SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.7 número13Constituição do sujeito, subjetividade e identidade índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.13 São Paulo jun. 2002

 

ARTIGOS

 

A beleza do jogo em terapia grupal de crianças1

 

 

Alberto EiguerI

Université Paris V - René Descartes

Endereço para correspondência

 

 

O estudo da estética do jogo2 passa pelo estudo do próprio jogo. Este será o tema da primeira parte deste trabalho, tomando como cenário a controvérsia Melanie Klein – Anna Freud, a propósito da utilização desta técnica em Psicanálise da criança: estas duas autoras tinham idéias radicalmente opostas no que concerne à função do jogo. Atualmente, a descoberta da estética do jogo apazigua o debate, revelando-nos contornos insuspeitos do funcionamento psíquico das crianças. Este último cria o belo, a fim de atenuar as inquietudes da castração, do enigma do feminino ou da loucura, no momento em que uma síntese se produz. Em terapia grupal ou familiar, o jogo adota formas específicas; ele é coletivo e traduz a dinâmica do conjunto dos participantes. Ele sugere, portanto, hipóteses sobre a vida psíquica do coletivo. Este será o tema da segunda parte de meu trabalho.

 

Uma entrada perturbadora no jogo

A evolução impressionante do jogo em terapia, como técnica reveladora das produções do inconsciente, justifica a controvérsia apaixonada que teve lugar, há cinqüenta anos, entre Melanie Klein e Anna Freud. Depois, a técnica do jogo evoluiu tanto no nível de sua manipulação quanto no nível de sua interpretação. A palavra de ordem de Melanie Klein poderia se resumir na seguinte frase: “Tudo é possível”; a de Anna Freud: “Tudo não é possível”. Para M. Klein, o jogo se assemelha a uma livre associação. Ele seria um equivalente da palavra, da qual a criança tem um uso limitado. Como o sonho, o jogo faz figurar no seu texto o fantasma e o símbolo inconscientes. “O jogo é uma realização de desejo”, dirá M. Klein (1932). O trabalho onírico pode até ser associado ao “trabalho lúdico”. Os atos e os gestos da criança, o deslocamento espacial e a dramatização do jogo – em resumo, o que é da ordem da ação – seria um equivalente do que, no sonhador, é da ordem da percepção. As angústias, prossegue M. Klein, inspiram o jogo e o colocam em funcionamento, tendo sempre valor defensivo (Klein, 1952; 1955). Para os analistas kleinianos, o fantasma inconsciente reencontra um estatuto próximo do representante psíquico da pulsão – por conseguinte, mais perto da origem da vida psíquica – enquanto que outros analistas acentuam os aspectos da elaboração e da figuração do fantasma.

Além do jogo, é o ato que merece a atenção do analista, permitindo uma interpretação no mesmo sentido que o jogo. Nasce, assim, uma técnica apropriada e rigorosamente estabelecida, com material de desenho colocado à disposição da criança e brinquedos simples, pequenos, relativamente numerosos. A caixa de brinquedos fará parte da relação íntima que será instaurada entre o analista e seu pequeno paciente: ela “guardará” na lembrança as emoções partilhadas, os momentos passados juntos. O brinquedo permite o deslocamento da representação de um objeto interno (Klein, 1929).

M. Klein insiste em observar igualmente as violências exercidas sobre o brinquedo e sua culpabilidade e a capacidade de reparação. Se esta é insuficiente, o objeto corre o risco de destruição eventual (sig-nos reveladores das violências primitivas); os sentimentos de se tornar, por sua vez, persecutório, sem que o medo desencadeado seja facilmente apaziguado (Klein, 1929, 1955). Mas a finalidade do jogo como realização de desejos não parece contida nesse caso. O jogo contém e desenvolve, com maior ou menor sucesso, os fantasmas ameaçadores ou aqueles que procurariam a degradação dos bons objetos em maus, e que fariam perder, assim, suas qualidades de satisfação; aqui o jogo ganha a batalha. Em alguns casos, o jogo é interrompido pelo aumento da angústia; em outros, o jogo se direciona para uma forma compulsiva, estereotipada, sem afeto, com um mínimo de prazer ou na sua ausência (cf. a criança psicótica).

No entanto, um fantasma recobriria toda a atividade lúdica – o fantasma masturbatório (Klein, 1929). Esta proposição ultrapassa aquela desenvolvida por Freud, a propósito do jogo do carretel, quando ele vê nisso repetição, controle, poder, satisfação auto-erótica. Para Klein, a criança entraria em rivalidade com a cena primitiva; ela se propõe a criar sua própria cena, que seria, por sua vez, sua criança partenogênica.

Ao analista em sessão é recomendado tanto interpretar – cuja finalidade imediata de alívio é enfatizada –, quanto participar do jogo, de preferência segundo as indicações da criança, mas autorizando-se a to-mar iniciativas. A disposição reparadora de M. Klein se faz sentir ainda, quando ela aconselha o analista a se colocar ao lado do superego protetor, a fim de permitir à criança se libertar das garras de um eventual superego impiedoso: um dos objetivos do analista seria modificar gradualmente a severidade do superego. A tarefa do analista consiste, assim, em “assumir ou dar a impressão de simular os papéis designados” (Klein, 1995).

Seguindo o movimento, acolhendo o desejo que, por não ser realizado, pode ser representado e enunciado, o analista oferece um modelo de relações pré-conscientes, estimulando o amor pelo jogo. Eu me pergunto se esse duplo movimento (estimulação-interpretação) não assinala a presença de uma linha de demarcação entre o conteúdo fantasmático na instabilidade do desejo singular e o processo de funcionamento psíquico, que se refere preferencialmente aos universais. Jogar, associar, transformar uma vivência em pensamento, isso é próprio do humano. Portanto, a posição adotada por Klein de “jogar com” assinalaria, antes de qualquer coisa, que o inconsciente não será excluído do campo de trabalho tera-pêutico. Isso é ainda mais importante quando vemos precisamente crianças que não conseguem brincar com o analista, ou que se isolam em jogos com regras préestabelecidas, ou naqueles que trazem de suas casas ou, ainda, que se limitam a desenhar, no pior dos casos.

