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Interações

Print version ISSN 1413-2907

Interações vol.7 no.14 São Paulo Dec. 2002

 

ARTIGOS

 

O ser-no-mundo-com-os-outros e as experiências desalojadoras do eu

 

The being-in-the-world-with-the-others and the ego’s life disturbing experiences

 

 

Iaraci AdvínculaI

Universidade Católica de Pernambuco. Laboratório de Psicopatologia Fundamental

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este texto problematiza, a partir do conceito de “experiências desalojadoras do eu”, a condição do ser-no-mundo. Para isso, vai trabalhar com a angústia heideggeriana como o fundamento do Dasein, ou o modo do ser do homem. Inicia suas questões com experiências clínicas da autora e analisa um texto literário no qual as relações familiares são enfocadas como pano de fundo para as evidências da periculosidade da existência. Constrói uma teia de suporte teórico para a compreensão do psiquismo humano com base nas formulações de Donald Winnicott. Finalmente encerra suas elaborações apontando para o “espaço intermediário” como próprio do humano.

Palavras-chave: Experiências desalojadoras do eu, Ser-no-mundo, Condição humana, Experiências clínicas, Relações familiares.


ABSTRACT

This paper focuses the human condition as a being-in-the-world from the perspective of “ego’s life disturbing experience”, conception developed by the author herself. Heidegger’s theory of anguish as a foundation of the notion of Dasein – or men’s mode of being – is worked on throughout the article. The clinical experiences of the author are the ground for the initial questions, and a text extracted from literature is used to analyze family relationship as a background for the evidence of existence’s hazardous. The psychoanalytic propositions of Donald Winnicott are utilized as part of the theoretical framework that supports the understanding of human’s psyche. As a conclusion it’s assumed the proposition that an “intermediate area” is proper of human condition.

Keywords: Ego’s life disturbing experiences, Being-in-the-world, Human condition, Clinical experiences, Family relationship.


 

 

1. Introdução

O que distinguia a esfera familiar era que nela os homens
viviam juntos por serem a isso compelidos por suas
necessidades e carências. A força compulsiva era a própria
vida (...) e a vida, para sua manutenção individual e
sobrevivência como vida da espécie, requer a companhia
de outros (Arendt, 1999, p. 39).

A partir da leitura do livro Reunião de família, de Lya Luft (1991), e estimulada pela trama afetiva das relações familiares que a autora do texto nos apresenta, procederei a algumas articulações sobre a condição humana de ser-no-mundo-com-os-outros e o desamparo constitutivo.

Na perspectiva heideggeriana, é próprio do homem não se sentir em casa, ou seja, ser estrangeiro em relação a si mesmo. A angústia é a disposição afetiva fundamental, no sentido de que, no âmago do seu ser, o dasein desde sempre se angustia. A abertura que a disposição afetiva possibilita revela como se está. “Na angústia”, diz Heidegger (1988, p. 252, grifo do autor), “se está ‘estranho’”. Melhor dizendo, está-se na indeterminação de quem se encontra diante do nada e em lugar nenhum. A entrega aos rituais do cotidiano é a maneira como o modo de ser do homem compreende a estranheza e se protege do não se sentir em casa, porque, então, se instalam a determinação e a familiaridade da morada tranqüila e reasseguradora. O que nos desinstala é a angústia, é ela que põe em questão a totalidade da existência.

Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada na medida em que ela singulariza. Essa singularização retira a presença de sua de-cadência e lhe revela a propriedade e impropriedade como possibilidades de seu ser (Heidegger, 1988, p. 255).

Poderiam as experiências desalojadoras do eu ser compreendidas como próprias do ser-no-mundo, na medida em que rompem o cotidiano reassegurador, desvelando a estranheza?

Mas, como se confrontar com as incertezas e com o estranhamento de si mesmo, sem desintegrar o eu?

O que o sujeito humano necessita obter para suportar as desintegrações eventuais promovidas por experiências desalojadoras?

Em sua obra fundamental, intitulada Ser e tempo, Heidegger enfatiza a condição da temporalidade do ser. O homem seria o ente privilegiado, no sentido que seria o único a ter a tarefa e a responsabilidade de ser. Esse privilégio implica a aceitação do dom da existência. O homem é dotado do modo de ser da pre-sença, ou seja, nele se dá o ser: “(...) o homem é um ser voltado para fora (ec-sistência) e esse fora é o ser. Portanto, o homem é abertura originária ao ser, pré-compreensão do ser, procura de ser” (Vasquez, 1999, p. 3). Constata-se nessas assertivas a precariedade do existir humano, o qual se constitui na aceitação da sua ec-sistência, do seu ter que ser. Impõe-se novamente a questão: a condição humana implica desalojamentos?

Apenas um encontro de família: mas sinto-me como se estivesse à beir a de um lago, um rio, mirando a superfície calma. Nas profundezas, movem-se criaturas estranhas. Se as contemplar, ainda serei a mesma pessoa? Eu brincava assim na meninice: de não ser eu. (...)
(Tudo fantasia. Mais tarde habituei-me à minha vida doméstica e segura; fora dela, fico desamparada. Como um bicho que, despido da casca, expõe um corpo viscoso e mole, onde qualquer caco de vidro no chão pod e penetrar, liquidando essa vida rastejante) (Luft, 1991, p. 15).

Tais pensamentos de Alice, personagem central do livro de Luft, revelam o drama do viver humano. O conflito expresso encerra a tragédia de ser homem: viver na tensão permanente entre necessitar do amparo do cotidiano reassegurador e, ao mesmo tempo, necessitar romper com o familiar para possibilitar o outro que se é. No ofício de existir – tarefa primordial do ser do homem, como nos ensina Heidegger –, o trânsito é a situação constante da condição humana: encontrar-se e perder-se sistematicamente e aprender a transitar na permanência da dúvida. “Eu brincava assim na meninice: de não ser eu”– estaria Alice como abertura originária ao ser, pre-compreensão do ser cumprindo a sua destinação de procura de ser?

