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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.14 São Paulo dic. 2002

 

ARTIGOS

 

Reflexões sobre a criação e o fechamento de um hospital-dia no contexto da reforma psiquiátrica em São Paulo1, 2

 

Reflections about the creation and closure of a day-hospital in the psychiatric reform in São Paulo

 

 

Laura Belluzzo de Campos SilvaI

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho tem como objetivo relatar o processo de criação, funcionamento e fechamento de um Hospital-Dia da rede pública estadual, situado na cidade de São Paulo, que há dez anos vinha oferecendo atendimento de qualidade a psicóticos, neuróticos graves e seus familiares, segundo todos os critérios exigidos pela reformulação da assistência psiquiátrica no país: desospitalização, integração do usuário à comunidade e ressocialização, por meio de intervenção em equipe multiprofissional centrada em uma visão multidisciplinar da doença mental. Além da intenção de deixar registradas a indignação e a perplexidade diante do desmantelamento de um equipamento que vinha funcionando bem, é interesse deste artigo analisar os efeitos paradoxais das políticas públicas de saúde mental no Brasil, situando-os nas linhas de força clínico-políticas mais amplas que constituíram a configuração atual do campo psiquiátrico.

Palavras-chave: Políticas de saúde mental, Reforma psiquiátrica, Hospital-dia, Equipe multiprofissional.


ABSTRACT

The aim of this work is to give an account of the creation, running as well as the closure of a public state’s government’s Day-Hospital, located in São Paulo City, which had been offering assistence of quality to psychotics, severe neurotics and their relatives, according to all criteria required by the Psychiatric Assistence Reform in the country: dehospitalization, the user’s integration with the community and resocialization, through a multidisciplinary staff’s intervention focused on a mental illness multidisciplinary outlook. Apart from having the intention of registering the indignation and perplexity face the dismantling of a piece of equipment which had been working properly, this article is interested in analizing the paradoxal effects of the public mental health policies in Brazil, placing them in the broader strenght lines which formed the present psychiatric area configuration.

Keywords: Public policies of mental health, Psychiatric reform, Day-hospital, Multidisciplinary staff.


 

 

Introdução

No início da década de 80, Paulo Delgado constatava ter havido uma mudança significativa no discurso oficial relativo à assistência à saúde mental no Brasil, afirmando que “o modelo de atendimento centralizado no asilamento – público ou privado – deixava de ser objeto da crítica solitária de alguns setores da psiquiatria brasileira, para se tornar algo unanimemente condenado nos documentos oficiais sobre a matéria” (Delgado, 2001, p. 172).

Alertando para o fato de que a mera mudança no discurso não significava modificação concreta das instituições, o autor enfatizava a necessidade de os profissionais de saúde assumirem a direção dos rumos da assistência à saúde mental no país, destacando a importância dos “trabalhadores psiquiátricos de um novo tipo” para que esta transformação ocorresse. Para o autor, a presença desses trabalhadores representava não apenas a simples incorporação efetiva da multidisciplinaridade, até então discursiva, mas a possibilidade de incorporar à questão da saúde mental, até então rigorosamente contida nos muros de um saber hegemônico marcadamente corporativo, seus aspectos sociais e políticos. Por essas razões, Delgado antevia que a década de 80 seria de profundas transformações na assistência psiquiátrica no país, o que de fato acabou ocorrendo.

No final do século XIX, a quase totalidade das verbas destinadas à saúde mental era destinada aos hospitais psiquiátricos públicos3. A partir de 1964, essa situação se agravou com a celebração de convênios com os hospitais psiquiátricos privados. O tipo de tratamento oferecido, caracterizado pelas reinternações sucessivas e pelo tratamento farmacológico, fazia com que esses hospitais se assemelhassem a verdadeiras “fábricas de internações”, em que a loucura passou a ser a fonte geradora de lucros para os empresários da saúde mental. No início da década de 70, foram feitas algumas tentativas de mudança, vindas tanto dos órgãos oficiais quanto de ações concretas, que não obtiveram muito êxito. A investida mais consistente contra essa situação partiu de Luís Cerqueira, em 1973, que, à frente da Coordenadoria de Saúde Mental da Secretaria da Saúde, iniciou uma série de mudanças proibindo as internações no Juquery, criando prontos-socorros para internação de curta duração e firmando convênios com as cadeiras de psiquiatria das faculdades de medicina, no sentido de conter as internações na rede privada. No curto período em que esteve à frente da coordenadoria, Luís Cerqueira sofreu uma resistência enorme e não conseguiu efetivar as medidas que se propôs. O trabalho iniciado por ele seria retomado dez anos depois:

Em 1983, assume o governo do Estado de São Paulo um partido, na época, de oposição, com o compromisso de produzir mudanças em todos os setores de competência do Estado, entre estes, a saúde mental. Tendo como princípios gerais a universalização do atendimento, a descentralização das decisões, a regionalização da assistência e a integração e hierarquização dos serviços (atenção primária, secundária e terciária), a Coordenadoria de Saúde Mental propunha uma prioridade de investimentos com o objetivo de ampliar a rede extra-hospitalar, implantar equipes multiprofissionais e promover uma melhoria na qualidade de assistência dos hospitais-asilos psiquiátricos (Yasui, p. 49).

Assim como Delgado, Yasui também aponta que, além da mudança política, talvez o fato mais importante tenha sido a contratação, por concurso público, de centenas de profissionais de diferentes formações, muitos deles jovens recém-saídos das universidades, que assumiram a tarefa de implantar as novas propostas assistenciais com crença e entusiasmo. Crença e entusiasmo que talvez estivessem presentes, naquele momento, em toda a sociedade brasileira, que expressava, no movimento pelas eleições diretas, a afirmação de sua cidadania e a vontade de participar na definição dos rumos do país. No âmbito da saúde mental, essa vontade de participação se concretizou com a realização do I Congresso de Trabalhadores de Saúde Mental (1985), promovido pela Coordenadoria de Saúde Mental de São Paulo, no qual teve início a Plenária de Trabalhadores de Saúde Mental, que no ano seguinte organizou o II Congresso de Trabalhadores.

