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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.14 São Paulo dez. 2002

 

ARTIGOS

 

O sujeito, a racionalidadee o discurso pedagógico da modernidade

 

The subject, rationality and the pedagogical speech of modernity

 

 

João Francisco Lopes de LimaI

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo estrutura sua abordagem a partir da compreensão da educação moderna como um produto das interferências iluministas, sintetizadas no que se chamou Modernidade. Racionalidade científica e metafísica da subjetividade são as referências primeiras da pedagogia moderna. A metafísica da subjetividade in-corpora o conceito de sujeito epistêmico ao processo educativo. A compreensão de um sujeito universal, dotado de razão e de suas propriedades universais e idênticas em todo o indivíduo, passa a ser o solo em que se movimentam as teorias pedagógicas. O processo educativo, influenciado pela racionalidade científica, é cercado pela pedagogia do método e das técnicas de ensino como forma de assegurar a apropriação, pelo sujeito epistêmico, dos conteúdos culturais reproduzidos pela escola. Em sua abordagem, o presente estudo busca, no pensamento de Kant, Rousseau e Herbart, os conteúdos estruturantes do discurso pedagógico moderno, embora reconheça que ele não possua uma unidade interna. Os vínculos entre a compreensão de sujeito e de racionalidade e a formulação de um discurso pedagógico para que a educação possa dar conta das tarefas que recebeu da modernidade se apresentam como objeto deste estudo.

Palavras-chave: Educação, Discurso pedagógico, Modernidade, Racionalidade, Subjetividade.


ABSTRACT

This article is structured upon the comprehension of modern education as a product of Iluminist interferences, synthesized in what we called Modernity. Scientific rationality and subjectivity metaphysics are the first reference of modern pedagogy. Subjectivity metaphysics incorporates the concept of epistemological subject to educational process. The comprehension of a universal subject, who owns a reason, and its universal and identical properties in every individual, becomes the ground on which pedagogical theories move. The educational process, influenced by scientific rationality, is surroundded by methodological pedagogy and teaching techniques as a way to assure the appropriation, by the epistemological subject, of the cultural contents reproduced by the school. In its approach, the present study searches in Kant’s, Rousseau’s and Herbart’s thoughts, the structural contents of the modern pedagogical speech, although it recognizes that it doesn’t present, in itself, an internal unity. The links between the compprehension of subject and the building of a pedagogical speech for the education to accomplish the tasks it got from modernity, are presented as object of this study which places itself in the field of philosophy of education.

Keywords: Education, Pedagogical speech, Modernity, Rationality, Subjectivity.


 

 

1. Situando o sentido da educação no contexto da modernidade

A educação contemporânea é tributária da modernidade e das suas concepções e entendimentos acerca do sujeito como objetivo de vidaindividual, e como função de atuação social. É tributária, ainda, da formulação de um tipo de racionalidade que submete ao juízo crítico todos os preceitos que circundam esse sujeito.

A racionalidade moderna incorpora o conceito de sujeito epistêmico ao processo educativo. A compreensão de um sujeito universal, dotado de razão e de suas propriedades universais e idênticas em todo indivíduo, passa a ser o solo em que se movimentam as teorias pedagógicas. O processo educativo, influenciado pela racionalidade científica, é cercado pela pedagogia do método e das técnicas de ensino como forma de assegurar a apropriação, pelo sujeito epistêmico, dos conteúdos culturais reproduzidos pela escola.

Dividida entre as interferências do racionalismo cartesiano e do empirismo baconiano, a educação assume o aperfeiçoamento do gênero humano como sua tarefa pedagógica de maior significado. A instauração de um sujeito autônomo, como possibilidade de auto-consciência e superação da menoridade autoculpada, tal como descreveu Kant, revertese em aspecto programático irrecusável nas diferentes formulações e teorias pedagógicas derivadas desse nascedouro.

A perspectiva de autoconstituição do sujeito – como desenvolvimento da faculdade da razão que possibilita o juízo próprio – referenda a subjetividade como recurso fundamental em favor da pretensão emancipatória da educação moderna. Habermas (2000) localiza no pensamento de Hegel a idéia de subjetividade como princípio balizador da modernidade. A subjetividade simboliza a fisionomia dos tempos modernos como liberdade e reflexão (p. 25). Na perspectiva da modernidade, a subjetividade pode ser compreendida em pelo menos quatro dimensões: (1) o individualismo, como singularidade e particularidade de cada sujeito; (2) o direito de crítica, pois o mundo moderno exige o enfrentamento da legitimidade do que é dito; (3) a autonomia da ação, pois é coerente com os tempos modernos responder pelo que se faz; (4) a filosofia idealista como obra moderna que vislumbra a possibilidade da filosofia apreender a idéia que faz de si mesma.

O princípio da subjetividade está claramente enunciado em eventos como a Reforma Protestante, no século XVI, o Iluminismo e a Revolução Francesa, no século XVIII, como pontua Habermas (p. 26). A Re-forma Religiosa do século XVI estabelece a fé religiosa como reflexão, afirmando a “soberania do sujeito” a partir do exercício do discernimento. O Iluminismo e a Revolução Francesa realçam o princípio da liberdade da vontade como fundamento do Estado, trazendo para a vida comum o que antes era mandamento divino.

Afora isso, prossegue Habermas, a subjetividade determina outras manifestações, como a própria ciência. O conhecimento objetivo pretende libertar o sujeito cognoscente, contestando os milagres e a tradição teológica medieval. Nessa perspectiva, “a natureza é agora um sistema de leis conhecidas e reconhecidas” e o homem “é livre pelo conhecimento da natureza” (p. 27).

Assim, “na modernidade, portanto, a vida religiosa, o Estado e a sociedade, assim como a ciência, a moral e a arte transformaram-se igualmente em personificação do princípio da subjetividade”, conclui Habermas (p. 27-28). A subjetividade aparece, como estrutura, tanto no cogito ergo sum de Descartes, quanto na figura da consciência de si, em Kant. Essa estrutura do sujeito cognoscente, que se dobra sobre si mesmo como objeto, faz da razão o supremo tribunal, ante o qual deve ser justificado “tudo aquilo que em princípio justifica validade” (p. 28).

