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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.14 São Paulo dic. 2002

 

ARTIGOS

 

O lugar das crenças e valores societais na formação da consciência política entre trabalhadores e trabalhadoras rurais sem-terra

 

The place of beliefs and societal expectations in the formation of political consciousness among workers and landless rural workers

 

 

Alessandro Soares da SilvaI

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo procura entender o lugar das crenças e valores societais na formação da consciência política de trabalhadores e trabalhadoras sem-terra vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-terra – MST. Para tanto, lançamos mão de dados recolhidos em acampamento de sem-terra situados em São Paulo. Nossa análise dos dados pautou-se no modelo analítico da Consciência Política proposto pelo psicólogo político Salvador Sandoval e na Teoria Social do self, de George Herbert Mead. Participaram deste estudo seis famílias de acampados do MST.

Palavras-chave: Crenças e valores societais, Consciência política, Movimentos sociais agrários, Participação política, Psicologia política.


ABSTRACT

The present paper tries to understand the place of the beliefs and societal expectations in the formation of political consciousness of workers and rural landless workers attached to the Movement of Landless Rural Workers – (Movimento dos Trabalhadores Sem-terra – MST). For that, data were collected in the landless workers’ acampamentos located in the state of São Paulo. The data analysis was accomplished taking into account the analytical model of Political Consciousness proposed by the political psychologist Salvador Sandoval and George Herbert Mead’s Social Theory of the self. Six MST encamped families participated in the study.

Keywords: Beliefs and societal expectations, Political consciousness, Agrary social movements, Political participation, Political psychology.


 

 

Partindo do modelo analítico de estudos da Consciência Política proposto por Salvador A M. Sandoval (2001) e discutido por nós em outras ocasiões (Silva, 2001a, b, c; 2002), apresentamos neste trabalho alguns dados acerca da dimensão das crenças e valores societais1 entre trabalhadores rurais sem-terra acampados2 na região do Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo, e vinculados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST.

Segundo as análises dos dados coletados por nós em pesquisa de campo realizada nessa região, entre os meses de fevereiro e março de 2001, que ora apresentamos, a dimensão das crenças e valores societais estão na base da construção das identidades coletivas nas quais os sujeitos estão inseridos. A partir do processo de internalização3 das instituições, das crenças, da cultura e dos valores construídos socialmente; mediante o diálogo interior vivido por cada sujeito, e que é pautado pelo que é internalizado, é que se dá a individuação do sujeito. Baseado nesse diálogo que o sujeito faz consigo mesmo (Silva, 2001a) é que ele responde à dinâmica social da qual faz parte e constrói conhecimentos, simboliza o conhecido e experienciado. Assim, podemos afirmar que o universo simbólico construído socialmente pelo sujeito “(...) tem suas raízes em suas experiências históricas de vida e da sociedade a que pertence” (Sandoval, 1994, p. 61).

 

Valores societais e cotidiano

Agnes Heller discute em sua obra Cotidiano e história questões ligadas à rotina da vida. Ao nascermos, imediatamente somos inscritos no universo das atividades cotidianas. Como diz Heller (1972) e Sandoval retoma (1994):

(...) os grandes eventos não-cotidianos da história emergem da vida cotidiana e eventualmente retornam para transformá-la. A vida rotineira é a vida do indivíduo integral, o que equivale a dizer que dela participa com todas as facetas de sua individualidade. Nela são empregados todos os seus sentidos, todas as suas capacidades intelectuais, suas habilidades para manipular o mundo objetivo, sentimentos, paixões, idéias e crenças (Heller, 1972, p. 71).

A vida cotidiana é segmentada e heterogênea. A segmentação do cotidiano manifesta-se na conduta e nas diversas complexidades de consciência desenvolvidos por cada sujeito. O mundo da vida cotidiana aparece naturalizado, como um mundo do imediato que é orientado pelo senso comum. O cotidiano é o lugar da continuidade ininterrupta, da estabilidade, onde a reflexão não se faz necessária, no qual a redefinição do simbólico não pode acontecer pelo fato de significar o rompimento desse contínuo. E é exatamente porque o cotidiano assim se configura que ele acaba por se tornar um espaço no qual crenças e valores societais tendem à cristalização e a única possibilidade de consciência possível é a consciência do senso comum (cf. Sandoval, 1994, p. 70). Em relação a isso Sandoval observa que: “A característica dominante da vida cotidiana é a sua espontaneidade. Isso equivale a dizer que a assimilação de padrões de comportamento, crenças sociais, pontos de vista políticos, modismos etc. é feita geralmente de maneira não-racional (não refletida)” (1994, p. 65).

Espontaneidade é, no pensamento de Agnes Heller (1972), uma tendência em todas as formas de atividades cotidianas. De fato, a manutenção da vida diária tornar-se-ia insustentável, caso todas as ações do sujeito exigissem algum tipo de reflexão. Contudo, ações refletidas colocam em xeque a rotina da vida diária. Podemos dizer, então, que o cotidiano impõe ao sujeito formas de pensar imediatistas, utilitaristas e, por que não dizer, pragmaticistas4, o que “(...) favorece o desenvolvimento do pensamento superficial” (Sandoval, 1994, p. 64).

O fato de o cotidiano estar marcado pelo pragmaticismo, pelo utilitarismo, pela visão de mundo naturalizada e pelo pensamento superficial, remete-nos a pensá-lo como um espaço alienante. Nele, o sujeito tende a viver conformado e alienado, visto que o exercício da reflexão, o questionamento da rotina não faz parte desse modo de vida, pelo simples motivo de que ao questionarmos o continuum da vida estamos causando-lhe uma ruptura, uma perturbação na ordem vigente. A esse respeito, Sandoval afirma que:

(...) a rotina cotidiana é aquele aspecto da realidade social que mais se presta à alienação, a qual se manifesta na co-existência silenciosa entre as tarefas envolventes do viver diário e da ordem social maior que o determina. Alienação é tipicamente expressada em suposições não-questionadas da inevitabilidade da rotina diária e o “natural” das desigualdades e dominação nas relações de poder na sociedade, tal como se encontram estruturadas. A aceitação espontânea de normas sociais e em última instância da estruturação de classes, desigualdades sociais, e submissão política disfarçada de “requisito” do viver rotineiro, podem ter o efeito de tornar o indivíduo um conformista na medida em que carece da instrumentação intelectual para um raciocínio sistemático e crítico, e das práticas diárias do exercício democrático de direitos e obrigações de cidadania. Essa alienação, evidenciada no fragmento da consciência das pessoas, é melhor ilustrada na dificuldade que têm de conceitualizar a estrutura social, a estratificação social e o regime democrático (1994, p. 64-5).