Evidentemente, algumas crianças imitarão superficialmente o funcionamento, sem se deixar levar pelo afeto, a fim de agradar ao analista. Mas o analista, provavelmente, foi vivido aqui como uma mãe invasora, o que já cria um campo de transferência. O analista que brinca com a criança desfaz-se de seus hábitos de adulto para estar próximo de “suas partes infantis”, dá-se ao prazer.

 

O ponto de vista oposto

Na crítica que faz a M. Klein, A. Freud permanece cética quanto às possibilidades de simbolização pelo jogo; ela não acredita que se possa tirar conclusões analiticamente válidas do funcionamento do jogo em geral e da situação da análise da criança em particular. Para ela, parece impossível trabalhar as defesas, as resistências e a transferência (Freud, A., 1968). O jogo usual é mais marcado pelo critério de realidade que o jogo compulsivo, lembra ela. Em geral, o jogo estaria a serviço da descarga pulsional, antes de qualquer outra atividade psíquica, quer seja ela um fantasma ou um símbolo. A. Freud objeta “o excesso de dedução” da interpretação kleiniana. Na sessão, assinala ela, a criança é freqüentemente confrontada com um sentimento de estranheza: ela não está, de forma alguma, habituada ao fato de um adulto não lhe responder com sua ação ou com sua interdição. Mesmo que se queira interpretar o jogo, é preciso que o situemos no contexto da vida cotidiana, tal como se desenvolve livremente em casa, na escola, na rua, conclui A. Freud. Outros analistas, como S. Lebovici (1954) e R. Diatkine (1971), deram outro sentido a esta formulação. Acreditam que tal formulação revalorizaria a criança, atenuaria a influência da censura, permitiria liberar seu desejo e faria ainda com que este interviesse mais abertamente no jogo. No lugar da transferência, A. Freud propõe simplesmente o termo confiança no seu terapeuta. A criança está em relação por demais estreita com seus pais para que possa deslocar sua representação para o analista. O agir comportamental seria, no final das contas, um obstáculo à emissão ou à recepção da palavra.

Para A. Freud (1968), a proposição dos brinquedos sobredetermina toda interpretação válida: uma figuração rígida que torna o desejo contratransferencial evidente demais. Dever-se-ia situar a posição de A. Freud no contexto de sua obra e da análise da época, do desenvolvimento teórico sobre o ego e suas defesas. Ela preconiza um trabalho sobre as aquisições do ego, ainda incertas na primeira infância; sobre o desejo de apoio; sobre a boa interpretação do relacional; sobre a posição educativa apresentada como introdutora ou consolidadora do ideal do eu.

Além do interesse dessas duas posições irredutíveis, um debate interessante foi instaurado pelos analistas, franceses em sua maioria, que assinalaram o aspecto funcional do jogo. Mais do que os conteúdos fantasmáticos ou simbólicos, porém sem renegar sua importância, o enfoque foi centrado na formação do fantasma, no caminho que vai da representação psíquica à sua dramatização pelo jogo (Gutton, 1973; Lebovici et Soulé, 1986). Para estes, a assimilação do jogo no discurso ou na ação reduz suas possibilidades e o retira de sua singularidade. Diatkine e Simon (1972) assinalam que “o jogo tem na criança um lugar privilegiado. Ele permite que ela conheça os prazeres substitutivos”.

A questão da “espacialização” é também assinalada por estes autores: a utilização do território com seus lugares permitidos, proibidos; a relação do espaço da sala com outros espaços; o lugar das atividades psicomotoras; o estabelecimento da relação do gesto e da motricidade com a representação do próprio corpo com aquele da mãe.

Estas abordagens do jogo nos impelem a dar razões, tanto a M. Klein (pode-se reconhecer no jogo a marca do símbolo), quanto a A. Freud (é indispensável pensar no aspecto econômico do jogo); a criança joga por jogar, isso lhe proporciona satisfações narcísicas e libidinais de primeira ordem.

 

Percepção da beleza, criação e desejo estético

A partir dessas premissas, eu me perguntei se se poderia introduzir uma dimensão que seria associada à ruptura de sentidos, à “representação” do não-objeto. Alguma coisa de novo se instala pelo ato de jogar, que seria criação pura, apoiada sobre nada e sobre tudo. Essa montagem da estruturação lúdica seria ligada à moldura vazia na qual se constrói a representação. Minha idéia é que ela não se traduz por uma emoção ou por uma figuração, mas pela beleza que emerge do ato de jogar.

Por que algumas crianças, ainda que incapazes de criar um jogo abundante e rico, alimentado por fantasmas e por objetos, chegam a nos dar a impressão de completude e de beleza? É preciso admitir, nesse caso, que uma produção inconsciente pode se passar sem relações significantes, que ela não é senão pura continência, pura forma? Tratar-se-ia de repensar os mecanismos de funcionamento que, por uma conjunção de formas, produziriam o belo (Rod et Henry, 1985).

Eu gostaria igualmente de precisar que a beleza é um lugar universal do espírito, todos os humanos são convidados a produzir um efeito estético. Para apreender a estética do artista, nós devemos nos perguntar o que é a estética em cada um de nós. É também uma aspiração do eu alcançar, pelo embelezamento, essa completude narcísica que ele sempre desejou. Nesse nível eu falarei de desejo estético. Uma outra dimensão é a experimentação quando se contempla a qualidade estética de uma obra: ser sensível à maneira pela qual o artista – ou não importa que pessoa – exprime-se tornando belo o que emana dele (obra, discurso, gestos). Nós falaremos, então, de três dimensões da estética: produção, aspiração e experimentação (cf. Eiguer, 1999).