A partir de 1986, com a Nova República, muitos dos movimentos que tentavam implantar uma política séria e consistente de assistência à saúde mental foram desarticulados. Várias experiências inovadoras que vinham sendo implantadas nos hospitais-asilo, tanto do Rio de Janeiro quanto de São Paulo, foram alvo de ataques autoritários.

No final de década de 80, com a eleição de uma prefeita de um partido de oposição em São Paulo, foram efetivadas novas ações, a partir da Proposta do Modelo Integral em Saúde Mental do Município de São Paulo, 1989. A experiência de implementação da rede de saúde mental, que visava a “desnaturalização das formas segregativas e violentas de ‘administração’ da doença mental” (Vieira e col., 1999, p. 1) e mobilizava à ação coletiva, pressupondo equipes e seus projetos, encerrou-se em junho de 1996,

com a implantação definitiva do Plano de Atenção à Saúde (PAS) que produziu, entre outros resultados, um violento desmantelamento de muitas das equipes multiprofissionais, com a transferência compulsória dos profissionais que não aderiram ao plano, e a inevitável alteração das concepções e organização dos serviços (p. 1).

Três décadas se passaram desde que as primeiras manifestações da Reforma Psiquiátrica ocorreram no Brasil. Esse período, marcado por avanços e retrocessos, culminou com a aprovação, em 2001, da Lei Paulo Delgado, que proíbe a internação de novos pacientes em manicômios. Talvez seja uma boa hora para perguntar que mediações entre o discurso oficial e a prática concreta dos trabalhadores de saúde mental interferem nesse contexto, e questionar que forças estão atuando nesse movimento, capazes de desenhar novas configurações no cenário da assistência psiquiátrica no Brasil.

O fechamento de um Hospital-Dia da rede pública estadual, que há dez anos vinha funcionando segundo todos os requisitos exigidos pela reformulação da assistência psiquiátrica no país, no final do mesmo ano em que a lei foi aprovada, e a forma paradoxal como esse fechamento ocorreu, pareceu-nos um acontecimento significativo para refletir sobre essas questões.

 

De que lugar falamos?

Toda opção teórica e metodológica impõe ao pesquisador possibilidades e limites. Contra a ilusão de que existe um ponto de vista ideal, a partir do qual se desvenda a verdade, e contra a falácia do dado objetivo, acreditamos que todo dado é construído por uma visada teórica e por um determinado manejo metodológico, orientados por uma postura ética. Isto posto, resta justificar a opção.

Tomamos como ponto de partida para reflexão fatos que se impuseram sem planejamento e que, evidentemente, não são passíveis de repetição em um experimento controlado. Consideramos o fechamento do Hospital-Dia um acontecimento no plano micropolítico suficientemente potente para ser tomado como um analisador do contexto mais amplo (Guattari, 1985, p. 66).

Não seria possível, no espaço de um único artigo, fazer uma exposição detalhada do rearranjo de forças provocado pela aprovação da Lei Paulo Delgado no plano macropolítico (entendido aqui como as disputas de saber e poder entre os agentes e instituições que compõem esse campo, tais como: hospitais psiquiátricos públicos e privados, órgãos gestores de saúde pública, universidades, ONGs etc). Caso o leitor se interesse por uma visão mais ampla desse contexto, sugerimos a leitura de um trabalho anterior (Silva, 2002).

Feito o recorte, o procedimento metodológico utilizado para a apreensão dos fatos foi necessariamente o relato dos discursos, afetos e ações dos atores envolvidos, “de dentro”, a partir da vivência da autora e de sua implicação ética, política e profissional – na dupla condição de trabalhadora de saúde mental e pesquisadora da área – com o atendimento aos pacientes, com a luta pela melhoria da saúde pública e com a vontade de compreender, esclarecer e intervir no que se passava. Caso contrário, de que outra forma teria sido possível ter acesso à força expressa nas injunções paradoxais e na falta de transparência do discurso oficial perante os trabalhadores, tão evidentes nos relatos?

Por outro lado, como adotar a suposta postura de neutralidade, que certas perspectivas de ciência ainda advogam, acreditando que ciência e poder não se misturam? A intenção de demonstrar que é possível inventar novas formas – mais humanas, criativas e comprometidas com a vida – de lidar com o sofrimento psíquico nunca é só uma questão clínica; é, também, ética e política, de lutar para que se criem ou se mantenham as condições para que esse novo modo de tratamento ocorra. Como defender tudo isso sem estar visceralmente comprometido com a questão? Será que, para evitar o risco da parcialidade, seria melhor deixar o acontecimento permanecer apenas na memória ou cair no esquecimento daqueles que o vivenciaram? Será que não é também dever daqueles que pertencem à academia e dispõem de seus recursos registrar e refletir sobre acontecimentos desse tipo, possibilitando que eles venham a público para debate?

 

A criação do Hospital-Dia

O Hospital-Dia (HD) foi fundado em agosto de 19914, por um Conselho formado pelo diretor e um grupo de profissionais composto por psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, que contaram com o suporte de um analista institucional especialmente contratado para esse fim. A partir dessa mudança, que visava a transformação da instituição a partir “de dentro”, o Hospital Psiquiátrico – que até então funcionava como um grande asilo feminino5 – passou a contar, além do Hospital-Dia, com uma enfermaria masculina e uma feminina, um lar abrigado e um centro de convivência.