A educação se converte na executora das promessas da modernidade: a formação de um sujeito capaz do exercício pleno da liberdade, balizado unicamente pelo guia infalível da razão. Em suma, a modernidade acredita que, a partir do aperfeiçoamento moral de cada indivíduo em particular seria possível o melhoramento da humanidade como um todo. O ideal de progresso contínuo presente na racionalização dos processos econômicos é apresentado como possível para a educação por meio da racionalização de seus procedimentos pedagógicos. A racionalidade científica semeia, no projeto pedagógico moderno, a crença de que é possível assegurar o destino da educação, pois esta atua sobre as estruturas estáveis do sujeito epistêmico. Portanto, as aprendizagens estarão asseguradas se a clara observação dos procedimentos1 dados pelo método científico for o fundamento da atividade pedagógica.

 

2. A compreensão da tarefa pedagógica e o sentidoda educação: elementos do discurso pedagógicoda modernidade

Razão científica e subjetividade são referências obrigatórias para compreender a educação como processo institucionalizado, que se organiza frente à necessidade de formar sujeitos que possuam uma condução de vida segundo padrões seculares. Busco referências para a constituição do discurso pedagógico da modernidade no pensamento de Kant, Rousseau, Pestalozzi e Herbart.

Kant acentua sua importância como defesa do desenvolvimento das potencialidades da razão, ou seja, a educação do pensamento reflexivo como necessário ao desenvolvimento da autonomia do sujeito. Rousseau representa a defesa da educação como formação da virtude, reconfigura o conceito de infância e propõe a idéia de educação naturalista. Pestalozzi é buscado como consideração da educação como direito de todos, uma vez que defende a universalização do acesso à escolarização e cria a idéia de escola popular. Herbart, por sua vez, representa a idéia de sujeito psicológico, e do ensino como instrução, tão caros à tradição pedagógica.

2.1. A educação e o desenvolvimento da faculdade da razão

Kant, na obra Sobre a pedagogia2, apresenta alguns princípios educativos para a constituição do sujeito dotado de razão e passível de autoesclarecimento. A disciplina, a cultura e o desenvolvimento da moral reflexiva são conteúdos pedagógicos presentes no projeto kantiano de educação moderna.

Segundo ele, a idéia de disciplina precisa ser tratada como elemento fundamental para que o indivíduo não cause danos a si próprio e à comunidade. A disciplina externa, própria da heteronomia das primeiras etapas, encaminha para a auto-disciplina, ponto-chave da autonomia do sujeito. Sem ela o indivíduo não tem condições de formar valores humanísticos superiores, nem de constituir a potencialidade plena da sua capacidade racional.

A pretensão de um sujeito capaz de atitudes morais passa pela superação do controle externo presente na moralidade heterônoma, em direção à autodisciplina da moralidade autônoma. Nela o sujeito atinge o estágio da reflexão e da liberdade, mas está submetido a regras, evoluindo de uma sujeição mecânica a uma sujeição moral, baseada em princípios (1996, p. 31). A idéia de um desenvolvimento moral em estágios evolutivos será retomada pelos estudos de Jean Piaget e Lawrence Kohlberg.

Aliado ao processo que encaminha o sujeito para a autodisciplina, entendida como sujeição moral, aparece a instrução como correspondente ao processo que encaminha o indivíduo à socialização, possibilitando ao educando mover-se em um determinado contexto histórico e social, no qual se encontra inserido.

O processo de aquisição da cultura desembrutece o homem e desenvolve suas disposições para o bem, e deve encaminhá-lo à civilidade e à prudência, aqui entendidas como a capacidade de usar bem suas habilidades. Estas devem conduzi-lo à sujeição moral, que é a conduta do sujeito capaz de formular juízos morais racionais por conta própria.

A moralização, processo de “moldagem” da conduta, desenvolve no jovem a consciência moral calcada na razão e na justiça. Convém que o homem seja capaz de escolher apenas os bons fins, diz Kant – aqueles aprovados necessariamente por todos, e que podem ser, ao mesmo tempo, os fins de cada um. Essa questão da moralização se apresenta por meio do imperativo categórico3 “age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal” (Kant, 1974, p. 223).

Essa formulação de autogerenciamento do sujeito como uso pleno da liberdade por meio da faculdade da razão traduz um paradoxo para o discurso pedagógico moderno, que é “como educar para a liberdade sem coação”. Diz Kant:

Um dos maiores problemas da educação é o de poder conciliar a submissão ao constrangimento das leis com o exercício da liberdade. Na verdade, o constrangimento é necessário! É preciso habituar o educando a suportar que a sua liberdade seja submetida ao constrangimento de outrem e que, ao mesmo tempo, dirija corretamente a sua liberdade. Sem esta condição, não haverá nele senão algo mecânico; e o homem, terminada a sua educação, não saberá usar sua liberdade. É necessário que ele sinta logo a inevitável resistência da sociedade, para que aprenda a conhecer o quanto é difícil bastar-se a si mesmo, tolerar as privações e adquirir o que é necessário para tornar-se independente (1996, p. 34).

Castro, pesquisadora mexicana, ao considerar as propostas kantianas sobre a educação do caráter, sustenta que, atrás das virtudes morais, deve estar uma motivação ligada à cordialidade das relações humanas e ao apreço por valores aceitos em comum. A idéia de dever e de obrigação não podem suplantar o cultivo dos sentimentos morais. Em Kant, a educação tem como fim último a formação moral e cabe direcionar o processo educativo para a conformação da consciência moral autônoma. Para a autora, esse fim último se consegue, na perspectiva kantiana, por meio do equilíbrio entre dois princípios: “a coação como obediência ao dever, e a liberdade como autonomia da vontade” (1999, p. 83).

Para o desenvolvimento da autonomia moral é fundamental desenvolver estratégias de pensamento. Para isso, não basta inculcar conhecimentos racionais nos jovens. É necessário desenvolver um pensamento estratégico que permita ao sujeito extrair regras gerais das situações e aplicá-las adequadamente em situações particulares, o que significa o adequado uso da razão frente às inclinações da vontade. Na perspectiva de Kant, é preciso formar sujeitos capazes de construir, por conta própria, razões prudentes para agir frente a si mesmo e frente à coletividade. Atuar moralmente implica ser capaz de elaborar as razões das regras e questionar códigos já aprovados.