A estabilidade da sociedade capitalista está fundada na segmentação e insulação da economia da comunidade política. Há uma aparente compartimentação do político e do industrial, sendo esse último privado do caráter político. Entretanto, quando a ordem do sistema industrial é afetada, afetada também é a esfera política. Essa ordenação falaz e segmentada, naturalizada, da sociedade capitalista, tem sua estabilidade garantida pelo dissenso e pelo estreitamento da visão social. O controle social exercido sobre o trabalhador em sociedades industriais procura focalizar os descontentamentos na concretude da rotina da vida cotidiana ou em aspectos da arena política, eivados pelo populismo, evitando, assim, a “(...) discussão da natureza e do exercício do poder político” (p. 66).

Portanto, ao discutirmos a dimensão das crenças e valores societais, percebemos que essa dimensão encontra-se comumente ligada à espontaneidade da vida cotidiana. Quando essa ligação se estabelece, ela permite uma cristalização dessas crenças e dos valores societais; uma condição propícia à alienação e ao comodismo do sujeito em função da não-racionalidade das práticas diárias e da segmentação a que estas estão subordinadas. Essa conjuntura nos leva a reconhecer que a sociedade capitalista tem a tendência de fragmentar a consciência do indivíduo a partir de interpretações segmentadas de visões de mundo, impossibilitando a formação da consciência política. A única consciência política possível nesse quadro é, como já dissemos, a “consciência de senso comum”. Para que outras modalidades possam emergir, é impreterível que ocorra o rompimento da rotina, a introdução da reflexibilidade na vida do sujeito. Concordamos com Sandoval, quando afirma que: “é precisamente esse tipo de interrupção da estabilidade da vida rotineira no trabalho, na vizinhança e nas instituições (...) que aciona a mudança da consciência individual” (1994, p. 63).

 

Conhecendo o contexto da pesquisa: os sujeitos e asua realidade

Após essa breve discussão conceitual, passamos a apresentar alguns dos dados que nos conduziram a essa leitura no campo teórico. Assim, neste momento é preciso apresentar as famílias5 que contribuíram decisivamente para este estudo, bem como discorrer sobre as condições em que viviam. Trata-se de famílias que militam no Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST –, com diferentes níveis de comprometimento com os valores do movimento. Além da militância no MST, tinham em comum, na ocasião, o fato de viverem no mesmo acampamento, denominado Carlos Marighella.

Localizado no trevo de Euclides da Cunha Paulista6 – município mais conhecido como Porto Euclides – em outras ocasiões esse lugar foi palco de lutas de sem-terra. Durante o governo Montoro, estiveram acampadas no local cerca de 1500 famílias, que lutavam pela fazenda XV de Novembro. Mais recentemente, as quase 280 famílias que ali estiveram acampadas eram provenientes de cidades da região do Pontal do Paranapanema/SP, do norte do Paraná e do Paraguai. Estes são os chamados “brasiguaios”, ou seja, famílias de brasileiros que, movidos pela crise econômica brasileira, emigraram para terras paraguaias e lá tentaram a sorte.

Muitas não tiveram a sorte de obter o sucesso esperado naquelas paragens. Acabaram trabalhando de “bóia-fria” ou meiando algum pedaço de terra. A terra de sua propriedade muitas vezes não chegou ou, quando chegou, era muito pouca ou longe de escolas, hospitais e de difícil escoamento da produção. Sob essas condições, algumas delas regressaram ao Brasil depois de terem ouvido falar do sucesso alcançado por famílias de sem-terra que participavam do MST. Amigos, parentes e conhecidos já haviam sido assentados e isso era um indicativo positivo para que eles resolvessem voltar e enfrentar a dureza da vida de acampado na esperança de, desta vez, também serem agraciados com um pedaço de terra e as condições mínimas para produzirem.

Para que fizéssemos a escolha das famílias a serem entrevistadas, estabelecemos como critérios a procedência e o grau de militância. Baseados nesses critérios, e após efetuarmos o reconhecimento do campo, iniciamos o processo. Assim, a primeira família com quem tivemos contato foi a de Paraguai e Marta.

Ambos nasceram em Matelândia/PR, sendo que ele foi criado no Paraguai. O casal têm 4 filhos, sendo 3 meninas (de 3, 5 7 anos) e um menino (com 8 anos). Paraguai estudou até a 4ª série do primeiro grau (atual ensino fundamental) e Marta não chegou a freqüentar a escola e seus pais estão assentados no Paraná. A família de Paraguai e Marta é católica e costuma ter uma vida religiosa ativa. O casal sempre trabalhou na roça como “bóia-fria”, ou em empregos temporários. Paraguai provia o sustento da família e Marta o cuidado das crianças.

Ele coordenava um grupo no acampamento – o mais novo – e estava acampado no Carlos Marighella havia 2 meses. Constituiu-se inicialmente com 8 famílias vindas do Paraná, já militantes no MST, havia aproximadamente 2 anos, e que anteriormente viveram no Paraguai. Essas famílias também compunham o grupo de “brasiguaios” presentes no acampamento. Na ocasião de nossa chegada, participavam de seu grupo cerca de 37 famílias.

A família de Marta e Paraguai milita em movimentos agrários há 12 anos, iniciando no Paraguai no Movimiento Campesino Paraguayo (MCP) – espécie de versão paraguaia do MST brasileiro.

A segunda família com que tivemos contato foi a de Toninho e Cristina. Ela nascida em Jaraguá do Sul/SC e ele em Matelândia/PR. Estavam acampados no Trevo de Euclides havia 6 meses e, anterior-mente, estiveram no Paraná por outros 12 meses. Toninho e Cristina não são casados legalmente, ou no religioso, e não têm filhos. Na ocasião de nossa estadia entre os acampados do Carlos Marighella, fazia 2 anos e 3 meses que viviam juntos. Embora católicos de tradição, não praticam a religião.