Em conjunto com o analista institucional, os profissionais que fundaram o HD instituíram o trabalho em equipe multiprofissional e a horizontalização da hierarquia, o que possibilitou, a um só tempo, questionar o lugar hegemônico ocupado pela psiquiatria e pelo psiquiatra, e incluir efetivamente os trabalhadores da equipe de apoio como agentes terapêuticos. A equipe multiprofissional iniciou o atendimento aos primeiros pacientes a partir da elaboração de uma grade de atividades.

 

O funcionamento

Os cinco primeiros anos de funcionamento do HD foram marcados por um processo intensivo de reflexão dos membros da equipe sobre as diferentes concepções teóricas e técnicas que norteavam as práticas de atendimento aos doentes. Ao longo desse período, os profissionais que compunham a equipe multiprofissional buscaram continuamente redefinir o objeto de suas práticas, visando a integração das diferentes perspectivas teóricas sobre a doença mental e as diversas práticas de intervenção, passando a desenvolver um trabalho semelhante ao proposto pela Psicoterapia Institucional, tal como instituída por Jean Oury e Félix Guattari, em La Borde (Silva, 2001).

Coerente com essa proposta de intervenção, o projeto elaborado pela equipe do Hospital-Dia visava oferecer aos pacientes um espaço de escuta e continência ao sofrimento psíquico – nos termos de Oury: “o acolhimento do insólito”. Para isso, o espaço de atendimento deveria possibilitar a emergência da palavra, dos afetos e o estabelecimento da transferência. A grade de atividades correspondia à necessidade de criar espaços heterogêneos que favorecessem a comunicação e vinculação dos pacientes em seus diferentes momentos dentro da casa, funcionando como uma espécie de rede de objetos transicionais que lhes eram oferecidos.

A grade era composta por grupos de: salão de beleza, culinária, ginástica, esportes, música, teatro, dança, mural, redação de contos, leitura, ikebana, pintura em tela, mosaico, bijuteria, tricô e crochê. Havia ainda a assembléia e as reuniões, em que se discutiam casos clínicos e questões da equipe. Além disso, eram oferecidos grupos de psicoterapia, de medicação e de família; psicoterapia individual; psicoterapia nuclear de família; consultas médicas individuais (psiquiátricas ou clínicas); e visitas domiciliares. Ao longo desse período, a equipe passou por três supervisões clínico-institucionais. Estavam previstas ainda atividades culturais e de lazer, tendo sido realizados passeios e piqueniques em parques públicos como o Zoológico e o Ibirapuera; viagens ao litoral; visitas a exposições de arte e museus; apresentação do coral e de peças de teatro por pacientes e funcionários, em eventos externos e nas festas internas realizadas em datas comemorativas, que eventualmente contavam com a presença de familiares e pessoas da comunidade.

A equipe multiprofissional era composta por três psiquiatras, dois psicólogos, duas assistentes sociais, uma terapeuta ocupacional e uma enfermeira; contava ainda com a participação da equipe de apoio formada por duas auxiliares administrativas, duas auxiliares de enfermagem e quatro auxiliares de serviços gerais. Nos últimos anos, o Hospital-Dia passou a contar ainda com um clínico geral, que atendia os pacientes agendados duas vezes na semana.

Aberto de segunda a sexta-feira, no período das 8h às 17h, oferecia três refeições diárias: café da manhã, almoço e lanche da tarde. Dispunha de 60 vagas para psicóticos e neuróticos graves, de ambos os sexos, na faixa etária de 16 a 60 anos. Em função do tipo de atendimento oferecido, eram admitidos preferencialmente usuários provenientes da região, cujos familiares se dispusessem a acompanhar o tratamento.

O Hospital-Dia funcionou durante dez anos, ao longo dos quais vínhamos obtendo resultados bastante significativos, tanto em termos clínicos quanto de reinserção social. O trabalho era reconhecido pelos pacientes, pela comunidade, pela direção do hospital, por professores e estudantes universitários, por vários assessores da Secretaria da Saúde – que estiveram no HD inúmeras vezes a título de visitas, palestras, fóruns, pesquisas e vistorias. As cenas que se seguem ilustram o que afirmamos acima.

 

Cenas do cotidiano

A equipe

Antes de tudo, uma constatação aparentemente ingênua, mas de grande valor heurístico: os pacientes gostavam de vir ao HD, e nós, profissionais, gostávamos de estar lá e do trabalho que fazíamos. Fato que se mostra mais relevante se considerarmos as condições precárias em que trabalham os profissionais nesse contexto: baixos salários, inexistência de plano de carreira, além de preconceitos associados ao funcionário público, visto como alguém que “faz corpo mole”, que não trabalha – não só por pessoas de fora da instituição, mas, muitas vezes, pelos próprios superiores. Embora nos ressentíssemos dessa precariedade, éramos recompensados de outra forma.

O tratamento

Quando chegou ao HD, Antonio6 tinha 32 anos e estava em crise. Para freqüentá-lo, precisava ser trazido e levado pela mãe, já idosa. Muitas vezes se recusava a ir, dizendo que queria ficar em casa, ao lado da mãe. Em seus surtos, gritava muito e se estapeava. Sempre que isso acontecia eram feitas diversas tentativas no sentido de acalmálo: uns tentavam conversar com ele, um médico aumentava a medicação, outro receitava um placebo, às vezes alguém perdia a paciência e gritava com ele. Muitas vezes não foi possível mandá-lo de volta para casa. Quando piorava, era preciso mantê-lo internado por alguns dias na enfermaria.

