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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.13 São Paulo jun. 2002

 

ARTIGOS

 

Constituição do sujeito, subjetividade e identidade

 

Constitution of subject, subjectivity and identity

 

 

Kátia MaheirieI

Universidade Federal de Santa Catarina. Departamento de Psicologia

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo considera que conceitos como identidade, subjetividade e constituição do sujeito precisam de uma discussão ontológica para que possam ser verdadeiramente compreendidos. Partindo de uma perspectiva dialética de compreensão do homem e de suas relações sociais, é possível apontar que a “identidade” pode ser compreendida como constituição do sujeito, desde que seu significado esteja na direção daquilo que se faz aberto e inacabado. Nesta perspectiva, a subjetividade é uma dimensão deste sujeito, assim como a objetividade que, a partir das relações vivenciadas, se faz construtora de experiências afetivas e reflexivas, capaz de produzir significados singulares e coletivos.

Palavras-chave: Consciência, Constituição do sujeito, Subjetividade, Identidade, Afetividade.


ABSTRACT

This paper considers that concepts as identity, subjectivity and constitution of subject need an ontological discussion as a condition to their truly understanding. Beginning with a dialectical point of view of the understanding of man and his/ her social relationships, it is possible to indicate that “identity” can be understood as constitution of subject, of its meaning points to an open and unfinished state of affairs. On this view, subjectivity appears as a dimension of the subject, as the objectivity which, based on the experienced relations, make itself as constructing affective and reflexive experiences, producing particular and collective meanings.

Keywords: Conscience, Constitution of subject, Subjectivity, Identity, Affectivity


 

 

Quando estamos trabalhando com a Psicologia em uma perspectiva crítica e precisamos falar do homem singularmente, muitas vezes não sabemos qual conceito utilizar para descrever o processo de constituição daquilo que o faz este sujeito e não outro. De qualquer maneira e independente do conceito que se possa utilizar, entendemos que toda e qualquer concepção de sujeito traz implícita ou explicitamente uma ontologia que a sustenta. Ou seja, toda teoria traz uma concepção do ser em geral (homem e coisas), que serve de horizonte para fundamentação e desenvolvimento de uma concepção do que seja o homem.

Em um trabalho anterior (Maheirie, 1994), estávamos preocupados com esta questão e utilizamos a ontologia sartreana como base para nossa concepção de sujeito. Resgatando alguns aspectos do desenvolvimento teórico de tal proposta, enfatizamos que o homem, para Sartre, é um ser que se constitui ao mesmo tempo como corpo e consciência, em que esta só pode ser compreendida como sendo relação a1 alguma coisa. Por isso sua teoria indica que toda consciência é consciência de alguma coisa, sendo desprovida de todo e qualquer conteúdo. Ela é so-mente “relação”, não tendo interior nem conteúdo, revelando-se, então, como a dimensão subjetiva do sujeito, compreendida como a negação do absoluto de objetividade. Nesta perspectiva, o conceito de consciência em Sartre abarca todo e qualquer fenômeno da psique humana, desde o mais breve impulso perceptivo de um recém-nascido, até a mais elaborada das reflexões de um sujeito adulto.

Nesta direção, o significado que ele atribui à consciência não pode ser confundido com a noção que em geral se tem a respeito dela, qual seja, como uma modalidade do conhecimento. A consciência, nesta proposta, é anterior ao conhecimento, sendo que este é apenas uma possibilidade daquela.

A nosso ver, uma das contribuições mais importantes desta proposta ontológica é seu conceito de consciência, pois dele deriva todo o restante de sua proposta teórica e metodológica. Ampliando efetivamente a noção de consciência, Sartre parece romper com o paradigma cartesiano, no qual existir corresponde ao pensar. Rompendo com o privilégio da reflexão sobre a vivência humana, é possível romper também com algumas dicotomias, dentre elas, a da razão e da emoção, colocando a consciência no patamar da existência. Como conseqüência, temos a afetividade, imaginação, percepção e reflexão, seja crítica ou não, como consciências, cada qual com sua especificidade.

Compreendendo a consciência como, simplesmente, relação ao objeto, ela se faz sempre consciência daquilo que ela não é, como relação efetiva a esse objeto. Os objetos/coisas, como sendo a própria objetividade, Sartre os chamou de ser em-si, ou seja, o ser que é em-si mesmo sua existência, pois não está em “relação a...”. Por outro lado, a consciência, como a própria subjetividade, só existindo em “relação a...”, Sartre a chamou de ser para-si.

