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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

A transmissão psíquica em debate: breve roteiro das concepções psicanalítica e sistêmica

 

Debate on psychical transmission: a short trajectory of psychoanalytical and systemic views

 

 

Ivone Placoná Bertin1 ; Maria Consuêlo Passos*, 2

* Universidade São Marcos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho pretende oferecer uma contribuição para a sistematização de algumas noções relativas às abordagens sistêmica e psicanalítica sobre a transmissibilidade psíquica entre gerações. Estas noções muitas vezes têm sido utilizadas indiscriminadamente, o que, em certa medida, dificulta a compreensão das mesmas e, em decorrência, possibilita uma apropriação inadequada na clínica da família. Confrontá-las, para revelar suas possíveis aproximações, semelhanças e distinções, é a finalidade desta pequena síntese que oferecemos ao leitor.

Palavras-chave: Transmissibilidade psíquica, Família, Gerações, Abordagem psicanalítica, Abordagem sistêmica.


ABSTRACT

This piece of work intends to offer a contribution to the systematization of some notions related to the systemic and psychoanalytical approaches about the psychic transmission between generations. Many times these notions have been indiscriminately used, thus, becoming difficult, in such a way, their comprehension, and, as a result, making possible an inadequate appropriation at the family clinic. Confronting those notions, in order to reveal their possible approximations, similarities and distinctions, is the objective of this small synthesis we offer to the reader.

Keywords: Psychic transmission, Generations, Family, Psychoanalytical approach, Systemic approach.


 

 

“Todas as partes do organismo formam um círculo.
Portanto, toda e qualquer parte é um princípio e um fim”
(Hipócrates).

 

Pequena carta de intenções

Diferente de alguns textos que traçam de forma implícita suas intenções, queremos deixar explícitas, desde já, as perspectivas que orientam nossas reflexões. Em primeiro lugar, trata-se de um tema complexo, que pouco a pouco foi ocupando os estudiosos da família, sobretudo aqueles empenhados em sua implementação clínica. Estamos nos referindo aos estudos sobre a transmissibilidade psíquica que, em sua dimensão psicanalítica, aborda sobretudo a relação entre os conteúdos inconscientes que são transmitidos de geração a geração em uma mesma cadeia familiar.

Esta abordagem, no entanto, não é a única possibilidade de apreensão dos fenômenos que são transferidos entre as gerações. Alguns pesquisadores têm estudado estes fenômenos a partir de uma outra perspectiva – a saber, aquela sustentada pela concepção sistêmicade família. É claro que se trata de visões e modelos teóricos diferentes e, por isso, não podemos misturar “alhos com bugalhos”, o que muitas vezes acontece.

Feito este preâmbulo, o que pretendemos de fato é oferecer uma contribuição para as distinções teóricas necessárias entre as vertentes psicanalítica e sistêmica, dentro do campo de estudos da transmissão psíquica entre as gerações. Em outros termos, procuraremos sintetizar os princípios gerais que norteiam cada uma destas visões e, em seguida, refletir como cada uma delas concebe atransmissibilidade psíquica entre gerações. É esta a nossa proposta. Simples na sua intenção, e bastante complexa na sua operacionalização. Vamos a ela!

 

Sistema familiar e o processo de transmissão

O pensamento sistêmico impõe uma visão paradigmática, por meio da qual é possível concebermos a multicausalidade dos fenômenos observáveis nos organismos vivos, como é o caso da família. Nessa medida, para pensar a família como um sistema é necessário, de acordo com Ackermans (1989), uma mudança de perspectivas: do indivíduo para os sistemas, do intrapsíquico para as relações intersubjetivas, da causalidade para a interação circular, do equilíbrio individual linear para a homeostasia do sistema.