Certo dia, durante uma dessas crises, aproximei-me dele e intuí que toda aquela gritaria parecia o choro de um bebê. Decidi investir nessa imagem e passei a andar com ele pelo corredor, de um lado para o outro, como se o estivesse ninando. Surpresa, percebi que o paciente não só parara de gritar, como me acompanhava, de uma ponta a outra do corredor. Depois disso, quando ficava agitado, alguém andava com ele do mesmo modo; começamos a notar que o paciente melhorava. Algum tempo depois, Antonio passou a ingerir muita água, a ponto de provocar vômitos. Esse comportamento estranho preocupava a todos. Uma vez, enquanto ele se “entupia” de água, perguntei por que fazia isso. Apontando o corpo na altura do pescoço, disse-me que a água já havia atingido até aquele ponto, e que precisava beber até preencher o corpo todo. Depois disso, parou de agir dessa forma e passou a trazer uma sacolinha com uma garrafa grande de plástico cheia de leite. Ao longo do dia tomava várias vezes diretamente da garrafa, como se fosse um bebê. Mais tarde, abandonou a “mamadeira” e passou a trazer uma pipa, que empinava no quintal. Algum tempo depois, Antonio começou a ir e voltar sozinho para casa, e iniciou uma psicoterapia individual. Ao longo desse processo, foi possível compreender que os gritos e os tapas que se infligia ocorriam quando se sentia atacado pelo perseguidor que tomava conta de seu corpo. Ao longo do tempo, fomos entendendo as situações que faziam com que ele entrasse em crise, quando sentia que seu corpo se desintegrava e se colava às coisas: objetos ou pessoas negras, tal como era a figura de seu perseguidor; coisas ou dias muito quentes; grandes espaços ou multidões como as dos estádios de futebol.

Pouco a pouco, Antonio melhorava; já conseguia participar de algumas atividades no HD, sem necessidade de novas internações. Temíamos o que poderia lhe acontecer caso a mãe, que vinha mal de saúde, morresse – o que de fato ocorreu. Contrariando nossas expectativas, ele não só suportou bem a perda, como passou a morar sozinho na casa em que até então vivera com ela, contando com a ajuda dos irmãos, o que só se tornou possível após uma série de intervenções da assistente social. Com o acompanhamento do psicólogo da equipe, Antonio chegou a se inscrever em um curso de violão. Ultimamente retomara a escrita de seus poemas e letras de música, e iniciara a digitação desse material com a ajuda da psicóloga.Tinha “arrumado” sua primeira namorada, Rosilde, outra paciente do HD.

Rosilde tinha 32 anos e era uma paciente de quem, muitas vezes, estivemos a ponto de desistir, tantas foram as dificuldades que impôs ao tratamento. Recusava-se sistematicamente a permanecer no HD; xingava e agredia com um ciúme feroz todas as mulheres novas que chegavam; atirava-se com uma fúria suicida/homicida na frente dos ônibus, atravessando a avenida movimentada sem olhar; despia-se em público e provocava brigas na rua. Quando já estávamos quase desistindo, chegou um novo médico que, com sua escuta e com o grupo de teatro que montou, propiciou que Rosilde escrevesse uma peça, que depois foi encenada em uma festa de final de ano. No grupo de contos, Rosilde passou a criar longas histórias e, ultimamente, já era capaz de cuidar melhor de si e dos outros.

Ao chegar ao HD, aos 35 anos de idade, José não falava. Segundo a mãe, tinha parado de falar aos 15, desde que o pai, julgando que tivesse cometido uma desobediência, dera-lhe uma surra violenta. José freqüentava o HD assiduamente, mas permanecia quieto, calado em seu mundo próprio, pouco participando das atividades. A mãe, doente e idosa, comparecia pouco, o pai já era falecido. Fez-se, então, uma visita domiciliar, na qual foi estabelecido um contato com a irmã com quem ele morava, que passou a freqüentar o grupo de família regularmente. José demonstrava grande orgulho pela participação da irmã. A partir daí, passou a se interessar pelas atividades e, para nossa surpresa, pouco a pouco, voltou a falar. Nos últimos tempos, além de conversar, enquanto fazia colares no grupo de bijuteria, sorria e cantava.

Ana chegou ao HD aos 58 anos, acompanhada pela mãe, que desejava interná-la definitivamente pois, como “sabia que ia morrer antes da filha” (sic), não queria deixá-la sem apoio. Além da esquizofrenia, Ana apresentava rebaixamento intelectual, o que lhe conferia aparência de infantilidade, apesar da idade. Em suas crises, costumava sumir de casa e a mãe, uma senhora bastante rígida, dizia que não se intrometia na vida da filha, não indo procurá-la. Por vezes, em seus acessos de fúria, Ana destruía todos seus objetos e a mãe não interferia, dizendo que, já que os objetos lhe pertenciam, a filha podia fazer deles o que bem entendesse.

Ao longo das sessões no grupo de família, a mãe expressava todo seu desprezo e indiferença em relação à filha, chegando a causar um certo mal-estar nos outros participantes. Certo dia, relatou que a filha, mudando seu comportamento até então habitual de destruir apenas o que era seu, dirigiu um xingamento a ela, que pela primeira vez lhe deu uma surra. O coração indiferente havia sido tocado. Pelo ódio, mas tocado. Depois desse incidente, a mãe passou a relatar no grupo as razões da indiferença calculada que, ao longo de todos esses anos, nutrira em relação à filha, concluindo que, na verdade, o que precisava para morrer em paz era, não internar a filha, e sim resolver sua relação com ela. Daí por diante, passaram a viver bem e Ana ficou um longo tempo sem fugir de casa. Dois anos depois desse episódio, Ana veio a falecer. Antes da mãe.