Penso que poderíamos articular essas considerações ao pensamento de Winnicott (1993), quando diz que existiriam, na vida psíquica dos indivíduos, duas tendências atuando em sentidos opostos. A primeira se refere às ações rebeldes que impulsionam o indivíduo para o afastamento e o rompimento com os pais e demais membros da família; a segunda engloba um movimento de permanência ou de retorno ao lar. No entanto, o mais importante para Winnicott é que a segunda tendência dará as condições para a primeira ser um degrau para o desenvolvimento, e não uma desarticulação da personalidade. Em suas palavras:

Refiro-me, antes, à capacidade individual de realmente voltar aos pais e especificamente à mãe, voltar, enfim, ao centro ou ao início, no momento em que lhe convier (...). Devemos ter em mente que o pai e a mãe são a origem de todos os deslocamentos (p. 134).

Desses ensinamentos winnicottianos, podemos deduzir que, sem as raízes, sem o chão, sem a casa, não é possível ao homem cumprir o seu ofício existencial, ou seja, cumprir aquilo que é o cerne do pensamento heideggeriano: o homem é compreendido como “ec-sistência”, melhor dizendo, “para fora” – nesse processo residiria a essência do seu ser.

Enfim, neste trabalho pretendo analisar, a partir de Alice e Evelyn, dois personagens de uma mesma família enfocada no livro de Lia Luft, a experiência desalojadora do Eu. Acredito que essa situação possibilite ao ser-no-mundo o seu ser ec-sistência. A essência humana é ser este fora. O homem é um ser a ser mas, para que a personalidade não se desarticule, como afirma Winnicott, importa a família ter sido para seus membros a “(...) estrutura especialmente programada para dar continuidade à dependência inconsciente da criança em relação ao pai e à mãe de fato; esta dependência inclui a necessidade que a criança tem de separar-se com rebeldia” (p. 137).

Antes, porém, elaborarei algumas questões em torno das situações desalojadoras do Eu, exemplificando com uma vivência pessoal.

 

2. As experiências desalojadoras como própriasdo ser-no-mundo

Tão fácil conviver quando águas paradas recobrem tudo.
O mundo voltou a ser ordenado, tal como precisamos
que seja. Se admitimos o vórtice, o abismo, o subterrâneo
por trás dos espelhos, nossas bocas hão de se escancarar
num grito.
Mãe – Chamaremos agoniados (Luft, 1991, p. 124).
Ela apaziguara tão bem sua vida, cuidara tanto para que esta
não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão,
separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente
feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o
filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse
ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo
isso (Lispector, 1998, p. 23).

Experiências desalojadoras seriam experiências que, pelo inesperado e pela estranheza, ameaçariam a integridade do eu. Por esse motivo, causariam espanto e assustariam, principalmente, pela não-correspondência com as representações até então formuladas. São experiências comuns ao ser-no-mundo com os outros, mas abolidas dos ideais racionais do mundo moderno. “A experiência da desestabilização, reiteradamente repetida ao longo de toda nossa existência, é efeito de um processo que nunca pára e que faz da subjetividade ‘um sempre outro’, ‘um si e não si ao mesmo tempo’” (Rolnik, 1997, p. 31).

As situações existenciais estão, de uma forma ou de outra, apontando para a imprecisão do viver. Suely Rolnik, na citação acima, aprofunda esta questão, remetendo-nos à própria constituição do sujeito humano implicado na relação com a alteridade pessoal e a dos outros. A existência se caracteriza como um processo contínuo de desestabilização. Ao longo de toda uma vida, sucedem-se momentos existenciais que, permanentemente, remetem o ser humano ao estranhamento de si mesmo e ao confronto com as incertezas.

Passo, a seguir, a descrever um acontecimento desalojador do eu, em uma experiência de grande grupo intensivo.

Consigo visualizar a aldeia de Arcozelo, localizada no município de Miguel Pereira, no estado do Rio de Janeiro, onde ocorreu minha primeira experiência em grande grupo intensivo durante quinze dias. Lá a natureza era exuberante: árvores altíssimas que quase se tocavam – formando uma abóbada natural em vários planos, onde se misturavam o verde das folhas e o azul do firmamento – cercavam um anfiteatro ao ar livre. As aberturas entre as árvores deixavam os raios solares se infiltrarem em intensidades diferentes, possibilitando diversos efeitos de luminosidade no ar, no chão e nas folhas. Luz e sombra se harmonizavam de modo a permitir que o anfiteatro fosse utilizado durante todos os momentos do dia, sem o incômodo do sol forte em pleno mês de verão. Aí aconteciam as reuniões do grupão.

O grupão é a designação do momento em que todos os participantes do encontro se reúnem e, a partir do qual, surgem todas as deliberações das demais atividades do restante do dia. É prevista a sua repetição diária, sem que isso represente uma imposição, por se tratar de um reduto possibilitador da manifestação e captação das forças vitais1 emergentes ao longo dos acontecimentos de todos os dias.

No decorrer de duas semanas, permanecemos em Arcozelo e fizemos, entre outras coisas, pequenas incursões pela redondeza, com banhos de cachoeira e piqueniques ao ar livre. Esse foi o maior grupo do qual participei, em quantidade de dias e em número de participantes – quase duzentos, oriundos de várias partes do país.

Em um dos grupões transcorridos durante aqueles dias, aconteceu uma experiência desalojadora para mim. Estávamos reunidos – a maioria já acomodada – quando, de repente, um dos participantes ficou em pé, começou a falar alto e gesticular freneticamente. Assustei-me e fiquei olhando para ele na tentativa de entender o sentido de sua fala e de seus gestos. No entanto, suas palavras se transformavam em gritos acompanhados de crescente violência gestual. Subia e descia aqueles altos degraus desesperadamente. O que era tudo aquilo, meu Deus? O que aquele homem estava querendo dizer? De quem ele sentia tanta raiva? Será que ele estava ficando louco? Mas ele estava igualzinho a nós, minutos antes! Como pode? À medida que me fazia essas perguntas, em uma tentativa vã de restabelecer o meu entendimento diante de um acontecimento tão estranho e assustador, o medo ia se apoderando de mim. Fiquei literalmente assustada, como uma criança diante da ameaça do monstro ou do “bicho- papão”. Temia ser destruída. Precisava me proteger. Lembro-me de que meu olhar desesperado procurou, entre as pessoas presentes, alguém das minhas relações de intimidade, a quem pudesse recorrer para me sentir protegida.

