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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia vol.54 no.1 Canoas jan./jun. 2021

http://dx.doi.org/DOI10.29327/226091.54.1-12 

DOI 10.29327/226091.54.1-12

RELATOS DE EXPERIÊNCIA

 

Cuidados psicológicos à trabalhadores do serviço funerário

 

Psychological care of funeral service workers

 

 

Cecilia Côrtes Carvalho 1,I; Isabela Garcia Rosa 2; Érika Perina Motoyama 3; Tatiane Sayuri Maeda 4; Giorgia Caterina Quattrone Troiano Valentim Cruz 5; Giovanna Vaz De Donno 6; Thais Fonseca Ares 7; Maria Helena Pereira Franco 8,II;

ICentro Universitário Atenas, Paracatu, Minas Gerais, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este relato de experiência discute um eixo de um projeto de ensino, pesquisa e extensão multi e interdisciplinar sobre educação e humanização da morte. Trata-se de ações da Psicologia destinadas à saúde mental dos trabalhadores do serviço funerário da cidade de São Paulo. A intervenção dividiu-se em duas etapas: visitas aos cemitérios, para aproximação daqueles pesquisadores à realidade e às demandas desses servidores; e oficinas com técnicas de dinâmica de grupo. Estas aconteceram por cinco meses, contaram com 130 participantes — motoristas, sepultadores, "veloristas", supervisores e gestores de recursos humanos — e tiveram como facilitadoras as integrantes da graduação e da pós-graduação em Psicologia. A análise das oficinas evidenciou, da parte dos servidores, sensibilização para suas necessidades em favor da saúde mental, percepção do valor de cuidado e humanização em suas relações profissionais e pessoais. Ademais, ações como essa realçaram a relevância de frequente acolhimento psicólogico a trabalhadores de serviços funerários.

Palavras-chave: Morte; Relações profissionais; Humanização.


ABSTRACT

This experience report discusses an intervention axis to multidisciplinary and interdisciplinary teaching and research project. These researchers' actions deal with the mental health of the workers of the funeral service of São Paulo. The intervention went through two stages: visits to the cemeteries, so researchers became closer to the worker's context and needs; and workshops conduct by group dynamics techniques. The workshops have occurred during five months, including up to 130 participants, such as drivers, gravediggers, death watch servants, human resources supervisors and managers, coached by Psychology undergraduate and graduate students. The analysis of the workshops substantiated the employees' awareness of their needs in favor of mental health, and perception of the value of care and humanization in their professional and personal relationships. Furthermore, actions like this highlight the relevance of frequent psychological reception to funeral service workers.

Keywords: Death; Professionals Relations; Humanize.


 

 

Introdução

A PUC-SP, mantenedora do (LELu) Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto, e o Serviço Funerário do Município de São Paulo (SFMSP), firmaram convênio para a atuação de uma equipe multi e interdisciplinar no Projeto Memória e Vida, que vigorou de julho de 2015 a setembro de 2016. Tratou-se de uma proposta de extensão universitária composta por professores, estudantes de graduação e de pós-graduação (Mestrado e Doutorado), cujas ações estiveram concentradas em três cemitérios da cidade de São Paulo: Consolação, São Paulo e Araçá.

Essa parceria teve como foco a humanização e, sobretudo, um cuidado humanizado no contexto laboral da morte. Pela lente deste projeto, a morte foi considerada em sua complexidade, do microssistema ao macrossistema, desde uma díade entre uma pessoa e sua figura de cuidado às relações familiares, comunitárias, urbanas e globais. A morte teve suas dimensões psicossociais validadas pela incorporação da subjetividade humana aos seus contextos, e pela integração de temporalidades, em que passado, presente e planos do futuro convergem e operam no tempo que é de fato percebido por cada pessoa. Como enfatizado por Rabinovich (1997), o que morre são pessoas, não suas relações. Os antepassados estão presentes no cotidiano e a memória sobrevive ao tempo.

O termo "humanização" tem sido utilizado em diversos contextos, como saúde, educação, trabalho e até mesmo nas condições de moradia. No Brasil, no campo da saúde, foi evidenciado na primeira década do século XXI, incentivado pelo Ministério da Saúde por meio da Política Nacional de Humanização (Ministério da Saúde, 2006). Então, fortaleceu-se um discurso sobre humanizar as intervenções e ações voltadas para cuidar, educar, informar, orientar, promover saúde e cidadania e conscientizar as pessoas sobre seus direitos e deveres. No entanto, o Ministério da Saúde deixava em aberto a definição de humanização. Para Ferreira (2009), humanizar significa "tornar benévolo, afável, tratável".