Ao chegar ao HD, Tonho, aos 35 anos, expressava seus delírios em palavras e desenhos. Nos últimos tempos, já não delirava mais. Auxiliado pela terapeuta ocupacional, pintava lindos quadros, que eram rapidamente vendidos, e elaborava suas dificuldades em uma psicoterapia individual.

Haveria ainda muitos casos como esses para contar. Dos muitos que melhoraram e saíram para cuidar da vida lá fora e sempre voltavam para nos visitar e dar notícias. Muitas histórias foram revividas conosco, muitas foram as situações angustiantes e paralisadoras para as quais foi possível ajudar a inventar novas saídas e possibilidades. Nisso consistia nosso trabalho e seu maior reconhecimento.

Deve haver uma produção específica no nosso trabalho, e, aliás, os esquizofrênicos não se enganam, eles captam bem se nós produzimos verdadeiramente qualquer coisa de valioso, e se é o caso eles nos ajudam a produzi-la, senão eles não produzem nada por si mesmos, e nós atingimos o cúmulo da alienação: a segregação (Oury, 1992, p. 44).

A comunidade

Tínhamos também o reconhecimento das famílias, a quem passáramos a atender após longo processo de supervisão, que nos mostrou o quanto tentávamos ser a família substituta dos pacientes. Ficou claro então que, se queríamos devolver o paciente para a comunidade, deveríamos ampliar nosso foco de compreensão e de atenção às famílias. O grupo de família, que no início não passava de um grupo de orientação sobre como lidar com o membro doente, transformara-se em um grupo operativo que ia muito além da simples orientação: cumpria agora as funções de continência para a angústia mobilizada pelo surgimento da “doença”; de espaço para reconstrução das histórias de vida dos pacientes e dos familiares; de esclarecimento de questões relacionadas à cidadania e possibilidades de reinserção social dos pacientes.

A Universidade

Contávamos, ainda, com o aval de diversas instituições de ensino: em 1998, alguns membros da equipe multiprofissional apresentaram o “Projeto Terapêutico do Hospital-Dia” na Semana de Psicologia da Universidade São Marcos, tendo despertado grande interesse nos alunos. A partir do mesmo ano, o HD passou a oferecer campo de estágio para alunos do Núcleo “A psicose e suas instituições”, do Curso de Psicologia da PUC-SP. Dessa parceria resultaram colaborações bastante significativas: duas estagiárias da primeira turma, logo após formadas, passaram a exercer um trabalho voluntário no HD, oferecendo aos pacientes, durante os três últimos anos, um grupo de dança circular. Em setembro de 2000, pacientes e funcionários participaram, na PUC, do evento promovido pelo Núcleo “Diversidade na Universidade: transversalizando o humano e o saber na saúde mental”, apresentando os trabalhos de pintura, artesanato e dança que vinham desenvolvendo. Como contrapartida do estágio que era oferecido a seus alunos, a PUC-SP cedia supervisão clínica e institucional, que era feita pelas professoras do Núcleo.

Podemos afirmar, sem constrangimento, que certamente fazíamos parte daquele grupo de “novos trabalhadores de saúde mental”. Tínhamos conseguido questionar profundamente o modelo anterior, baseado no binômio “internação-medicação”, criando um modo de tratar as psicoses centrado na equipe multiprofissional. Desejávamos e acreditávamos na possibilidade de oferecer um tratamento digno e mais efetivo ao paciente psiquiátrico, lutando cotidianamente para que isso de fato acontecesse.

 

Mas afinal, Hospital-Dia ou CAPS?

Provavelmente, o leitor mais familiarizado com o assunto deve estar se perguntando: mas, afinal, tratava-se de um Hospital-Dia ou de um CAPS7? Se assim o fez, tem toda razão. Essa era uma questão que a equipe se colocara desde o início. Como tratar casos tão graves em apenas 45 dias, tal como era prescrito para os Hospitais-Dia? Como, depois de iniciar a formação de um vínculo com o paciente – do modo como havia sido previsto em nosso projeto –, encaminhá-lo para os ambulatórios da rede onde, supostamente, tudo deveria ser recomeçado? Supostamente porque, na maioria dos casos, os ambulatórios, já saturados, não conseguiam absorver nossos encaminhamentos.

Embora contando com o apoio da direção e com o aval da Coordenadoria de Saúde Mental do Estado e de vários funcionários do hospital, a implantação da reforma nesse hospital psiquiátrico não ocorrera sem resistências: internas, da parte de muitos funcionários antigos, que eram contrários à nova forma de organização do trabalho proposta, e externas, de membros da própria Secretaria da Saúde que, de modo ambíguo, não só permitiram que o HD fosse inaugurado, como funcionasse durante dez anos de forma oficiosa.

Ao longo desses dez anos de funcionamento, foram feitas inúmeras tentativas de oficializar o HD como CAPS, que chegou a ostentar uma placa com essa denominação por algum tempo. Essas tentativas se inseriam em um processo mais amplo, do qual tínhamos poucas informações – já que era da competência do diretor – e que consistia na oficialização, junto à Secretaria da Saúde, do novo organograma, que incluía os novos equipamentos e os novos cargos criados no Hospital.

Depois de muitos formulários, projetos e gráficos solicitados e enviados; após inúmeras visitas, vistorias e entrevistas com técnicos, pacientes e familiares, realizadas pelas sucessivas equipes de assessores da Secretaria da Saúde que passaram pelo HD ao longo desse processo, continuávamos na mesma situação. Não tínhamos conseguido a oficialização do equipamento.

