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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.7 no.13 São Paulo June 2002

 

ARTIGOS

 

Possíveis raízes teológicas de filosofias pós-modernas

 

Possible theological roosts of post-modern philosophies

 

 

Maria da Glória S. Silveira1

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo busca detectar vestígios teológicos, especialmente agostinianos, na chamada pós-modernidade filosófica, com o intuito de trazer alguma contribuição para o debate atual sobre modernidade e pós-modernidade. Nietzsche, Heidegger, Derrida, Foucault, Wittgenstein, Dewey, Barthes, pensadores reconhecidos como arautos da Filosofia pós-moderna, levaram a efeito um profundo questionamento de antigas certezas ontológicas, epistemológicas, éticas, estéticas. Noções como mente, representação, realidade, fundamento do conhecimento, centrais na epistemologia e no projeto iluminista de modernidade, foram severamente rejeitadas em nome de uma filosofia em que as linguagens ou, mais propriamente as falas, se constituem no meio fluido da experiência na qual são igualmente constituídos os objetos e os sujeitos. Nadamais distante do que isto, do pensamento teológico fundado em verdades reveladas e, portanto, incontestáveis. No entanto, o exame de passagens das “Confissões”, de Santo Agostinho, apresentadas neste artigo, revelará certas afinidades surpreendentes entre o texto agostiniano e as perspectivas pósmodernas. A questão que permanece ao final diz respeito à pretensa ruptura entre a pós-modernidade filosófica e aquele território cultural demarcado pela tradição judaico-cristã em que ainda gravita o pensamento moderno.

Palavras-chave: Filosofia, Teologia, Modernidade, Pós-modernidade, Epistemologia.


ABSTRACT

This article intends to detect theological vestiges, especially Augustinians, in so-called philosophical post-modernity, in order to contribute to the present debate concerning modernity and post-modernity. Nietzsche, Heidegger, Derrida, Foucault, Wittgenstein, Dewey, Barthes – philosophers that are known as representatives of post-modern philosophy, questioned in depth some ancient ontological, epistemological, ethical and esthetical certainties. Notions such as mind, representation, reality, fundaments of knowledge, that are central in epistemology and the Enlightenment’s project of modernity, were severely rejected in name of a philosophy in which languages, or more properly, discourses, are constituted in the fluid midst of experience, in which objects and subjects are equally constituted. Very far from theological thought founded in revealed truths, therefore uncontested. However, an examination of passages of Augustine’s “Confessions”, presented in this article, certain surprising affinities between Augustinian text and the post-modern perspective come to light. It remains open to question at the end, whether there is the supposed break between philosophical post-modernity and the cultural Judeo-Christian territory around which modern thought still gravitates.

Keywords: Philosophy, Theology, Modernity, Post-modernity, Epistemology.


 

 

A Filosofia, a Sociologia do Conhecimento, a Psicologia Social e outras disciplinas que se propõem a entender a cultura contemporânea por meio da multiplicidade e diversidade de suas falas, convidam-nos, mais do que nunca, à reflexão, à indagação, ao questionamento profundo de antigas certezas ontológicas, epistemológicas, éticas e estéticas.

De fato, como tão bem mostra Dora Fried Schmitman, se algo se apresenta como definidor do contemporâneo é, sem dúvida, a sua infinita intertextualidade, marcada pela diversidade e pelo descentramento, sempre aberta à possibilidade de novos diálogos, cujas múltiplas vozes geram mundos de sentidos (Schmitman, 1996, p. 10).

Hoje, longe de possuirmos um único modelo de ciência, tendemos a admitir uma pluralidade de configurações científico-culturais que, ao mesmo tempo que promovem, resultam de processos sociais de comunicação, como a negociação, o conflito, a retórica. Perspectivas multidimensionais provocam a dissolução de barreiras disciplinares não apenas entre as ciências, mas entre estas e a Filosofia, as artes e o conhecimento comum. O próprio discurso científico distancia-se cada vez mais do antigo ideal de uma linguagem unívoca e cede lugar às metáforas, às narrativas, aos recursos retóricos e outras práticas sociais da linguagem. Da mesma forma, a busca de verdades universais vem sendo substituída pela coexistência de teorias alternativas que se aplicam a áreas limitadas da realidade e pela diversidade de universos de discursos.

Com efeito, conforme Schmitman, assistimos neste final de século à emergência de uma consciência crescente das operações sociais de construção e desconstrução de discursos, que assume a descontinuidade e a diferença como marcas inalienáveis da História.