Tudo isso demanda a criação de alguns conceitos que, segundo Papp (1988), se estruturam a partir das três seguintes dimensões: totalidade, organização e padronização. Por totalidade entendemos o con-junto de elementos presente no momento da observação do fenômeno. A organização diz respeito à maneira como esses elementos ou partes se compõem. A padronização é a configuração de relações entre os elementos do sistema.

Os fenômenos são observados no contexto no qual estão inseridos pois, de acordo com Bateson (1985), é o contexto que lhes fornece significado. Sendo assim, situar um acontecimento em seu contexto é necessário para percebermos como este modifica ou explica aquele. O observador está, pois, mais voltado para as conexões e relações, mas também considera as características individuais das partes que compõem o sistema, isto é, como as partes interagem no todo. Nesta perspectiva, uma mudança em uma das partes afeta todas as outras, regulando o todo por meio de uma série de circuitos de realimentação, denominados circuitos cibernéticos. Segundo Papp (1988), toda informação que chega ao sistema percorre esses circuitos, buscando sua homeostasia. Isso faz com que as partes que o compõe sofram constantes mudanças e se adaptem a essas transformações para mantê-lo equilibrado. Portanto, a não adaptação gerará o desequilíbrio no sistema.

Para Morin (2000), os sistemas se formam por meio das ações entre unidades complexas, as quais, por sua vez, são constituídas de interações. Seu conjunto é o que organiza o sistema. A organização é o conceito que revela a coerência constitutiva das interações, isto é, que forma, mantém, protege, regula e rege a estrutura do sistema. A interação exprime o conjunto das relações, ações e retroações que se efetuam e se tecem em um sistema.

Desta forma, cada membro do sistema familiar é um participante ativo e responsável pela história e pelo contexto no qual se insere, e nesse caso todo sujeito está enredado em uma cadeia transgeracional. Isto significa que nesta cadeia os elementos se combinam de forma dinâmica, sendo que a composição se dá pela qualidade dos elementos que se combinam. Para que haja uma determinada situação, tem de haver, portanto, uma combinação. Assim, ao se mudar a composição, muda-se a situação e o sistema.

Para a compreensão da dinâmica do sistema familiar, faz-se necessário, então, o esclarecimento conceitual de estrutura. A estrutura é definida, segundo Maturana e Varela (1995), pelos componentes e pelas relações efetivas que constituem um sistema e realizam sua organização. A organização, como já foi dito, é a configuração das interações entre os componentes de um sistema. Portanto, a organização de um sistema define sua identidade e se conserva como um conjunto invariante de relações.

Na verdade, os dois conceitos – estruturas e sistemas – se complementam, e juntos formam um sentido especial, necessário para a compreensão dessa rede complexa de relações que é a família. Assim, enquanto o sistema é um todo orgânico, com um número de componentes e um processo dinâmico de interação, uma estrutura reflete a maneira como as partes desse universo sistêmico estão organizadas entre si.

Enquanto o sistema é uma complexidade em permanente movimento, a estrutura é a disposição e a ordem das partes de um todo. Mas um não pode ser concebido sem a outra, e vice-versa, já que um é o sistema de vínculos, e a outra é o próprio componente do organismo.

De acordo com Minuchin (1988), a estrutura familiar é um con-junto invisível de exigências funcionais que organiza o modo como os elementos da família interagem. Uma família é, portanto, um sistema que opera por meio de padrões transacionais. Sendo assim, por meio de transações repetidas ao longo dos anos, instituem-se padrões de interação, os quais, em formato de lei, estabelecem como, quando e com quem se relacionar. Esses padrões regulam o comportamento dos membros da família, e são mantidos pelas regras que governam a organização do sistema e pelas expectativas mútuas de membros específicos da família.

Porém, as origens dessas expectativas podem ser explícitas ouimplícitas entre os membros da família. É interessante observar que muitas vezes elas não pertencem à geração que terá o encargo de realizá-las; foram, na verdade, “contratadas” por gerações anteriores. Portanto, a natureza dos “contratos” originais é desconhecida; eles podem jamais ter sido explícitos. Mas os padrões permanecem – como se fossem um “piloto automático” – como uma questão de acomodação mútua e de eficácia funcional.

