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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.52 no.1 Canoas jan./jun. 2019

 

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS - PROMOÇÃO DA SAÚDE

 

Promoção da saúde da criança escolar e a identificação de determinantes sociais: relato de experiência

 

Health promotion of school child and the identification of social determinants: Experience report

 

 

Ailton de Souza Aragão1, I; Rodrigo Euripedes da Silveira2, I; Rosimár Alves Querino3, I; Fernanda Sousa Bastos de Moraes4, I; Maria Carollina Vieira Cardoso5, I; Letícia Carolina Buscaratti6, I; Maria Teresa de Assis Campos7, I; Luana Cristina Silveira Gomes8, II; Maria das Graças Carvalho Ferriani9, II

IUniversidade Federal do Triângulo Mineiro
II
Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo tem como objetivo descrever e discutir atividades de promoção de saúde realizadas junto a escolares com idades entre oito e dez anos de uma escola pública em um município mineiro. As práticas foram realizadas por estudantes dos cursos de Terapia Ocupacional, Educação Física e Nutrição no período de fevereiro de 2017 a julho de 2018, três vezes por semana. Elas consistiam em estratégias lúdicas e no emprego de tecnologias leves capazes de promover acolhimento e incentivar a expressão das crianças, possibilitando a investigação dos determinantes sociais de saúde (DSS) que permeavam suas comunidades e estilos de vida. Destacaram-se dentre os DSS: diversidade de configurações familiares, rede comunitária proximal e informal ampla; subemprego, analfabetismo, acesso descontínuo a serviços públicos, violência doméstica, distanciamento da escola e alimentação inadequada. Neste cenário, a promoção da saúde dos escolares demanda comprometimento institucional amplo, envolvimento das famílias e sensibilização das crianças para o autocuidado.

Palavras-chave: Promoção da saúde na escola. Determinantes sociais de saúde. Ensino superior.


ABSTRACT

This study aims to describe and discuss health promotion activities accomplished with schoolchildren aged between eight and ten years of a public school in a Minas Gerais municipality. The practices were done by students of Occupational Therapy, Physical Education and Nutrition courses from February 2017 to July 2018, three times a week. They consisted of ludic strategies and the use of light technologies capable of fostering children's expression and encouraging the investigation of the social determinants of health (SDH) that permeated their communities and lifestyles. Among the SDHs, the following stand out: diversity of family configurations, wide proximal and informal community network; underemployment, illiteracy, discontinuous access to public services, domestic violence, distancing from school, and inadequate feeding. In this scenario, promoting the health of schoolchildren demands broad institutional commitment, involvement of families and raising children's awareness for self-care.

Keywords: Health promotion at school. Social determinants of health. Higher education.


 

 

Introdução

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, 1990), resultado das lutas empreendidas pelos movimentos sociais no Brasil, apresentando um rompimento com a tradicional concepção de "menor" que, consolidada no Código de Menores de 1927, subsidiou práticas de atendimento à criança e ao adolescente sob a ótica disciplinar, autoritária e moralizadora. Objetivava-se adequar os denominados "menores" ao modelo de sociedade liberal centrada no valor positivo do trabalho e da família nuclear. Em decorrência, os "filhos dos pobres", que perambulavam pelas ruas dos centros urbanos, deveriam ser alvo da pedagogia normalizadora das instituições – estatais ou filantrópicas – uma vez que as "famílias desestruturadas" não seriam capazes de cumprir essa função socializadora de modo adequado (Henick & Faria, 2015).

O reconhecimento dos direitos da criança e do adolescente na doutrina de proteção integral preconizada pelo ECA marca um rompimento profundo com práticas disciplinares e normalizadoras e engendra novas formas de cuidado. Dentre elas encontram-se aquelas que defendem a saúde integral da criança e do adolescente, garantindo seu desenvolvimento de maneira saudável, digna e harmoniosa. Essa premissa traz importantes aspectos para a compreensão do processo saúde-doença dessa população como o direito a educação, cultura, esporte e lazer, bem como garantias no campo do exercício da liberdade e da socialização, fatores que estão fortemente atravessados pelos determinantes sociais da saúde (DSS) (Lei 8.069, 1990).