 

As mudanças

Em setembro de 2001, foi solicitado que mudássemos para um outro prédio, pois o que ocupávamos precisava de reformas urgentes. A mudança foi feita com alegria. Todos participaram, ajudando a escolher o cômodo mais adequado para cada atividade, arrumando móveis e objetos, pendurando os quadros nas paredes, colocando os vasos de plantas nas janelas. Antonio e Rosilde encarregaram-se de arrumar os livros na biblioteca. O prédio novo ficou lindo. Foi realizada, para os familiares, uma exposição dos quadros, mosaicos e poesias elaborados pelos pacientes. Mas, infelizmente, essa alegria durou pouco.

 

O desmantelamento

Passado algum tempo, fomos surpreendidos com a visita de um assessor da Secretaria da Saúde, que vinha com a missão de instaurar no hospital um novo projeto: o CAISM – Centro de Atenção Integrada à Saúde Mental.

Embora criticasse duramente o trabalho que vinha sendo realizado pela equipe da enfermaria, e reconhecesse a excelência do trabalho do HD, a proposta do assessor – de caráter autoritário, pois não admitia questionamento – consistia em decretar a fusão do HD com a enfermaria, justificada pela necessidade de abrir mais vagas para internação. Afirmava que o HD não poderia continuar operando como um CAPS pois, com a lei Paulo Delgado, havia falta de leitos em São Paulo. Esse assessor, que se apresentava como militante da primeira hora da Reforma Psiquiátrica, afirmava que a lei não previra que a verba dos hospitais desativados fosse investida em equipamentos alternativos. Havia a proposta da criação de leitos em hospitais gerais, porém estes, contrariamente ao que haviam acordado anteriormente, recusavam-se agora a receber pacientes psiquiátricos. Outra razão alegada para que não continuássemos como CAPS foi o fato de estarmos dentro dos muros do hospital pois, segundo ele, por definição, os vínculos só deveriam ser criados fora dos muros, na rede que seria formada pela Prefeitura. Ainda que a equipe argumentasse que a rede de serviços tinha sido desmantelada pelo PAS, não tendo, portanto, capacidade para absorver os pacientes, o assessor insistia que muitos de nossos pacientes teriam que ser encaminhados para ela. Tentamos, ainda, como última medida, pedir que nos colocasse para fora dos muros concretos do hospital, o que ele afirmou não ser possível, pois esbarrava na questão administrativa da gerência e financiamento do projeto.

O assessor apontava ainda outros perigos, que não ousava dizer quais eram, dizendo que, caso a mudança não fosse feita, coisas ainda mais terríveis poderiam ocorrer. Questionávamos: o que poderia acontecer de tão terrível? Mas ele não respondia. Apenas acenava com a ameaça, sem nos dar a informação.

Tentávamos resistir e nos informar, fazer contatos, ligar para os amigos para saber o que se passava nas Conferências Municipais de Saúde, informar as famílias e tentar que elas se mobilizassem, acionar o Conselho Popular de Saúde.

Sabíamos que alguns diretores do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina compareceram ao Hospital com o intuito de alocar algumas instalações, pois estavam realizando reformas em seu instituto. Isso gerava uma série de boatos, de que a Faculdade tomaria o Hospital. Havia ainda informações de que se corria o risco de o Hospital passar a receber pacientes do Manicômio Judiciário. Outras fontes informavam que havia pedidos expressos, feitos na Conferência Municipal de Saúde, para que o hospital fosse transformado em um centro cultural. Sabíamos, ainda, que o movimento antimanicomial havia se dividido e posições opostas haviam se radicalizado.

 

As tentativas de resistência

Os primeiros pedidos de apoio foram feitos junto ao diretor, já que este havia estado à frente das mudanças que deram origem ao HD e fôra, até então, um defensor entusiástico do trabalho que vinha sendo realizado. Ele que em um primeiro momento pareceu se sensibilizar, logo mudou de idéia. Confrontado com nossa indignação – pois agora parecia concordar com a extinção de um projeto que ele próprio havia ajudado a criar e desenvolver – disse: “vão-se os anéis, para não perder os dedos”.

Nas conversas da equipe do HD com o assessor – que nos tratava de modo bastante sarcástico, dizendo cinicamente que ficávamos “muito animados” com aquela discussão –, chegou a propor que fizéssemos o novo projeto de integração do HD com a enfermaria, com o que concordamos, apontando a necessidade de regionalização para que os pacientes internados pudessem se beneficiar do esquema de HD. Entretanto, logo foi formada outra comissão, chefiada por profissionais da enfermaria, que elaborou um projeto ao qual a equipe do HD deveria se submeter.

Esse projeto estava, desde o início, fadado ao insucesso, já que consistia unicamente em acoplar ao tratamento que era feito na enfermaria, totalmente centrado no modelo médico, as atividades que eram oferecidas no HD, sem levar em conta o longo processo de elaboração necessário para chegar onde havíamos chegado. Além disso, tratava-se de juntar duas equipes que pensavam e agiam de modo muito diferente: tanto em termos de valores, quanto de pressupostos de trabalho. Já haviam sido feitas várias tentativas de aproximação, sem sucesso. Além disso, como pensar em manter em regime de Hospital-Dia pacientes que estavam internados e sem possibilidade de voltar a manter contato diário com a família, pois a demanda atendida pela enfermaria não era regionalizada? O que se propunha era um total retrocesso para asilos com laborterapia, com o que, obviamente, não concordávamos.

A prova mais contundente da ineficácia desse projeto era o fato de que até a pessoa encarregada pelo diretor de implementá-lo afirmava “ter certeza de que o projeto não daria certo mas, mesmo assim, o levaria até o final, só para provar que ele era furado” (sic).