Os pais de Cristina estão há 2 anos assentados em Itaúna do Sul/ PR. Ela foi a primeira a conhecer o MST, quando vivia com os pais no Paraguai. O movimento realizava, na ocasião, alguns trabalhos de base entre os “brasiguaios”. Dos que voltaram ao Brasil depois de participar desses trabalhos, estão os pais de Cristina e um irmão de Toninho, que logo foram assentados. Nessa época, ela acabara de iniciar sua vida com o marido e, por isso, não participou da experiência de acampada junto com sua família, nem dos trabalhos de base realizados pelo MST no Paraguai. Ela só veio ver os pais depois que estavam assentados no Paraná. Ele participou de alguns dos trabalhos de base realizados pelo MST em terras paraguaias.

Antes de ingressarem no MST, Cristina e Toninho trabalhavam como arrendatários no Paraguai, produzindo soja. A partir de trabalhos de base feitos por integrantes do MST paranaense com os “brasiguaios” no Paraguai, e depois de verificarem a realidade da vida de parentes e amigos que já haviam ingressado no movimento, ambos resolveram buscar uma vida melhor. Segundo ele, “a gente veio prá conferi e achou que é uma realidade, onde que a gene tá integrado hoje” (sic). Para Toninho, outro dado que contribuiu na tomada de decisão de deixar para trás a condição de arrendatário e filiar-se ao movimento foi o fato de que, na vida de arrendatário,

“(...) teve muita exploração, né. Até mesmo pela situação financeira, onde fez a gene saí buscar uma vida melhor, né. (...) A exploração mesmo e a necessidade, né?! Um pedaço de terra pra sobreviver, pra ter uma vida mais digna; onde a gente construir uma vida melhor, né. Foi esse que fez a gente se integrar ao MST. Hoje, hoje em todos os lugar, apesar de a gente estar em outros país, em todos os países a exploração continua igual. Não tem dúvida nenhuma!” (sic).

Nossa terceira entrevista foi com Aloísio. Nascido em Luanda/ PR, estudou até a 7ª série do ensino fundamental. Ele é um dos militantes que acompanhavam mais de perto o acampamento Carlos Marighella. Solteiro7, integra o MST desde outubro de 1999, tendo ingressado no movimento do Paraná, onde militou por 5 meses; sofreu dois despejos e, depois desse período, transferiu-se para o MST do Pontal do Paranapanema, no qual milita há pelo menos 11 meses.

Antes de se filiar ao movimento, trabalhava como “(...) vendedor autônomo, marreteiro em Curitiba” (sic). Desde os 18 anos vive na cidade com esporádicos retornos ao campo como “bóia-fria”, trabalhando durante o período do corte da cana-de-açúcar. Sua família era meeira no norte do Paraná, produzindo café. O abando do campo e a conseqüente migração para a cidade se deu em função da crise do café vivida no final da década de 80 do século XX. A esse respeito, Aloísio relata o seguinte:

“Nóis paramo de trabalar, porque meu pai era meiero, né, nóis tocava o café de a meia aqui no norte do Paraná. Nóis paramo de tocá café porque naquela época caiu um poco o preço do café, né, e não compensava pros donos de... de terra dá mais o café pá... pá toca. Não compensava pá gente tocá mais já também, né. Em 1988... Daí nós paramos, como nós paramos de tocá, eu comecei a trabalhá cortando cana, trabalhar de “bóia-fria”, depois comecei a cortar cana pá usina... E meus irmãos foram embora, né, já tinham, já eram de maior, eles foram embora pá cidade a procura de emprego” (sic).

Seu primeiro contato com o MST se deu pela televisão. Na época, a prisão de Diolinda, companheira de Zé Rainha – casal de líderes muito combativos no MST do Pontal – fora muito veiculada pela mídia e o fato chamou-lhe a atenção, visto que o comentário entre o povo era de que ela não era culpada. Na época, ele já começava a pensar em ingressar no movimento e o motivo maior era a falta de perspectivas de trabalho na região.

A quarta família entrevistada foi a de Marília e Amaral. Ela, filha de assentados da Gleba XV de Novembro, nasceu em Euclides da Cunha Paulista; ele é mecânico de profissão. Ela completou o ensino médio e ele não chegou a concluir a quarta série primária. A experiência de Amaral no campo foi como “tratorista” e como diarista. Marília coordena o setor de saúde do acampamento, tendo intensa participação religiosa na Igreja Congregação Cristã do Brasil e busca, durante a entrevista, superar possíveis contradições existentes entre a fé professada e a condição de sem-terra. Ele já foi mais atuante nessa religião.

Apesar dela ser filha de acampados, não chegou a acampar com a família. Durante a luta dos sem-terra da Gleba XV de Novembro, quem ergueu o barraco foi sua mãe e seus irmãos mais novos. Com 13 anos ficou com o pai, que continuava trabalhando em um sítio para garantir o sustento da família acampada. Como ela era a filha mais velha, teve de assumir a casa e o cuidado do pai.

Ele conheceu o MST “(...) por intermédio de conhecimento dos otros (...) os amigos da gente que já foram acampados nos começo e que adquiriram tamém já as terra, né” (sic). O sucesso que tiveram essas pessoas foi fundamental para que ele se convencesse que o movimento era uma saída viável para ele e a esposa, que viviam com dificuldades na cidade de São Paulo. Ambos vinham com esse propósito há muito tempo, “(...) só que tudo tem a hora certa, pra tudo tem a sua hora certa. (...) a gente resolvemo, inclusive a gente tava até na cidade, nóis tava em São Paulo, nóis morava lá. Aí resolvemo assim de uma hora pra outra. Ela falô ‘vamo’ e eu falei ‘vamo’” (sic).

A quinta família entrevistada foi a de Helena e Osmar. Ela nasceu em Tambuara/PR, estudou até a 5ª série do ensino fundamental e é casada há 19 anos. Ele é de Paranavaí/PR e também estudou até a 5ª série. Flávio, o filho mais velho, nasceu em Paranavaí e estudou até a 8ª série. O filho Ernesto nasceu em Naviraí/MS, concluiu o ensino fundamental e está cursando o 1º ano do ensino médio. Cleverton nasceu em Dourados /MS e está na 5ª série do ensino fundamental. O caçula, Osmarzinho, está estudando na quarta série do ensino fundamental.

Antes de ingressarem no MST, Osmar trabalhou de caminhoneiro por 14 anos e Helena dedicou-se ao lar e à criação dos 4 filhos. A experiência que tiveram com a terra foi como “bóias-frias”, e remonta aos períodos de infância e adolescência do casal. Os filhos têm sua primeira experiência com a terra agora, como acampados.

