediu para dar um depoimento. A mesma relatou que já sofreu bullying e os pais, bem como os profissionais da escola, só perceberam tal situação após ela ter tentado suicídio. Após tal episódio a adolescente relatou que recebeu apoio, foi encaminhada para tratamento psicológico e enfatizou a importância de procurar ajuda, nestas situações. Neste momento, observouse que a adolescente se tornou protagonista da ação e seus colegas se envolveram na situação apresentada. Surpresos, os adolescentes demonstraram que eles, muitas vezes, não têm consciência da dimensão ou do efeito que o bullying pode assumir na vida dos envolvidos.

A partir desse relato é possível identificar as potencialidades da experiência de intervenções com técnicas teatrais. Especificamente, pesquisadores que utilizaram o Teatro do Oprimido, para trabalhar aspectos sobre violência, apontaram esta metodologia teatral como um dispositivo estético e político, capaz de suscitar debates e discussões, com questões da coletividade e experiências de violência, promovendo inclusive a emancipação dos sujeitos (Oliveira, 2014; Oliveira & Araújo, 2014). Resultado semelhante à identificada em estudos realizados em Curitiba-PR (Lacerda, Soares, Gonçalves, Lopes & Testoni, 2013; Fischer, Cunha, Roth & Martins, 2017). Os pesquisadores promoveram oficinas com ações voltadas para a reflexão, interação, protagonismo, diálogo, criatividade e participação ativa por meio de atividades lúdicas, tal como o teatro, e identificaram que a estratégia adotada foi eficaz e despertou o interesse dos adolescentes escolares (Lacerda et al., 2013; Fischer et al., 2017).

Na segunda fase da intervenção, referente à estruturação e apresentação da peça de Teatro-Fórum, observou-se um grande empenho dos adolescentes desde a elaboração do texto até a apresentação da peça. Para eles, a encenação representou uma missão a ser desenvolvida para seus colegas e com a colaboração de seus pares. Já no primeiro encontro, com as equipes organizadoras, os adolescentes apresentaram pesquisas que eles fizeram sobre o bullying escolar. Eles referiram ter realizado buscas no laboratório de informática da escola e apresentaram experiências vivenciadas por eles no contexto escolar, seja como agressores, vítimas e/ou espectadores.

Nesse sentido, quanto ao envolvimento em situações de bullying, um aspecto observado durante todo o processo de intervenção foi que os agressores não foram e nem se sentiram estigmatizados pela prática de bullying, ao contrário, o Teatro Fórum proporcionou uma discussão horizontal entre todos os participantes, independente de seu envolvimento nas situações vivenciadas na escola. Nesta conjuntura, foi possível identificar, por meio do teatro, como o bullying se configura e se apresenta no contexto da escola que foi realizada a intervenção. Observou-se que esta violência tomou destaque, com ações diretas, tais como: provocar, xingar, apelidar, bater, brigar e revidar de forma agressiva às provocações de outros colegas.

O bullying em sua forma direta se apresentou mais visível e foi mais abertamente abordado nas encenações estruturadas pelos próprios adolescentes, a partir das vivências reais da escola. Neste cenário, outro fator importante observado durante o Teatro Fórum foi a construção coletiva da melhor alternativa e/ou resposta da vítima de bullying em relação ao fenômeno sofrido. Inicialmente, as primeiras reações se apresentaram como condutas mais agressivas e violentas, tais como: revidar da mesma forma a violência sofrida, bater no colega que praticou o bullying, convocar outros colegas e/ou gangues rivais para bater no agressor, colocar policiais na escola para reprimir o agressor e, inclusive, foi citado o suicídio como uma das respostas às situações de bullying. Contudo, dentro da própria encenação foi se revelando que tais atitudes e comportamentos não eram eficazes para as vítimas, mas sim geradoras de outros ou mais conflitos.

No final, ao analisarem as consequências que as respostas agressivas causavam, no contexto da encenação, os adolescentes constituíram, a partir da peça teatral, ações de enfrentamento voltadas para o empoderamento individual, auxílio de amigos, da equipe escolar e dos pais. Desta forma, concluíram que para enfrentar o bullying escolar, os adolescentes podem assumir suas características individuais (física ou sexual) que motivaram a situação de bullying se empoderando frente ao agressor, bem como buscar ajuda dos pais e outros profissionais da escola. Perspectivas concernentes à promoção da saúde. Além disso, os adolescentes sugeriram à coordenação da escola, a realização de atividades direcionadas ao enfrentamento do fenômeno, como seminários e trabalhos escolares sobre o tema. Pesquisadores internacionais, que utilizaram intervenções antibullying com técnicas de dramatização, também identificaram que a estratégia adotada favoreceu a compreensão dos adolescentes sobre bullying e suas consequências (Jaronen, Häkämies & Astedt-Kurki, 2011; Bornmann & Crossman, 2011).

Observa-se que o Teatro do Oprimido, representado no presente estudo pelos jogos e pela técnica de Teatro Fórum, propiciou uma experiência positiva para os adolescentes escolares que participaram da intervenção de combate e enfrentamento do bullying. A atividade proporcionou um ambiente de troca de experiências, de discussão coletiva e reflexão sobre o tema. Além disso, possibilitou identificar como esta violência se configura no ambiente escolar e provocou entusiasmo entre os participantes, que se dedicaram integralmente na efetivação da mesma. Congruente com esta experiência, autores internacionais, que utilizaram o Teatro do Oprimido, assinalaram a metodologia teatral de Boal como uma estratégia capaz de promover reflexões e favorecer a compreensão em relação à diferentes temáticas, promovendo respostas positivas na prevenção e no enfrentamento de práticas futuras, a partir da construção coletiva de conhecimento (Christensen, 2013; Yoshihama & Tolman, 2015). No Brasil, pesquisadores, que utilizaram teatro e dramatização em ações realizadas com adolescentes, verificaram que a estratégia auxiliou na compreensão da realidade vivenciada pelos participantes, na ressignificação dos conhecimentos apreendidos e no compartilhamento de experiências, representando um importante instrumento de promoção da saúde (Souza, 2011; Andrade et al., 2014; Lopes et al., 2014).