As famílias, por sua vez, ficavam indignadas, porém divididas com o que estava acontecendo, pois, apesar de acreditar em nós, em quem sempre haviam depositado grande confiança, eram chamadas para conversar com o diretor, que desmentia nossas informações, afirmando que fazíamos terrorismo. Quando conseguiam esboçar algum tipo de resistência, o máximo que conseguiam pensar era em ir aos programas de televisão do João Kleber ou da Sonia Abrão. Pobre população pobre a nossa que, para fazer valer seus mínimos direitos, só consegue pensar em buscar apoio nos ídolos da TV!

A busca de apoio na representante do Conselho Popular de Saúde foi decepcionante, pois essa pessoa, que sempre estivera muito próxima do HD, acompanhando de perto e elogiando o trabalho que realizávamos, ausentou-se totalmente e depois, quando instada a ajudar, deixou claro que participava de uma facção da luta antimanicomial que defendia a transformação do hospital psiquiátrico em um centro cultural.

A sensação era de impotência, desamparo e perplexidade... Não sabíamos mais a quem recorrer, em quem confiar, com quem contar...

O que pensar diante de tudo isso? Como entender o que estava se passando?

 

Tentando entender

Estávamos submetidos a uma injunção paradoxal. Exatamente como nas situações esquizofrenizantes, tão bem explicitadas por Bateson, vivíamos uma situação de duplo vínculo. Como entender que fôssemos retaliados justamente por aqueles que até então se diziam defensores da Reforma? Se fosse por um governo conservador, seria difícil aceitar, mas faria algum sentido; mas no nosso caso, não! E por que o HD, cujo trabalho até então era considerado o cartão de visitas da instituição, a ponta de lança da reforma no hospital? Como explicar que, dos fragmentos de discurso aparentemente racionais, identificados na fala do assessor, pudesse resultar algo tão destrutivo? Enredados nessa trama kafkiana, éramos jogados de um lado para outro e ameaçados com explicações parciais, das quais não podíamos saber o começo nem o fim, sem possibilidade de diálogo ou negociação. O que restava era uma profunda sensação de impotência, que deixava como opções uma indignação calada ou a resignação humilhante.

Sabemos qual é a saída proposta por Bateson para esses casos: é preciso recusar o discurso enlouquecedor em sua totalidade, desmontando a falácia de seus argumentos. Se ficamos enredados nele, sucumbimos.

Primeiro argumento: um novo projeto deve ser instaurado no hospital – CAISM.

Mas de onde saiu esse projeto, quem o gerou, qual sua lógica? Por que esse deveria substituir o anterior? Quem sustentava o projeto anterior? Até quando vamos suportar a falta de continuidade das políticas públicas? O Hospital-Dia foi fundado sob a égide da Portaria 224, de 1992; mal esse novo tipo de equipamento passa a funcionar e já deve ser descartado? Em nome de quê?

As colocações de Rezende vêm ao encontro de nosso questionamento:

...a história das políticas de assistência ao doente mental no Brasil é, antes de tudo, uma crônica de desencontros, propostas e práticas concretas nem sempre caminhando lado a lado, mesmo quando seus autores eram titulares reconhecidos da instituição psiquiátrica e protagonistas de prestígio na cena política do poder. Este divórcio entre discursos e ações torna-se tanto mais evidente quanto mais próximo do período recente, devido à emergência de múltiplos – e freqüentemente contraditórios entre si – interesses dos diversos grupos no poder (Rezende, 2001, p. 17).

Segundo argumento: o de que faltam vagas para internar, em função dos efeitos supostamente paradoxais da Lei Paulo Delgado (fechar os hospitais sem garantir o funcionamento de instituições alternativas), portanto, o hospital público devendo se prestar a ser esse lugar.

E por que não exigir dos hospitais gerais que honrassem os acordos? Eis de volta o bom e velho argumento preventivista, que já provou ser tão insustentável na saúde mental: como lugar do atendimento terciário, o hospital só pode atender os casos graves. Mas, o que é grave em saúde mental? Acaso nossos pacientes não teriam sido graves um dia; ou, pior que isso, não voltariam a ser graves sem o atendimento adequado? O outro argumento era que “os vínculos só deveriam ser feitos fora”. Mas o que deve ser considerado “dentro” e “fora”? A qual muro o assessor se refere? Nós já não havíamos demolido os muros – internos e externos – há muito tempo?8

Terceiro argumento: a ameaça, apenas anunciada, mas não explicitada. Qual poderia ser a ameaça tão terrível se, para nós, o pior já havia acontecido?

Podemos identificar uma das vertentes dessa ameaça na facção do movimento antimanicomial que queria ver o hospital transformado em um centro cultural. Mas será que fechar o Hospital para construir ali um centro cultural não seria uma radicalização que, ao levar em conta apenas a cidadania do doente mental, negligenciaria os aspectos psíquicos, transformando a psicose em mero epifenômeno do social?

Além disso, não poderia oferecer, inadvertidamente talvez, munição para o recrudescimento da psiquiatria biológica que, simbolicamente, também luta por ocupar o lugar do antigo manicômio (certamente, não sem antes lhe conferir os ares science fiction de uma tecnologia de ponta calcada nas neurociências)? Lembremos que a outra ameaça – ainda que imaginária – era a de que o Hospital se transformasse em extensão da ala de Psiquiatria da Faculdade de Medicina. Sem contar com o risco de vir a se transformar em anexo do Manicômio Judiciário.

O HD tornava-se uma arena onde se atualizavam todas as disputas do campo psiquiátrico: discursos aparentemente lógicos, coerentes, racionais, produzindo a irracionalidade de destruir algo que funcionava – eticamente, com vida produzindo vida. Como discutir isso teoricamente? Como resistir?