No campo da saúde, a superação da pedagogia que individualiza, naturaliza e normaliza a saúde encontra seu antípoda na perspectiva dos DSS segundo a qual a desigualdade social impacta na condição de saúde das crianças escolares e suas famílias. Destes, desde aspectos étnicos e de gênero; a vida familiar e comunitária; ao acesso ou não à habitação, ao saneamento básico, à alimentação; aos serviços de saúde e de assistência social; ao trabalho e à educação (Garbois, Sodre & Dalbello-Araújo, 2014).

Nesta seara, a compreensão da promoção da saúde como capacidade comunitária de cuidados mútuos pautados na ótica dos Direitos Humanos tem contribuição significativa para a construção de ações junto às crianças em idade escolar com o envolvimento de instituições de diferentes setores como, por exemplo, a saúde e a educação (Ministério da Saúde, 1986).

As escolas são consideradas espaços privilegiados para a produção de estratégias de prevenção de doenças e de promoção de saúde em decorrência de diversos fatores, como: o tempo que os estudantes permanecem no espaço, à concentração de pessoas e, sobretudo, à possibilidade de construção de metodologias participativas alinhadas às demandas da comunidade escolar (Barbosa, Alves, Silveira & Soares, 2014; Carvalho, 2015).

Estudos produzidos em diferentes países têm discutido instrumentos e alternativas para a articulação do contexto escolar na rede de prevenção e promoção da saúde. O estudo de Santos-Beneit et al. (2019) avaliou a eficácia de um programa de promoção da saúde e combate ao uso de drogas implementado em escolas da Espanha. Wadolowska et al. (2019) em consonância, avaliam a sustentabilidade de práticas escolares que atuam nas mudanças dos hábitos de vida, qualidade da dieta e na composição corporal de estudantes poloneses.

No Brasil, o Programa Saúde na Escola, desenvolvido pelo Ministério da Educação (MEC) em parceria com o Ministério da Saúde (MS), representa a sedimentação da abordagem da saúde do escolar (Decreto nº 6.286, 2007). Soma-se a isso, o lugar estratégico das Universidades Federais que, sustentadas pelo tripé ensino-pesquisaextensão, podem estabelecer parcerias com outras instituições de modo a garantir um processo formativo socialmente referenciado e contribuir para o desenvolvimento comunitário. Nas palavras de Barbosa et al. (2014, p. 509):

[...] Entende-se por educação de qualidade socialmente referenciada aquela que tem por eixo o caráter emancipatório dos sujeitos histórico-sociais e que considera as diferentes condições concretas de existência desses sujeitos, voltando-se à formação omnilateral, objetivando a superação das desigualdades individuais e de classe e da desvalorização cultural.

Assim, o Projeto Saúde, Sociedade e Escola em Tempo Integral compõe as atividades curriculares na disciplina de Saúde e Sociedade para os cursos de Terapia Ocupacional e Educação Física desde 2010 e, a partir de 2017, para o curso de Nutrição.

A disciplina possui carga horária de 45 horas/semestre, das quais dez horas são dedicadas a atividades práticas que complementam as reflexões elaboradas em sala de aula e permitem aos discentes ampliar as possibilidades formativas por meio do encontro com demais lugares e seus sujeitos. O projeto busca compreender quais determinantes sociais estão envolvidos na saúde das crianças e quais aprendizados seriam construídos nessa relação dialógica entre crianças e jovens; escola e universidade. O deslocamento da sala de aula para o espaço da escola pode revelar novos processos de aprendizagem interativa, mediada por estratégias dialógicas e narrativas que invoquem a construção da crítica sobre conceitos e práticas a priori, confrontando-os com a realidade mesma que os produziu, objetivando sua transformação (Freire, 2013; Imbrizi, Kinker, Azevedo & Jurdi, 2018). Ou nas palavras de Paulo Freire:

O que se pretende com o diálogo (seja em torno de um conhecimento científico e técnico, seja de um conhecimento "experencial"), é a problematização do próprio conhecimento em sua indiscutível reação com a realidade concreta na qual se gera e sobre a qual incide, para melhor compreendê-la, explicá-la, transformá-la. (Freire, 2013, p.65)

Exposta a relevância, este artigo objetiva descrever e discutir atividades de promoção de saúde realizadas junto a escolares com idades entre oito e dez anos de uma escola pública em um município mineiro e, ainda, problematizar os determinantes sociais de saúde constitutivos do processo saúde-doença das crianças e seus familiares e explorar as contribuições das ações para a formação de acadêmicos universitários.