 

A beleza em todos os seus estados

Na atividade lúdica em terapia, a estética não é uma produção constante; por isso, é preferível falar de momento estético ou da beleza no jogo, que de estética do jogo. A criança pode desejar ser gratificada pelo seu jogo, mostrar-se cordata, amável, realizá-lo com esmero, em um ímpeto de reparação de um terapeuta-mãe que ela imaginaria afetado por seus desejos agressivos. Mas isso não é suficiente para que o jogo seja belo. Há também crianças que desejam seduzir,embelezando o que eles fazem na sessão. Às vezes, há aí uma questão de formação reacional face a um projeto de um registro completamente outro; querer, sobretudo, “fecalizar” seu trabalho. Ora, eu me pergunto se, nesses casos, esses desejos não são próximos demais da consciência, enquanto eu imaginaria a beleza como uma criação mais espontânea, inesperada.

A fim de estudar o aspecto estético do jogo, eu examinarei as teses de alguns autores. Para Bollas (1978), a mãe dispõe de uma capacidade que ele chama de transformação dos vividos; ela é oferecida ao lactente para que ele obtenha benefícios narcísicos indispensáveis; ele a tomará em seguida como modelo para desenvolver sua própria capacidade de transformação. O holding da mãe, sua voz, configuram um envelope sonoro (Anzieu, 1985), contribuindo para a introjeção de uma representação particular, o objeto transformacional: a criança tem o sentimento de poder mudar o mundo como se fosse ele que tornasse sua mãe disponível, antecipadora. Os reencontros com esse objeto engendram uma esperança, um sentimento de confiança, a fé de transformar presente em futuro. No entanto, essa relação de transformação não atinge jamais o nível cognitivo; ela permanece no nível da fusão total,na reminiscência da criação do ser, o sentimento de existir. É um conhecido impensado, um momento estético de comunhão sagrada, vivido como mágica. Não se poderia verdadeiramente dizer que esse indizível impensado tenha sido esquecido; ele jamais foi pensado. Seria, portanto, difícil se esperar uma recordação precisa dessa experiênciaarcaica, que será antes traduzida em atos ou em sensações. É possível dizer que a beleza surge lá onde o sentido pára, lá onde o saber não pode mais explicar nada? O lactente não consegue compreender a maneira pela qual a mãe chega a transformar suas emoções; isto se traduziria por uma impressão impregnada de beleza e de bem-estar?

A uma questão próxima, M. Milner tenta responder:

Experiências tais como aquelas descritas por Berenson (o espectador está inteiro na obra que contempla, ele se torna um com ela, uma única entidade) não são exclusivas da contemplação de obras de arte, mas a arte fornece um método durante a vida adulta para reproduzir os estados que fazem parte da experiência cotidiana ao longo de uma primeira infância saudável (1955, p. 263).

M. Milner falará do fogo interior atualizado pelo contato estético com o objeto, da concentração sobre as próprias sensações despertadas, de curvar-se sobre si mesmo, até de ruptura, que fazem viver intensamente esse momento único de fusão. Podemos falar também da emergência do pulsional e da transformação da excitação em sentimento?

Encantamento, êxtase, que estão também no centro da reflexão de D. Meltzer (1987), quando ele assinala a qualidade do vivido no recém-nascido que descobre o mundo, livre nos seus movimentos, sensível aos estímulos exteriores. Mas, para Meltzer, de maneira diferente de Bollas e Milner, a estética é prontamente colocada em uma crise: o lactente, admirado com a beleza do objeto-mãe, interroga-se sobre os limites dessa beleza. O interior dela é tão belo quanto o exterior? Conflito estético entre beleza e feiúra, entre o aparente e o oculto, entre forma e substância. Na perspectiva de M. Milner, a qualidade estética do mundo apareceria ao lactente como alguma coisa que ele próprio cria ao abrir os olhos. No momento em que o lactente se impregna dessa felicidade e se deixa levar pela ilusão da continuidade, a dúvida o invade, extraindo-o da quietude (D. Meltzer): ele quer saber o que encobre esse interior materno.

Nós associamos beleza e feiúra à problemática do feminino. Freqüentemente, a mulher tem o sentimento de não estar suficientemente bem apresentada, de não ser suficientemente bonita. Alguma coisa lhe faria falta; falta essa que a maquiagem ou as roupas vão ou ocultar ou completar. O efeito estético que deseja desencadear a mulher, ou o homem, não é uma resposta ao sentimento de castração? A feiúra interna que a mulher teme não é conseqüência da sensação de incompletude? Pavor de lugar sombrio, fechado e enigmático, lugar de extirpação, que suscita o medo do abismo. Por outro lado, um desejo emerge da totalidade narcísica, da aspiração estética. Em conseqüência, o conflito estético no lactente se encontraria diante do conflito estético em sua mãe – ela também oferecendo o belo para afastar a dúvida sobre sua feiúra interna. Para a criança, isto é ainda mais intenso, visto que, pelo seu nascimento, ela criou o vazio na sua mãe, que lhe lembra o cortetemporal, a privação. Éramos um e, de agora em diante, a quebra é evidente, incontornável. Certamente, a criança não sabe de nada no momento mas, para a mãe, a castração que o parto suscita não influenciará sua conduta, não dificultará sua atenção, ela não entrará em ressonância com a dúvida estética do lactente, estimulando-o?

De que modo? Oferecendo sua doçura e sua graça, embelezando o mundo com seu canto, sua música, seu sorriso. Do ponto de vista da criança, ter a ilusão de que “transforma” a mãe pode ser assimilado a uma tentativa reparadora da castração materna.

Diferentes analistas insistem sobre a “produção do belo” na criança em terapia, no nível de sua linguagem, de seus atos, aparecendo assim que há integração (Milner, 1955, p. 262) entre as partes do objeto clivado, entre as partes do corpo clivadas até então (a zona oral tendo sido vivida fora do soma, ou estando cindida, por exemplo) etc. Reencontros da ilusão primária, cujo corolário é o sentimento de existir. É a plenitude que toca a unidade, continuidade entre corpo e pulsão, entre esta, o afeto e a representação. Nasce então a esperança de que nada mais será desarticulado.