Muitos teóricos vêem nestas tendências culturais uma profunda ruptura com as metafísicas tradicionais e com as ilusões epistemológicas da modernidade. Conforme exposição de Sérgio Paulo Rouanet do pensamento de Lyotard, o que caracteriza o pensamento chamado de pós-moderno é a incredulidade com relação às narrativas legitimadoras da modernidade, tais como a emancipação do homem (Iluminismo) ou a autobiografia do Espírito (Hegel). Hoje o conhecimento não busca o consenso – narrativa iluminista retomada por Habermas – mas o dissenso; não busca a eficácia positivista, mas a invenção, o contra-exemplo, o paradoxal. Ao contrário das grandes sínteses homogeneizadoras da modernidade, a epistéme pós-moderna se legitima pelo heterogêneo, pelo inesperado, pela diferença em relação ao já conhecido (Rouanet, 1987, p. 238).

Se a falência das formas de vida coletiva regulada pelas tradições, com a conseqüente perda de raízes e referências estáveis, conduziu o homem moderno ao projeto epistemológico com a finalidade de assentar em novas bases existências relativamente apaziguadas, hoje assistimos a um profundo questionamento deste projeto.

Desfaz-se a ilusão de um pretenso sujeito epistêmico pleno, expurgado de todas as marcas da finitude, capaz de representar para si mesmo, clara e distintamente, um mundo inteiramente mensurável pela razão. Um movimento cultural multifacetado indica “a superação da hegemonia do pensamento representacional e da noção de verdade por adequação ou correspondência” (Figueiredo, p. 25), ao mesmo tempo em que as linguagens se convertem em dispositivos constitutivos da experiência.

Essa contestação da modernidade, que tem início com Nietzsche e é prosseguida por Heidegger, está em voga em França desde os anos 60, com Foucault, Barthes, Derrida, entre outros, e tem crescentes repercussões na Alemanha e nos Estados Unidos.

Richard Rorty inscreve-se igualmente neste movimento e reconhece em Wittgenstein, Heidegger e Dewey aqueles que teriam subvertido exemplarmente a concepção moderna de filosofia e introduzido novas formas de reflexão, mais conformes às grandes mudanças sociais, científicas e culturais próprias de nossa época (Rorty, 1994, p. 27).

Reconhecendo o esgotamento da proposta filosófica da modernidade regida pelo tribunal epistemológico, Rorty questiona profundamente noções de mente, representação, realidade, fundamento do conhecimento etc e propõe uma filosofia cuja meta seria a de manter fluindo uma grande conversação, um diálogo permanentemente aberto e inconclusivo entre as diversas áreas da cultura.

Sem a pretensão de eliminar diferenças existentes entre os autores aqui mencionados como representantes desse grande movimento de contestação da Epistemologia, reconhece-se em todos eles uma crítica ferrenha à velha dicotomia entre mente e corpo, subjetividade e objetividade e à linguagem como expressão de um pensamento, que representa mais ou menos fielmente a realidade. Para eles, as linguagens ou, mais exatamente, as falas se convertem no meio universal da experiência na qual objetos e sujeitos se constituem. Espaço de encontros e desencontros, os jogos de linguagem configuram tanto os homens como os seus mundos ou, em outras palavras, constituem-se em morada e destino para o homem (Figueiredo, 1997, p. 26).

Há quem veja, porém, uma tendência regressiva e melancólica nessas posições filosóficas de vanguarda. Habermas, por exemplo, reconhece na teoria da intertextualidade de Derrida nítidas raízes teológicas:

Manifestamente, Derrida é inspirado, seguindo Levinas, por aquela compreensão judaica da tradição, que se distanciou mais que a tradição cristã da idéia do livro e que, precisamente por isso, se sente muito mais comprometido com a exegese da Escritura. O programa de uma ciência da escritura com pretensão de crítica da metafísica originou-se de fontes religiosas (2000, p. 232-233).

Seguindo Habermas, Sérgio Paulo Rouanet mostra que Derrida prossegue a crítica de Heidegger à metafísica ocidental quando propõe a desconstrução do mito fonocêntrico, afirmando que não é a voz que é primária e, sim, a escrita – a écriture – que está na origem de toda linguagem. Para Derrida, a escritura não é o veículo de linguagens já constituídas, mas o modo de produção dessas linguagens. Ela é, assim, a prática de toda diferenciação, ou da produção de sentido. A tradição ocidental, quando privilegia a voz (o lógos) em detrimento da escritura, coloca do lado da voz termos como espírito, razão, ciência, consciência; e, do lado da escritura, termos como corpo, vida, inconsciente. Trata-se aqui de uma relação hierárquica de dominação e repressão, exercida pelo primeiro termo da polaridade sobre o segundo. A desconstrução proposta por Derrida entende a história da humanidade como uma textualidade infinita e se propõe, pela investigação de todos os textos, a alcançar a escritura reprimida, invertendo a hierarquia da referida polaridade. “É possível que atrás dessa obsessão com o texto exista a velha preocupação judaica com o comentário, ao qual se atribui o mesmo valor, ou mais, que à Torá, em que supostamente está contida a palavra de Deus”, diz Rouanet. O trabalho de desconstrução de textos, proposto por Derrida, parece conter o projeto (de)negado da busca da escritura primordial, da qual todas as outras preservam traços evanescentes (Rouanet, 1987, p. 242 e ss).