Da mesma maneira que Aloísio não encontrava na vida de “bóiafria” perspectiva de futuro, Osmar e Helena também não. Ele relata a dureza de sua juventude no campo e o desejo de uma vida melhor, menos sofrida. A vida na cidade, o profissionalizar-se foi o que o orientou para deixar o campo. O trecho que segue é um bom exemplo dessa angústia social vivida por eles:

“Eu trabalhava assim pros outros aí com meu pai e minha mãe arrancando mandioca, sacar café, bóia-fria também Aí eu nunca mais quis... eu vi que não dava, não tinha futuro, sei lá. Eu peguei e segui a carreira de caminhão. Aí eu achei que mudar de idéia era melhor. (...) Não é que eu saí da terra. A gente é jovem, tem outra cabeça, né? Eu achava que eu queria uma posição. E achava que naquela época, ser da roça não seria uma profissão. Então eu me apeguei a uma profissão, aí eu disse: ‘Bem, agora eu sou caminhoneiro. Que eu posso...’. Porque se fosse para mim garantir na época tratar da mulher e do filho, eu achava difícil, né? Quando chovia não tinha emprego, que é que você ia fazer” (sic).

Para Helena, a vida na cidade era uma necessidade de sobrevivência, já que a vida no campo tinha se mostrado mais difícil até então. Contudo, ela continuava a cultivar a esperança de regresso, esperando uma oportunidade. Ela tinha claro que “trabalhar assim pros outros não dá futuro né, de bóia-fria” (sic). Ela casou-se com Osmar aos 15 anos e foram viver na cidade logo que “ele arrumou emprego e nós foi levando a vida, empurrando, empurrando...” (sic). Osmar traduz esse “empurrar” da esposa da seguinte forma:

“Aí é a molecada crescendo... Você vê, a situação na cidade começa a complicar. Porque você começa a trabalhar, trabalhar, trabalhar e eles são pequenos, tudo bem, dá para você ir levando. Agora, daqui a pouco começa. O estudo vai ficando mais caro, não é mesmo? ’Cê não agüenta pagar. A comida: caro. Tudo que vê quer comprar. ‘Ah, eu quero um tênis. Um chinelo. Uma calça’. A gente comprava a crediário pra os dois grandes. ‘Vamos acabar de pagar pros dois grandes para comprar pros dois pequenos’. Quando a gente acabava de pagar pros grandes, que ia comprar pros pequenos, acabou de pagar já não tinha mais nada, acabou! Igual a doido! Não tem nem como” (sic).

O MST foi essa oportunidade esperada. Como disse Helena, eles foram “empurrando” a vida na cidade “até que surgiu a oportunidade. A gente conheceu umas pessoas que conversou com a gente sobre os sem-terra e agora na hora que os filhos estão tudo grande a gente achou que seria bom vir para cá” (sic).

Edir e Renato são a sexta e última família entrevistada. Como as famílias de Paraguai e Marta, e de Cristina e Toninho, eles também são “brasiguaios” e estiveram acampados no Paraná antes de migrarem para o Pontal do Paranapanema.

Renato está vivendo com Edir, sua segunda mulher, há onze anos. Ele tem duas filhas do primeiro casamento (Adriana,14; e Juliana, 13). Elas vivem com a avó no Paraguai. Com Edir, teve outros quatro filhos (Claudemir, 10; Claudinéia, 9; Claudirene, 8; e Claudecir, 4). Não freqüentou a escola e aprendeu na vida o pouco que sabe ler e escrever.

Edir nasceu no dia 26 de outubro de 1970. Como Renato, Edir também teve outro casamento e teve outros dois filhos. Apenas um continua vivo (Claudinei, 13) e mora com a avó. Ela estudou até a segunda série primária. Antes de se agregar ao MST, não tinha uma boa impressão do movimento. Da mesma forma que os demais entrevistados, a idéia de bagunça, miséria e desordem compunha seu imaginário. É a experiência concreta que lhe possibilita a re-significação da imagem do movimento:

“Eu comecei a conhecer agora que nós viemos pra cá, porque antes, quando eu morava no Paraguai, eu falava ‘Ui, aquele pessoal do MST lá vai pra lá pra passar fome’. Vai outros, ia e voltava, porque dizia que não dava pra ficar no acampamento que era muita bagunça, muita baderna, essas coisa, que passava fome e voltava.Daí, foi um homem daqui pra lá que era assentado lá em Santo Ângelo, no Paraná, que falou ‘Ih, nossa! Vocês podem ir pra lá que eu garanto que daqui a três mês vocês vão tá com suas terras, sem conflito, sem ocupação. Cês vão lá pra cima do assentamento que onde nós tá, de lá o Incra pega vocês de lá e leva pra cima das terras. Tem mercado por aqui que fornece um ano à pessoa, tem muito serviço’. O que arranca de mandioca lá pra nós é um absurdo, porque nós não conhecia mandioca. Lá nós trabalha com café. Só café e boi” (sic).

Segundo Renato, o que o fez acampar na região do estado do Paraná foi o fato de que, estando na região do Paraguai colhendo café, falaram-lhe “(...) que no acampamento era muito bom, principalmente no estado do Paraná” (sic). As atrativas informações sobre os acampamentos e a promessa de receber rapidamente a terra mostraram-se convincentes. Observemos esse trecho, em que ele conta a vinda e a expectativa de receber a terra em breve:

“E daí a gente veio, né. Até vir eu não conhecia nada. Eu porque eu nunca tive nessa vida, nunca conheci nada. Aí diz que no estado do Paraná a gente acampava, com três mês tinha terra.(...) Quem falou isso aí foi um rapaz que já era acampado. Inclusive diz que quando ele tava com dois mês pra três mês ele já teve terra” (sic).

 

Crenças e Valores Societais: organizando a vidadesses sujeitos

Feito o reconhecimento do campo e a análise contextual das famílias que contribuíram para esse estudo, passamos agora a procurar entender os modos com que crenças e valores societais atuam na construção da consciência política destes sujeitos, a partir de seus depoimentos.

