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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.7 n.14 São Paulo dez. 2002

 

RESENHAS

 

 

Ricardo Mendes Mattos1

Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 

BOCK, Ana Mercês Bahia; GONÇALVES, Maria da Graça Marchina; FURTADO, Odair (orgs.) Psicologia sócio-histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. São Paulo: Cortez, 2001. 224 p.

Considerando os mais de cem anos de existência da Psicologia, será que ainda há necessidade de se discutir o fenômeno psicológico como objeto de estudo dessa área do conhecimento? Diante de diversas abordagens, cada qual contando com tantos pensadores geniais, qual o proveito de se discutir a responsabilidade social do psicólogo em suas intervenções? Pondo em pauta essas e outras discussões, a equipe de Psicologia Sócio-Histórica da Faculdade de Psicologia da PUC-SP – além da participação do estudioso cubano Fernando Gonzalez Rey – apresenta essa profícua e instigante obra.

O livro é uma coletânea de textos produzidos por esses autores, munidos da experiência de mais de duas décadas de docência, que conta com 12 capítulos dispostos harmonicamente em três partes fundamentais.

O intuito primordial desses escritos é a apresentação sintética e articulada da Psicologia Sócio-Histórica, posicionando-se como uma perspectiva crítica na abordagem do fenômeno psicológico. Tal vertente situa-se no âmbito da Psicologia Social e é uma das correntes significativas desta disciplina. Inspira-se nos trabalhos de autores como Vygotsky (1896-1934), Leontiev (1903-1979), Luria (1902-1977) e Politzer (1835-1920), que procuraram transportar a filosofia materialista histórica e dialética (articulada sobretudo por Marx e Engels) para a Psicologia.

A primeira parte do livro pretende elaborar os ditames teóricos que alicerçam a Psicologia Sócio-Histórica. Assim, Bock (como em sua obra Aventuras do Barão de Münchhausen na Psicologia) inicia o capítulo 1 analisando o contexto histórico do surgimento da Psicologia. A autora dirige ferrenhas críticas à forma pela qual diversas abordagens psicológicas têm analisado o indivíduo como um ser abstrato, posto que fora de suas bases concretas; isolado, pois que avulso de seu contexto social e relacional; e estático, na medida em que é concebido como uma substância rígida e imutável, desprovido da metamorfose inerente ao real. No bojo dessas inferências, a Psicologia surge como disciplina bastante marcada pelo prisma liberal e capitalista, vinculado por sua vez à lógica metafísica do positivismo preponderante nas ciências naturais da época, que contemplava o ser humano como portador de uma natureza fixada como algo “dado”. Por conseguinte, era crível a igualdade entre os homens que justificava a responsabilização individual pela existência, e escamoteava a disparidade presente no campo das possibilidades humanas em um sistema capitalista de produção, que depende, por sua vez, da desigualdade para sua sustentação. No interior dessa problemática, é apresentada a Psicologia Sócio-Histórica, que promove uma visão crítica e atenta para a necessidade de se enxergar o fenômeno psicológico como inexoravelmente atrelado a um meio sócio-cultural, com o qual trava uma relação dialética: em um mesmo processo o indivíduo forma e transforma a sociedade e, concomitantemente, é constituído e modificado em seu âmago. Elabora-se, portanto, a concepção de homem como sujeito histórico, cujo exercício crítico da cidadania o instrumentaliza para a transformação da realidade posta.

No encalço dos conceitos de Bock, os capítulos posteriores apresentam as principais categorias analíticas que a Psicologia Sócio-Histórica utiliza para perscrutar o homem. Desta forma, Gonçalvez evoca, com maestria, a noção de historicidade para compreender o homem, aludindo a duas necessidades fundamentais: inserir o indivíduo em um contexto social e historicamente determinado, e analisar a ontogênese a partir de sua processualidade, isto é, suas fases de desenvolvimento.

Na seqüência, Furtado promove minuciosa articulação, pertinente à constituição do psiquismo em sua relação com a realidade objetiva. Analisa assim a realidade subjetiva em suas etapas de construção, em um processo ininterrupto de apropriação individual da realidade, mediada pelos sistemas simbólicos nas relações com outros.

Finalizando a primeira parte da obra, Aguiar elucida as categorias da consciência e atividade como pontos centrais para a compreensão da forma pela qual o indivíduo interioriza o mundo em sua materialidade, construindo seu psiquismo e, ao mesmo tempo, empreendendo uma atividade transformadora desse mundo sensível que o engendrou.

Na segunda parte, encontramos a contribuição da Psicologia Sócio-Histórica para o debate metodológico pós-moderno. As contribuições de Gonçalves e Aguiar, nos capítulos 6 e 7, respectivamente, perfazem as raízes históricas das concepções filosóficas que influenciaram o prisma ontogenético e epistemológico das ciências atuais. Enveredando com propriedade pela história da Filosofia, as autoras elaboram as características do materialismo histórico e dialético como matriz filosófica que baliza as pesquisas nessa área da Psicologia Social. Concluindo esta parte, Ozella e Sanchez realizam uma síntese histórica da produção de conhecimento científico gerado na área da Psicologia Sócio-Histórica na PUC-SP.

A terceira e última parte do livro promove importante discussão crítica no que tange à responsabilidade social do psicólogo em suas intervenções que, como todas as ações humanas, transformam a realidade. Neste sentido, Bock instiga os psicólogos a questionarem a (utópica) neutralidade, e convida o profissional de Psicologia a se posicionar como sujeito histórico com responsabilidades sociais. Nesta parte são expostas ainda algumas interessantes aplicações da Psicologia Sócio-Histórica em assuntos como a orientação profissional (a partir das inferências de Aguiar, Bock e Ozella) e sexualidade na adolescência (abordada por Kahhale), bem como as contribuições da Psicologia Sócio-Histórica para a Psicologia Clínica (Gonzalez Rey). Por fim, temos as articulações referentes aos desafios do ensino da Psicologia Sócio-Histórica (Liebesny e Sanchez).

Em suma, esta coletânea prima por seu coerente encadeamento lógico, na medida em que parte das teorias se detém na metodologia e finda com a aplicabilidade dos conceitos em casos concretos de nossa prática profissional. Trata-se, indubitavelmente, de um excelente livro para situar o psicólogo nas contribuições da Psicologia Sócio-Histórica, assim como para trazer à tona, com propriedade e abertura, debates de conteúdos que interessam a todos aqueles ligados a essa área do conhecimento, independente de sua abordagem teórica. Considerando esse último aspecto, o livro pode ser lido com proveito por qualquer estudante de Psicologia e campos afins, para ampliar seus conhecimentos e, principalmente, para que possa refletir sobre uma visão crítica das teorias psicológicas e de sua prática profissional.

 

 

Endereço para correspondência
Ricardo Mendes Mattos
E-mail: ricardomendesmattos@ig.com.br

 

1Graduando em Psicologia da Universidade São Marcos; Bolsista de Iniciação Científica (FAPESP), com pesquisa intitulada A constituição da identidade do morador de rua no ápice da exclusão social.