O caráter pode ser entendido “como uma condição de firmeza de resolução na adesão de certos princípios de ordem superior (...) uma forma consistente de atuar em conformidade com uma certa maneira de pensar” (p. 88).

Os princípios de defesa do esclarecimento como possibilidade de auto-constituição do sujeito como alguém crítico, consciente de seu papel social, inserido propositivamente em seus contextos e dotado de autonomia moral e intelectual, tornam-se pautas centrais no discurso pedagógico moderno, e constituem os recursos mínimos para o cumprimento da função emancipatória da educação escolar pelo sujeito transcendental kantiano.

2.2. A educação e o desenvolvimento da virtude

A pretensão da modernidade de constituir um sujeito emancipado, dotado de capacidade racional e produtor de ações pessoais e comunitárias pautadas em ações morais, é pontuada por Rousseau4, pensador indispensável para a compreensão do sujeito e do ideal educativo gestado na modernidade.

Ele compreende o sujeito com uma preocupação de caráter moral, expressa na idéia de educar o homem para “vencer as inclinações”. Isso como forma de tornar possível o que denomina exercício pleno da virtude. Para ele, a única possibilidade de superar as forças corruptoras da sociedade é evitar que essas ajam com sucesso sobre o indivíduo que, acredita o filósofo, é bom por natureza.

A autonomia moral consiste em agir conforme a consciência, fazendo o que é certo, o que somente se torna possível por meio do exercício pleno da virtude, o qual exprime o conceito de liberdade para Rousseau. Para ele, liberdade, virtude e felicidade estão interligados e se alcançam somente quando o indivíduo age conforme o dever e, por meio do processo educacional, pode haver a reconciliação do homem com a sua própria natureza. Assim, a educação moderna instala o sentido de que, desenvolvendo a razão, o melhoramento da virtude se instaura como apelo da própria vida humana.

Na interpretação de Arizmendiarreta (1997) sobre o pensamento de Rousseau, a virtude aparece como uma unidade interna alcançada após o domínio das paixões5. A superação das paixões não naturais6 somente pode se dar por meio de uma virtude que consiga entremear coerência entre as ações e as palavras, o que significa agir conforme o que se diz. Para conter as paixões, capacidade atribuída ao sujeito correto e virtuoso, espera-se que seja educada a capacidade de discernimento do indivíduo, potência sem a qual não se constitui um indivíduo capaz de tomar decisões por conta própria.

Rousseau tem uma concepção idealista do trabalho pedagógico ao apostar nas possibilidades da autonomia, influência que estendeu ao pensamento de Kant. Essa autonomia, que Rousseau compreende como independência moral, aposta nas possibilidades de liberdade do sujeito. Para ele, somente é livre o indivíduo que é capaz de colocar o bem comum acima do bem particular ou privado, seja ele individual ou de grupos. Portanto, sendo capaz de cumprir a vontade geral, que possui um caráter equivalente ao valor do imperativo categórico kantiano como definição do ideal do homem público moderno – o cidadão.

A formação do indivíduo como homem se vincula com uma integração consigo mesmo. Já a formação do indivíduo como cidadão resulta de sua integração com o corpo social. A conversão do homem em cidadão acontece como decorrência da entrada do indivíduo na idade da razão, e requer a existência de instituições que integrem o homem ao corpo político, “de maneira que tenha uma unidade e não seja uma mera agregação de indivíduos que tenham como intenção fazer prevalecer seus interesses em prejuízo dos demais”, destaca Arizmendiarreta (1997, p. 122).

A sublimação das paixões se torna possível por meio da capacidade de discernir entre o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto. A possibilidade de critérios adequados de avaliação e de julgamento se tornam possíveis, conduzindo o homem para educar a sua inteligência e aprimorá-la (Freitag, 1994, p. 35). Se há uma consciência moral inata, esta não pode ser deturpada pelas influências externas. Cabe, assim, educar os sentidos e a razão para o devido discernimento.

Um princípio importante da pedagogia de Rousseau é a ação. O autor acredita que agindo as crianças aprenderão, educarão os sentidos em contato com a natureza, balizando a necessidade do mundo concreto. A sua compreensão da infância como etapa natural e particular transforma a compreensão da criança como adulto em miniatura, vigente até então. Esses princípios de pensamento de Rousseau serão pontos centrais das pedagogias ativas do final do século XIX e do início do século XX, e das reformas educativas em curso em vários países, inclusive no Brasil. É na etapa das atividades que exploram os sentidos que se constrói a base da aprendizagem intelectual, sem que tenha havido, efetivamente, uma educação moral.

Para Rousseau, a educação moral só é possível quando o sujeito domina as idéias abstratas. O pensador vê, na passagem das sensações às idéias abstratas, a construção da razão intelectual. Nessa etapa, o jovem está sob os cuidados educacionais do preceptor7 ou, em nosso tempo, sob os cuidados da escola. A tarefa educacional aparece como o necessário auxílio à superação do apelo às sensações para a estruturação vivenciada do pensamento abstrato, que possibilitará ao sujeito chegar à idade da razão. A educação opera com um conceito de sujeito universal – o sujeito epistêmico, cujos estágios evolutivos do pensamento – até atingir o nível da abstração, foram fundados por Rousseau e, mais tarde, aprimorados pelos estudos clínicos de Jean Piaget8.

Para Rousseau, a educação é um processo natural, pautado pelo desenvolvimento interno do sujeito, por meio da ação sensorial e não por ação externa. Razão, consciência e livre-arbítrio são elementos fundamentais da pedagogia naturalista de Rousseau, com vistas ao sujeito capaz de priorizar a vontade geral no convívio coletivo.