 

Metodologia

A disciplina Saúde e Sociedade

A disciplina de Saúde e Sociedade é ofertada aos cursos de Terapia Ocupacional e Educação Física e, a partir do segundo semestre de 2017, passou também a integrar a matriz do curso de Nutrição, aspecto que ampliou o vínculo da universidade com o universo escolar, antes ocupado por dois cursos. Participam das atividades cerca de 50 graduandos dos cursos citados anteriormente, em periodicidade semestral.

Participantes

Atendendo à solicitação da Supervisão Pedagógica da escola, no referido semestre (2017/2), as atividades foram ofertadas a 120 crianças, que trabalharam em grupos distintos, com cerca de 40 crianças para cada turma de universitários. Todas participaram, na terça, quarta e quinta-feira, com as turmas de Educação Física, Terapia Ocupacional e Nutrição, respectivamente, por 2h.

As crianças possuíam idades entre oito e dez anos, matriculados no terceiro, quarto ou quinto ano do ensino regular que frequentavam a instituição no período vespertino, notadamente do Tempo Integral. Foram organizados três grupos menores, tomando por critério as turmas nas quais estavam matriculados, e a partir dessa divisão, cada um dos grupos foi referenciado a um dos cursos de graduação atuantes na escola.

Instrumentos

Os materiais e instrumentos utilizados variavam de acordo com atividade lúdica a ser desenvolvida pelos jovens universitários. Dentre as principais atividades realizadas destacaram-se:

1. Construção de brinquedos a partir da reutilização de materiais recicláveis;

2. Confecção de pipas, vai-e-vem, bilboquê, leques, pega-varetas, jogo da memória;

3. Construção de painéis e confecção de desenhos com pintura;

4. Jogos coletivos com o uso de bola: queimada, futebol, vôlei, ginástica lúdica;

5. Brincadeiras e jogos populares.

Foram utilizados diários de campo pelos discentes e uma câmera fotográfica digital pelo docente para registrar as atividades e interação entre os universitários e as crianças nos momentos das práticas, como forma de promover a reflexão posterior.

Procedimentos

A metodologia do Projeto é a "Particip-Ativa", pois concebe tanto os discentes universitários quanto as crianças escolares como detentores de saberes e de experiências que, no encontro, se fundem e podem resultar em novas formas/estratégias para a compreensão de questões referentes aos campos da saúde e da educação, por exemplo. Isso exposto, o procedimento pelo qual a prática foi sistematizada e realizada será, sem seguida, descrito no modelo passo-a-passo.

Passo 1: Primeiramente, ainda no ambiente universitário, por meio de aulas teóricas com duração média de seis a oito semanas, os discentes se apropriam dos conteúdos acadêmicos referentes à promoção da saúde, aos direitos da criança e do adolescente, aos determinantes sociais da saúde, as expressões da vulnerabilidade e as iniquidades em saúde no Brasil e no mundo.

Passo 2: Finalizada a etapa de embasamento técnico e teórico, os objetivos das práticas são apresentados aos discentes e eles são preparados para que, na próxima semana, já comecem a desenvolver as atividades na escola pública.

Passo 3: No primeiro encontro entre os discentes e os escolares, que ocorre já na escola pública em questão, o docente apresenta e estimula uma primeira conversa entre os dois grupos e procede uma subdivisão em grupos menores, no intuito de favorecer a interação. Em subgrupos, os discentes procuram identificar as brincadeiras favoritas das crianças, bem como buscam apreender outros elementos individuais (idade, estilo de vida), familiares (habitação, convívio) e comunitários (possibilidades de brincadeiras ao ar livre). Esses aspectos, conforme expressam Dahlgren e Whitehead (2007), foram representados graficamente por um "arco-íris", modelo que também fora adotado pela Comissão Nacional de Determinantes Sociais de Saúde (2008). A apropriação dessas informações e seu cruzamento com o modelo explicativo de Dahlgren e Whitehead (2007), auxiliam na compreensão dos estilos de vida das crianças, suas famílias e territórios.