Para entendermos o padrão de funcionamento repetitivo observado em determinados sistemas familiares devemos considerar a família em sua totalidade, pois nenhum membro isolado trará tal configuração.

Segundo Anton (2000), por mais que se compreenda e valorize as forças propulsoras e organizadoras do mundo inconsciente, visto sob o prisma individual, não há como negar o imenso poder proveniente das trocas estabelecidas entre uma pessoa e seu meio. Desta forma, o conjunto de elementos que se relacionam entre si forma um todo único. Quando vistos separadamente do sistema, os elementos podem ser únicos; entretanto, em combinação, existe uma interação mútua entre eles, cujo resultado é diferente da soma de todos. A dependência e independência são um continuum, e as diversas partes em um sistema terão diferentes graus de autonomia.

No processo do inter-relacionamento, os membros de um sistema familiar vão se afetando e, conseqüentemente, influenciando-se na maneira de perceber, pensar e comunicar. No entanto, nem todas as idéias e atitudes compartilhadas dentro de uma família são eficazes para controlar o sistema. Porém, se uma premissa ou necessidade de cumprir uma função dentro do sistema familiar, a fidelidade a ela irá adequar a percepção da experiência, distorcendo a realidade, e conseqüentemente afetando todo o sistema.

A fidelidade à família e a demanda de afeto levam a criança a ajustar sua percepção à percepção oferecida por aqueles dos quais depende, precisa e ama. São verdades inquestionáveis que muitas vezes os pais oferecem aos filhos. Desta forma, a leitura e a delimitação que os pais fazem do meio circundante são traduzidas na percepção que têm dos fatos, e destinadas a satisfazer suas necessidades. Isso pode gerar um ambiente ao qual as crianças devem se adequar para satisfazer essa necessidade dominante; sendo assim, muitas vezes elas precisam renunciar às suas próprias necessidades para apoiar as defesas que um dos pais, ou ambos, necessitem.

É preciso também considerar que um sistema familiar que estruturou no tempo um funcionamento conflitivo em qualquer um dos membros, segundo Andolfi (1980), tende a repetir quase automaticamente certas interações, para a manutenção de regras sempre mais rígidas a serviço da homeostasia.

Surge assim um outro aspecto importante para o entendimento dos padrões de repetição que são desenvolvidos, na medida em que as pessoas que compõem uma família se movimentam juntas no decorrer do tempo. Embora o processo de uma família envolva uma retroalimentação para seu funcionamento, a endogenia do sistema possui seu tempo próprio. Esse mesmo processo ocorre em uma dimensão cronológica e linear do tempo, sendo que disso não podemos fugir.

Assinalamos a propriedade de dependência que os sistemas possuem. Porém, as diferentes formas pelas quais os membros de uma família dependem uns dos outros, dentro da espiral geracional, fazem parte da riqueza do contexto familiar, conforme as gerações se movimentam na vida.

O trabalho com a família na ótica sistêmica compreende todo o sistema emocional de pelo menos três gerações. No contexto da atualidade, podemos considerar mais freqüentemente quatro gerações. Esse é o campo emocional operativo em qualquer momento dado. Assim, investigar os sentidos da história significa valorizar os eventos e transições que permitem a compreensão das mudanças organizacionais e as estratégias de manejo de uma família – como um sistema – em resposta a situações estressantes no passado.

Para Rolland (1995), uma perspectiva histórica envolve algo mais do que simplesmente decifrar como uma família se organizou em função de determinadas tensões do passado; também significa investigar a evolução da adaptação familiar ao longo do tempo. A esse respeito é importante considerarmos os padrões de adaptação, repetição, descontinuidades, mudanças nos relacionamentos (alianças, triângulações, rompimentos) e sentido de competência. Portanto, através da história percebemos que os padrões de funcionamento são transmitidos ao longo de gerações como mitos, tabus, expectativas e sistemas de crenças familiares.