2.3. A educação como um direito de todos

O discurso pedagógico moderno é devedor da obra de pensadores como Rousseau e Kant, mas também de Pestalozzi que, ao longo dos séculos XVIII e XIX, contribuiu para os fundamentos da pedagogia clássica. Pestalozzi9, como os demais pensadores de sua época, atribui à educação a tarefa do melhoramento individual, percebido por ele como o meio essencial de reforma social. Sustentando a idéia de que era possível a regeneração moral de cada indivíduo por meio do trabalho, da frugalidade e da perseverança, sugere a educação como meio para a regeneração social no âmbito coletivo (Monroe, 1979, p. 283).

Pestalozzi trata, essencialmente, do desenvolvimento moral, mental e físico da criança. Defende a universalização da educação, a fim de promover a elevação do povo comum de sua ignorância. Baseado nessa crença, dedica a sua vida educacional ao trabalho com crianças pobres e segregadas.

Podemos resumir a importância dessas para a educação nas palavras de Luzuriaga:

Pestalozzi é, com efeito, o criador da escola do povo, da escola popular, não em sentido puramente caritativo, senão em espírito social. A família é, para ele, o núcleo primordial do qual surgem as demais instituições sociais. Mas a família não é suficiente como agente educador; necessita do complemento da escola e das demais instituições educacionais, que representam o meio vital social no qual cumpre educar a criança (1980, p. 175).

O interesse pedagógico de Pestalozzi está voltado, sobretudo, para a assistência às camadas populares. Acredita, como Rousseau, que a natureza humana é pacífica. Sendo assim, a educação conforme a natureza é um dos cernes da sua proposta de educação elementar. Por meio da educação moral, atingindo a consciência das pessoas, acredita na potencialidade de um mundo melhor, que possibilite a reconciliação de cada indivíduo com as leis da natureza (Markert, 1994b, p. 48).

Nesse sentido, Markert organiza a idéia de educação popular formulada por Pestalozzi a partir de dois fundamentos básicos: “a educação das classes mais baixas para a pobreza, na qual se pode desenvolver de fato a ‘humanidade com educação’ e a qualificação das crianças das classes mais baixas para o trabalho industrial consciente e moral” (p. 50).

Pestalozzi aposta na moralização das condições sociais por meio da interferência na situação individual das pessoas. Ao reconhecer que há uma natureza comum a todas as pessoas, entende que é importante estender o processo de formação também às camadas menos favorecidas, elaborando um conceito de educação popular que deve, segundo Markert (p. 53), atentar para a diferenciação das tendências entre as pessoas, de tal modo que os mais talentosos usem a dignidade de sua força e envolvam os menores talentos, convertendo-se em condutores e guias, a fim de garantir ao indivíduo a satisfação de perceber que se tornou aquilo que poderia se tornar.

2.4. A educação como instrução e o sujeito psicológico

Herbart10 é seguidor da tradição iniciada por Rousseau, Kant e Pestalozzi que, como ele, focaram as atenções sobre os conteúdos morais do processo educativo. O pensador entende a virtude como o fim maior da educação, obtida essencialmente por meio da disciplina que dirige a formação do caráter. Assim, Herbart se agrega com suas contribuições ao discurso de formação de um sujeito correto e virtuoso, capaz de ações boas e de promover o melhoramento social.

É considerado o fundador da corrente científica da Pedagogia. Formulou os passos formais da instrução, que se referem aos diferentes momentos da exposição e apropriação da matéria instrutiva. As etapas do processo seriam:

a) Preparação: momento em que as idéias de uma lição são trazidas promovendo o interesse pelo novo material;

b) Apresentação: apreensão e percepção do mostrado em termos os mais concretos possíveis;

c) Associação: momento do enlace das representações já existentes, de assimilação da idéia nova percebida pela antiga;

d) Generalização: momento conhecido como sistema, marcado pela ordenação e pelo pensar sistemático que deverá ser capaz de formular possíveis leis gerais tiradas da lição.

e) Aplicação: momento de desenvolvimento de método, exercício do novo conhecimento, e de referência do adquirido à realidade, à prática. A idéia nova se torna uma parte da mente funcional (Luzuriaga, 1980, p. 206; Ghiraldelli, 2000, p. 44).

A Pedagogia de Herbart, que não estabelece distinção entre instruir e educar, reveste-se de uma missão humanista e humanitária: for-mar o homem do futuro, modelar o homem universal (o sujeito epistêmico) por meio do desabrochar do individual, para que ele adquira autonomia moral. Para isso, apela para o despertar do interesse da criança, “pôr a educação em relação com a vida”, isto é, com o “mundo imediato da criança, partindo da velha sentença de não aprender para a escola, mas para a vida” (Luzuriaga, 1980, p. 206).

A originalidade de Herbart, conforme apontam Leif e Rustin (1968), está no restabelecimento da importância de um ensino sistemático de todas as ciências e áreas do conhecimento. Para ele, todo ensino tem por finalidade o desenvolvimento do espírito e a condução do homem ao caminho da virtude. Outro ponto central em suas idéias é a conciliação da individualidade e da universalidade.

O homem universal, o sujeito epistêmico da modernidade, não tem sexo, condição social ou temporalidade. No entanto, é preciso compreender que o homem seja uma pessoa real, concreta, sendo razoável que a educação respeite tanto quanto possível a individualidade, e o educador exercite o reconhecimento das marcas particulares da contingência desse indivíduo: a personalidade, a família e o nascimento.

Assim, “o pensamento livre e objetivo, orientado para a perfeição absoluta, poderá desenvolver-se, sem perder as raízes no real e na vida, da qual, bem ao contrário, determinará o sentido” (Leif e Rustin, 1968, p. 87).