Passo 4: Uma vez levantadas as características e preferências das crianças, os discentes dedicam-se a preparar atividades semanais para serem realizadas na escola junto aos seus grupos de referência, estimulando a promoção da saúde. Assim, as dinâmicas de grupo e atividades lúdicas se convertem em dispositivos que permitem tanto a interação entre jovens e crianças, quanto a identificação das condições de vida que favorecem a produção da saúde, em sua processualidade.

Ao final das atividades, os discentes e o docente se dirigem para uma sala cedida pela escola com o objetivo de compartilhar as experiências daquele dia que ilustrem e auxiliem o debate teórico realizado a priori. Esse debate insere elementos vivenciais ao acadêmico e favorece a construção de novos conhecimentos, como a inserção dos futuros profissionais nos serviços de saúde diante dos determinantes sociais da saúde e os desafios para a promoção da saúde (Bezerra & Sorpreso, 2016).

Passo 5: Após o encerramento do ciclo de práticas, que tem duração média de cinco encontros para cada uma das turmas de graduação, os discentes recebem a atribuição de confeccionar um relatório sobre suas experiências e de socializar as particularidades e vivências dos subgrupos com o restante da turma. Nesse processo, buscam a interlocução entre a prática realizada e o conteúdo teórico ministrado ao longo da disciplina, bem como a avaliar a importância de ampliar a promoção da saúde no contexto escolar.

Por fim, considerando o impacto positivo, tanto na comunidade escolar quanto no processo de ensino e aprendizagem universitário, ao longo do período de fevereiro de 2015 a julho de 2018, as experiências foram sistematizadas e submetidas a uma análise qualitativa, a qual culminou neste relato de experiência.

Aspectos éticos

Conforme a Resolução 510/2016, do Conselho Nacional de Saúde, de 04 de abril de 2016, em seu Artigo 1º, Parágrafo único, Inciso VIII, ações que estejam relacionadas à práticas de ensino ou à prática profissional e expressem tão somente as ações e reflexões dos autores oriundas dessas mesmas práticas, prescindem de registro e avaliação por um Comitê de Ética em Pesquisa.

 

Resultados e discussão

As dinâmicas de grupo e atividades manuais e esportivas elaboradas pelos discentes, desenvolvidas e executadas com as crianças, primaram pela estratégia do encontro. Essa manifestação fomentou a compreensão de contextos ampliados de produção de saúdedoença das crianças por meio do brincar (Albuquerque et al. 2016; Bezerra & Sorpreso, 2016).

A dialógica do processo de construção de jogos, desenhos e pinturas expôs que as crianças eram oriundas de famílias residentes, em sua maioria, em territórios historicamente vulnerados pela ausência, fragilidade ou subdimensionamento de políticas públicas. Aspetos presentes nos estudos de Ribeiro, Andrade, Aguiar, Moreira & Frota (2018) acerca do alcance limitado das políticas sociais e de saúde no Brasil para as famílias em vulnerabilidade social (Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social, 2004; Portaria nº 2.436, 2017).

Esse cenário de vulnerabilidades estruturais, como apontou Waiselfisz (2013), faz essas famílias participarem, ainda que indiretamente, das violências e seus agravos à saúde (Minayo, 2010, 2013). Seja nas comunidades, seja no interior das residências (Ribeiro et al., 2018), a maioria das violências percebidas nos territórios de vulnerabilidade sob a forma de agressões, xingamentos, experiências de abuso sexual ou homicídios acompanharão as crianças para o cotidiano da escola, desafiando-a (Cardoso & Teixeira, 2017).

Nesse sentido, algumas investigações se preocuparam em identificar as situações de vulnerabilidade vivenciadas por crianças e adolescentes do município mineiro. Estudo que envolveu 169 crianças acolhidas em abrigos por decisão judicial em 2009, identificou que em 65% dos casos não se identificou a figura paterna presente na composição familiar. Os principais motivos para o acolhimento foram negligência, baixas condições socioeconômicas da família, uso de álcool e drogas pelos responsáveis, maus tratos, abandono, violência física e violência sexual. Concluindo que tais resultados refletem a necessidade de ações coordenadas de educação, assistência social e promoção em saúde direcionada a adolescentes, com metodologias mais inclusivas e lúdicas, estimulando a reflexão crítica acerca dos múltiplos fatores de vulnerabilidade relacionados ao cotidiano das crianças escolares (Cardoso & Teixeira, 2017; Carmo & Guizardi, 2017).