Lá, em Arcozelo, entre aquelas quase duzentas pessoas, algumas (trinta e poucas) faziam parte do meu círculo de conhecimento. Em uma encontrei o “colo” adequado para aninhar minha dor. Não podia ser qualquer uma, tinha que fazer parte do meu mundo de afetos e precisava ser de “bom tamanho” para que pudesse confiar que, com ela, eu estaria abrigada contra os terrores que me ameaçavam. Já aninhada e protegida, caí em um pranto profundo. Em seguida, pude compartilhar todo o meu terror. Medos infantis me assolaram, antigos temores de enlouquecer ressurgiram na memória. Anos depois daqueles acontecimentos, fui tomada por um sentimento de ter criado estruturas outras que fortaleciam o meu ser para vivências semelhantes. Secretamente pensava que, depois daquele dia, nunca mais enlouqueceria... Hoje sei, no entanto, que essa garantia não posso ter, exatamente porque “o louco” também sou eu. Com aquele susto em Arcozelo, passei a saber sobre a periculosidade da condição humana. Foi minha primeira vez! A primeira vez que fazia aquela descoberta. A diferença é que, agora, eu já sei e soube “(...) como as coisas vivas sabem: através do susto profundo” (Lispector, 1992, p. 123). Esse susto que desassossega, desarruma, enfim, que desaloja, cria as possibilidades de o ser humano se apropriar de si e lhe dar condições para a criação de novas possibilidades de ser.

Em um evento dessa ordem, o desprendimento dos hábitos adquiridos tinha que ser exercitado a cada passo, desde mudar a hora do uso do banheiro de acordo com o fluxo da demanda coletiva, até aprender a dormir com pessoas com hábitos e costumes completamente diferentes. Muitas vezes, as camas de cima ou do lado serviam como nossos guarda-roupas – “(...) nossas roupas comuns dependuradas (...)”, já dizia o cancioneiro popular. A letra dessa música agora surge-me na lembrança como a consciência de algo que permite compreender a vida de uma forma diversa da que eu compreendia até então. Saída de um mundo com uma determinada ordem, estava, nessas experiências, entrando em outro cuja ordem escapava à minha capacidade de entendimento. No entanto, tal “desordem”, ou a falta da ordem costumeira, me fazia experimentar novas sensações. Não só eu as experimentava estranhas e diversas, como também percebia nos outros. Eram sensações não-manifestáveis em público ou, muitas vezes, totalmente inusitadas. As situações grupais facilitavam sua aparição, como indica a citação a seguir:

(...) as relações primordiais não se tecem entre pessoas, mas entre circuitos afetivos que ora se enfrentam, ora se espelham; vivências de dor e de alegria que explodem e se multiplicam em formas singulares; forças que ora se condensam, ganham potência e rompem prisões simbólicas, ora se deslocam por todo espaço grupal, como mãos energéticas acolhendo e sustentando as emoções mais viscerais (Naffah Neto, 1994, p. 103).

Feita a ilustração do que designo por “experiências desalojadoras do eu”, passo à análise do texto de Lia Luft.

 

3. Alice e Evelyn: duas irmãs, duas personagens,duas histórias

As imagens que nos rodeiam, essas sólidas coisas fami
liares: o que ocultarão de mais secreto? Certa vez li que a
terra é cortada por subterrâneos e cavernas, lá no fundo
escuro. Talvez tudo seja assim: pleno das pulsações de
uma vida que não se vê (Luft, 1991, p. 22-23).

É muito importante que, a cada arroubo de iconoclastia,
o indivíduo possa redescobrir nas formas rompidas o
mesmo cuidado materno e parental e a mesma estabilidade
familiar que embasavam sua dependência em épocas
anteriores. É função da família constituir o terreno sobre
o qual se desenvolve na prática esse dado essencial do
crescimento pessoal (Winnicott, 1993, p. 137).

Alice é a filha mais velha de uma família composta por mais dois irmãos, Evelyn e Renato. Foram criados por um pai cruel e rude e uma velha empregada da família, Berta, “forte e despachada”, mas ignorante e seca. A mãe morreu quando Alice tinha apenas quatro anos de idade. Cresceram sem os cuidados maternos e sem poder recordar, ou ouvir falar, de histórias sobre a mãe morta. “Ninguém nos falava em nossa mãe, era como se tivéssemos nascido sem ela; desenraizados. Nossa família era então um espelho sem moldura. Inconsistente: um toque mais brusco, tudo se estilhaçava” (p. 34)2.

Além do mais, não tiveram acesso a outros aconchegos familiares. O pai, homem esquisito, mantinha-os afastados de qualquer contato com outros membros da família. Chegou a mudar de residência e a se desfazer de todos os pertences e mobiliários que permitissem manter algum vestígio da memória da esposa. “Nosso pai não devia ter se dado conta de que estava criando filhos solitários e tristes, que passavam perto dele encolhidos como cães escorraçados e ficavam por ali, na esperança de um carinho, mesmo distraído” (p. 58).

Alice, diferentemente dos irmãos, gostava de ler e se refugiava na leitura para escapar das horas em que era obrigada a permanecer de castigo sem poder se levantar: “(...) escapava para um tipo de liberdade que certamente meu pai nem adivinhava, ou me teria privado dis-so também” (p. 35).

Casou-se cedo, com apenas 18 anos; tinha planos de estudar, mas resolveu ser apenas dona de casa. Seu marido, com quem teve dois filhos, era um homem quieto e bondoso. Na época em que se passa a história, Alice levava uma pacata vida familiar, com os filhos já crescidos.

Evelyn, diferentemente, casara tarde, com quase 30 anos. Teve um filho mas, pouco depois do casamento, voltou a morar com o pai, por vê-lo velho e adoentado. “Evelyn: a irmãzinha que deixei sob a tirania de nosso pai quando me casei tão cedo; mas ela nunca se queixava; era uma menina sossegada, parecia incapaz de emoções intensas” (p. 14).