 

3. Relações entre sujeito, racionalidade e discursopedagógico no contexto da modernidade

A partir das referências esboçadas anteriormente, poderíamos pontuar alguns elementos centrais do discurso pedagógico da modernidade secularizada:

• a afirmação plena da subjetividade e do conceito de sujeito epistêmico, compreendido na sua possibilidade de autoconstituição transcendental como perspectiva orientadora das ações educativas;

• a interferência do racionalismo e do empirismo na formulação de uma pedagogia científica e a conseqüente crença nos métodos e prescrições acerca do ensino como instrução;

• o conceito de educação com base no interesse natural da criança (contribuição central de Rousseau) e na educação dos sentidos;

• o conceito de educação como um processo, baseado na ação do sujeito – da qual derivam muitos conteúdos pedagógicos das pedagogias ativas e mesmo do construtivismo contemporâneo com a defesa de uma educação que atenda às particularidades de cada sujeito;

• a compreensão da existência de fases seqüenciais com características próprias de maturação que recomendam uma intervenção pedagógica condizente com cada etapa;

• a reconfiguração rousseauniana do conceito de infância como uma etapa com características próprias no desenvolvimento do sujeito;

• a idéia de universalização do acesso à educação formal que possibilitou o acesso das camadas populares à escolarização;

• a definição do crescimento moral, do cultivo da razão, da consciência e do livre-arbítrio do sujeito como objetivo de todo o processo educativo;

• a educação como via de formação de um sujeito capaz de procurar o bem, optar por ele e estabelecer uma sociedade boa, e a compreensão kantiana de que, para isso, a disciplina moral é fundamental;

• a prática pedagógica como possibilidade teleológica, marcada pela idealização do discurso pedagógico moderno como crença nas possibilidades advindas da educação do homem.

A consecução das promessas de emancipação do indivíduo e da sociedade, pretendidas pela razão iluminista, desembocam na incorporação ao cotidiano educacional de concepções pedagógicas forte-mente influenciadas pelo modelo de racionalidade derivado das ciências empírico-matemáticas. Essas sustentam o domínio dos sujeitos sobre os objetos, a adoção de uma racionalidade dedutiva, o predomínio de concepções empiristas nos modelos de ensino, a existência de currículos compartidos, racionalmente estruturados, seriados, burocratizados e a existência de conteúdos nem sempre vinculados às necessidades do mundo prático, legitimados por si mesmos ou por mecanismos de reprodução social.

Como já havia dito Kant, a prática educativa é própria dos seres humanos e visa ao sujeito em sua totalidade. A ação operativa do sujeito cognoscente aparece como inerente à condição humana e à sua forma de expressão. Sendo assim, tudo que se relacione com ações humanas leva o selo da expressividade do sujeito que conhece, pois atrás da ação está o corpo, a inteligência e as maneiras de compreender e perceber o mundo próprias de cada sujeito.

O sujeito pretendido pela modernidade é aquele que age conforme a razão e, por meio da educação, desenvolve a inteligência (poder racional reflexivo do sujeito epistêmico), racionaliza a vontade (sujeito moral) e se converte em cidadão por meio da inserção no mundo do trabalho (sujeito político).

A escola, como executora da promessa da modernidade, ou seja, responsável pela constituição de um sujeito autônomo, livre, superior, correto, virtuoso e justo, representa a expressão da necessidade de educar alicerçada pelo Iluminismo (Prestes, 1996), e instituída como uma função de emancipação do indivíduo que, dotado do esclarecimento (Aufklärung), seria capaz de melhorar também a sociedade como um todo.

O discurso pedagógico que se constitui a partir da modernidade, con-forme Prestes (1996), atribui à escola a função de reprodutora dos conteúdos culturais da humanidade. Esses estão continuamente entremeados pela tensão entre perspectivas emancipatórias e conservadoras (p. 55). A escola, por meio da educação formal, passa a reproduzir uma forma de compreender e dar sentido ao mundo, ao conhecimento e à própria vida, ditados pela racionalidade do século XVIII.

Esse caráter antinômico da escola indica que ela participa, a um mesmo tempo, das esperanças e das utopias modernas, mas contém em si o contrário dessa pretensão em função do processo de burocratização do sistema escolar, pontua Prestes. A escola se torna subjugada a uma razão subjetiva, que abafa os poros de comunicação com o mundo da vida, priorizando processos que, ao formalizar a compreensão da tarefa pedagógica, reduzem as possibilidades de sentido.

A escola é um espaço genuíno de condições favoráveis ao entendimento e de consideração dos apelos do mundo da vida, lembra Prestes (1996, p. 121-122). Porém, as formas burocratizadas e estruturais de organização, as hierarquias e apelos de poder perturbam e colonizam esse espaço. O mundo da vida é submetido a um universo de coações sistêmicas, fazendo com que as ações pedagógicas passem a ser dimensionadas prioritariamente pela racionalidade instrumental.

A relação entre educação e sociedade não pode ser instrumental. Oelkers, pensador alemão, pergunta qual finalidade poderá ser dada à educação quando esta não puder ser vinculada a uma utopia social. A educação é um campo fecundo para as utopias, para uma configuração teleológica da tarefa pedagógica, uma meta suprema que possibilite uma maior felicidade aos sujeitos. O perigo e a contradição residem justamente na tentativa de planificar o que não é planificável, o que por si mesmo termina apenas na proliferação da burocracia (1993, p. 42, 45, 48).

A sociedade capitalista moderna esboçou um desenvolvimento ideal da sociedade, como sistema de produção universal (Markert, 1994a, p. 29 e ss.), que promove a justa repartição da riqueza produzida a partir do justo critério do mérito individual e da capacidade, pois, como disse Adam Smith, o pai do Liberalismo Clássico, o trabalho é a principal fonte de riqueza na sociedade moderna.

A educação moderna está assentada no mito da ascensão social por meio da escola. No bojo da modernidade havia aqueles que defenderam a educação fundamentalmente para atender o interesse político e econômico da burguesia em ascensão, definindo o sentido prático que ela deveria assumir. Se o interesse maior do Estado burguês é assegurar o direito inalienável à propriedade, legitimada assim como um princípio próprio da racionalidade moderna, e a sociedade de classes como um sistema justo, a educação, como esforço sistemático e institucional, assume a formação individual com a força de um princípio unificador das oportunidades (Markert, 1994a, p. 17-18).

Ao possibilitar que o acesso ao legado cultural deixado pela humanidade seja universalizado por meio da escola, e ao permitir que todos conheçam, compreendam, exercitem e queiram cumprir seus direitos, haverá a possibilidade de que cada um desenvolva suas aptidões, competências e talentos, assegurando, assim, a verdadeira igualdade entre os cidadãos.