A exposição das famílias às situações de vulnerabilidade impactam diretamente no aproveitamento das crianças no ambiente escolar. Situações de desemprego, trabalho temporário ou precário podem abrir brechas para que os adultos, cujas redes formais de proteção não lhes alcançaram (MDS, 2004), adotem estilos de vida que podem colocar em risco a saúde do mesmo e das crianças: alcoolismo, tabagismo, uso de drogas ilícitas, prostituição e abusos sexuais são alguns dos cenários possíveis de violação de direitos (Peterman, Neijhoft, Cook & Palermo, 2017).

Em momentos de pátio, como o recreio, verificamos que as crianças interagem de formas distintas com os acadêmicos, em que se percebe também uma intensificação de brincadeiras com ações mais enérgicas. Sem o direcionamentos pedagógico e a vigilância dos adultos (profissionais da escolas), as crianças formulavam práticas brincantes independentes (Barbosa, Martins & Mello, 2017). Brincadeira de lutas, perseguição, polícia e bandido, podem ser reflexos de situações do cotidiano destas crianças, como armas, tiros, situações de agressão com socos e pontapés e comportamentos que esboçam abordagens policiais. Corrobora com esta reflexão Barbosa et al. (2017) que, apoiadas em outros estudos, defendem que os momentos nos quais as crianças não estão cerceadas pela supervisão de um adulto e brincam por impulsos próprios, imprimem a sua própria agressividade, talvez a utilizem como uma saída para lidar com a sua própria realidade e/ou vivenciar um contexto imaginário em que se afastam de tudo que as incomoda e entram no seu universo brincante, atuando contra a ação de algo nocivo naquele contexto.

Também foi verificada a necessidade das crianças "chamarem a atenção", por meio dos depoimentos e atitudes das mesmas. Os relatos do cotidiano familiar indicaram extensas jornadas de trabalho de um ou ambos os responsáveis, ausência constante de um dos pais, reordenamento familiar que não privilegia a comunicação, o respeito, o afeto e a valorização das invenções das crianças, como retratado por uma das discentes:

Na semana posterior foi dito por alguns alunos que o jogo da memória foi utilizado para brincar com os familiares e os amigos próximos a sua casa. No final da atividade uma das crianças conversou em particular, que sua mãe não deixa ficar com os brinquedos confeccionados por ela e menciona que ela caracteriza como um lixo, jogando todos fora.

A desvalorização das criações da criança pode impactar o seu desenvolvimento psicossocial. O desinteresse pelos resultados da imaginação criativa promove na mesma a repressão, repreensão e a desvalorização das criações alheias, desmotivando e desqualificando a si e aos demais. Contudo, é importante contextualizar as atitudes da mãe e das famílias e compreender outros condicionantes socioculturais, como o acesso à escolaridade e à informação, além de outras dimensões de sua história de vida construída sob vulnerabilidades históricas (Assis-Loureiro, 2017; Medeiros, 2017).

Nesse cenário, não é difícil compreender o motivo pelo qual algumas crianças – se não todas – se apegaram aos discentes.

Ao sair da instituição foi difícil, pois as crianças se apegaram muito aos "tios" e eles não queriam nos deixar ir. Todos vieram abraçar cada aluno da Terapia Ocupacional, e ainda ficaram em frente ao portão para que não saíssemos.

A criação de vínculos é essencial nessa etapa do desenvolvimento. A confiança e a oportunidade de abertura para o outro, favorece a ampliação da leitura de mundo, tanto dos discentes, quanto das crianças, pois partimos da premissa, de que a promoção da saúde está para além da prevenção de doenças. Logo, inclui a compreensão ampliada dos processos sociais, econômicos, políticos, ambientais e psicológicos que impactam na produção ou perda da saúde da criança, o que representará um desafio também para a escola (Medeiros, 2017; Morés & Silveira, 2013).