Como assinalamos anteriormente, as crenças e valores societais que se encontram na base da consciência política de nossos sujeitos muitas vezes mostram-se naturalizadas e vinculadas ao senso comum. Esse nos pareceu ser o caso das famílias de Helena e Osmar, e de Marília e Amaral. Tais crenças e valores societais são quase inques-tionáveis e estão dispersos na vida desses sujeitos, tornando-se quase impossível sua percepção para eles. Muitas das crenças são apreendidas social-mente em tão tenra idade, que quase equivalem a verdades de fé. Outras vezes, são superadas diariamente mediante as experiências grupais, as experiências da luta por seu quinhão de terra e, de maneira mais ampla, pela reforma agrária. Superá-las significa desnaturalizá-las. Dessa maneira, a experiência vivida entre os sem-terra por esses sujeitos pode quebrar não apenas a rotina diária alienante, mas as impressões cristalizadas de cada um, na medida em que eles desenvolvem a atividade crítica própria da consciência política, durante o processo contínuo da luta e permanência na terra.

Esse último quadro pode ser percebido na afirmação de Paraguai a respeito da sua experiência no MST. Para ele, viver junto ao movimento “muda o jeito da pessoa” (sic). Exemplo dessa mudança é o próprio Paraguai. Ao retomar sua história de vida, ele assinala crenças com as quais eles se deparam freqüentemente, cada vez que as pessoas lhes lançam olhares cheios de preconceitos. Muitos dos acampados já o fizeram também. Antes de ingressar entre os sem-terra, Paraguai via essa gente como vagabundos, preguiçosos etc. Coincidentemente, esses adjetivos são os mesmos utilizados pelos fazendeiros que bus-cam destituir esses sujeitos da legitimidade de suas lutas (cf. Silva, 2002, p. 1-46). No depoimento de Paraguai, essa revisão crítica é clara:

“O movimento eu acho que o jeito, ele, ele muda o jeito do cara, né, porque, por exemplo, quando eu era assi soltero assi anda assi de aqui pra lá eu chamava até devagabundo o movimento, sabe. É a turma que tava assi acampada assi que entra na terra dos outro. Eu chamava até de vagabundo; eu chamava até de vagabundo. Daí eu vi, eu vi como que era a situação. Daí um dia eu cheguei ali no acampamento, sabe, no acampamento cheguei, e vi criança, não tinha nada prá comê, chegô, veio uma chuva. De aí fiquei, encostei nele, encostei o caminhão, eu trabalhava com caminhão daquele veis, encostei o caminhão ali e oiei e daí o meu coração parece que funcionou de outro tipo, sabe?! Daí eu cheguei, falei pra muié, olha ali chegou um monte de pessoal ali assim assi. Eu tinha uma roça de mandioca, uma roça de batata, siempre tinha, né. E aí eu disse pra muié: vô chamá um doi pessoa prá vim arrancá essa batata ali, prá ajudá. Encostei fui a lá e chameio ali... Daí chamei o pessoal ali, veio ali, veio ali arranco batata, mandiooca pra ajudá. Foi lá no Paraguai esse aí, né. E ajudei muita gente. E de aí entrei no movimento e foi memo, e até agora eu tô” (sic).

Parece-nos que, no caso deste entrevistado, houve um processo de desnaturalização de certos conteúdos, de certas crenças e valores societais. A desnaturalização a respeito do que significava ser um semterra se dá mediante a aproximação daquela gente sofrida. Ao emergir um sentimento de solidariedade, de identificação, Paraguai revê suas posturas a respeito do que representa ser sem-terra. No momento que nota a situação-limite pela qual aquelas pessoas passavam, e daqual ele próprio não estava distante. É a partir dessa reflexão, compartilhada com a esposa, que a decisão de aderir ao movimento campesino paraguaio é tomada.

Desde que ingressou na luta, Paraguai tem, junto com a família, enfrentado situações extremas para sobreviver e permanecer na luta. Ao falar das dificuldades passadas no acampamento, identifica a doença como sendo um dos fatores de maior dificuldade. A doença é identificada assim não somente por causa das condições propícias existentes no acampamento – visto que não há uma infra-estrutura adequada que garanta as condições mínimas de alimentação e saneamento para esse povo –, ela encabeça o rol das dificuldades porque ele próprio teve de enfrentar a doença que atacara sua filha Verônica e sua mulher. Com essa situação adversa, e até mesmo limite, instalada em sua casa, tivera de assumir o cuidado da casa, das crianças e da mulher adoentada. E para agravar ainda mais, via-se desempregado, sem nenhum trabalho para prover remédios e outras necessidades. Vivia da parca ajuda de parentes.

Nesse contexto, Paraguai diz o seguinte: “(...) como eu falei prá você: na luita sim terra a gente tem que ser macho pra agüentar; se não, não agüenta!” (sic). Ora, quando ouvimos um homem falar de sua “macheza”, logo imaginamos que se refere ao seu potencial sexual, à sua capacidade de comandar o “sexo frágil”, ao poder que socialmente ele possa deter como membro do “sexo forte”. Porém, no caso de Paraguai, ser macho é ser corajoso para se manter na luta, apesar de todas as adversidades que se abatem na vida de um acampado. E essa frase não se encontra restrita aos homens, mas ao conjunto de acampados – aos homens e mulheres que ingressam na luta. Assim, todo acampado e acampada é macho, na medida em que se faz capaz de enfrentar as dificuldades dessa vida e de superá-las.

Dessa forma, aquilo que poderia ser – e até mesmo pode ter sido – um ato de fé na masculinidade, uma frase reveladora acerca da crença societal no poder do patriarcado, em verdade revela-se um testemunho de alguém que foi capaz de desconstruir valores societais naturalizados. Em outras palavras, de alguém que foi capaz de superar a cadeia da ideologia vigente. Tal rompimento indica que Paraguai possui um entendimento político-ideológico a respeito da importância e equivalência de homens e mulheres nessa luta. Essa postura não é a mesma que normalmente é encontrada entre os homens do campo. Habitualmente homens demonstram atitudes machistas, as quais são repostas pelas próprias mulheres. Esse não é o caso de Paraguai e Marta.

Por outro lado, certas passagens dos relatos de Marília demons-tram a busca de uma explicação transcendental que justifique seu estado de sem-terra; que garanta a harmonia entre as práticas do movimento a que se filiara e suas convicções religiosas. Ela participa da Igreja Congregação Cristã do Brasil, que tem por princípio não se manifestar ou envolver em questões políticas, por serem mundanas. Quando ela se refere às injustiças que os sem-terra sofrem em função da concentração de terras por parte dos grileiros, ela busca a validação dessa luta nas Escrituras Sagradas. Vejamos: “Eu acho que existe mesmo no caso dessas terras devolutas. Na Bíblia tem, né, as terras devolutas” (sic).