A modernidade implementou os sistemas escolares nacionais, geridos pelo poder público, com a tarefa de criar oportunidades de equiparação social, sendo um dos principais produtos pedagógicos constituídos a partir da modernidade pelo Capitalismo Liberal. Se a fortuna não foi distribuída de forma eqüitativa entre todos, os talentos e as competências independem de classe social. Podem, portanto, ser a alavanca do progresso pessoal para a superação da desigualdade de posses. O pensamento moderno acredita na possibilidade da harmonia social, obtida pela superação da consciência alienada da hierarquia social medieval e pela estruturação da hierarquia social como uma hierarquia de capacidades, universalmente distribuídas.

A educação deve ser um direito de todos, sem diferença de origem e fortuna, desenvolvida com o foco centrado no aprimoramento das aptidões e competências individuais, libertando em cada indivíduo o espectro de possibilidades que lhe habita. Assim, o sentido da educação está assegurado pela qualidade emancipatória das possibilidades humanas que, desenvolvidas, permitem o progresso pessoal e social. Ao universalizar o acesso à escola, diz Rouanet (1993, p. 22), as sociedades liberal-capitalistas generalizaram as oportunidades para que todos pudessem alcançar a razão autônoma.

Nesse ponto podemos inserir o alerta de Bourdieu (199811), sociólogo francês, ao analisar o peso das estruturas sociais na determinação das ações dos sujeitos. O autor ataca o discurso da pretendida “escola para todos”, que possibilitaria a equalização das diferenças sociais e a realização plena das potencialidades humanas, por meio da universalização do acesso à educação escolar, como pretendia o discurso pedagógico moderno. Segundo ele, ao contrário do que se pretendia, o sistema escolar “tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural” (p. 41).

Sendo assim, o sistema escolar disfarça mal a sua pretensa neutralidade, servindo, antes disso, como mecanismo reprodutor das relações sociais e de poder vigentes do que propriamente servindo como equalizador das diferenças de origem. Bourdieu é pessimista quanto à possibilidade de romper com as estruturas de reprodução dos sistemas escolares, e aponta para a as teorias pedagógicas como mecanismos de ocultação do poder reprodutor do sistema, manuseado pelos educadores. O discurso pedagógico representaria apenas uma igualdade formal, servindo como máscara e justificação para as desigualdades reais (p. 53).

Nessa perspectiva de alerta, Sacristán (1999) lembra que a reprodução dos conteúdos culturais precisa alcançar a produção do sujeito cultivado, não do sujeito que sabe repetir o texto que representa o objeto cultural. Esse limite da formação recairia no que Adorno denominou como semiformação12. A densidade cultural exige significação do aprendido, possível pelo exercício da consciência reflexiva, atributo da subjetividade emancipada pretendida pelos modernos.

A denúncia do estruturalismo reprodutivista de Bourdieu alertanos que o acesso à cultura objetivada em saberes escolares ocorre de forma desigual, pois existem obstáculos de origem que comprometem a atuação dos alunos. O autor utiliza o conceito de capital cultural para designar o nível cultural global da família e que tem relação direta sobre o êxito escolar, funcionando como uma diferença inicial que esvazia a pretensa equalização de oportunidades por meio da escola.

Os alunos das classes com melhores recursos econômicos aderem mais fortemente aos valores escolares e convertem êxito social em prestígio cultural. Nesse sentido, as classes populares, justamente as menos favorecidas no acesso aos bens econômicos, ficam prejudicadas. Bourdieu entende que a ação pedagógica impõe um determinado arbitrário cultural, que é a concepção cultural dos grupos e classes dominantes, homogeneizada socialmente por meio do ensino, funcionando como uma inculcação. Essa imposição arbitrária da cultura dos grupos dominantes estabelece uma lógica mercantil que universaliza um determinado pressuposto ou visão de mundo por meio do trabalho escolar.

Na perspectiva de Bourdieu, a expansão do acesso ao sistema de ensino, gerando um ensino de massa como via equalizadora das diferenças sociais, seria viável apenas a partir de uma transformação profunda do sistema escolar. Fora dessa condição, ao absorver alunos que não dispõem do capital cultural necessário para enfrentar as demandas da cultura convertida em saberes escolares, o sistema escolar entra em crise. Essa crise se efetiva no que poderia chamar de “queda de nível”, fato que se evidencia quando o sistema escolar passa a receber “um número cada vez maior de educandos que não dominam mais, no mesmo grau de seus predecessores” (p. 57). O resultado disso são os elevados índices de reprovação que, via de regra, resultam em evasão escolar, especialmente entre as classes populares.

A racionalidade moderna introduziu práticas pedagógicas que não levam em conta as contingências do processo educativo e, em particular, dos sujeitos envolvidos no processo, gerando transtornos e problemas a serem enfrentados com intervenções nem sempre adequadas, revestindo-se de um caráter exclusivamente classificatório, que exibe escores, limitando-se a premiar quem é bom e punir (ou mesmo excluir) quem não o é.

Esses mecanismos de funcionamento do sistema educacional representam, na compreensão de Sünker (1994, p. 90), uma degeneração do processo educativo, convertido em fórmula vazia ao interpretar a tarefa pedagógica como conversão de seres humanos em “experts”, reforçando a burguesia como elite no mundo do trabalho. Essa perspectiva funcionalista, que acentua a inserção no mundo do trabalho como tarefa primeira da formação, retirou muito do conteúdo crítico social da educação. A socialização, como possibilidade pedagógica, teve sua compreensão reduzida ao aspecto do trabalho, e a educação não conseguiu acolher, conservar e desenvolver um ímpeto crítico-social. Sünker lembra que, na formulação da modernidade, o apelo subjetivista veio antes do objetivismo. A razão instrumental ganhou predomínio diferente do que prometia na origem.

A educação moderna, chancelada pela racionalidade científica como critério de verdade e validade, encontra assentamento em conteúdos éticos e emancipatórios da razão iluminista. A tarefa educacional torna-se um mecanismo de libertação do indivíduo em relação à visão estreita que lhe impõem a família e suas paixões, e disponibiliza ao sujeito o conhecimento advindo da capacidade racional. A escola se torna o lugar de ruptura com o meio de origem para alcançar o progresso, o veículo de transição entre a esfera privada da família e a esfera pública dada pela sociedade.