Estando a obra de M. Klein consolidada e reconhecida, o póskleinismo cria-lhe nuanças e a modula, aprofundando-lhe alguns pontos, dando sustentações mais sólidas à teoria. É o que tem feito Bion. Ele retoma, por sua conta, provavelmente sem perceber, algumas críticas antiespeculativas de A. Freud. Para que a psique crie ou formalize uma representação do objeto, assinala Bion (1965), é necessário que o objeto real se apague, que ele não exista mais, que ele se torne uma não-coisa. Assim, não se representa jamais o outro tal qual ele é. Quanto mais o conhecemos, menos o conhecemos na sua realidade objetiva, por que nos cercamos de seus fantasmas, de seus enredos pessoais. Compreender minha mãe implica que um aspecto dela será, para sempre, inacessível a mim: sua vida sexual, seu passado. Dito de outra forma, minha mãe é, em parte, irrepresentada. A partir dessa não-coisa, se forjará o todo na coisa. Uma maçã, na minha concepção, não é (mais) uma maçã mas, graças a ela, contém a representação da categoria de todas as maçãs.

Alguns constituintes da psique não seriam ligados aos sentidos: os continentes psíquicos, as referências do próprio espaço e seus entornos, as categorias lógicas que nos ajudam a distinguir o particular do geral, o simples do complexo. Diante da supervalorização da significação, é legítimo se perguntar: até onde? Há um momento, como aquele central do sonho, no qual a busca da indagação de significações se mostra supérflua.

Bion se interroga sobre os vestígios do formal que se situam fora dos limites do sentido. Ele reúne as preocupações formais dos autores franceses, cujas idéias relativas ao jogo indicam a preocupação com os mecanismos de funcionamento, de uma pretensa topologia lúdica. O sentimento estético não é o que transcende o conteúdo? É belo porque é belo, e nada além disto. No século XX, o artista vai em busca da mais poderosa sensação estética: a arte se desprende de um herói, de um sujeito, do que é secundário.

Diante de uma obra, a lógica das formas, a harmonia que elas emanam, o estado de exaltante bem-estar que elas provocam no espectador, cruzam os significantes formais emitidos pelo artista. Ocorre um duplo retorno do recalcado. De um lado, um retorno do recalcado dos fantasmas que não se consegue restituir tão bem quanto o criador: o espectador está fascinado. De outro, um retorno do recalcado dos significantes do continente, que reencontram o equilíbrio do mundo sensível. Neste caso, trata-se não de fascinação, mas de serenidade.

 

O mistério da gruta

As crianças psicóticas são capazes de reproduzir em sessão seus vividos inomináveis, de maneira estourada, disruptiva ou ainda estética, no momento em que eles a integram. Trata-se de realizações de uma ambição de síntese, de pureza, de completude há muito tempo esperada? Dos três elementos da estética evocados acima – percepção, ambição de completude narcísica e produção – é o último o que mais me inquieta. Pode ser que a beleza rime com felicidade, como no caso de Raymond.

Raymond, que eu recebo aos oito anos, já tem uma longa trajetória como criança psicótica: atitude de isolamento, atos auto-agressivos, estereotipias, profusão imaginária e delírio. Ele foi adotado aos quatro anos, com as irmãs gêmeas. Tendo vivido com seus pais biológicos “alcoólicos e toxicômanos”, socialmente muito marginalizados, até nove meses, em seguida foi colocado em um orfanato, depois foi para a casa de uma ama-de-leite, da qual Raymond parece guardar uma lembrança terna e, talvez, nostálgica. Sua adoção ocorre depois da de uma menina, que morre no ano seguinte. Mesmo sendo considerada estéril, sua mãe adotiva engravidou depois da adoção das crianças. Outros sintomas de Raymond serão descritos pelos pais no momento das entrevistas preliminares: violento, ele gosta de destruir objetos e brinquedos; ele corre com os braços levantados por razões inexplicadas, ou se exibe acariciando as partes genitais.

Quando fico com a criança, ela entra subitamente em pânico: um trem que passa perto da casa sacode o sol e as paredes, pode ser um terremoto ou um vulcão que vai explodir no meu bairro. A terapia começa com duas sessões por semana. Os primeiros desenhos são pobres, repetitivos, sem associações. Ele desenha várias vezes estalactites e estalagmites, que não deixam muito espaço entre elas; às vezes o contorno da gruta é traçado. As estalactites vão quebrar, os cacos são pontudos. Nunca aparecem seres vivos. Ele desenha também uma “pedra inclinada”, em desequilíbrio, que igualmente se quebra.

Eu interpreto, em diferentes ocasiões, seu desejo de não deixar entrar ninguém em seu mundo impenetrável. Ele prefere destruir tudo, apagar tudo, a fim de se privar de prazer e me privar do meu (prazer que ele pode deduzir da atenção que eu dou a seu trabalho).

Cada tema ou assunto do jogo será retomado interminavelmente.É assim com aquele barco, que ele desenha ou faz em papel ou em massa de modelar. O barquinho apresenta um pequeno buraco que lhe é fatal: a água penetra e ele afunda. Sessão após sessão, eu assisto a esse desfecho. Em outras ocasiões, eu introduzo, desenhando eu mesmo, peixes, estrelas do mar que olham o pequeno barco afundar e que dirão (eu crio esse diálogo): “Tem visita”; “Você não vê que o barco não sabe respirar embaixo d’água?”; “Há pessoas que se afogam”. Eu organizo “o salvamento” do barco com um submarino e com homens rãs (na versão desenho ou massa de modelar). Utilizo uma corda para suspender o barco. Passivo, Raymond observa se isso é possível. Ele reage com ironia: e se “os cabos não agüentarem”. Ele responde, pouco a pouco, de um modo mais vitalizado: uma grande baleia chega (são as tesouras) e corta o casco do barco, que vai afundar ainda mais depressa. Bem mais calmo, ele é levado a inventar situações de jogo.