 

O desfecho

O que se seguiu foi rápido e doloroso. O assessor não compareceu mais para conversar conosco, conforme havia combinado; o diretor e sua equipe se encarregaram de dirigir o desmantelamento, que ocorreu em três tempos.

• A destruição do território

Foi feita nova mudança, desta vez para pior. Em uma troca bastante significativa, a enfermaria mudou para o prédio novo do HD, que passou a ocupar a antiga casa da enfermaria. Mas, desta vez, não foi exatamente uma mudança. Fomos literalmente despejados. Nesse dia triste, a burocracia saiu de sua habitual inércia, demonstrando uma eficácia brutal na demolição: num ritual frenético, trabalhadores da manutenção iam tirando e amontoando tudo, em um caminhão que às sete da manhã já estacionara na frente do HD, antes mesmo que os primeiros funcionários chegassem e tivessem tempo de esboçar qualquer reação.

Indignada, Rosilde investiu contra os trabalhadores, xingando-os. Depois foi à sala do diretor, que estava em reunião, acusando-o, aos gritos, de estar destruindo o HD. Foi acalmada por uma das assistentes sociais, que a acompanhou nesse trajeto. Na volta, dirigiu-se novamente aos trabalhadores e se desculpou, dizendo que sabia que eles apenas cumpriam ordens. Não é o caso de invocar a figura romântica do louco, mas às vezes fica muito difícil não achar que eles é que estão certos.

O espaço físico que passamos a ocupar trazia em sua arquitetura todas as marcas características do asilo: corredores estreitos e imensos, quartos escuros, portas sem trincos, banheiros sem portas, paredes sujas, insetos asquerosos, janelas com grades, armários trancados, objetos escondidos.

• A destruição do projeto

O projeto anterior foi substituído por outro, de modo que todo o trabalho que vinha sendo pacientemente elaborado e construído coletivamente tornou-se inviável.

• A destruição da equipe

Muitos profissionais do HD tiveram seus horários remanejados; alguns foram realocados para outros equipamentos e os que ficaram tinham que se submeter à gerência da profissional destacada pelo dire-tor, responsável pela implementação do novo projeto. Diante das impossibilidades colocadas, das oito pessoas que compunham a equipe técnica, quatro pediram demissão, uma foi transferida para outro equipamento do próprio hospital e outra obteve transferência para outra instituição. Das duas que ficaram, uma aguardava apenas o término de seu contrato temporário para sair.

O processo culminou com a queda do antigo diretor e a vinda de um novo, que dizia “ter se aproveitado das férias dos assessores anteriores e tomado a dianteira para colocar ordem no hospital” (sic).

Nesse ínterim, dois pacientes morreram e seis foram internados na enfermaria. Os que “restaram” foram encaminhados para outros lugares. O HD foi fechado.

Esse episódio ilustra a falta de clareza e transparência na efetivação das políticas públicas de saúde mental e o descaso com que doentes e profissionais comprometidos com o trabalho podem ser tratados, fazendo-nos refletir sobre as mediações perversas que existem entre o plano das políticas públicas e a qualidade do atendimento que chega ao paciente.

Relatar tudo isso não foi fácil. Essa história ainda está muito viva para todos os que faziam parte dessa equipe. Entretanto, terá valido a pena se, além de preservar a memória de um trabalho que foi bom, gratificante e humanamente desejável, deixar aos futuros “novos trabalhadores de saúde mental” a mensagem de que crença e entusiasmo são importantíssimos, mas não bastam.

 

Referências Bibliográficas

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YASUI, Sílvio. (s/d). CAPS: aprendendo a perguntar. In: Saúdeloucura 1. São Paulo: Hucitec. p. 47-59.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Laura Belluzzo de Campos Silva
Av. D. Jaime de Barros Câmara, 1000 – 09895-400 – Planalto – S. Bernardo do Campo/SP
E-mail: laurabelluzzo@bol.com.br

Recebido em 21/06/02
Aprovado em 13/03/03

 

 

Notas

IDoutora em Psicologia Social (IPUSP); Professora do Curso de Psicologia da Universidade São Marcos; Professora Titular do Mestrado em Psicologia da Saúde da Universidade Metodista de São Paulo.
1Este trabalho contou com o financiamento de bolsa para pesquisa concedida pela Universidade São Marcos.
2A iniciativa de escrever esse texto partiu do incentivo de dois grandes amigos, teóricos e militantes da Reforma Psiquiátrica, a quem expresso meu agradecimento: João Augusto Frayze-Pereira e Abílio Costa-Rosa.
3Para maiores informações sobre a assistência psiquiátrica neste período ver: Pereira, 2002.
4O documento oficial que registra essas mudanças é o “Programa Caps – Pirituba: Complexo de Atenção Psicossocial de Pirituba”, de dezembro de 1991.
5Na década de 70, o Hospital abrigava apenas pacientes femininas, muitas das quais residiam ali há dez ou quinze anos, a maior parte delas já sem qualquer referência familiar ou social. O Hospital chegou a ter 320 leitos. Em meados da década de 80, várias dessas pacientes foram enviadas para o interior para que o hospital passasse a funcionar como instância terciária de atenção em saúde mental do projeto elaborado pela “Comissão especial para a expansão da rede de saúde na região metropolitana”, que se formou em torno do governo que assumiu a gestão do Governo do Estado de São Paulo, em 1983. Para maiores informações sobre esse processo ver: Cesarino (s/d).
6Por razões éticas, os nomes dos pacientes foram trocados.
7Definição de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), conforme a Portaria 224/92: unidades de saúde locais/regionalizadas, que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar, em um ou dois turnos de quatro horas, por equipe multiprofissional.
8Para um aprofundamento das críticas ao modelo preventivista em saúde mental ver: Silva Filho, 2001.