Para a consecução da promoção da saúde junto às crianças escolares há que se adotar uma nova perspectiva teórica que abranja os determinantes sociais que impactam sobre a sua saúde, de seus familiares e comunidade, reciprocamente. E ainda, um referencial metodológico norteado por tecnologias leves (Merhy & Feuerwerker, 2016). Reconhecese, também, que a promoção da saúde com crianças apresenta desafios para a comunidade externa e para comunidade escolar (Comissão Nacional Sobre os Determinantes Sociais de Saúde, 2008; Morés & Silveira, 2013).

No âmbito escolar, as atividades realizadas ao longo desses anos tiveram seus objetivos alcançados, pois contribuíram para que os discentes sedimentassem a análise crítica dos determinantes sociais em que estão inseridas as crianças e famílias. Quanto às crianças, a inserção das atividades no cotidiano escolar contribuiu para a promoção da saúde na medida em que fomentam o acionamento das tecnologias leves, valorizam o desenvolvimento das habilidades pessoais, o autocuidado e a importância do envolvimento comunitário (Merhy & Feuerwerker, 2016). Quando brincam as crianças exploram seu mundo, ressignificam-no, lhe imprimem sentido.

Por fim, a experiência de promoção de saúde no espaço escolar guarda uma série de desafios. Após cada encontro constatou-se a importância de ampliar o olhar sobre os aspectos familiares e comunitários das crianças, a necessidade da educação permanente dos professores para aspectos referentes aos relacionamentos interpessoais (criança-criança/ criança-educador), o fortalecimento da escola enquanto instituição componente da rede de proteção dos direitos das crianças e a interdisciplinaridade das ações como ferramenta indispensável para o desenvolvimento psicomotor, nutricional e cidadão dos escolares.

 

Considerações finais

A interface Ensino-Extensão fomentada pela disciplina de Saúde e Sociedade estimula os discentes, futuros profissionais da saúde, a compreenderem os determinantes sociais de saúde e, sobretudo, a construir estratégias de interação pautadas em tecnologias leves, como o brincar. De maneira interdisciplinar, as particularidades de jovens-crianças se convertem em elos, e não obstáculos, com vistas ao objetivo comum: promoção da saúde dos sujeitos em seus territórios de vida, destes, as escolas e que deve ser entendida como um lugar de proteção na rede, haja vista as vulnerabilidades que muitas crianças experimentam.

Por fim, deve-se ressaltar que as propostas de promoção da saúde requerem sua expansão para outros atores da comunidade, como os familiares e próprios educadores e profissionais atuantes na escola. Desta maneira, uma limitação da experiência exposta é sua restrição às práticas com os escolares e que sinaliza a relevância de ações que envolvam outros sujeitos em suas redes de apoio e convivência.

 

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Endereço para correspondência
E-mail
: as_aragao@hotmail.com

Recebido em: agosto de 2018
Aprovado em: março de 2019

 

 

1 Ailton de Souza Aragão: Cientista Social. Doutor. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Pesquisa em Saúde e Sociedade.
2 Rodrigo Euripedes da Silveira: Enfermeiro. Doutor. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Coletiva.
3
Rosimár Alves Querino: Cientista Social. Doutora. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Coletiva, Núcleo de Pesquisa em Saúde e Sociedade.
4
Fernanda Sousa Bastos de Moraes: Graduanda. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde. Curso de Educação Física. Núcleo de Pesquisa em Saúde e Sociedade.
5
Maria Carollina Vieira Cardoso: Graduanda. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde. Curso de Terapia Ocupacional.
6 Letícia Carolina Buscaratti: Graduanda. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde. Curso de Terapia Ocupacional.

7
Maria Teresa de Assis Campos: Psicóloga. Mestra. Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Instituto de Ciências da Saúde, Departamento de Saúde Coletiva.

8 Luana Cristina Silveira Gomes: Psicóloga. Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Doutoranda. Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. Núcleo de Pesquisa em Saúde e Sociedade.
9 Maria das Graças Carvalho Ferriani: Professora Titular. Universidade de São Paulo. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Doutoranda. Departamento de Saúde Materno-Infantil de Saúde Pública.

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