Ela naturaliza as práticas que desenvolve cotidianamente ao lançar mão da Bíblia. Os valores societais que norteiam sua vida e lhe permitem ingressar e perseverar no MST estão vinculados ao contexto místico do movimento. Quando lhe pedimos que esclareça como a questão das terras devolutas é tratada na Bíblia, ela responde que não sabe onde isso está, mas que uma amiga que é crente lhe exortara a saber. Entretanto, a angústia gerada pelos conflitos que rompem a natural harmonia do cotidiano lhe incomoda. Ela busca com todas as forças encontrar uma resposta que lhe garanta a manutenção de suas crenças religiosas e dos valores societais que embasam sua vida. Vejamos:

“Eu nunca li, né, mas eu tenho uma colega minha, ela é muito crente, assim sabe, ela lê ali e eu sou mais assim, né. E ela falou para mim que tem, até falou onde é que é, e eu nunca li. E tem na Bíblia, fala sobre as terras devolutas. ‘Ah, Marília, tem que acontecer, tá na Bíblia’. Agora eu não sei se é assim, com brigas, né, com essas coisas todas. Agora é que as coisa estão andando mais. Não tá precisando mais de briga eessas coisas. Nós estamos até aqui, mais lá. É eles lá, como direção tão trabalhando muito em cima disso aí” (sic).

Diferentemente de Paraguai, Marília apresenta dificuldades para perceber as questões político-ideológicas, para trabalhar as tensões decorrentes das oposições que surgem entre crenças religiosas e a filiação ao MST. Marília atribui à direção do movimento regional as funções de resolver as contendas existentes entre fazendeiros e semterras e de conseguir as terras sonhadas por ela. Assim, as lideranças assumem, nesse contexto, uma dimensão salvífica, à semelhança daquela de Cristo. A imagem das lideranças naturalizada dessa forma torna dispensável uma participação política mais efetiva por parte dela e de seu esposo.

Um outro trecho em que as crenças e valores societais marcam decisivamente a vida da família de Marília e Amaral pode ser visto durante o momento do diálogo em que a questionávamos se já havia testemunhado atos de violência, quem seriam os autores etc. Sua resposta nos surpreendeu, pois ela defendia a garantia da ordem e a obediência; a não-resistência dos trabalhadores rurais. Para ela, resistir significava romper a harmonia que ela busca a partir da vivência religiosa. Ao fim do diálogo, pergunto-lhe sobre as palavras de ordem do MST, que são o oposto daquilo que ela defendia. Ela celebra as palavras de ordem, sem se dar conta de sua própria contradição. A vivência na luta e a vivência religiosa fazem com que seu espírito crítico se choque com as crenças e valores societais apreendidos na Igreja. Observemos o diálogo em questão:

“A: Me conta uma coisa, quando há violência, quem será que é o autor da violência?

M: Quando há violência?

A: É, quando acontece em assentamento ou em ocupação, quem que comete essa violência?

M: A maioria é os fazendeiros. Eu nunca vi, mas o que a gente ouve falar que é os fazendeiros, aí o pessoal vai aí um pouco também, né, pede para sair da área e o pessoal fica ali, resiste. Aí é onde acontece alguma coisa.

A: É errado resistir na ocupação?

M: Eu acho que sim, né. Porque é a lei e a gente tem que cumprir. Se eles chega e fala que a gente tem que sair, não adianta querer enfrentar, que só prejudica a gente mesmo.

A: E no lugar de resistir, a gente deveria fazer o quê?

M: Ah, eu acho que chegou e pediu para desocupar, a gente sair, tem que sair. Igual acontece aqui no rumo do Paraná, que eles fala que resiste. Mas pra cá eu nunca vi acontecer nada. Quando o policiamento chega, o pessoal tudo sai.

A: Eu lembrei do lema do MST. O MST teve um lema que era ‘terra na lei ou na marra’ e o lema de hoje é ‘ocupar, resistir e produzir’.

M: O lema de hoje?

A: É. O que você acha desse lema?

M: Se não acontece isso... é ‘Ocupar, resistir e produzir’?

A: É. Ocupar terra, resistir nessa terra e fazer com que essa terra que você tá ocupando seja produtiva, dê frutos. O que você acha desse lema?

M: Legal. É isso mesmo. Se não for assim, a gente nunca vai conseguir alguma coisa”.

É interessante notar que nesse conjunto de crenças e valores defendidos por Marília, e que se põe antagonicamente aos valores do MST, há a busca da paz interior, do equilíbrio. Ela não gosta “de coisa errada. (...) Gosto das coisas tudo certinho” (sic). Ela gosta da harmonia e das coisas naturalizadas na sociedade e sofre com a condição de antagonismo vigente na sociedade. Assim, a percepção de adversário e de interesses antagônicos existentes entre os diversos grupos sociais implicados na questão é obscurecida pela tensão estabelecida entre suas crenças religiosas e sua vivência na luta.

Posição diferenciada à de Marília pode ser observada na fala de Marta, na qual narra como eles enfrentaram a lei, na figura dos policiais, no ímpeto de alcançar a justiça social representada pela posse da terra. Para Marta, resistir é fundamental. Para ela, “certinho” é a distribuição da terra, o fim do latifúndio, a aquisição de uma vida digna para ela e sua família. Podemos notar que a poli-tização de Marta atua como um antídoto a posturas naturalizadas no espaço políticoideológico. Vejamos:

“Cheguemo só com a ropa lá do corpo e a brusinha de frio, era muito frio naquele tempo, né. Daí nois cheguemo e fiquemo num quartinho assim, lá na fazenda, né. E as polícia tudo veio pra cima de nois, né. E daí nois falemo: ‘Não, aqui nois vamo ficá.. Voceis pode saí’. Falemo pras polícia. Daí fiquemo lá. Sei que aquele... fiquemo treze dia sem nada, né, passando frio... [Sabino junta-se e diz: ‘comida’]... ixi, passando fome, né, cas criança” (sic).

Apesar de todas as dificuldades encontradas no período de ocupação da fazenda Querência, eles não desistiram. Pelo contrário, ocuparam, resistiram e produziram naquela terra enquanto lhes foi possível. A visão de mundo dessa família é reflexiva, crítica e engajada.