É Evelyn quem volta para a casa paterna para cuidar do pai, que detestava crianças. Consegue manter Cristiano (seu filho) longe do avô e, assim, ter uma convivência razoável. Assume a direção da casa com perfeição e eficiência, até que o filho, com apenas 8 anos, sofre junto com ela um acidente de carro, no qual tem as duas pernas esmagadas. Semanas de sofrimento e hospitalizações, com a amputação das pernas do garoto, terminam com a morte de Cristiano, que não resistiu a tanta agonia. “Evelyn ainda não acredita nessa morte. Precisamos conseguir que ela encare a realidade e não fique agindo como se o menino não demorasse a voltar” (p. 21).

A tragédia dessa morte é acrescida pela culpabilidade materna: no dia do acidente, ela dirigia o carro que levava o filho à escola. Depois disso, nunca mais foi a mesma e, a cada dia, alheia-se mais e mais da realidade: “(...) a morte devorou Cristiano e sua mãe não aceita isso. Fabrica um mundo ilusório – nele o menino continua vivo. (...) Logo Evelyn, tão equilibrada... um pouco fria até” (p. 14).

Em tais circunstâncias, Alice é convocada pela cunhada, mais decidida e independente, para uma “reunião de família”, que ocorreria durante um fim de semana, na casa do pai, onde Evelyn morava com o marido. Deveriam tomar alguma providência. Bruno, o marido de Evelyn, estava desnorteado com a morte do filho e o sofrimento da mulher. Renato, o irmão, nunca sabia muito o que fazer. O pai, cada vez mais alheio... e agora dado a escutar zumbidos no ouvido, provenientes, segundo ele, de bichos que não paravam de se movimentar.

Alice, a dividida: foi assim que senti esta manhã, um pouco aborrecida por ter de viajar. (...)
Mas hoje sou obrigada a sair dessa concha: por um fim-de-semana, (...) Uma cidade próxima, uma hora de ônibus. Para que todo um fim de semana? (...)
Não gosto de sair de casa; detesto viajar sozinha, e meu marido recusouse a vir: (...) como não estou habituada a tomar decisões, fiquei inquieta (p. 10-11).

Alice se refugiava em casa, na ilusão de deixar a vida lá fora. Agora, estava sendo convocada e compelida a sair do “seu mundo seguro”. Tudo se tornava ameaçador pelo fato de ter que permanecer na casa paterna. O que tudo isso poderia representar? O que poderia acontecer? Sentia-se ameaçada...

Quando criança, criara mecanismos para a sobrevivência psíquica. Refugiava-se nos livros, onde dava “asas à imaginação”, ou “fugia pelo espelho”, pensando ser “a outra dela mesma”: “Não a coitada, filha do Professor a quem ninguém apreciava; mas outra Alice – poderosa, inconquistável” (p. 15). Estava desacostumada a usar esses recursos, nem se lembrava, exceto naquela manhã, ao se preparar para sair de casa. Ao se olhar no espelho, achou-o muito pequeno. Então, lembrou-se do antigo jogo, fora de uso na sua vida atual. “O jogo: do tempo em que eu não era uma pacata dona-de-casa com filhos criados, mas uma menina sem mãe; que inventava o jogo do espelho para ser menos infeliz” (p. 10). Ao despedir-se do marido à porta de casa, perguntou o que ele achava de colocar um espelho grande na sala. Diante da admiração dele pela idéia extravagante, justificou-se, dizendo que espelhos davam a impressão de maior amplitude aos ambientes.

Por detrás do reflexo familiar ia se formando outro alguém. De início, sorrateiro; depois, dominando tudo com seu poderoso olhar.
Seu nome também era: Alice.
Ela: o contrário de mim, meu reverso. Sempre à espera por baixo da superfície. Livre para detestar tudo o que, aqui fora, eu era obrigada a aceitar (p. 10).

Alice, ameaçada de sair da sua “concha” e “desalojada” do seu cotidiano assegurador, como se manteria a mesma? E, simultaneamente, como ser “a outra” que antevia? “Quem é essa que me observa o dia todo, quando falo, como, trabalho, leio ou durmo?” (p. 12). Como sair e poder retornar?

A situação familiar daquelas pessoas não tinha assegurado recursos para o enfrentamento das experiências de desestabilização que a vida, reiteradamente, oferece. Parecia que, para Alice e seus irmãos, não foi possível manter o fluir da tensão permanente entre as duas tendências básicas do psiquismo humano, assinaladas no pensamento winnicottiano.

Winnicott permite pensar o movimento pendular da existência humana: o movimento entre “o ir” e “o vir”, de singularização e de retorno ao campo do compartilhado. Esse trânsito será garantido se o sujeito estiver livre para ir cada vez mais longe, sabendo que poderá retornar, pois, mesmo no campo da singularidade, os elos não foram perdidos. Assim como no campo do compartilhado algo de incomunicável permanece preservado (o compartilhado não toma conta de tudo), pois caso isso aconteça é invasivo e destrutivo3. A luta conflituosa de ambos os impulsos garante o afastamento e a segurança do retorno, bem como que a subjetividade humana tenha a possibilidade de voltar ao centro, no momento em que lhe for conveniente.

Sem “centro”, como suportar os abalos às estruturações psíquicas? Na falta de um “chão assegurador”, como perdê-lo sem desestruturações irreversíveis?

Mas, como cumprir o ofício da existência de que nos fala Heidegger (1988), cujo pensamento encerra a idéia de o homem ser o ente privilegiado, porque é nele que se dá o ser? Na concepção heideggeriana, o homem – ou o “ser-no-mundo” – seria como uma “clareira” onde ocorreriam lampejos de iluminação; urge, portanto, a procura de ser. Nesse sentido é que Naffah Neto (1995) fala da capacidade de ampliação da subjetividade, compreendida como envergadura interior, uma espécie de vazio “(...) capaz de propiciar abrigo, morada, aos acontecimentos da vida” (p. 198). Ao se promover o desenvolvimento de tal envergadura, acentuar-se-á a capacidade de o homem dar abrigo, morada às experiências da sua existência. E, por conseguinte, ampliar-se-á a capacidade de elaboração dos acontecimentos que o afetam.