O para-si é o tipo de ser que é para si mesmo, ou seja, é um tipo de ser que estabelece sentidos, significados para o mundo e também para si mesmo. Este tipo de ser já se faz, a princípio, negação dialética do em-si. Se o em-si é presença, o para-si é ausência; se o em-si é positividade, o para-si é negatividade; se o em-si é afirmação, o para-si é negação; se o em-si é imanência, o para-si é transcendência. Então, por meio da consciência, que é o para-si, a subjetividade invade a objetividade, fazendo com que o mundo se constitua em uma “organização” que traz a marca da humanidade.

Consciência, para-si e subjetividade são conceitos que se referem a uma mesma coisa: a dimensão do sujeito que é capaz de negar a objetividade (em-si) como uma dimensão absoluta. Neste sentido, consciência é sinônimo de para-si, que é sinônimo de subjetividade.

Depois de definir o para-si e o em-si, Sartre afirma que a consciência busca o objeto, porque o ser que falta ao para-si é o ser em-si. Esta busca implica e fundamenta aquilo que ele chamou de projeto e explica que este é o motivo pelo qual a realidade humana seja sempre desejo de ser. O desejo de ser é definido como aquilo que movimenta o sujeito no mundo e seu movimento é o impulso ao não existente, aquilo que não se é. Quando nos projetamos em um desejo de ser, buscamos ser um determinado ser que cristalizamos ao projetá-lo, isto é, projetamos um ser “cristalizado”, de tal forma que o desejo de ser se traduz em desejo de ser em-si. Mas, como este desejo nunca se concretiza, pois a consciência nunca se transforma em em-si, paralelamente o projeto nunca tem como se realizar de fato, nunca havendo a coincidência total e absoluta entre o desejo e o fato, o que faz com que o sujeito nunca se coisifique. Este impulso “em direção a...” torna o sujeito um ser que está sempre além de si mesmo, em um movimento de transcendência constante, que se faz dialético2, desde sua origem.

Dentre as diferentes maneiras que a consciência tem de existir, destacamos a sua primeira forma, que é ser consciência de uma maneira não posicional de si, pois está totalmente mergulhada no objeto do qual é consciência. Nesta postura, o sujeito não se coloca como um objeto para si mesmo, pois a consciência aqui é totalmente posicional do objeto. Qualquer ação neste plano é uma ação que não envolve a noção de si como executando aquela ação, já que é como se a consciência, ao visar aquele objeto, pudesse “se confundir” com ele, sem que tal “confusão” ocorra de fato. Neste plano, o sujeito está vivenciando suas relações no domínio do espontâneo, entendendo este como libertador ou cerceador de suas possibilidades, pois tanto pode estar no domínio do afetivo que é emancipador, como no domínio da alienação. Esta forma de consciência pode ser exemplificada quando estamos absorvidos completamente em uma determinada atividade, seja lendo um livro, assistindo a um filme, ou tocando um instrumento.

A espontaneidade é uma postura que diz respeito a três formas de consciência: a percepção, a imaginação e a reflexão espontânea. A percepção se caracteriza por destacar uma forma sobre um fundo e, aí, ser consciência perceptiva é ser consciência de um objeto real, localizado no tempo e no espaço. A imaginação é uma consciência que cria seu objeto, o qual é desprovido de localização tempo-espacial, pois sua característica é existir de maneira irreal, ou estar, neste momento, ausente para o sujeito que imagina. Na reflexão espontânea não há crítica, apenas me absorvo totalmente no objeto do qual sou reflexão. Este tipo de reflexão é a mais freqüente no cotidiano dos sujeitos, sustentando a imaginação, a criatividade, as emoções e produzindo uma determinada compreensão a respeito deste cotidiano. Nesta forma de refletir, podemos produzir emoções libertadoras, aliadas à criatividade, à emancipação dos outros e de nós mesmos, assim como podemos produzir emoções cerceadoras da existência dos sujeitos, apreendendo sem maiores questionamentos a ideologia dominante.

Refletir criticamente é uma outra possibilidade da consciência. Caracterizada pelo distanciamento do objeto, da situação na qual estáenvolvida, é uma consciência que se volta sobre si própria. É posicional de si, não se absorvendo no objeto que visa, pois quando estamos nesta postura, “olhamos” o objeto com “outros olhos”.