Já a visão de mundo da família de Amaral e Marília está calcada nas crenças e valores societais de origem judaico-cristã. Para o casal, o que garante o sucesso da luta é a caridade cristã, que é gratuita e “não olha a quem faz o bem” (sic). Essa condição a priori, que aparece nas falas do casal, está em oposição à leitura dialética feita pelo movimento, a qual está inscrita entre as tradições cristã e materialista histórica de origem marxista. A fala que segue foi proferida por Amaral e nos mostra o peso da tradição judaico-cristã na constituição das crenças e valores societais do casal:

“Hoje tem pessoas aqui no acampamento que se souber que tá faltando a comida no prato do outro, às vezes não dá para ele. E eu não tô dizendo isso para dizer que eu sou melhor do que todo mundo. Tem uma parte na Bíblia que Deus fala: ‘Dê a esmola com a sua mão direita sem que a sua mão esquerda possa vê’. Mas eu já fiz isso muito aqui. Já fiz não. Eu não fiz nada. Deus que me deu e eu comparti com quem precisava. Mas já cheguei, aqui, saber de pessoas que estão necessitadas e eu pegar meu carro, às vezes eu não ter dinheiro para fazer as compras para a pessoa, mas eu comprar uma parte e sair pedindo para os meus amigos o resto das coisas para poder completar uma cesta para dar para às pessoas aqui em baixo. Tô dizendo pra dizer que eu não sou melhor do que ninguém. Porque hoje ou amanhã pode faltar na minha também e alguém fazer isso por mim também. E se fosse assim, era mais legal” (sic).

A solidariedade proposta por ele é oriunda de um processo de conversão (metanóia) e visa lograr a vida eterna e a justiça divina, sendo ela de natureza teleológica. A solidariedade proposta pelo MST é de outra ordem. Ela é resultante do processo de conscientização de cada sujeito, conduzindo-os às práticas e ações coletivas.

A família de Osmar e Helena nutrem uma visão paradisíaca acerca da vida no campo, do acampamento, da luta. De modo mais claro, podemos dizer que cada sujeito identifica-se com sua posição de classe sem deixar de ser solidário com outros grupos com os quais tenha um convívio mais intenso, ou com quem comungue interesses contextuais.

Salvador Sandoval aponta para o fato de que a configuração da consciência que se encontra ainda vinculada ao senso comum, como é o caso de Helena e Osmar, “(...) induz a uma percepção da ação como contingência dos fatores situacionais e geralmente predisposta a evitar conflitos” (Sandoval, 1994, p. 70). Faz-se mister ainda enfatizar que a vida cotidiana, a percepção paradisíaca de seu aqui e agora, tem sua sustentação nos benefícios que esperam lograr nessa empreitada. Identificamos tais benefícios como sendo da ordem econômica (terra, insumos, assistência técnica) e política (programas públicos que garantam os benefícios econômicos, um grupo capaz de se mobilizar independentemente de sua participação).

Como já pontuamos, uma importante questão que perpassa o conjunto de crenças e valores societais de grande parte dos acampados é a da resolução pacífica e negociada dos conflitos. Atribui-se às lideranças o poder e o dever de resolver harmonicamente as questões de disputas existentes entre eles e os grupos oponentes. Enquanto isso, os demais membros do movimento que compõem as “esferas inferiores” assumem a postura de espera, aguardando a tomada e a comunicação vertical de decisões tomadas por aqueles que detêm o poder para fazê-lo. Essa expectativa se concretiza no imaginário dos acampados quando eles entendem que a inexistência de conflitos significa a superação das contradições e conflitos que perpassam as lutas travadas no campo brasileiro. A entrevista feita com Amaral contém alguns indícios importantes a esse respeito. O trecho seguinte é um exemplo adequado desse quadro:

“Já faz. Cada vez que passa, melhor fica. De um modo geral, a gente acha que o MST melhorou. Por exemplo, antigamente acampava na beira da estrada, pensava que quebrava e tomava. Agora não, já ta melhorando, é mais pacífico, já aguardamos decisões. Creio que assim vai melhorando, cada vez melhora mais. (...) Para mim, melhorou bastante. Eu tô achando que tá bom. Mudou, para melhor. Pelo menos a gente tem sossego. O que nós todos precisa mais é isso aí” (sic).

Visivelmente, a situação vivida hoje nas fileiras do MST parece estar em um momento muito diferente daquele vivido pelas famílias de Andradina, Sumaré, Gleba Macali, que deram os primeiros passos para a constituição do movimento. Enquanto aquelas famílias estavam presentes em todo o processo decisório, as famílias do MST acampadas no Pontal do Paranapanema/SP, pelo que pudemos perceber por meio de nossas observações feitas nos acampamentos Dorcelina I e II, Fusquinha, Che Guevara e Carlos Marighella, colocam-se passivamente, atribuindo e/ ou delegando essa atividade às lideranças. Elas, de modo geral, acomodam-se e alienam-se dos processos políticos por terem presente a crença na capacidade de negociação das lideranças, a ponto de se acomodarem e não participarem tão ativamente do processo de luta no campo. Poucas são as famílias, como a de Paraguai, que assumem ou desejariam poder assumir um papel mais efetivo nas decisões tomadas na luta. Enquanto resistir era um dado fundante para os pioneiros do movimento, percebemos que uma parcela considerável dos acampados do Carlos Marighella comungam da posição de Amaral, que entende que apenas “às vezes tem que reagir” (sic); em geral, melhor é aguardar as decisões das lideranças.

 

Considerações Finais

Parece-nos significativo que, para que possamos encerrar este trabalho com um certo êxito, do ponto de vista do cumprimento daquilo que nos propusemos aqui fazer, discutamos o lugar das crenças e valores societais na construção da consciência política desses trabalhadores rurais. E, ao dizermos “desses”, não queremos apenas particularizar a análise aqui feita, recortá-la segundo esse caso particular. Ao procedermos desta maneira, estamos apontando para o fato de que as dimensões da consciência, entre as quais crenças e valores societais encontram-se, não são estanques e articulam-se entre si, muitas vezes se interpenetrando. Assim, pensamos que as dimensões da consciência, propostas por Sandoval, devem ser interpretadas à luz de um procedimento dialético. E interpretá-las assim implica em dizer que a forma com que as consciências políticas se constituem diferenciam-se segundo a realidade sóciohistórica de cada sujeito particular ou coletivo. Portanto, o lugar de cada uma dessas dimensões pode e deve variar segundo cada caso.