Que condições Alice e Evelyn tinham de “ir e vir”? Que condições Alice e Evelyn tinham de dar abrigo às suas experiências de vida?

Ambas constituíram família e pareciam tocar suas existências. Ambas saíram da casa paterna: Alice bem cedo se casou; Evelyn mais tarde, no entanto logo retornou ao lar com a alegação de cuidar do pai envelhecido. Esta, apesar de pouco expansiva, mudara por completo, com o menino. Parecia estar tudo no lugar quando a morte prematura do filho “desarticulou” sua personalidade.

Estaria Evelyn, por meio dos cuidados com o filho, podendo obter os afagos maternos que nunca recebera? Perdê-lo representaria, então, o rompimento de uma personalidade que fragilmente se estabilizara na ausência dos suportes afetivos fundamentais? Situações desalojadoras para Evelyn eram, então, sinônimo de morte psíquica? Alice, por seu turno, apesar de ter se casado bem antes, morar longe e, aparentemente, manter tudo sob controle, parecia que apenas “trocara de dono”: “Eu tinha outros planos para minha vida, mas acabei sendo Alice, a coitada; a de mãos ásperas e coração agoniado. Troquei de dono quando me casei, fui para um proprietário menos exigente, menos violento – mas meu dono” (p. 110).

Tanto Alice quanto Evelyn tiveram, em suas vidas, ausência dos suportes afetivos familiares. No entanto, parece que Alice, por ter tido a mãe até os 4 anos, conseguiu alguma reserva afetiva significativa. Sabemos, segundo Winnicott, que “(...) o desenvolvimento emocional do primeiro ano de vida lança as fundações mesmas da saúde mental do indivíduo humano” (1993, p. 5). Evelyn, pelo contrário, era bebê quando a mãe morreu.

Cresci sem mãe; sem avós; sem tias nem primas; nosso pai não era ligado à família, falava como se fosse sozinho no mundo. Nunca tive alguém perfumado e doce para me abraçar; para ajeitar meu cobertor na hora de dormir, ou contar histórias; para me dar conselhos. Nem para cuidar de Evelyn, que era um bebê quando nossa mãe morreu, e foi criada por Berta; ou para ajudar meu irmão Renato, que só levava surras de nosso pai (p. 20).

Ainda um bebê quando da morte de sua mãe, Evelyn provavelmente contou muito pouco, ou nada, com o colo materno. A mãe pas-sou meses doente, antes de morrer. Na verdade, a criança não contou com o senso de segurança fundamental que a mãe lhe propiciaria, a qual lhe teria dado condições de vivenciar situações de desintegração,sem desarticular sua personalidade. “Às vezes, segurança significa simplesmente ser adequadamente seguro no colo” (Winnicott, 1993, p. 7).

A carência afetiva de ambas era enorme, mas a diferença acima mencionada foi o “divisor de águas” na vida das duas. O que mais Alice pôde ter que a vida não ofereceu a Evelyn?

O processo maturacional, concebido por Winnicott para explicar o crescimento, é entendido como resultado da manifestação da natureza humana ao longo da dimensão temporal e, como tal, não é um processo natural. A natureza, ou a essência humana como ele compreende, é dotada de uma “tendência para a integração ou um “potencial para o crescimento”. Melhor dizendo, o ser humano é compreendido “sen-do” e, nessa medida, guiado pela necessidade de “continuar a ser”, e ser, especialmente, um “self 4 independente”. A idéia não substantivada assim como a dimensão temporal da natureza humana ficam explicitadas nas palavras de Winnicott: “O ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana” (1990, p. 29). A abordagem winnicottiana permite perceber a existência humana como um acontecimento que se processa no tempo e com o tempo.

A idéia de Winnicott sobre o desenvolvimento humano enfoca sobretudo a relação dual mãe-bebê. Devido à imaturidade própria do ser humano no início da vida, a mãe representa, por meio dos cuidados oferecidos ao seu filho, o suporte fundamental para a maturação biopsicossocial. A teoria da maturação5 de Winnicott concebe que o desenvolvimento infantil se inicia com o gesto espontâneo”, originado no potential True Self.

A mãe que desenvolve o estado que chamei “preocupação materna primária” fornece um setting no qual a constituição do bebê pode se mostrar, suas tendências de desenvolvimento podem começar a se revelar e o bebê pode experimentar um movimento espontâneo e dominar as sensações apropriadas a esta fase inicial da vida. (...) Fracassos maternos produzem fases de reação à invasão e estas reações interrompem o “continuar a ser” do bebê. (...) Em outras palavras, a base para o estabelecimento do ego é um suficiente “continuar a ser”, que não foi interrompido por reações à invasão (Winnicott, 1978, p. 495-496, grifos do autor).

Para Winnicott, cada existência humana inicia, com o nascimento, a tarefa prematura de recriar o mundo. A fim de entender as coisas, o bebê cria os objetos – a maneira como ele soluciona a sua tarefa existencial básica, que consiste em se integrar no tempo e no espaço, habitar o corpo e interagir com os “objetos” do mundo. O primeiro objeto para o bebê é sua mãe que, nesse estágio inicial, não é compreendida como separada dele. A experiência do bebê, no princípio, é de total dependência da mãe e sem nenhuma noção de identidade. Posterior-mente separa-se dela, condição indispensável para adquirir um senso de independência e de liberdade pessoal. Nesse processo, ele necessita aprender a destruir objetos e a usá-los para criar o sentido da realidade externa. Após essas etapas, o ser humano começa a se experimentar biologicamente, em especial no aspecto sexual, direcionado pelos próprios impulsos. Está deflagrado o processo crescente do desenvolvimento, que só termina com a morte: “the last fact of life” (Loparic, 1999, p. 123).