No meu jogo, eu introduzo minhas interpretações, às vezes, como associações. Ele gostaria de entrar em colisão comigo, a grande baleiatesoura contra o feltro-submarino em operação. Ele redobra a astúcia para ganhar a batalha, mas não fica descontente porque o feltro o enfrenta. Entre as interpretações avançadas a propósito desse jogodesenho, algumas pareciam quase não de spertar seu entusiasmo: voltar ao nascimento, necessidade de ser recuperado pela família adotiva. Ele parece ferido por sua história. Uma observação deixou-o mais interessado: quando eu lhe mostrei que ele queria dizer que se sentia arrastado, constrangido, quando foi deslocado de família em família, sem nada poder dizer nem fazer para exprimir sua tristeza. Eu acrescentei: “Ninguém pediu tua opinião. Mas uma criança pequena tem o direito de escolher seus pais”. A partir de sua proposta, nós jogamos de caçador que matará o veado; se é ele o caçador, ele tentará também atirar em um pequeno pássaro, mas esse voa. Várias vezes, ele será o animal morto. Estou pessoalmente preocupado em lhe fornecer interpretações mais ou menos “inspiradas”.

Nesse instante, Raymond vai me surpreender: pela primeira vez, ele faz o croqui de um desenho abstrato. Eu penso: “ele final-mente está ‘inventando’ a arte abstrata”. Ele pega a tesoura e recorta a figura; um par de galhos de veado aparece. Ele está encantado com isso e vai colocá-lo sobre sua testa, pendurando-o nos seus óculos. Ele prepara outros, que eu devo usar pendurado nos meus óculos; com freqüência meus galhos serão menores que os seus. Nós estamos unidos sob o signo do veado; em sua homenagem nós portamos os galhos.

O jogo do caçador, do veado morto, vai se reproduzir com variantes interessantes. Eu introduzo uma ambulância com carregadores de macas, que vão levar o veado ao hospital. Ele será salvo? Em um de seus desenhos, eu desenho um helicóptero, pára-quedistas que vêm recuperar o veado ferido. Ele se ocupa, sobretudo, do condutor que quer fugir, mas é pego por outros pára-quedistas armados. Durante essa sessão, ele recorta cuidadosamente e em silêncio folhas de plantas do meu consultório para fazer um buquê destinado a sua mãe. Pressinto um reconhecimento, desejante que essa mãe se console da desilusão que ele poderia lhe ter causado. Ao mesmo tempo, ele “aproveita” para seduzi-la, “com meus belos objetos”.

O desenho das estalactites retorna mas, dessa vez, Raymond as faz também com a massa de modelar; ele as pendura na beira da pequena mesa de jogo. Ele escolhe com cuidado cores vivas e diferenciadas, e é nessa ocasião que eu tenho uma nova impressão de beleza inesperada (a primeira foi quando ele recortou os galhos do veado). Ele recomeça na sessão seguinte. Além da mesa transformada “em sua gruta”, ele pendura suas estalactites sob as cadeiras. Ao final da sessão, ele se instala “no interior de sua gruta” e bate sobre “o teto”. Eu digo: “O bebê dentro de sua mãe me chama”. Raymond ri, parece apaziguado.

Esses jogos e esses desenhos evocam, eventualmente, o desejo de retornar ao ventre da mãe; parece-me que esse fantasma está ligado à sua mãe adotiva. Será que ele desejaria entrar em seu interior, habitá-lo, encontrar um recipiente que ele o represente como belo?

Em seguida, fico sabendo que Madame X está grávida pela segunda vez. Em pleno trabalho analítico, Raymond pôde captar isso, que alimentou-lhe uma fantasia de fusão com sua mãe adotiva. Os aspectos organizadores se fazem sentir. Ir até o fim da adoção, tornar-se seu filho de sangue, provoca-lhe um trabalho no nível da forma, cuja estética é singularmente bem-sucedida. A beleza, à qual Raymond se torna sensível e que ele chega a criar, seria a expressão de seu amor pelo objeto timidamente, mas firmemente, genital (fazer a criança na sua mãe, reparar sua esterilidade) e também a expressão da apreensão e da capacidade de dar forma ao mundo reencontrado: o objeto transformacional, formas que se animam com harmonia, cores que exaltam os sentidos. Procuro mostrar, com o caso de Raymond, que a estética de seu jogo chega a nos tocar antes que seu desenvolvimento psíquico atinja níveis evoluídos, testemunho do laço fusional indizível-impensado, mas harmonioso em sua exultante beleza.

 

Em terapia de grupo e familiar

Ao longo de nossa exploração, a noção de jogo mostrou-se indissociável da interação com o terapeuta, da motricidade e do deslocamento da criança, da sua gestualidade, da utilização de mediações como o desenho ou a massa de modelar. A transferência é, ao mesmo tempo, alvo e estímulo do jogo. É importante, então, assinalar que a produção estética se inscreve em um movimento, no qual sua captação pelo terapeuta faz parte do conjunto. As três dimensões da estética – o desejo, a criação e a experimentação – intervêm de maneira regular e articulada. O acompanhamento do terapeuta no momento do jogo tem diferentes valores: de intervenção associativa, permitindo articulações; de interpretação, quando se procura introduzir algum novo senti-do ao material; de construção, quando ele busca isolar um conjunto determinante da história do pequeno paciente, marcado pela travessia de um fantasma originário. Isso pode se passar sem palavras, apenas pelo único fato de que sua participação tem diferentes valores: de intervenção na construção da cena do jogo, como ocorreu com as minhas intervenções a propósito do jogo “dos barcos que afundam”, do “caçador”, do “condutor do trem” etc.

Quando a terapia é coletiva (grupo, família), esses aspectos se multiplicam. Cada criança joga levando em conta os outros; seu jogo é o produto latente da grupalidade: o testemunho dos fantasmas coletivos, trazido, infiltrado, sobredeterminado por eles. Afetos, resistências, pactos, teorias sexuais vão animá-lo. Convém, no entanto, assinalar – e aí está minha apreensão dessa atividade – nem tudo o que a criança produz no grupo “é grupal”, como nem tudo é também individual. O vínculo entre o pessoal e o grupal se conecta e se desconecta, “se liga e se desliga” com alternância e, freqüentemente, com rapidez. Mas, quando essa conexão se estabelece, uma nova dimensão aparece e não saberemos lê-la facilmente a partir apenas de uma referência individual. A Psicologia coletiva nos interessa porque reconhecemos sua importância e sua universalidade; e também porque ela permite abordar planos inabordáveis de outra maneira, cujo desfecho leva nossos pacientes ao progresso.