No olhar da filosofia, por meio do cuidado, o ser humano vive o significado de sua vida; é um meio de ser essencial; trata-se da raiz primeira do ser humano (Boff, 2004). O cuidado é um ideal ético, que engloba ações guiadas por princípios de conduta; abrange valores, crenças, normas sociais e outras específicas de cada ofício. Há diferentes maneiras de cuidar, que mudam de intensidade (Waldow, 2006; Waldow & Borges, 2011). O cuidado implica âmbito biopsicossocial e espiritual; está em função dos contextos e do próprio significado que tanto o indivíduo que é cuidado, como aquele que é o cuidador constroem para a atitude de cuidar.

Rabinovich (2011) referiu-se aos cemitérios como o "mundo da casa dos mortos", um lugar em que "Não há pressa, o tempo é o do eterno. Em certo sentido, a sociedade de consumo encontra-se fora dos portões dos cemitérios, pois a vida já foi consumida e consumada" (Rabinovich, 2011, p. 87). Esta autora percebeu esses locais como espaços urbanos, com pouca poluição atmosférica e sonora; uma área verde com pássaros e ruas limpas sem buracos em seus pavimentos.

Alguns cemitérios da cidade de São Paulo, como os focalizados nesta pesquisa, em especial o da Consolação, são considerados — além de oratórios — parques, jardins e museus. Podem ser utilizados pela sociedade tanto para lazer e entretenimento, como para fins educacionais, ao conter uma narrativa antepassada importante sobre o Brasil ou da metrópole em que estão situados. Celebridades políticas e sociais estão sepultadas nesses locais: são memórias que se tornam fontes de estudo social e cultural na ciência histórica.

Neste sentido, uma das intenções do mencionado convênio foi inserir essas necrópoles ao contexto das cidades, pois, por mais que estejam geograficamente presentes, ainda falta um reconhecimento social de que morte e vida possam ocupar, saudavelmente em termos concretos e subjetivos, um espaço em comum, o lugar da memória, da saudade, de visitas, orações, meditações e reflexões. "A morte deve ser estudada através de suas manifestações socioculturais, símbolos e espaços que as sociedades destinaram a ela" (Muniz, 2006, p. 164).

Neste trabalho, oito pesquisadoras representaram a Psicologia, sendo três estudantes de graduação, duas de mestrado, duas de doutorado e uma professora titular, tendo por objetivos: a) identificar condições de risco para a saúde mental, com foco na experiência laboral dos trabalhadores dos cemitérios; b) favorecer nestes a reflexão para identificação e desenvolvimento de recursos de enfrentamento, considerando situações que vivem em seu cotidiano; c) introduzir servidores do setor de Recursos Humanos do Serviço Funerário Municipal da cidade de São Paulo, à prática empregada para buscar com eles a capacitação e a multiplicação, passíveis de serem realizadas em outros cemitérios.

A teoria do apego desenvolvida por Bowlby (1982/1979; 1993/1973; 2004/1980) e pesquisas e estudos de Parkes (1998; 2009) e Franco (2008; 2010; 2014) ancoraram a construção das ações das psicólogas, juntamente com a análise de seus resultados.

Assim sendo, esse artigo tem por objetivo descrever e analisar um dos segmentos do trabalho da Psicologia que focalizou a saúde mental dos servidores do Serviço Funerário Municipal da cidade de São Paulo. Para isso, sua intervenção subdividiu-se em duas etapas: visitas de aclimatação aos cemitérios, para aproximação à realidade dos servidores; elaboração e desenvolvimento de oficinas psicoterapêuticas com esses trabalhadores.

 

Relato e Discussão da Experiência

Primeira intervenção: visitas de aclimatação aos cemitérios, para aproximação da realidade dos servidores

Inicialmente, para a construção de uma eficiente e eficaz intervenção da Psicologia junto a essa população, as estagiárias realizaram visitas aos três cemitérios (Araçá, São Paulo e Consolação). Objetivaram conversar com os trabalhadores, para, garantindo-lhes o sigilo sobre os relatos, conhecer de suas vidas pessoal e laboral, sobretudo identificando os fatores de risco e de proteção à saúde mental e que, em geral, estariam presentes em sua rotina diária.