A educação, a partir do século XVIII, aparece como um esforço intencional para converter os propósitos iluministas em realidade. A pedagogia que deriva desse nascedouro exige a consolidação e universalização das conquistas obtidas a partir da racionalização e desmistificação do mundo. Porém, verificamos dois resultados distintos dessa intenção. De um lado o atrelamento pedagógico a uma compreensão equivocada do sujeito individual e, de outro, o discurso não esclarecido sobre o que é ciência e conhecimento. Ambos acabam promovendo um desengate entre a racionalidade que penetra o discurso pedagógico e o mundo prático em que ele se insere.

A razão moderna acaba sufocando os conteúdos de liberdade ética, emancipação e melhoramento da humanidade que pretende cultivar. O conteúdo esperançoso da educação vai sendo, aos poucos, subsumido pela evolução da própria racionalidade moderna que, ao aprimorar os seus mecanismos de cientificidade, acaba apressando uma perspectiva de caráter funcionalista para a educação escolar. A metafísica da subjetividade colocou a razão sobreposta à tradição metafísico-teológica, ampliando a secularização do mundo e estendendo o domínio da técnica sobre o próprio homem e sobre a natureza.

A modernidade rompe com a unidade integradora de sentido dada pela tradição metafísica e teológica com a implementação do mecanismo causal para a compreensão do mundo (Hermann, 1999, p. 22), não sendo mais possível assegurar um sentido ético, já que a racionalidade moderna não tem condições de definir os conteúdos da moral como aspecto normativo. O que lhe é possível, e que constitui sua pretensão maior, é apostar na possibilidade de discernimento do sujeito e acreditar na razão como possibilidade de aperfeiçoamento moral (p. 32). Um mundo essencialmente ético, cercado pela idéia de bem como caráter universal (p. 36). O discurso da educação da virtude confere o sentido da ação pedagógica, que se vincula a uma compreensão da unidade e da universalidade do sujeito como possibilidade de autoconstituição, dentro dos pressupostos dados pela metafísica da subjetividade.

A ação pedagógica, no âmbito da racionalidade moderna, passa a ser encarada como uma ação teleológica de caráter estratégico, ou seja, atuando sobre um sujeito universal, o sujeito epistêmico. Nessa perspectiva, basta que sejam determinadas as condutas e definidas as contingências, a partir da organização científica das condições de reforço sucessivo, para que se alcance a modelagem de comportamento esperada. Os objetivos educacionais dizem respeito aos comportamentos esperados e não ao desenvolvimento das capacidades desse sujeito.

Sacristán sublinha que não é possível analisar a ação pedagógica do ponto de vista meramente instrumental, sem ver os envolvimentos do sujeito e as conseqüências que isso tem para a sua subjetividade. O caráter pessoal da ação não impede que se compreenda essa ação imbricada nas ações de outros sujeitos. A ação do sujeito, diz Sacristán (1999, p. 31-32), é sempre social, porque concerne a um processo interativo com outros sujeitos, em uma conjunção de atividades. Os envolvimentos psicossociais das ações indicam que existe um ambiente de cultura intersubjetiva derivado do contexto da iniciativa de cada sujeito. Os sujeitos compartilham entre si as propriedades comuns a um determinado grupo, formulando estilos de ação compartilhada que os diferencia, por sua vez, de outros grupos, constituindo uma identidade, seja por gênero, etnia, grupo social ou profissional sem que as singularidades se apaguem.

Para Sacristán, “a educação reveste-se inexoravelmente da condição humana, aproveita-se dela, afeta a mesma, é constituída por ela” (p. 32). E é justamente pelo fato de as ações educativas serem condicionadas pelo seu contexto social e subjetivo que não podemos apostar demais em procedimentos de apreciação objetiva que transcorram à margem dessa contingência. Os motivos pessoais e sociais, ao serem compartilhados, constituem alguma possibilidade de sentido à educação.

A ação teleológica é inerente às práticas educativas, funcionando como sua força motriz, especialmente, e diante de desafios que se colocam no cotidiano educacional e que exigem respostas comprometidas. Porém, a ação pedagógica não pode ficar restrita ao ponto de vista instrumental. A razão que liberta e constitui o sujeito, superando o mito da tradição metafísico-teológica, instrumentaliza-se e corrói os conteúdos próprios dessa liberdade que pretendia criar.

 

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Endereço para correspondência
João Francisco Lopes de Lima
Rua Pereira da Silva, 492/703 – Bloco B – 22221-140 – Laranjeiras – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: jfdlima@yahoo.com.br

Recebido em 20/04/02
Aprovado em 27/11/02

 

 