A observação do jogo nas terapias de grupo permite-nos perceber que as resistências podem estar muito vivas aí; os efeitos de “bando”, de contra-grupo, de contra-cultura, ou de grupo desorganizado e anômico são exemplos. As rivalidades e as invejas entre crianças tomam igualmente, com facilidade, a forma auto e alo-destrutiva. É preciso assinalar, a esse respeito, a organização em subgrupos opostos, constituindo alianças inconscientes. Por outro lado, os casos de disputa são também notórios. Em grupo, o pensamento será facilitado, as associações serão mais numerosas e ricas, o jogo mais inventivo, na medida que o elemento espelho evolui em reflexo, que o mesmo alterna com o semelhante, ou o próximo. As associações são também um vir-a-ser; o enigma é impossível de ser preenchido e é preciso que os membros do grupo nele se acomodem. O jogo pode então tornar-se um grande estimulante do trabalho de descoberta e, ao mesmo tempo, um veículo de transmissão psíquica. As terapias de grupo nos mostram com exatidão que a herança não se transfere menos entre irmãos e irmãs que entre pais e filhos. Entre crianças, nossos pequenos pacientes receiam menos a ascendência, eles consideram que o amor não exige tanta contrapartida, diferentemente do que se passa quando eles o recebem de um adulto.

Eu gostaria ainda de chamar a atenção para um outro ponto: o jogo em terapia não é apenas um meio de expressão do inconsciente. Ele adquire uma certa autonomia durante o processo: jogar por jogar, darse por dar-se. Esse desenvolvimento pode tornar-se fonte de ressonâncias terapêuticas – às vezes, além de nossas expectativas.

O tema da estética em terapia familiar sistêmica foi introduzido por Keeney em 1983, unicamente como verificação. Seus passos se inscrevem em uma crítica, face a uma técnica sistêmica que se tornou muito preciosa, fria, distante, em relação às dificuldades familiares, como é o caso em J. Haley (1964), M. Selvini-Palazzolli et al. (1988), S. Minuchin (1991). Keeney está próximo de Bateson e Bateson (1988), nesse debate que desencadeará progressivamente o desenvolvimento do construtivismo em terapia familiar e, mais tarde, da narrativa (Andersen, 1991). O terapeuta é convidado a continuar intuitivo, sensível, espontâneo, aberto, capaz de dar livre curso a seu espanto, respeitoso dos “sistemas naturais”; evitando, portanto, os apriorismos. Isto conduzirá até mesmo ao abandono dos modelos teóricos “muito embaraçosos”, de toda estereotipia pelas intervenções pré-fabricadas (Hoffman, 1997). Nos novos teóricos da abordagem sistêmica, “a estética” é imaginada como uma atitude contemplativa: permite que “a beleza das experiências familiares”emerja, depois fertilize e sensibilize o espírito do terapeuta. É preciso assinalar a proximidade com a atitude do místico. Retenhamos, no entanto, que essa abordagem reconhece nos pacientes uma qualidade criativa, abafada habitualmente. O terapeuta procurará desenvolvê-la.

 

Uma terapia familiar na qual a beleza serve comodefesa ou como realização

Este caso data de uma dezena de anos; na ocasião, as questões do segredo eram fonte de uma grande curiosidade científica. As dificuldades que apresentavam as crianças da família B tinham sido agravadas no momento em que os pais haviam tentado várias formas de cuidados. As três crianças, um menino e duas meninas, de dez, oito e cinco anos respectivamente, sofriam de fobias diversas: o primeiro de terrores noturnos e de pesadelos; a segunda, de uma fobia de animais; a terceira evitava as saídas e tinha crises de sonambulismo. Eles se mostravam pouco maduros ou muito dependentes, agachando-se contra o corpo dos pais ou chupando seu dedo ao menor aumento de tensão. Entretanto, a vida escolar e seu desenvolvimento não pareciam afetados.

Eles vieram me ver logo após esse agravamento sintomático mas, de fato, um outro problema os paralisava. O pai, recentemente, havia revelado um segredo a sua mulher, encorajado por seus terapeutas e clínicos anteriores, o que complicou suas vidas: em uma época precedente à relação deles, ele tinha tido uma ligação da qual tinha nascido uma menina. O pai não quis “assumir” essa paternidade, ele “entendiase mal” com essa mulher; mas esta tinha reagido violentamente, recusando-lhe qualquer contato com a filha pequena, um pouco mais velha que seu filho primogênito. Essa revelação caiu como uma bomba; as crianças tornaram-se tristes e, quando elas quiseram entrar em contato com sua meia-irmã, sofreram ao saber que isso não era possível. As tentativas de reencontros familiares foram infrutíferas. Quando eu os encontrei pela primeira vez, eles só falavam dessa questão; ninguém queria culpabilizar o pai, mas era evidente que ele aparecia como um personagem horrível, dissimulado, cruel, sem o mínimo senso de responsabilidade, do qual a primeira vítima tinha sido essa filha mais velha, que fora “privada” do pai. As crianças, que conheciam a data de nascimento de sua meia-irmã, imaginavam oferecer-lhe presentes; esperavam vê-la em cada festa de sua própria família, redigiam cartas que sabiam que sua irmã jamais receberia. Pouco tempo depois, soube que a antiga parceira do pai havia se casado – ela vivia com seu marido e sua filha.