Talvez Alice tenha recebido os cuidados de uma mãe suficientemente boa que, no dizer de Winnicott:

é aquela que efetua uma adaptação ativa às necessidades do bebê, uma adaptação que diminui gradativamente, segundo a crescente capacidade deste em aquilatar o fracasso da adaptação e em tolerar os resultados da frustração. (...) A mãe coloca o seio real exatamente onde o bebê está pronto para criá-lo, e no momento exato (1978, p. 401-402).

Na visão winnicottiana, o ser humano nasce com uma capacidade alucinatória e graças a ela é capaz, durante o período em que não se diferencia da mãe, de imaginar, criando-a. Essa criação acontece quando a mãe se coloca para satisfazer as necessidades da criança. Winnicott chama tal período de ilusão e o considera fundamental para o desenvolvimento da capacidade criativa do ser humano. Durante essa fase o bebê tem a ilusão de criar o mundo. Caso os cuidados maternos sejam precários ou o bebê não tenha uma mãe capaz de atender às suas necessidades específicas no tempo e no ritmo próprios, seu desenvolvimento sofrerá prejuízos inestimáveis.

De acordo com esta tese, uma provisão ambiental suficientemente boa na fase mais inicial permite que o bebê comece a existir, a ter experiências, a construir um ego pessoal, dominar as pulsões e enfrentar todas as dificuldades inerentes à vida. Tudo isto é sentido como real pelo bebê, que se torna capaz de ter um self que, eventualmente, pode se dar ao luxo de sacrificar a espontaneidade e mesmo morrer. Por outro lado, sem a provisão ambiental suficientemente boa, este self que pode se dar ao luxo de morrer nunca se desenvolve. (...) Se as dificuldades inerentes à vida não podem ser alcançadas, mais difícil ainda será alcançar as satisfações. Se não há caos, surge um falso self que oculta o self verdadeiro, que se submete às demandas, que reage aos estímulos, que se livra das experiências pulsionais passando por elas, mas que está apenas ganhando tempo (Winnicott, 1978, p. 497, grifos do autor).

Self verdadeiro e falso self são dois conceitos importantes do pensamento de Winnicott para auxiliar a compreensão da complexidade do psiquismo humano constituído entre esses dois pólos. O self verdadeiro, como já assinalado, é um potencial e o falso self se constitui para fora, apenas em atenção às expectativas, desejos e receios em relação aos outros.

Alice apresentava-se capaz de se refugiar e se libertar por meio dos livros. Conseguia, com capacidade criativa, encontrar recursos para ultrapassar o mundo estreito e limitado onde vivia. Foi-lhe possível, por meio de capacidade imaginativa, constituir sua subjetividade e a própria realidade. Parece que conseguia permanecer no trânsito entre a submissão às demandas, próprias do falso self, e o “potential True Self”. Não é dessa forma que o fluxo da vida se poderá manter?

Talvez essa vida tão estreita tenha multiplicado minhas fantasias. Nessa dimensão eu realmente podia viver: a do sonho. Nela movia as asas secretas; era eu mesma, sem medo de ser ridicularizada, castigada a toda hora; assim me salvara de ressecar completamente (Luft, 1991, p. 37).

Aprendemos com Winnicott que a saúde para o ser humano inicia-se com a qualidade dos cuidados maternos na mais tenra idade, permitindo-lhe satisfazer a sua onipotência, ou seja, a ilusão de criar a mãe. Nesse processo, o bebê vai desenvolvendo a capacidade imaginativa, que lhe dará condições para enfrentar a experiência da separação de forma criativa. Isso será traduzido pela capacidade de resolver o problema da relação entre os objetos percebidos objetivamente e os que ele concebe subjetivamente.

Em outras palavras, o processo de desilusão passa a fazer sentido para o bebê e a noção eu–não-eu principia a se estabelecer. Esse espaço que surge na separação do corpo da mãe e do bebê dá início ao que Winnicott denominou: espaço potencial. É um vazio entre corpos e torna-se potencial na medida em que pode ser preenchido pela imaginação do bebê. Um espaço paradoxal, pois ao mesmo tempo que separa, une (Barreto, 1998, p. 176).

Parece que Alice teve condições de preencher criativamente o vazio surgido da separação entre seu corpo e o corpo materno – “Nessa dimensão eu realmente podia viver: a do sonho” – e, com isso, desenvolver a área intermediária da experiência humana, que tem relação direta com o objeto externo e com o interno, mas, ao mesmo tempo, não é nem um nem outro. Trata-se, na verdade, de uma terceira área, na qual ocorrem o que Winnicott chamou de fenômenos transicionais e objetos transicionais. “Se tudo correu bem, o bebê provavelmente ‘adotará’ um objeto que o auxiliará a lidar com a angústia mobilizada pela ausência materna. A primeira possessão não-eu do bebê” (p. 176).

Importa observar a distinção desta área com as demais. Winnicott (1978, p. 402) é claro quando afirma: “os fenômenos transicionais representam os primeiros estádios do uso da ilusão”, o que significa, portanto, o início do estabelecimento do campo da ilusão, fundamental no processo do trânsito e da transcendência das operações psíquicas de diferenciação entre externo e interno, subjetivo e objetivo.

Como nos livros: a assustadora e deliciosa passagem de uma realidade a outra, sem saber onde o concreto, onde a fantasia. Era a liberdade, essa transparência. Era o poder. Meu lado avesso, esconjurado, começava a ser legítimo (p. 37).

Alice, no diálogo com o avesso dela mesma, estabelecia um equilíbrio que a vida familiar não lhe oferecia. E mais: conseguia transcender os limites dela mesma, à medida que seu “(...) lado avesso, esconjurado, começava a ser legítimo”. Conjeturo que isso lhe fosse permitido porque pôde, na relação com a mãe, desenvolver uma imagem integrativa do próprio eu. Para Winnicott, a função materna de espelho implicaria o reconhecimento de que a criança pode fazer de si mesma por meio do olhar materno que, por sua vez, refletiria os sentimentos e a percepção da mãe em relação à criança.

Ressalte-se nesta visão a possibilidade de um reconhecimento, primeiro por parte da mãe, das características do bebê, suas emoções e sentimentos; e, então, a oportunidade do bebê se reconhecer na expressão facial materna (Barreto, 1998, p. 144).