Notas

IMestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
1Como exemplo derivado dessa compreensão da prática pedagógica encontramos, em especial, a proposta de Maria Montessori. Ela pretende uma intervenção pedagógica a partir de uma organização científica do meio, apresentado em seqüências estáveis e contínuas, idênticas para todos os indivíduos, com a pretensão de assegurar resultados ao atuar sobre um sujeito universal. Para uma visão geral do seu pensamento ver: Montessori, 1965. Há ainda os trabalhos de Célestin Freinet e todos os produtos pedagógicos advindos da pedagogia ativa. Esses produtos organizam os trabalhos a partir da referência de um sujeito psicológico universal e apostam no otimismo do progresso da humanidade a partir dos pressupostos oferecidos pela ciência moderna. Sobre a pedagogia freinetiana recomendo Freinet (1995).
2Esse livro contém as preleções de Kant na Universidade de Königsberg, reunidas por Theodor Rink, seu discípulo. Esses cursos foram ministrados em 1776/77, 1783/84 e 1786/87 (Cf. Fontanella, no prefácio à edição brasileira, em 1996, da obra Sobre a pedagogia). Publicada em 1803 com o título Über Pädagogik (Sobre a pedagogia), “a obra tematiza a necessidade de criar o homem livre e autônomo, tendo por base a vida racional frente à pretensão de ensinar ao aluno a autonomia do julgamento e da capacidade de pensar” (Prestes, 1996, p. 36).
3Imperativo categórico, para Kant, se traduz como um princípio da racionalidade presente no sujeito, um mandamento da razão. Representa uma ação necessária por si mesma, sem relação com outra finalidade. É uma ação possível como boa e por isso necessária em si, “independente de qualquer intenção” (Kant, 1974, p. 218-9).
4Jean Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, na Suíça, oriundo de uma família de origem francesa. Entre suas obras importantes temos o Discurso sobre as ciências e as artes (1750) e o Discurso sobre a origem da desigualdade (1755), o Contrato social (1762) e Emílio (1762). Rousseau freqüentou poucos anos a escola. Teve uma vida desregrada, movida mais por impulsos, caprichos e sentimentos e menos pelos apelos da razão. Talvez se deva a isso sua tendência e apego ao sentimentalismo e sensualidade, e seus ideais de educação. Diz Monroe (1979, p. 255): “Em sua vida e em suas teorias, dominam as emoções mais do que a razão; os instintos e desejos naturais presidem a tudo. Mais tarde, baseado na experiência de sua vida, ensina que as idéias morais e religiosas não se podem desenvolver na infância e que mais se aprende em contato com a natureza do que da comunhão com livros ou da inteligência de outros; que o desenvolvimento apropriado só pode vir removendo-se todas as restrições e deixando as tendências naturais manifestaremse livremente”. Rousseau, além de suas contribuições para a educação, teve importante papel no processo revolucionário do século XVIII, fornecendo fermento para a Revolução Francesa, especialmente em sua fase jacobina, com suas teorias sobre a desigualdade e sobre a legitimidade das decisões políticas.
5As paixões, segundo Rousseau, dizem respeito ao amor a si mesmo e ao amor próprio. O primeiro, amor de si, é inato e perene, “sempre bom e sempre conforme a ordem” (1995, p. 235), responsável pela própria conservação do homem e por transformar instinto em satisfação das necessidades de sobrevivência. Transforma-se em “orgulho nas grandes almas, vaidade nas pequenas” (p. 238). O segundo, o amor próprio, é aquele que “se compara, nunca está satisfeito”, sentimento em que o indivíduo prefere a si próprio, estando em constante comparação com os outros “e o que o torna essencialmente mau é ter muitas necessidades e atentar muito para a opinião” (p. 237).
6Paixões não naturais, no pensamento de Rousseau, são aquelas derivadas do amor próprio e que, portanto, não concorrem para o aprimoramento da virtude que conduzirá o homem a uma vida feliz.
7Rousseau defendia a instrução particular, por meio de preceptores. Desenvolve uma idéia de educação longe dos sistemas oficiais de ensino. Para ele, a natureza da criança e o seu crescimento determinam o processo, enquanto que os meios são determinados pela experiência da criança.
8Ver a esse respeito a obra A epistemologia genética, de Jean Piaget (1973), na qual defende a idéia de que o conhecimento não pode ser concebido como algo predeterminado nas estruturas internas do indivíduo, nem nas características dos objetos, mas como resultado de uma construção efetiva e contínua da mediação dessas estruturas com as características dos objetos. Piaget vê no conhecimento uma elaboração contínua do sujeito.
9Johan Heinrich Pestalozzi (1746-1827) nasceu em Zurique, na Suíça. Foi um pensador da educação profundamente influenciado pelas idéias de Rousseau, especialmente por Emílio. Teve numerosa produção para a literatura educacional, sendo Leonardo e Gertrudes (publicado pela primeira vez em 1781) o escrito que causou maior influência. Conforme Monroe (1979) e Giles (1987), essa obra, escrita primeiro como novela, narra como Gertrudes venceu obstáculos para educar os filhos e livrar o marido, Leonardo, do alcoolismo. O epitáfio colocado em seu túmulo, expressa, conforme Luzuriaga (1980, p. 175), a síntese da sua obra educativa: “Salvador dos pobres de Neuhof; pregador do povo em Leonardo e Gertrudes; em Stanz, pai dos órfãos; em Bugdorf e Münchenbuchsee, fundador da escola primária; em Iverdon, educador da humanidade. Homem, cristão, cidadão. Tudo para os outros, nada para si. Paz a suas cinzas”.
10Johan Friedrich Herbart (1776-1841), nascido em Oldenburg, na Alemanha, teve formação superior e iniciou suas atividades educacionais como preceptor aos vinte e um anos. Ocupou, mais tarde, uma cátedra na Universidade de Göttingen (1805). Teve contato e influência com as idéias de Pestalozzi, a quem conheceu pessoalmente. Conforme Luzuriaga (1980), ninguém antes de Herbart assumiu tão claramente a tarefa de construir uma ciência da educação. Herbart formula uma pedagogia marcadamente intelectualista e individualista e defende a educação pela instrução. Seus dois livros fundamentais são: Pedagogia Geral deduzida do fim da Educação (1806) e A psicologia como ciência (1824/25).
11Os textos de Pierre Bourdieu utilizados aqui são de diferentes períodos e estão reunidos no livro Escritos de educação, publicado em 1998 pela Editora Vozes, sob a organização de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani.
12O conceito de semiformação é desenvolvido por Adorno no ensaio Teoria da Semicultura, concluído em 1959. Nesse texto, o autor fala dos sintomas de colapso da formação cultural pelo avanço da racionalidade técnica e denuncia as insuficiências das alternativas existentes no campo educacional. Para ele, a ausência de emotividade e o distanciamento que oblitera a possibilidade intersubjetiva tem vínculo direto com a técnica e com o isolamento do objeto na análise científica. A perspectiva cientificista reduziu a razão a um fim em si mesma. Assim, a semiformação consiste na danificação do processo formativo a partir da simplificação do processo de conhecimento, que descontextualiza o saber, tratando o legado cultural como mero verniz informativo, afastando o processo de reflexão e economizando o esforço intelectual do sujeito no processo de aquisição cultural. A cultura se converteu em um valor dissociado de nexo com a consciência, um bem em si mesmo, congelado em categorias fixas, mera erudição que perde o vínculo ético e converte o saber em mercadoria de consumo. A semiformação é sempre um estado informativo que pode ser borrado por outras informações. O contrário da semiformação seria a reflexão crítica profunda, dialetizada, que possibilite o desenvolvimento completo do processo de compreensão.