Os terapeutas anteriores tinham insistido muito para que o pai confessasse “suas faltas” e para que ele tentasse “repará-las”. Isto parecia lhe convir e, ao mesmo tempo, ele alimentava uma evidente inclinação masoquista. No entanto, ninguém compreendia que, guardando o silêncio sobre esse affaire, o pai desejasse “proteger”, à sua maneira e desajeitadamente, sua família atual, ao preço do sacrifício da relação com sua filha mais velha. Durante as sessões familiares, a mãe permanecia muito reservada acerca da sua própria experiência, as crianças se exprimiam pelo jogo e por desenhos: imagens de mulheres bem-vestidas e com maquiagem ostensiva, pequenos corações atravessados por flechas, ou fantasmas e palhaços e, ainda, desenhos de homens simples feitos coletivamente, retratos um tanto monstruosos, sem mãos, congelados, acompanhados de inscrições, pelas quais as crianças zombavam umas das outras.

Elas jogavam juntas os jogos que inventavam, mas dominados pelo desafio e pela competição: preencher casas, pontos que deviam ser ligados por linhas. O mais velho mostrava sua superioridade nesse gênero de atividade, mas a segunda não se entregava facilmente. Ela não deixava de se afirmar por meio de suas respostas rápidas, do tipo: “Eu também sei ser isto”. Ela era hábil em seus desenhos sobre grandes folhas e ocupava muito espaço. Seu desenho era bonito, mas convencional, superficial, artificial, marcado pela aparência: bonecas-manequim, figurinos da moda.

Quando a antiga ligação do pai era evocada, os desenhos das crianças eram fortemente coloridos de vermelho; a segunda desenhava o retrato da filha mais velha como um pequeno gnomo nu, com um grande pênis, homens com uma língua proeminente, unhas-garras quando ela não conseguia desenhar mãos, ou coelhos com a pele decorada com cenouras. A última fazia impressões de mãos, com unhas vermelhas, com muitos anéis e nenhuma aliança, um monstro com uma cabeça redonda, duas antenas retas, dois olhos, mas com duas pupilas cada um e um corpo fibroso. As crianças funcionavam assim como o coro de um teatro antigo, revelando o sentido profundo do discurso.

Progressivamente, a natureza do problema foi estudada: eu assinalei a confusão entre, de uma parte, amor sexual entre adultos, com seus ciúmes e seus sentimentos de despeito, suscitanto desejos de “vingança”; de outra, paternidade ou confraria. O casal B. se apagava por trás da relação passada do homem, que ocupava todo o espaço. A esse propósito, um longo trabalho de “recuperação” foi empenhado depois que eu lhes solicitei que evocassem em sessão sua história comum e depois a pessoal. Tratava-se de desmontar esse imbróglio ligado à revelação do segredo.

Os resultados não se fizeram esperar: os sintomas das crianças foram aliviados, elas se alegraram, os humores melhoraram, a identidade familiar foi reafirmada, o pai se sentia menos confuso, menos disposto a “recolher os vasos quebrados”. A esposa pôde, enfim, exprimir toda sua cólera contra a primeira parceira de seu marido; ela pôde dizer que a sentia como querendo invadir a intimidade deles, agindo de forma com que os laços entre todas as crianças não pudessem se estabelecer normalmente. Mais tarde, ela reconheceu estar identificada com essa antiga amante de seu marido, “que ela conduzia o barco”, mostrando que uma mãe pode se servir da maternidade para exercer seu poder e “eliminar o homem”.

Eles pareciam todos sob a influência do mito “as crianças em primeiro lugar”, que é uma modalidade do fantasma de “criança-rei fusionada à rainha-mãe regente” (mulher com falo-criança). Finalmente, o mito atual “é preciso dizer tudo, não esconder nada”, apareceu-lhes como condutor das piores complicações. A revelação tinha provocado mais rupturas que vínculos, mais ódio que amor. Eles estavam aprisionados no centro desse mito.

A evolução do jogo foi também interessante; os pais, às vezes, participavam dele. Uma estética nova emergiu, menos sustentada por um falso self, quando eles (pais e crianças) “descobriram” a massa de modelar de diferentes cores. Eles fizeram animais, muito habilmente, utilizando-se de tonalidades que correspondiam às diferentes partes do corpo: uma galeria de coelhos, patos, caracóis, gatos, leões, com os quais eles construíram cenas, brigas também, mas não os destruíram. A segunda criança continuou a fazer belas mulheres, mas adultas, sensuais, às vezes severas como “minha professora”. A última desenhou castelos muito “herméticos” ligados por uma estrada de mão única e sinuosa. Ela gostava de jogar “labirintos” com sua irmã: linhas conduziam de um ponto a outro do desenho ou da entrada à saída de uma casa, mas uma só linha era correta. Era preciso encontrá-la. A beleza “autêntica” era, a partir de agora, associada à síntese e não a uma fuga antes da hora.

 

Discussão

O alcance dos mitos familiares é confirmado pelo testemunho dessa família. Ela nos mostra que os mitos sustentam sua vida, eles são também a chave dos conflitos e das perturbações. Seu tratamento deve nos levar a uma grande prudência quanto ao nosso desejo de querer substituí-los por outras representações ou mitos reputados como mais adaptados, mas, com freqüência, totalmente irrealistas e fundamental-mente desrespeitosos quanto ao equilíbrio buscado pelos pacientes. Creio que as crianças puderam manifestar aqui a beleza que representava para elas o reencontro de seus pais.

A partir disso, é possível pensar que o segredo não tinha ligação com as perturbações psíquicas? Eu não creio nisso. Os receios do pai poderiam estar relacionados àqueles das crianças, suscitá-los, eventual-mente. O pai temia o escândalo; ele se sentia perseguido por sua antiga amante, o que nutria o medo coletivo da mãe fálica e impiedosa. Essa representação era a da rainha do lar. As representações sociais têm um ganho, mas o importante é o que as pessoas fazem dele.