Muitas vezes, sozinha ou de castigo, se havia um espelho perto avaliava minha imagem: uma menina sem graça, roliça, pesadona. Mas tudo mudava no jogo dos reflexos; a gente sentava diante da outra e olhava... intensamente, com tamanho fervor, olhava e dizia: você é má, é louca, é suja, você mente... por isso está sempre de castigo, por isso leva esses tapas, por isso ninguém gosta de você. Aos poucos ela se transformava, espantoso como se transformava: arqueava de outro modo o sorriso, o olhar destilava malícia e ousadia, o rosto assumia beleza, era um desafio.

Eu era ela. Era a outra, que irresistivelmente me puxava para seu mundo de lampejos dourados (Luft, 1991, p. 37).

Alice finalmente conseguiu, no seu processo existencial, transitar, mesmo que precariamente, entre o ir e o vir: “(...) no decorrer do desenvolvimento emocional o indivíduo transita da dependência para a independência; e o indivíduo sadio conserva a capacidade de transitar livremente de um estado a outro” (Winnicott, 1993, p. 131-132). Com certeza, quando Alice fazia esse trânsito, era com muita angústia, dificuldade e aprisionamento.

Preciso de tudo ordenado e calmo. Vida se resolvendo nas pequenas lidas de cada hora; executar tarefas sensatas e úteis; saber que no fim do dia meu marido vai chegar, um homem quieto e pacato. E que, entrando em casa quase junto com ele, meus dois filhos me beijarão na testa, distraídos, dizendo: “Boa noite, velha” (p. 17).

Sabe-se que todo ser humano necessita dessa ordenação cotidiana, mas Alice precisava de muito mais: precisava segurar a vida, ter a segurança mínima, básica e fundamental que a falta da mãe e a incapacidade do pai não lhe proporcionaram: “(...) a gente agarra coisas banais querendo segurar a vida” (p. 18).

Mas a angústia era muito forte e aterradora:

(...) Sofro de insônia, isso sim: nessas horas não consigo ficar deitada, o coração parece saltar pela garganta. Uma angústia o aperta como bicho que, esmagado entre os dedos, começasse a se debater, esperneando enlouquecido... Então saio da cama, com cuidado para não acordar ninguém, e vou sentar na sala; leio ou penso (p. 18).

Interessante observar que a contenção que Alice oferecia a si mesma era inacreditável. Não pôde “dar o colo” a sua irmãzinha, pois ela também dele necessitava; mas, de alguma forma, aconchegou e transfigurou, transcendendo-se. Quanto a Evelyn, além de tudo já mencionado, sofreu a tragédia de perder, de forma brutal e prematura, o único filho.

Difícil de acreditar: essa criatura equilibrada, que há alguns meses levava uma vida normal, atendendo ao trabalho e à casa, agora naufraga na loucura, abraçada ao filho morto.

Ou será que por baixo daquela superfície, havia desde criança outra Evelyn, apenas esperando o momento de emergir... Essa que agora, perturbada em seu sono, lança sobre nós o olhar desvairado? (p. 56).

Essas reflexões de Alice permitem-nos pensar sobre a precariedade da estruturação da personalidade de Evelyn – impossível ser a outra dela mesma. Era-lhe impossível experimentar experiências desalojadoras e dar abrigo aos acontecimentos da vida. Foi impossível Evelyn desenvolver a capacidade de ampliação da subjetividade pessoal e constituir-se como uma “clareira”, no dizer heideggeriano, ou, como diz Naffah Neto (1995, p. 198), constituir-se como uma envergadura interior, “(...) capaz de propiciar abrigo, morada, aos acontecimentos da vida”.

Evelyn, em sua frágil estruturação e na ausência da figura materna, buscava, nas características paternas, um modelo de identificação. No entanto, o pai não lhe oferecia qualquer suporte afetivo, era frio e sem nenhum investimento amoroso. Filho mais velho de uma família numerosa, tinha poucos recursos financeiros. O próprio pai era alcoólatra e muito violento: bêbado, surrava a todos, inclusive a mulher. Fugiu de casa em uma dessas ocasiões e nunca mais procurou a família. Como se pode constatar, pela própria história do pai, Evelyn não poderia encontrar nele possibilidades identificatórias positivas.

Quando se zangava, Berta dizia que Evelyn puxava ao pai. Não levei isso a sério, mas talvez houvesse algum traço comum; muito leve, mas havia: a boca fina e dura; o retraimento um pouco frio. A obsessão de ordem e eficiência; a disciplina. Talvez fosse um recurso de Evelyn para não sofrer com o ambiente em nossa casa. Eu fugia para meu espelho, meus livros; Renato vagava pela rua, pouco estava em casa; Evelyn cercava-se dessa tênue couraça de frieza: era isso (p. 57-58).

Mas seria só isso – como explica Alice –, só para não sofrer com o ambiente de casa, com a crueldade do pai e com a falta da mãe que Evelyn era rígida e fria? Poderíamos encontrar, também, outras explicações?

Voltemos ao pensamento de Winnicott. As características próprias de todo bebê humano reveladas no seu início, em cada aspecto do seu funcionamento biológico, deverão ser captadas por quem cuida dele. Trata-se da importância dos cuidados maternos manifestados com devoção, nos primeiros meses de vida, que garantirão o estabelecimento da subjetividade humana sadia e a sua conseqüente maturação.

O importante é que esta relação se constitua de tal forma que possibilite ao bebê existir como ser, e não só como organismo biológico. Isto significa que o bebê pode ser reconhecido pela mãe e pode inscrever as suas características na subjetividade da mãe, o que lhe permite desenvolver um sentido de continuidade e um certo estilo de ser (Safra, 1998, p. 11).