A representatividade da intervenção com Teatro do Oprimido para a comunidade escolar

Desde o primeiro contato com a equipe escolar para apresentação da proposta de intervenção antibullying, com o Teatro do Oprimido, foi perceptível o interesse da escola na atividade. A coordenação da instituição relatou uma demanda de ações para a promoção da saúde escolar e do adolescente não suprida pelo serviço de atenção primária à saúde da área, expressando como é representativa para a comunidade escolar a parceria entre os profissionais da saúde e da educação.

Pesquisadores que discutiram a relação entre saúde e escola, na percepção dos profissionais que trabalham com adolescentes na atenção primária à saúde no Distrito Federal, identificaram que os profissionais de saúde reconhecem a necessidade da articulação entre a saúde e educação com ações voltadas para os adolescentes na escola (Penso et al., 2013). Contudo, também foram identificadas como principais dificuldades o excesso de burocracia para sair da unidade de saúde e ir à escola, bem como a falta de recursos humanos e tempo para implementar as ações e atender às demandas dos adolescentes e da escola (Penso et al., 2013).

Na experiência do estudo em tela, uma percepção durante a intervenção com Teatro do Oprimido, foi sobre a participação dos profissionais da escola que se envolveram na fase da apresentação do Teatro-Fórum discutindo junto com os alunos, de forma horizontal, as questões abordadas na peça teatral. Nesse momento, instituiu-se um ambiente harmonioso em que os professores, alunos e demais profissionais se encontraram discutindo, de igual para igual, um tema de relevância para todos. A participação dos profissionais da escola na intervenção não foi intencional, mas sim consequência da proposta da ação com Teatro do Oprimido que possibilitou o compartilhamento de experiências entre todos os atores envolvidos na comunidade escolar e representou um acontecimento importante para a escola.

A esse respeito, o envolvimento dos profissionais, na intervenção, favoreceu na compreensão do fenômeno na escola e poderá, inclusive, auxiliar na identificação de situações futuras de bullying. Isso é importante quando se vislumbra um cenário de desconhecimento sobre a temática, como relatado por um, estudo realizado em Uberaba-MG que objetivou investigar se professores de 6º ano do Ensino Fundamental identificaram situações de bullying em sala de aula e como intervir nessas situações (Silva, Oliveira, Bazon & Cecílio, 2013). Segundo os autores desta investigação, os professores apresentaram um conhecimento fragmentado acerca do bullying e suas características, evidenciando, uma dificuldade de articulação entre a comunidade escolar nos manejos de condutas agressivas, provenientes de situações de bullying (Silva et al., 2013).

Por fim, salienta-se que a sessão de Teatro Fórum representou em evento significativo para comunidade escolar e proporcionou uma abordagem sobre as resposta das vítimas às agressões sofridas, bem como as diferentes formas de enfrentamento desta violência. Após a intervenção, a coordenação da escola analisou os aspectos abordados na encenação Fórum, as respostas dos adolescentes diante do bullying e a importância de se trabalhar essa temática na escola. Assim, destacam-se as potencialidades e as implicações desse estudo para a atuação dos profissionais da saúde que podem atuar na comunidade escolar utilizando técnicas teatrais e o Teatro do Oprimido na perspectiva da promoção da saúde e do bem-estar de adolescentes em idade escolar.

 

Considerações finais

Com o Teatro do Oprimido foi possível ampliar a visão do bullying entre adolescentes, suas consequências e suas formas de enfrentamento, tanto por parte das vítimas, como dos agressores e espectadores/testemunhas. Observou-se que a intervenção propiciou um momento de discussão em que os adolescentes, independente da situação de estar envolvido ou não em práticas de bullying, interagiram entre si e expuseram sua imagem e postura diante da dinâmica desse fenômeno, proporcionando um ambiente de construção e desconstrução de conceitos, saberes e/ou impressões. Destarte, a escola representa um importante campo de atuação dos profissionais da saúde, principalmente no que se refere à realização de práticas e ações de promoção da saúde. A esse respeito, a experiência vivenciada na implementação de uma intervenção com uso do Teatro do Oprimido, demonstrou que a estratégia auxilia na abordagem do bullying entre os adolescentes e pode ser utilizada de forma intersetorial pela área da saúde nas escolas.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: lidianealencastro@usp.br

Recebido em: agosto de 2018
Aprovado em: fevereiro de 2019

 

 

¹ Lidiane Cristina da Silva Alencastro: Enfermeira e mestra em enfermagem pela Universidade Federal de Mato Grosso, (2010 e 2014), Doutora em Ciências pelo Programa de Enfermagem em Saúde Pública da Universidade de São Paulo (2018). Membra do Grupo de Estudos, Ensino e Pesquisa do Programa de Atenção Primária à Saúde do Escolar (PROASE) da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP). Atua principalmente nos seguintes temas: educação em saúde, saúde do adolescente, adolescente, violência, bullying, sexualidade e vulnerabilidade na adolescência. Contato principal para correspondência.
² Wanderlei Abadio de Oliveira: Psicólogo, Doutor em Ciências, Pós-doutorando do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP).
³ Marta Angélica Iossi Silva: Enfermeira, Doutora em Enfermagem em Saúde Pública, Docente da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Universidade de São Paulo (EERP-USP).