Para essa aproximação, foi utilizada a metodologia de observação participante. Segundo Minayo (2004, p. 235), "não é o campo que traz o dado, na medida em que o dado não é 'dado', é 'construído'. É fruto de uma relação entre as questões teóricas dirigidas ao campo, incluindo perguntas suscitadas pelo quadro empírico às referências teóricas do investigador". As impressões colhidas nestas ocasiões foram registradas em um diário de campo, o que contribuiu para reflexões e para a formulação de ações de intervenção subsequentes. Dutra (2004) enfatizou que, ao atuar em pesquisa e extensão, a Psicologia Clínica necessita, cada vez mais, considerar na observação o contexto social. Sua análise pode se voltar em profundidade para as relações grupais, não apenas para o indivíduo isolado.

Na relação entre visitas feitas e servidores entrevistados nos três cemitérios, tem-se: no cemitério do Araçá, aconteceram duas visitas, com três entrevistados; no São Paulo, duas visitas, com dois entrevistados; e no da Consolação, três visitas, com seis entrevistados. Portanto, um total de 11 servidores entrevistados em sete encontros.

Ocorreram episódios de resistência de alguns servidores a participarem da entrevista. Nessas situações, a equipe inferiu que poderiam estar apreensivos e com medo do que lhes seria perguntado; os que não concederam entrevistas apontaram como justificativas intervenções anteriores que não promoveram mudanças efetivas no seu cotidiano, suscitando neles crenças negativas em relação à possibilidade de melhorias em seu trabalho.

Diante dessa impressão negativa por parte dos servidores, as pesquisadoras buscaram deixar claro o propósito do projeto, que era o de conhecer, atuar para transformar a realidade de sofrimentos em uma condição mais positiva e reforçar o sentido construtivo reconhecido por muitos em relação a sua vida pessoal e laboral. Enfatizaram que eles seriam os protagonistas dessas mudanças.

As visitas das estagiárias, relatadas em reuniões semanais com toda a equipe, foram analisadas e consideradas tanto para visitas posteriores, como para elaboração de uma intervenção subsequente. As queixas gerais mais frequentes dos entrevistados relacionaram-se a: trânsito até o local; baixa remuneração; discriminação social à sua função; desvalorização da profissão; falta de exames médicos no local de trabalho; necessidade de um processo seletivo mais criterioso para admissão; ausência de equipamento de trabalho adequado; falta de investimento em treinamentos aos novatos; uso de álcool e drogas pelos funcionários; e medo de contaminação pelos cadáveres.

A discriminação foi tema recorrente nas narrativas dos sepultadores. Viam-se discriminados não só pela sociedade, mas também por seus familiares e amigos. Seu uniforme de trabalho era alvo de olhares de indignação e repúdio. Desta forma, a discriminação e o preconceito foram entendidos como fatores de risco à saúde mental. Por outro lado, houve servidores que afirmaram não se abater com a opinião dos outros sobre seu cargo e função, reagindo com naturalidade e serenidade às atitudes de preconceitos e de segregação. Sentiam-se orgulhosos do seu ofício.

Outras queixas arroladas, que dizem respeito ao momento de sepultamento, estavam relacionadas às especificidades sociodemográficas das regiões, principalmente ao perfil psicossocial da população que utiliza cada cemitério. Em uma das necrópoles, relataram episódios de violência tanto para com eles, como entre os membros da família dos falecidos. Em outra, citaram acusações e brigas por herança no momento do funeral e que redundaram agressões a eles também. Em outra ainda, comentaram o abandono dos túmulos nos cemitérios por parte de familiares.

O sepultamento é o último momento de despedida do ente querido falecido. Portanto, pode suscitar sentimentos diversos nos participantes da ocasião, como raiva, tristeza, desconsolo, aflições e lamentações. Segundo Parkes (1998; 2009), cada pessoa apresenta uma resposta singular ao rompimento de um vínculo significativo, contendo o luto uma dimensão biopsicossocial.