Sendo corpo e consciência, ao mesmo tempo, o sujeito é objetividade (pois é corpo) e subjetividade (pois é consciência), não podendo ser reduzido a nenhuma destas duas dimensões. O Eu, ou a identidade, ou a especificidade do sujeito, aparece como produto das relações do corpo e da consciência com o mundo, conseqüência da relação dialética entre objetividade e subjetividade no contexto social.

Fazendo-se na pluralidade do contexto, o sujeito, como singularidade humana, está tecido no mundo e caracterizado por uma situação específica. Nela ele se movimenta, se constrói e produz a história, à luz de um projeto.

Impulso em direção ao ainda não existente e, simultaneamente, inserido em condições objetivas que a situação lhe impõe, o projeto é a própria práxis vivida no cotidiano.

Para nós, o homem caracteriza-se antes de tudo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele, mesmo que ele não se reconheça jamais em sua objetivação (Sartre, 1984, p. 151).

Para esse autor, o projeto define o sujeito, caracterizando a dialética do subjetivo e do objetivo. Como subjetividade objetivada (que se trans-forma em ato), o projeto é este movimento do sujeito (incluindo seu passado) em direção ao novo, ao inexistente, em um processo de superação que implica recusa e realização, ou seja, transformação e manutenção de uma situação. O homem se define baseado em seu passado, pois este é o que ele é e não pode deixar de ser, mas é em função de um futuro que tal definição acontece, já que é ele quem dá sentido às posições do sujeito.

Como já foi mencionado anteriormente, é o para-si buscando o em-si, é a negação do ser visando ao ser, como tentativa de tornar-se este ser. É importante relembrar que este posicionamento se realiza como negação, pois desde que a consciência surge, ela surge para se negar, nunca atingindo a plenitude afirmativa, nunca se transformando, de fato, em em-si. Em síntese, não há consciência que não seja definida pelo futuro, pela negação, uma vez que, como vimos, ela é a inteligibilidade ontológica para o fato do sujeito ser sempre projeto: síntese inacabada por “ser o que não é e não ser o que é” (Sartre, 2000, p. 194).

O sujeito, a partir das relações que vivencia no mundo, produz significações e, como ser significante, vivenciar esta sua condição de ser lhe permite singularizar os objetos coletivos, humanizando a objetividade do mundo. Suas significações aliadas às suas ações, em movimento de totalizações abertas, compõem o sujeito que vai sendo revelado por perspectivas. Em cada ato considerado, em cada gesto ou significação, o sujeito está se revelando como um todo, pois em “cada perspectiva considerada, encontramos aí o homem total objetivando-se num determinado sujeito” (Maheirie, 1994, p. 122).

Todo processo de construção deste sujeito é realizado no coletivo e, por ser uma obra de autoria coletiva, em maior ou em menor medida, a história pode lhe escapar. Assim, inserido neste cenário de múltiplas singularidades que se entrecruzam, ele realiza a sua história e a dos outros, na mesma medida em que é realizado por ela, sendo, por isso, produto e produtor, simultaneamente. Ele não a realiza como bem entende, mas também não se constitui como um objeto dela, podendo realizá-la de uma forma mais ou menos alienada, sempre em função de um projeto.

Simultaneamente fuga e salto para frente, recusa e realização, o projeto retém e revela a realidade superada, recusada pelo movimento mesmo que a supera (Sartre, 1984, p. 152).

Ao realizar um ato qualquer, o sujeito o escolhe3 dentre alguns possíveis, em uma determinada situação específica. Escolher é, unicamente, atuar, realizar qualquer coisa no mundo concreto e isto, na maior parte das vezes, não envolve grandes reflexões ou posicionamentos. Assim, seu significado corresponde, simplesmente, à objetivação da subjetividade que se concretiza a partir das determinações do contexto, do passado e em função do ainda-não-feito, do futuro. Acontecendo sempre de forma mais ou menos alienada, a escolha é a definição dos possíveis e impossíveis presentes no contexto. Ao escolher, singularizo a possibilidade ou a impossibilidade coletiva, tornando-a individual, pois a interiorizo e exteriorizo na coletividade, mesmo que não me reconheça nesta ação.