Neste sentido, podemos dizer as crenças e valores societais, bem como as demais dimensões da consciência política, são informadas por conteúdos diversos que estão inscritos sócio-historicamente na vida de cada sujeito e grupo, atuando de modo diverso segundo a capacidade de complexificação da realidade de cada um. No caso das famílias do MST acampadas no Carlos Marighella, a dimensão das crenças e valores societais atua como base para a constituição de uma identidade coletiva.É a partir do conjunto das crenças e valores identificados na conduta do outro que se estabelecem redes de solidariedade e a conseguinte identidade coletiva, na qual a arena política assim como o sentimento de eficácia e ineficácia política, atuam como fio condutor durante a construção e manutenção dessa identidade coletiva. Portanto, entendemos que as crenças e valores societais são a base permanente para a des-re-construção da identidade coletiva, possibilitando sua ação coletiva.

Assim, poder-se-ia dizer que essa dimensão ocupa um lugar dereferencial ideológico. À medida que os sujeitos particulares e coletivos vão ressignificando valores e crenças mediante sua interação com o outro, com o grupo, à medida que eles vão se fazendo objetos de si mesmo e reorganizando suas pautas interiores, os conteúdos da consciência política são deslindados em suas dimensões, aumentando a complexidade da configuração da consciência. Esses sujeitos podem vivenciar uma transformação na complexidade de suas consciências, deixando a realidade do senso comum e alcançando configurações de caráter revolucionário, como no caso de Paraguai, Marta e Aloísio.

Não obstante, as crenças e valores societais podem promover um fechamento do indivíduo ao novo e, portanto, uma cristalização da consciência política. Casos assim dificultam o estabelecimento de laços sociais duradouros e, muitas vezes, conduzem as relações do sujeito com o movimento de modo a este não ser mais do que um trampolim para a aquisição de bens que, sozinho, ele não obteria – no caso, a terra. Assim, entender essa dimensão é fundamental para que se possa compreender os processos psicossociais e psicopolíticos presentes na construção de uma consciência política e de sua respectiva complexidade, bem como dos caminhos percorridos pelos sujeitos rumo à participação política, à adesão em ações coletivas.

 

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Endereço para correspondência
Alessandro Soares da Silva
Rua Augusta 737/84 – 01305-100 – Consolação – São Paulo/SP
tel.: (11) 3129-4888; 9727-0183
E-mail: psicopol@ig.com.br

Recebido em 02/07/02
Aprovado em 29/04/03

 

 

Notas

IFilósofo licenciado pela PUC-MG; Mestre e Doutorando em Psicologia Social pela PUC-SP.
1Conforme discutimos anteriormente (Silva, 2001a; 2002), a consciência política é constituída por sete dimensões que se interrelacionam de modo dinâmico e dialético: crenças e valores societais; identidade coletiva; sentimentos antagônicos e identificação de adversários; sentimentos de eficácia política; sentimentos de justiça e injustiça; metas de ação coletiva e, por fim, vontade de agir coletivamente.
2Acampamentos de trabalhadores sem-terra são temporários e estão submetidos a certas condições geopolíticas de manutenção. No presente caso, o acampamento por nós estudado já não existe mais.
3A internalização é pensada aqui a partir da Teoria Social do Self de G. H. Mead (cf. a esse respeito Mead, 1972; Sass, 1992; Silva, 2001a; 2002). Mead entende que o self “(...) surge e se estrutura a partir de interações sociais, (...) mediante a experiência singular de cada sujeito realizada no processo social. O self, então, ocupa um papel relevante no cenário da organização social, visto que integra a subjetividade (experiência singular de cada sujeito) e a objetividade (espaço de interação social, da coletividade). Assim, o self é organizado no interior do processo social. O sujeito existe, ativamente, no interior desse processo social.” (Silva, 2001a, p. 72).
4Sandoval escreve que “(...) o imediatismo do pensar e do comportamento quotidiano obscurece a diferença entre o ‘possível’ e o ‘correto’, tanto quanto no comportamento diário tende a reduzir o correto ao possível e, em decorrência, a encobrir as questões de direito de cidadania e moralidade política. Assim, a atitude cotidiana é tipicamente pragmática. Essa falha na racionalidade e a ênfase no pragmaticismo se refletem no caráter fragmentário do pensamento das pessoas combinando a mescla não-sistemática de material cognitivo e juízos superficiais de valores, convertendo a pressa no ‘desejável’ a eficiência no ‘natural’, na medida em que as opções de comportamento delas lhe permite continuar no ritmo do dia a dia com um mínimo de perturbação.” (1994, p. 64). O termo pragmaticista está sendo aqui utilizado conforme o senso comum, e não na acepção da filosofia pragmática norte-americana da qual G. H. Mead foi um dos sistematizadores. (cf. Sass, 1992)..
5O nome dos sujeitos que contribuíram para este estudo são fictícios.
6A mobilidade é uma importante característica dos acampamentos de sem-terra. O tempo que as famílias ficam acampadas em um mesmo lugar depende de inúmeros fatores. No caso do acampamento Carlos Marighella, muitas das famílias que lá estavam já haviam acampado no Santa Rita (trevo de Teodoro Sampaio/ SP), por exemplo. Em 2000 o MST regional desfez o acampamento Santa Rita e organizou acampamentos menores, entre os quais estavam o Dorcelina I e o Carlos Marighella, em áreas escolhidas pelo movimento para ocupação. As famílias foram reunidas nos acampamentos segundo a região em que prefeririam viver quando assentadas. À medida que a negociação das áreas era confirmada, saíam grupos de famílias desses acampamentos, para ocupá-las, pressionar o governo e evitar que outros movimentos saíssem à frente ou que o governo assentasse famílias que não estivessem participando da luta. Enquanto estivemos no Pontal, pudemos acompanhar o nascimento de dois novos acampamentos, um oriundo do Dorcelina (Dorcelina II) e outro do Carlos Marighella (Porto X, que ocupou fazenda de mesmo nome no município de Euclides da Cunha Paulista).
7Apesar de Marcos não preencher os critérios estabelecidos para esta pesquisa, decidimos inclui-lo pelo fato de ser uma liderança expressiva e de notório reconhecimento entre os acampados do Carlos Marighella.