As diferentes facetas da beleza merecem nossa atenção. Não é por serem belos que os desenhos evocam a estética. No caso de Raymond, as conchas eram belas; da mesma maneira, nas crianças do segundo exemplo clínico, os homens simples e as meninas-bonecas do início do tratamento eram frios, convencionais na sua beleza e harmonia. Mas esses desenhos não representavam uma verdadeira síntese ou a expressão de sua profundidade. A estética nos surpreende e nos arrebata; ela invoca os reencontros da ilusão: esse foi, antes, o caso do recorte dos galhos do veado em papel cartonado, da construção da “gruta” de Raymond e os desenhos das jovens mulheres feitos pela menininha B., ou a modelagem com a massa. Isto toca o reconhecimento, mais que a sedução...

 

Conclusão

Hoje daríamos razão a Melanie Klein: o jogo é um meio de trabalho único; mas também à Anna Freud: seria abusivo considerá-lo como um fim terapêutico, que se fia nele mesmo. O jogo é um revelador de certos conteúdos, mas também da natureza do funcionamento psíquico. A criança tem uma absoluta necessidade de jogar e a terapia lhe dá a oportunidade de exprimir toda a riqueza de sua experiência. O jogo interessa por aquilo que ele exprime e por aquilo que ele não pode exprimir: o que fica indeterminado e indizível, freqüentemente ocultado pela sobredeterminação do conflito e que pode tomar a via da estética. Uma interpretação adequada seria não tanto aquela que explicita seus conteúdos, mas aquela que facilita o prazer e a expansão dessas virtualidades do jogo.

Todavia, o belo não saberia se fazer compreender sem o feio, do qual ele emerge, o qual ele quer remediar, instalando-se uma tensão entre essas duas vivências. Assim, a dinâmica do belo e do feio, na mesma medida em que o conhecimento absoluto, não é jamais saciado, instaura o movimento incessante da construção do espaço imaginário.

 

Referências Bibliográficas

ANDERSEN, T. (1991). The Reflecting Team: Dialogues and Dialogues about th e Dialogues. N. Y.: Norton.ANZIEU, D. (1985). Le Moi-peau. Paris, Dunod.        [ Links ]

BATESON, G.; BATESON, M. C. (1988). Angel’s Fear. London: Ride.

BION, W. ([1965]1982). Transformations. Paris: PUF.        [ Links ]

________. ([1967]1981). Réflexion faite. Paris: PUF.        [ Links ]

BOLLAS, Ch. ([1978]1989). L’objet transformationnel. Revue Française de Psychanalyse. 53, 4, p. 1181-1199.

DIATKINE, R. (1971). Etat actuel de la psychanalyse d’enfants. Psychiatrie de l’Enfant. 14, 1.

__________; SIMON, J. (1973). La psychanalyse précoce. Paris: PUF.        [ Links ]

EIGUER, A. (1994). Une fêlure dans le miroir. Aspects rivaux du narcissisme dans l a pathologie. Paris: Bayard.        [ Links ]

_________. (1999). Du bon usage du narcisisme. Paris: Bayard.        [ Links ]

FREUD, A. (1968). Le normal et le pathologie chez l’enfant. Paris: Galimard.

FREUD, S. (1920). Au-delà du principe du plasir. O. C. Paris: PUF. XVIII.        [ Links ]

GUTTON, Ph. (1973). Le jeu chez l’enfant. Paris: Larousse.

HALEY, J. (1964). Strategies in Psychotherapy.        [ Links ]

HOFFMAN, L. (1997). La thérapie familiale sans frontières. Cahiers critiques de thérapi e familiale. 19, p. 57-76.        [ Links ]

KEENEY, Y, B. (1983). Esthetics of Change. New York: Guilford.        [ Links ]

KING, P.; STEINER, R. (1996). La controverse Anna Freud-Melanie Klein (1941-1945). Paris: PUF.        [ Links ]

KLEIN, M. ([1929]1947). La personification dans le jeu des enfants. Dans: Contributions à la psychanalyse. London: Hogarth.        [ Links ]

_________. ([1932]1959). La psycanalyse des enfants. Paris: PUF.        [ Links ]

_________. ([1952]1966). Notes sur quelques mécanismes schizoides. Dans: KLEIN, M.et al. Développements de la psychanalyse. London: Tavistock; trad. Franç., Paris: PUF.        [ Links ]

KLEIN, M. (1955). La technique psychanalytique du jeu: histoire et signification. Dans: KLEIN, M. et al., New Directions in Psychoanalysis. London: Tavistock.        [ Links ]

LEBOVICI, S.; DIATKINE, R. (1954) Etude des fantasmes chez l’enfant. Revu e Française de Psychanalyse. 18, 1.

LEBOVICI, S.; SOULÉ, M. (1986) La connaissance de l’enfant par la psychanalyse. Paris: PUF.

MELTZER, O. (1987) Esthetic Conflict. London: Clunic Press.        [ Links ]

MILNER, M. (1955) Le rôle de l’illusion dans la formation du symbole. In: KLEIN, M. et. al. New Directions in Psychoanalysis. London, Tavistock.

MINUCHIN, S. (1991) The seductions of constructivism. The Family Therapy Networker. 15, p. 47-50.        [ Links ]

ROD, A.-L.; HENRY, R. (1985) Le jeu en psychothérapie de l’enfant. Psychiatrie de l’enfant. 28, 1, p.135-160.

SELVINI-PALAZZOLLI, M. et al. (1988) Les jeux psychotiques dans la famille. Paris: ESF, 1990.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Alberto Eiguer
154, rue d’Alésie – 75014 – Paris/France
E-mail: albertoeiguer@voila.fr

Recebido em 15/04/02

 

 

Notas

IPsicanalista; Professor da Université Paris V – René Descartes
1Artigo traduzido por Circe Maria Ribeiro Junqueira de Andrade (Mestre em Psicologia da Educação PUC-SP) e Maria Consuêlo Passos (Doutora em Psicologia Social PUC-SP; Professora da Universidade São Marcos e PUC-SP), com revisão do autor.
2Jeux, em francês, tem o sentido tanto do jogo como de brincadeira; da mesma forma, jouer significa jogar e brincar. Optamos por jogo e jogar, em português, porque são mais freqüentes nas traduções de língua francesa na área da Psicologia/Psicanálise.