Constituir-se como sujeito é, nesta perspectiva, realizar a dialética do objetivo e do subjetivo, já que o sujeito existe como subjetividade objetivada, que pela subjetividade (negação), se objetiva novamente, encontrando, por meio da subjetividade (negação), uma nova objetivação e assim infinitamente...

Em síntese:

(...) o subjetivo retém em si o objetivo que ele nega e que supera em direção de uma objetividade nova; e esta nova objetividade, na sua qualidade de objetivação, exterioriza a interioridade do projeto como subjetividade objetivada (p. 154).

Se trabalharmos a partir desta proposta ontológica, sujeito e subjetividade não poderão ser sinônimos. A subjetividade é compreendida como uma dimensão do sujeito, assim como a objetividade que, relacionadas dialeticamente no contexto social, produzem o sujeito. Este, na medida em que surge, passa a ser produtor destas relações, revelando-se como uma síntese inacabada, “uma totalização destotalizada e retotalizada para se destotalizar novamente” (Maheirie, 1994, p. 115).

Além disso, uma outra questão fundamental que surge na utilização desta perspectiva ontológica é que as emoções deixam de ser um fenômeno secundário na compreensão do sujeito. Emocionar-se é, de acordo com uma visão não dicotomizada do sujeito, uma possibilidade concreta capaz de proporcionar transformações na história singular e coletiva dos homens. Giddens (1990), preocupado com a esfera da intimidade na construção do fenômeno democrático, chega a afirmar que nossa segurança ontológica (segurança de ser no mundo) é emocional e não cognitiva. Como possibilidade humana, a emoção não está só na esfera do privado e cumprindo um papel subalterno, como nos fez acreditar o racionalismo cartesiano. A possibilidade humana de se emocionar é, sem dúvida, uma possibilidade de apreender o mundo.

Toda emoção tem uma significação própria. Ela é a “totalidade das relações da realidade humana para com o mundo” (Sartre, 1965, p. 84), criando a sensibilidade entre os indivíduos. Além disso, como nos aponta Sawaia (1999), preocupada com o fenômeno da exclusão social, uma emoção é capaz de transcender aspectos relativos à espontaneidade e promover a comunicação intelectual.

Mas, por outro lado, esta autora nos ensina que é preciso ver a qualidade relacional do afeto (Sawaia, 1996). As emoções não estão fora do campo do humano e, como tal, envolvem o sujeito como um todo, pois elas contêm uma racionalidade em seu fundamento e esta, por sua vez, é permeada pelo fenômeno emocional, garantindo a impossibilidade de uma dualidade nesta questão. Embora não se constituam, em si mesmas, como manifestações racionais, as emoções estão no horizonte de uma racionalidade histórico e socialmente construída. Nesta perspectiva, as emoções devem ser analisadas no contexto psicossocial de cada um, pois podem fazer transcender ou aprisionar os sujeitos, possibilitando reflexões libertadoras ou cerceadoras da existência humana (Sawaia, 1997).

Como não poderia deixar de ser, a qualidade relacional do afeto depende da história do sujeito, ou seja, de suas significações singulares que são mediatizadas por um determinado contexto histórico, social e político. Todo homem, no sentido genérico, tem a capacidade de se emocionar, mas nem todo homem se emociona pelos mesmos motivos ou objetos. Em contextos sociais diferenciados, as motivações emocionais também são diferenciadas. Em um mesmo contexto, dois sujeitos podem não se emocionar pelas mesmas coisas. Portanto, as significações, compreendidas como superações concretas da objetividade, é o que garante a diversidade das possibilidades do emocionar-se. Tornando singulares os objetos coletivos, as significações expressam a subjetividade objetivando-se, espalhando-se e fixandose nas coisas, nos objetos, no mundo. As significações estão em cada ato humano e estão presentes na totalização histórica, transformando-se ao longo dela, sendo superadas por outras significações que vão surgindo.

Mesmo quando coletivas, fazendo parte de um mesmo contexto situacional, as significações não podem ser estabelecidas a priori:

É preciso buscá-las na especificidade da história, que é um acontecimento singular que resulta da organização de uma pluralidade de oposições, de contradições, superadas reciprocamente por cada homem e por todos ao mesmo tempo (Maheirie, 1994, p. 122).

As significações traduzem os acontecimentos históricos e, com isso, devemos entender que elas traduzem a história passada, as expectativas futuras, mas também o cotidiano que, segundo Heller (2000), está “no ‘centro’ do acontecer histórico”, como a “verdadeira essência da vida social” (p. 20).