A agressividade das famílias pode provocar aumento do estresse nas pessoas que trabalham no cemitério, comprometendo suas relações de trabalho, familiares, com os munícipes, etc. O estresse demasiado pode comprometer o desempenho psicofísico do organismo, sendo fator de risco à saúde. Os servidores entrevistados contaram experiências de colegas de trabalho que adoeceram no contexto de seu ofício, com episódios de desmaios, infarto e surto psicológico. Apontaram também acusações irracionais e fantasiosas recebidas por parte de familiares e de outras pessoas ligadas à pessoa falecida, até mesmo de culpa por sua morte. Houve relatos de que foram emocionalmente abalados por essas recriminações irreais, sentindo-se de fato culpados por aquela perda.

Por outro lado, alguns discursos tiveram conteúdos construtivos e motivadores ao trabalho de um serviço funerário. Eram aqueles associados à atividade como possibilidades de crescimento financeiro e de constituição de família, conquista da casa própria, carro ou sítio, o fornecimento dos estudos dos filhos ou auxiliado financeiramente familiares ou amigos. Houve relato sobre um servidor que ajudou outro, quitando-lhe uma conta ou comprando-lhe um remédio que este necessitou e não conseguiu pagar. Neste sentido, uma vez desmistificado, o trabalho desses servidores pode ser valorizado e respeitado, ao ser visto como fonte de estabilidade profissional e de realização de metas de vida. Ademais, muitos desses funcionários têm prazer pelo ofício que exercem.

Outras dimensões positivas identificadas nas falas dos entrevistados foram: presença da profissão na intergeracionalidade familiar, visto que outros familiares trabalham ou trabalharam nesta profissão (filho ou sobrinho de sepultador que segue a mesma carreira); sentiram-se gratificados por ajudar as famílias num momento difícil; trabalharem com a morte, aprendendo a valorizar a vida; existência de rede de apoio entre os colegas de trabalho; participação nas atividades de lazer, entretenimento e cultura promovidas no cemitério; aprovação dos projetos do SFM destinados a funcionários.

Os servidores legitimam a importância de seu trabalho para as famílias que atendem, mesmo relatando as agressões sofridas por parte delas. Afinal, eles viabilizam um momento de despedida de uma pessoa falecida, querida por familiares e amigos, e de homenagem a ela. Para Pereira (2013), os funerais são ritos que asseguram o passamento de alguém e consolam os que ficam concedendo-lhes esperança. Balandier (1997) destacou que é por intermédio do rito que os conflitos, as desorganizações e os males são transformados; o rito transforma em agente de reconstrução e de coesão aquilo que ocasiona confrontos, feridas sociais e degradação individual.

Segundo os servidores entrevistados, alguns munícipes reconhecem sua profissão. Há situações em que percebem as famílias satisfeitas e gratificadas por seu trabalho, pelo empenho no funeral, na conservação do túmulo e no cuidado com o cemitério. Sentem-se felizes por esse reconhecimento; alguns até se mostram chorosos ao fazer relatos sobre isso. Assim, as respostas das famílias para com as ações dos servidores podem ser fonte de motivação para que estes prossigam confiantes e seguros com seu ofício; afinal, trabalham com a vida e também com a memória, uma preciosidade que sobrevive ao tempo.

A amizade, a união e o sentido de coletividade que existem entre os servidores atuam como fator de proteção a seu desempenho profissional e a sua qualidade de vida. O ambiente de trabalho acolhedor favorece que funcionários expressem de maneira assertiva suas angústias, preocupações e inquietudes, respeitando também o silêncio daqueles que o preferirem. O trabalho mobiliza sentimentos nem sempre fáceis de lidar e pode requerer cuidado profissional especializado às demandas mais emergentes por parte de seus integrantes.

Portanto, por meio desta primeira intervenção, representada pelas visitas e entrevistas com os servidores nos cemitérios, foi possível aproximar o SFM do contexto real e cotidiano desses trabalhadores, para que a intervenção seguinte fosse ajustada às suas principais demandas e queixas emergentes, buscando sobretudo a promoção de saúde no contexto laboral com a morte.

Segunda intervenção: elaboração e desenvolvimento de oficinas psicoterapêuticas com os trabalhadores

A partir das visitas, houve estudo e elaboração de propostas de saúde mental aos trabalhadores do SFM. Para desenvolver técnicas de relação em grupo e ampliar a percepção e a sensibilidade de si e do outro, a equipe do LELu, escolheu trabalhar por intermédio de oficinas intituladas "Cuidando das relações no trabalho com a morte", utilizando técnicas de dinâmica de grupo. A seguir, apresenta-se a proposta de ação, bem como o embasamento teórico e prático destas oficinas.