À luz desses ensinamentos winnicottianos, deduz-se que ser reconhecido pela mãe é a base intersubjetiva da vida psíquica individual. É preciso compreender que, nesse processo, as características da mãe estarão sendo inscritas na subjetividade do bebê. Posteriormente, ao discriminar eu e não-eu, a criança vai aprendendo a conviver com outros. No exercício de desenvolver a capacidade de lidar com a separação, o ser humano vai, por meio da ampliação do campo da ilusão, criando um espaço intermediário, o chamado espaço transicional, fundamental para permitir o sujeito aprender a transitar na experiência da relação com, deixando-se transformar. Sem o espaço da ilusão, no qual não existe a necessidade das definições restritas e em que o mundo do “faz de conta” domina, como suportar a invasão do outro? Sem fazer sentido para um outro, como se desenvolver no mundo da intersubjetividade? Como se saber um eu, separado da mãe, sem ter sido possível o desenvolvimento da capacidade criativa? Nessa condição, a existência humana será constantemente recriada e, sem ela, se reduziria aos hábitos mecânicos e repetitivos da rotina diária. O espaço transicional é o solo fértil do qual poderão brotar novos acontecimentos e surgirá a possibilidade de se fazer outro.

Todavia, é no engendramento da realidade psíquica compartilhada que as subjetividades humanas vão se organizar. Ou, como diria Heidegger (1988), é no impessoal que o ser-no-mundo se constitui e se mantém a maior parte do tempo. O cotidiano rotineiro possibilita o sentimento tranqüilo do “sentir-se em casa”, à medida que organiza e estrutura a vida.

Qual a realidade partilhada pelo psiquismo daquela família que constituiu as singularidades subjetivas de Alice e Evelyn?

– Um pai como o senhor acaba com a vida de qualquer um. (...) Odeia seus próprios filhos. Não sei como isso é possível, mas é verdade. O senhor nunca foi pai, foi carrasco. (...) Nem da nossa mãe o senhor gostava, ela morreu de tristeza, essa é a verdade. Era quase uma menina, e o senhor nunca lhe deu amor nem atenção. Ela preferiu morrer (p. 81-83)6.

Esse diálogo-desabafo oferece o panorama da realidade psíquica partilhada por aquela família.

Nas palavras de Alice, encontraremos outras expressões marcantes que fundamentam a idéia da definição do sujeito no espaço intersubjetivo.

(...) a isso nos habituamos desde crianças: a não sermos solidários, a não nos mostrarmos amigos nas horas difíceis. A pensarmos só em nós mesmos, (...) Fomos uma ninhada de cachorrinhos que brincam juntos, mas logo são capazes de se dilacerar por um naco de carne.(...) Crias sem mãe, num terreno baldio. (...) O que está acontecendo comigo? Conosco? Somos uma família, por que estamos agindo assim? Nós nos odiamos, é a única verdade, nos odiamos! (p. 106-108).

As indagações de Alice demonstram sua capacidade subjetiva de se reconhecer e reconhecer os demais membros da família. Ela procede a uma análise perfeita da dinâmica familiar, organizada em detrimento da ausência materna e das perversidades do pai, incapacitado de se relacionar afetivamente.

De novo retomo o pensamento, para concluir que Alice, diferentemente de Evelyn, obteve da mãe os cuidados maternos suficientemente bons de que nos fala Winnicott. Graças a isso, desenvolveu a capacidade criativa, ensejando que as experiências vividas fossem capazes de “(...) encontrar abrigo, acolhimento, nesse espaço interior” e pudessem “(...) ser elaboradas, transmudando-se em proveito da expansão vital” (Naffah Neto, 1995, p. 199 – grifo meu).

Por fim, concluo, compartilhando das reflexões de Alice:

Reagimos como se o mundo tivesse de girar no mesmo ritmo, sobre o eixo de sempre, quando na verdade um abismo voraz se abriu à nossa frente. (...)

Foi tudo um jogo de espelhos: nossas imagens defrontadas numa série interminável, multiplicando rostos, como nesses labirintos espelhados em que tudo se torna possível. Reflexos de reflexos de reflexos: eis o que somos. Agora que descobrimos isso, despertamos para a lucidez do trivial (p. 87; 123).

É verdade, Alice. Aprendemos que necessitamos do cotidiano reassegurador ou de nos perdermos na publicidade, como diria Heidegger. Aprendemos que as rotinas e todo o seu sistema de combate e de controle da angústia são indispensáveis e tranqüilizadores. Definitivamente, não poderíamos viver sem isso. Mas, como somos abertura originária e habitamos na verdade do ser, um abismo voraz estará sempre se abrindo à nossa frente. Se conseguirmos fazer a travessia, transitando entre nós mesmos e o outro, e por meio do jogo de espelhos, nesse espaço intermediário, em que tudo se torna possível – compor e recompor a nós mesmos –, então será possível despertamos para a lucidez do trivial, pois a transcendência foi efetuada nos reflexos de reflexos de reflexos...

 

Referências Bibliográficas

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Endereço para correspondência
Iaraci Advíncula
Estrada de Apipucos 521 – 52071-000 – Apipucos – Recife/PE
Tel.: (81)3268-2004
Fax.: (81)3423-2935
E-mail: falecom@iaraci.com

Recebido em 05/12/01
Aprovado em 18/12/02

 

 

Notas

IMestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Professora, Supervisora de Estágio e membro do Laboratório de Psicopathologia Fundamental UNICAP.
1Forças vitais ou forças da vida são as energias que regulam a existência humana e se manifestam, independente dos controles exercidos pelas normas culturais vigentes nas várias épocas.
2As falas são de Alice, personagem-narrador do livro de Lia Luft, que ilustrarão este trecho do trabalho.
33Idéias elaboradas por ocasião da realização de minha Dissertação de Mestrado e a partir das colocações de Luís Cláudio Figueiredo, em julho de 2000, Recife PE.
4“O self acontece a partir das potencialidades do bebê auxiliadas pelo meio ambiente favorável, alcançando ao longo do processo maturacional um sentido de totalidade. Trata-se de um conceito fenomenológico e não estrutural” (Safra, 1999, p. 92, nota de rodapé).
5A teoria da maturação implica o processo maturacional, que se refere “(...) ao acontecer humano na dimensão temporal, em que as potencialidades do bebê realizam-se e evoluem com o auxílio do meio ambiente” (p. 92, nota de rodapé).
6Trechos da “explosão de ódio” ao pai e na presença dos demais membros da família, efetuada por Renato, personagem do livro de Luft.