Isto vale para a constituição do sujeito singular ou se preferirmos falar, para a identidade singular, para a identidade coletiva, entendidas em uma dimensão temporal que implica relação com o passado, o presente e o futuro. Por meio destas questões, podemos dizer que o sujeito, ou a identidade, são construídas por oposições, conflitos e negociações, sendo constantemente inventada por estes sujeitos, em um processo aberto, nunca acabado.

Sartre, de uma forma específica, não fala propriamente em identidade, mas em nosso trabalho anterior (Maheirie, 1994) tratamos deste conceito. Apesar da possibilidade de flexibilização do seu sentido, se quisermos utilizar o conceito de identidade, trabalhando simultaneamente com a proposta ontológica sartreana, precisamos apontar que ele contempla uma multiplicidade de significados e, por isto mesmo, se faz totalmente permeado por elementos polêmicos e contraditórios.

Se, tradicionalmente, identidade tem o significado de uma unidade de semelhanças se fechando na permanência, outras perspectivas do conceito têm sido desenvolvidas na Psicologia Social e outras disciplinas das ciências humanas e sociais. Vale apontar algumas alternativas pelas quais o conceito ganha um sentido dialético, como por exemplo em Ciampa (1997), em que identidade é “contraditória, múltipla e mutável” (p. 61), mas ao mesmo tempo é una, caracterizando-se como um vir-a-ser sempre inacabado. Nesta perspectiva, diferença e igualdade surgem como a base deste conceito, compreendidas pelo movimento do igualar-se e do diferenciar-se, dependendo dos diversos grupos que, ao longo da vida, vamos fazendo parte e, assim, cada sujeito contém “uma infinitude de humanidade” (p. 68):

(...) cada instante da minha existência como indivíduo é um momento de minha concretização (o que me torna parte daquela totalidade), em que sou negado (como totalidade), sendo determinado (como parte); assim, eu existo como negação de mim-mesmo, ao mesmo tempo em que o que estou-sendo sou eu-mesmo (p. 68-69).

Contribuindo para o debate sobre este conceito, podemos resgatar as reflexões de Lago (1996), que o apontam como um “concei-to extremamente polissêmico” (p. 18), mas de um significativo interesse por parte de diversas disciplinas, apesar das especificidades. Esta autora vem corroborar com uma concepção de identidade como “contrastiva” e mutante, reforçando sua utilização para a esfera coletiva, tanto quanto para a individual. Para ela, a questão da identidade diz respeito a

Um ser que, no convívio com outros sujeitos, constrói a consciência da realidade física e social como também a consciência de si como sujeito, individualizando-se na medida em que se diferencia dos outros sujeitos (p. 18).

O sociólogo português Sousa Santos (1995), vem também contribuir fortemente para este debate, afirmando que a identidade se traduz como uma síntese de identificações em curso. Para ele, identidade só pode ser compreendida como “resultados sempre transitórios e fugazes de processos de identificação (...) identidades são, pois, identificações em curso” (p. 135). Nesta direção, este conceito não pode ser compreendido jamais de forma estática, como algo pronto e definitivo, visto que é construção incessante de si em movimentos contraditórios.

Uma das reflexões decorrentes daí é que a identidade, para Sousa Santos, acaba sendo uma questão “semi-fictícia e semi-necessária”, porque é, antes de tudo, uma categoria política. Ela acaba sendo uma necessidade fictícia, uma vez que se faz necessária como defesa de um grupo ou uma coletividade: a identidade como escudo e defesa de si perante a ameaça do outro. Mas não deixa de ser fictícia, pois a identidade, como uma marca de unidade sólida, não existe. Por isso, o autor a qualifica desta maneira, salientando que a identidade envolve questões de poder, sendo, portanto, uma categoria política.

Sawaia (1996; 1999), também desenvolve as problemáticas em torno do conceito. Para ela, a identidade pode ser compreendida como processos de identificação, desde que “identificação” tampouco signifique admiração e reconhecimento por aquilo que é igual, podendo ser, muitas vezes, o desejo de ser diferente (Sawaia, 1999).

Essas indagações reforçam a tese de que identidade é uma categoria política disciplinarizadora das relações entre as pessoas, grupo, ou sociedade, usada para transformar o outro em estranho, igual, inimigo ou exótico (Sawaia, 1996, p. 85).