De modo semelhante, em mais de um comentador é possível encontrar-se a sugestão de um pano de fundo agostiniano na obra de Wittgenstein, bem como de outros pensadores contemporâneos. Em vista disso, seguem algumas passagens das Confissões, que guar-dam estranha conformidade com o pensamento da chamada pósmodernidade filosófica.

No livro XII, por exemplo, depois de ter desenvolvido a célebre teoria do tempo ligada à experiência da linguagem e do sentido, Agostinho discute a questão das múltiplas interpretações do Gênesis, segundo ele escrito pelo Espírito de Deus, por meio de seu servo Moisés. A certa altura, diz:

contanto que cada um se esforce por interpretar bem as passagens da Sagrada Escritura conforme a idéia daquele que as escreveu, que mal há em interpretá-las noutro sentido, se Vós, ó Luz de todas as mentes sinceras, lho mostrais como verdadeiro? Que mal há nisso, se o autor que se lê, só teve em vista a verdade, apesar de não ter dado ao texto este segundo sentido? (XII, 18,27).

A posição do autor, como se vê nesta e em outras passagens, é eminentemente antifundamentalista. Tanto o texto quanto as interpretações possíveis do texto provêm da iluminação divina. Nem mesmo Moisés, na sua finitude, poderia conhecer todos os sentidos da palavra divina. A limitação da palavra humana é signo da profundidade e da riqueza de sentidos da palavra divina. A exegese não passa de explicitação de camadas de sentido, donde se conclui que a polissemia pertence, para Agostinho, à própria constituição do sentido.

Assim, quando alguém disser: ‘Moisés entendeu isto como eu’; e outrem replicar: ‘pelo contrário, pensou como eu’; julgo que se dirá com mais piedade: ‘porque não quis ele antes expressar uma e outra coisa, se ambas são verdadeiras?!’ E se alguém encontrar um terceiro e um quarto ou mais sentidos verdadeiros, por que não acreditarmos que todas estasinterpretações as viu Moisés, por meio do qual o Único Deus acomodou a Escritura Sagrada à inteligência de muitos que haviam de descobrir nela coisas verdadeiras e diferentes? (XII, 31,42).

Ao contrário de Babel, cuja multiplicidade de línguas tem o senti-do de um castigo, Agostinho parece preferir o Pentecostes, em que o dom das línguas diferentes foi concedido aos apóstolos. O que faria afinal a diferença entre esses dois episódios bíblicos? No primeiro impera a discórdia, daí a impossibilidade de comunicação. No segundo, porém, a diversidade de línguas possibilita o diálogo: “nesta diversidade de pareceres verdadeiros, a mesma verdade faça nascer a concórdia” (XII, 30,41). De que Verdade se trata, porém, se são tantos os pareceres? Tudo indica que essa Verdade não reside em uma única versão de sentido, mas, exatamente, na polissemia: “vede, Senhor, Deus meu, vede, Vos peço, quantas e quantas coisas escrevi sobre tão poucos textos!” (XII, 32,43); e, noutro ponto: “se escrevesse alguma coisa para ser dotada de autoridade, preferiria fazê-lo de tal modo que as minhas palavras proclamassem tudo aquilo que alguém pudesse conceber de verdadeiro acerca dessas coisas” (XII, 31,42).

Como já foi dito, a questão do tempo, discutida no livro XI, aparece como inseparável da linguagem e a temporalidade humana tem o senti-do de dispersão diante da eternidade: “mas eu dispersei-me no tempo cuja ordem ignoro”. A diversidade temporal se constitui na tensão com o não-tempo, com o eterno.

“Ora o que acontece em todo cântico, isso mesmo sucede em cada uma das partes, em cada uma das sílabas em cada ação mais longa – da qual aquele cântico é talvez uma parte – e em toda a vida do homem cujas partes são os atos humanos. Isto mesmo sucede em toda história ‘dos filhos dos homens’, da qual cada vida individual é apenas uma parte” (XI, 28,38). “Nós além de sermos muitos em número, vivemos apegados e divididos por muitas coisas” (XI, 29,39).