Os benefícios na utilização de oficinas com técnicas de dinâmica de grupo decorrem do fato de que cada participante tem oportunidade de remeter seus conhecimentos a uma situação prática; das aprendizagens constituídas nas dinâmicas; da possibilidade de o coordenador examinar os resultados que o grupo vai obtendo; da praticabilidade do programa; do estímulo a aptidões naqueles que têm dificuldades para falar em público; e como resultado de ser uma intervenção de ação local (Minicucci, 1977).

Para construção das dinâmicas, foram utilizadas técnicas de psicodrama, como proposto por Moreno (1975). "Pode-se cartografar uma parte considerável do movimento psicoterapêutico desde o começo do século, tomando o paciente no divã e tirando-o daí para a cadeira, daí para seus próprios pés e, por fim, permitindo-lhe atuar ao vivo seus relacionamentos" (Moreno, 1983, p. 54).

A inversão de papéis foi uma ação considerada importante pelas pesquisadoras. Moreno (1975) defendeu que este procedimento possibilita à pessoa imaginar-se no lugar do outro e se colocar, em sua totalidade, na sua singularidade de sujeito (submetido a processos sócio-históricos e culturais) e de protagonista da sua história (munido de espontaneidade/criatividade).

No serviço funerário, lidar com situações extremas faz parte do cotidiano. Assim, é importante apresentar tais técnicas para os servidores, a fim de auxiliar na minimização do sofrimento e na promoção do autocuidado. Diante disso, recorreu-se ao guia Primeiros Cuidados Psicológicos (Organização Mundial da Saúde, 2015), que fornece recursos para situações emergenciais que envolvam o sofrimento humano. Desta forma, a intervenção por meio das oficinas teve o objetivo de favorecer a reflexão para identificação e desenvolvimento de recursos de enfrentamento, considerando situações que vivem em seu dia a dia.

As oficinas foram realizadas em instalações do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, com duração de quatro horas cada uma, entre dezembro de 2015 e abril de 2016. Disponibilizavam-se sempre duas salas nas quais eram acomodadas até 15 pessoas em cada uma, havendo situações em que formaram apenas um grupo, porque a quantidade de servidores presentes era menor do que se esperava. O setor de recursos humanos do SFM" fornecia antecipadamente ao LELu, o número de servidores inscritos nas atividades, para que as psicólogas pudessem se organizar entre elas sobre a condução das oficinas e quantas delas estariam cooperando em cada grupo. Foram sete encontros, e no total estiveram presentes 130 servidores, entre sepultadores, motoristas, "veloristas", administradores, agentes de apoio e funcionários dos recursos humanos.

Todas as oficinas seguiram o mesmo roteiro, dividido em três dinâmicas.

1. Apresentação em dupla: foi proposto ao grupo que caminhasse pela sala, a fim de que os participantes conhecessem o ambiente, olhassem uns aos outros, observassem a si mesmos e a seu entorno. Depois, foi-lhes solicitado que formassem duplas aleatórias, as quais tiveram cinco minutos para conversar. Em seguida, foi solicitada a inversão dos papéis — um participante apresentou o outro para o grupo, como se fosse o próprio colega.

2. Frase disparadora e representação de cenas vivenciadas no trabalho: sugeriu-se a construção de uma consigna para encenação, com tema inspirado por suas vivências no trabalho ou na família. Uma vez definidos os personagens envolvidos na cena, abriu-se a todos a possibilidade de assumir os papéis; em situações de resistência dos participantes, as psicólogas atuaram na dramatização, mas raramente houve tais recusas. Logo após, a coordenadora do grupo solicitou que se "congelasse" a cena, propondo a técnica da inversão de papéis. No final desta dinâmica, formou-se outra roda de conversa, na qual as pessoas que encenaram falaram de seus sentimentos durante o desenvolvimento das cenas, compondo uma discussão geral sobre as dificuldades e os modos de enfrentamento de cada um.

3. Encontro descrito em uma palavra: cada participante foi convidado a dizer uma palavra que representasse para ele a oficina.