A constituição da identidade tem a marca da ambigüidade, da síntese inacabada de contrários, daquilo que é individual e coletivo, daquilo que é próprio e alheio, daquilo que é igual e diferente, sendo semelhante a uma linha que aponta ora para um pólo, ora para outro. A utilização do conceito de identidade nos permite desvelar os indivíduos, grupos ou coletividades, localizá-los no tempo e no espaço, “identificando-os” como estes e não outros, mesmo em metamorfose. Ao mesmo tempo, como já apontou Sousa Santos (1995), identidade também é utilizada como escudo, como defesa em relação àquilo que é estranho. Sendo assim, identidade é um conceito que, inevitavelmente, traz um paradoxo, o qual Sawaia (1999) destaca ser o mesmo que sofre o conceito de comunidade: a polarização ou cristalização do significado como algo que permanece e é estático, ou como algo que é multiplicidade e metamorfose. Identidade é uma

(...) perspectiva analítica que contém em si mesma a possibilidade de fugir tanto das metanarrativas quanto do relativismo absoluto, bem como a possibilidade de garantir o respeito à alteridade e, ao mesmo tempo, de proteger-se contra o estranho (Sawaia, 1996, p. 83).

Para a autora, estes dois movimentos fazem parte do processo de identificação, ou seja, identidade significa permanência e metamorfose, sendo importante manter estes dois sentidos para o termo, a fim de que o homem possa ser compreendido como um ser capaz de atuar, de refletir e de se emocionar, transformando a si mesmo e o contexto no qual se encontra.

Em acordo com uma perspectiva dialética para o termo, já apontamos o conceito de identidade como a síntese inacabada entre subjetividade e objetividade em um contexto social específico (Maheirie, 1994). Nesta perspectiva, é a consciência, como dimensão subjetiva do sujeito, que é capaz de construir, desconstruir e reconstruir a identidade constantemente, em que participam as percepções, imaginações, emoções e as reflexões, quer críticas ou não.

Mas, no atual contexto no qual se insere o debate, quando se quer descrever o processo responsável pela construção da história de alguém, ou seja, aquele que qualifica um homem como este e não outro, a categoria “constituição do sujeito” tem se mostrado mais eficaz, na medida em que é menos polêmica que a noção de “identidade”.

Certamente, isto não significa que não devemos usar a categoria “constituição da identidade”, desde que a compreendamos como uma construção inacabada, aberta e mutável, em constante movimento. Pelo contrário, com este artigo objetivamos chamar a atenção dos leitores para a importância de um esclarecimento ontológico e antropológico relativo aos conceitos que utilizamos quando estamos falando do sujeito. Tal esclarecimento pode evitar equívocos teóricos e metodológicos, na medida em que permite que falemos em uma mesma linguagem no que se refere ao homem, mesmo que usemos uma mesma matriz, fonte da visão de um sujeito que se faz produto e produtor do contexto em que vive.

 

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Endereço para correspondência
Kátia Maheirie
R. Rita Lourenço da Silveira, 325 – 88062-140 Lagoa da Conceição – Florianópolis/SC
Tel.: (48) 232-0534; 331-9066;
Fax.: 232-0046
E-mail: maheirie@uol.com.br

Recebido em 10/04/02
Aprovado em 27/06/02

 

 

Notas

IDoutora em Psicologia Social pela PUC-SP; Professora do Departamento de Psicologia da UFSC; Coordenadora do Laboratório de Estudos em Comportamento Político.
1Relação a... é uma expressão que indica “relação a alguma coisa”. Ou seja, isto significa que a capacidade ou possibilidade de estar em relação é da consciência e não do objeto. É a subjetividade que se faz movimento, atividade, não passividade, e não os objetos, pois estes só estão “em relação” para um sujeito. Por isso, a consciência é “relação a...” e não, simplesmente, “relação com...”.
2Esta dialética, nunca é demais assinalar, é uma dialética aberta, portanto, inacabada, tal como foi exposta pelo autor em Questão de Método (1984).
3O conceito de escolha em Sartre é muito diferente do que lhe confere seu uso cotidiano. Para ele, escolher é atuar no mundo, não tendo nenhuma correspondência com a idéia de “livre arbítrio”. Para uma compreensão mais aprofundada deste conceito, ver Sartre (1979, 1984 e 2000).