Assim, a dispersão, a fratura, a descontinuidade são as marcas de uma só vez da temporalidade e das linguagens dos homens.

Para Agostinho, só podemos medir o tempo quando ele passa. Não medimos o futuro que não é ainda, nem o passado que não é mais, nem o presente que não tem duração, mas é na passagem, no trânsito, que é preciso buscar ao mesmo tempo a multiplicidade do presente e seudilaceramento. É preciso pensar o tempo como circundado pelo nada, para pensá-lo começando e terminando, assim como a voz humana que “começa” e “acaba” em meio ao silêncio. Nesse sentido, o movimento da alma será descrito como tensão, divisão dolorosa entre passado, que é memória, e futuro, que é esperança. Dispersão temporal que só pode ser unificada na eternidade de Deus. A atenção (attentio) surge então como a intensidade do presente – tempo da narrativa – que nos salva da dispersão infinita: uma centelha divina, uma presença de eternidade que atravessa a temporalidade humana e que torna possível o recolhimento do disperso. É nessa dialética de eternidade e temporalidade, recolhimento e dispersão, memória e esquecimento, ser e nada, que se dá a experiência do tempo e do sentido na linguagem. A experiência humana é errança e Agostinho encontra na experiência de narrar, de contar o tempo, de recolher os fragmentos do vivido em um discurso, algo da estabilidade divina (Ricoeur, 1995, p. 13).

Não é novidade o reconhecimento da atualidade do pensamento agostiniano. Há quem veja nas Confissões a obra inaugural da história do pensamento existencial que, no século XX, produziria as filosofias da finitude, freqüentemente marcadas pela angústia advinda da renúncia ao absoluto. Philippe Sollers vai mais longe, quando afirma que:

as Confissões atravessam as histórias da metafísica e da literatura. (...) Encontramos um pouco de Agostinho por toda parte, em Dante, Pascal, Rousseau, Hegel, Rimbaud, Freud, Proust, Claudel, Arthaud, Bataille, Husserl, Heidegger (Sollers, 1998, p. 7).

Assim, diante de ressonâncias tão atuais do pensamento de Santo Agostinho, a questão que permanece diz respeito à suposta ruptura entre a pós-modernidade filosófica e aquele território cultural demarcado pela tradição judaico-cristã em que se situaria ainda o pensamento moderno. Nietzsche, Heidegger, Derrida, Foucault, entre outros, são vistos, tanto pelos que temem quanto pelos que saúdam o advento de um mundo novo, como os arautos dessa pós-modernidade. “Eles anunciam o reino do fragmento, contra a totalização, do descontínuo e do múltiplo, contra a teleologia das grandes narrativas e o terrorismo das grandes sínteses, do particular contra o geral, do corpo contra a razão” (Rouanet, 1987, p. 246). Ora, se isso é verdade, não estariam esses auto-res gravitando ainda em uma esfera de pensamento tão antiga quanto a de Santo Agostinho? E, de certo modo, não se poria a pós-modernidade a repetir temas que jamais foram completamente abandonados pela filosofia tradicional?

 

Referências Bibliográficas

AGOSTINHO. (1996). Confissões. São Paulo: Nova Cultural. (Coleção Os Pensadores).        [ Links ]

FIGUEIREDO, Luis Cláudio. (1997). Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Petrópolis: Vozes/Educ.        [ Links ]

GAGNEBIN, Jeanne Marie. (1997). Sete aulas sobre linguagem, memória e história. Rio de Janeiro: Imago.        [ Links ]

HABERMAS, Jürgen. (2000). O discurso filosófico da modernidade: doze lições. São Paulo: Martins Fontes, 2000. (Coleção tópicos).        [ Links ]

RICOEUR, Paul. (1995). Tempo e narrativa. Campinas: Papirus.        [ Links ]

RORTY, Richard. (1994). A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.        [ Links ]

ROUANET, Sérgio Paulo. (1987). As razões do iluminismo. São Paulo: Cia. das Letras.        [ Links ]

SCHMITMAN, Dora Fried (org.). (1996). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

SOLLERS, Philippe. (1998). O estilo de Deus. São Paulo: Jornal “Folha de São Paulo”, 29/11/98, Caderno “Mais!”, p. 7.

 

 

Endereço para correspondência
Maria da Glória S. Silveira
R. Abílio Soares, 556 / 44 – 04005-002 Paraíso – São Paulo/SP
Tel.: (11) 3559-8236

Recebido em 02/05/01
Aprovado em 20/11/01

 

 

1Mestre em Filosofia (PUC-SP); Professora de Filosofia da Universidade São Marcos