No desenvolvimento das ações, eram trazidos ao grupo episódios de extremo estresse e esgotamento que se caracterizavam, continuadamente como situações de emergência e urgência. A maioria das cenas tinha como conteúdo central, além de dificuldades institucionais, as relações de trabalho, tanto entre colegas de profissão, como com familiares enlutados. À vista disso, o trabalho da psicologia tendeu a trabalhar as estratégias de emergência em situações-problema e de promoção e validação de recursos de enfrentamento, tendo como resultado principal a demanda para treinamento e apoio psicológico continuado.

 

Considerações Finais

O escritor português José Saramago, em sua obra As intermitências da morte, ao narrar uma vida sem morte, que bem chamou de greve da morte, apontou para a preocupação em setores profissionais, como as agências funerárias, de que sem a morte haveria falência e falta de trabalho: "[...] o despedimento de centenas senão milhares de abnegados e valorosos trabalhadores que em todos os dias da sua vida enfrentam corajosamente a imagem terrível da morte..." (Saramago, 2005, p. 27). Ele valorizou a coragem destes trabalhadores ao encararem um dos maiores medos do homem: a finitude.

Esta equipe de Psicologia valoriza as palavras desse escritor que retratou, pelo olhar da literatura, o que foi possível constatar com os trabalhadores observados, que propiciaram a oportunidade de se conhecer sua realidade de trabalho e, sobretudo, sua coragem de enfrentar os desafios da profissão, cada qual com sua trajetória. Eles buscam seu desenvolvimento profissional e melhorias de um serviço necessário para todas as pessoas, em algum momento da vida, quando se depararem com a morte de um ente querido. Portanto, cuidar de quem cuida da vida até o fim torna-se fundamental para a saúde mental e o bem-estar destes trabalhadores que, em melhores condições físicas e emocionais, podem prestar melhores atendimentos aos munícipes. Eis a importância do cuidar das relações no trabalho com a morte.

Este estudo ressaltou ainda que há questões a serem abordadas e que fogem ao escopo da ação da Psicologia. Envolvem ações políticas e de gestão, para as quais a Psicologia pode apontar necessidades e sugerir caminhos, mas cuja introdução não está em sua área de competência. Desta maneira, dar voz ao servidor para que ele se perceba de seu papel de protagonismo neste cenário tornou-se uma possibilidade de ação para a Psicologia, que foi buscada e obtida por meio das oficinas.

Pode-se considerar que a parceria do LELu ao Projeto Memória e Vida marcou um pioneirismo de cuidados psicológicos a trabalhadores de um serviço funerário no Brasil, aproximando a Universidade da sociedade, sobretudo de suas demandas ligadas à saúde mental. Espera-se que as experiências das oficinas relatadas encorajem projetos futuros sobre contextos de morte e luto; estimulem e orientem psicólogos a trabalhar tanto de maneira individual como grupal em situações de crises e emergência.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail:ceciliafamiliaecomunidade@gmail.com

Recebido em: abril de 2019
Aceito em: julho de 2020

 

 

1 Cecilia Côrtes Carvalho: Doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); pesquisadora em Família e Comunidade; professora do Centro Universitário Atenas, Paracatu, Minas Gerais, Brasil. (autora)
2 Isabela Garcia Rosa: Doutora em Psicologia Clínica, São Paulo, SP, Brasil. isabelagrh@uol.com.br (co-autora)
3 Érika Perina Motoyama: Mestra em Psicologia Clínica, São Paulo, SP, Brasil. erikapsicologia@gmail.com(co-autora)
4 Tatiane Sayuri Maeda: Mestra em Psicologia Clínica, São Paulo, SP, Brasil. tatiane.maeda@yahoo.com (co-autora)
5 Giorgia Caterina Quattrone Troiano Valentim Cruz: Graduada em Psicologia, São Paulo, SP, Brasil. troianogiorgia@gmail.com (co-autora)
6 Giovanna Vaz De Donno: Graduada em Psicologia, São Paulo, SP. Brasil. giovannadonno@uol.com.br. (co-autora)
7 Thais Fonseca Ares: Graduada em Psicologia. thaisares.psicologia@gmail.com (co-autora)
8 Maria Helena Pereira Franco: Professora titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica e na Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde; fundadora e coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto - LELu, da PUC-SP; Pós-doutorado na Universidade de Londres (London School of Hygiene and Tropical Medicine) e na University College London (Departamento de Psiquiatria), São Paulo, SP, Brasil. mhfranco@pucsp.br (co-autora)

 

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