Finalizando, é importante assinalar que, em uma perspectiva multigeracional, é difícil avaliar o impacto que tem uma geração sobre a outra, uma vez que cada uma delas se organiza em função das transições do ciclo de vida. Assim, enquanto uma geração caminha para uma idade mais avançada, a próxima está lutando com o ninho vazio; a terceira, com sua juventude e idade adulta, e assim por diante. Entretanto, os eventos que ocorrem em um determinado nível produzem efeitos nos relacionamentos de cada um dos outros níveis.

O fluxo de tensão vertical em um sistema inclui padrões de relacionamento e funcionamento que são transmitidos para as gerações seguintes de uma família, principalmente por meio dos tabus, mitos, expectativas, segredos etc. Assim, em se tratando de padrão de repetição no grupo familiar, cada membro joga com uma carta marcada; nenhum deles sabe qual jogo está sendo jogado. Todos jogam vários jogos ao mesmo tempo, mas não sabem que sabem quais são as regras que estão em vigor. Simplesmente jogam.

 

Transmissão psíquica: o ponto de vista psicanalítico

“Todo indivíduo chega sempre dentro de uma história que
preexiste, da qual ele é, às vezes, herdeiro e prisioneiro”
(André-Fustier e Aubertel).

A psicanálise tem oferecido contribuições muito importantes para o estudo da transmissão entre gerações. Pensar a transmissão psíquica significa pensar no vir a ser do sujeito, cuja constituição se dá no espaço intersubjetivo das relações familiares; significa pensar também sobre o que nos caracteriza como sujeitos, e como se forma nossa subjetividade em uma realidade psíquica compartilhada.

Considerar uma realidade psíquica compartilhada implica observar que certos conteúdos que recebemos do(s) outro(s) também são dados a outro(s) por nós. O verbo compartilhar quer dizer ter ou tomar parte de algo; arcar junto. O verbo arcar refere-se a sofrer ou impor à força. Assim sendo, do que tomamos parte? O que nos faz sofrer? O que impomos ao outro? São perguntas que devem permanentemente nos ocupar.

Para compreendermos a transmissão psíquica e sua incidência entre as gerações, precisamos em primeiro lugar considerar a formação de um aparelho psíquico familiar. Este aparelho possui uma estrutura inconsciente, que se refere, segundo Berenstein (1989), a um conjunto de regulações que organiza e dá sentido às relações familiares. Em segundo lugar, requer a consideração do par que, em um ato amoroso, concebe uma criança. Cada um dessa dupla, ao se unir, traz sua psique individual, a qual contém suas histórias, seus mitos, suas heranças. Desta forma, o novo casal, ao conceber um filho, irá transferir/transmitir a ele esses conteúdos, advindos de ambas as ascendências.

Desde Freud já existia o interesse pela transmissão psíquica, seja para explicar a difusão das doenças ou para reconhecer a base intersubjetiva da vida psíquica individual. Neste sentido, encontramos em Totem e tabu (1913) o postulado de Freud sobre a existência de uma mente coletiva e a continuidade da vida psíquica. Para ele, na mente coletiva ocorrem os mesmos processos que na individual. Partindo desta premissa, distingue dois processos de transmissibilidade, argumentando que um ocorre por via da história do sujeito, a qual é constituída pela identificação com os modelos parentais; e o outro através da pré-história, formada por traços mnêmicos das gerações anteriores.

De acordo com a nossa cultura, o casal ao conceber um filho estrutura um grupo familiar, responsável pela escritura dos enredos que serão protagonizados pelas gerações que os sucederem. O desenvolvimento desses enredos pressupõe os investimentos recíprocos dos membros do grupo. Investimentos que, de acordo com Rojas (1997), continuarão a existir enquanto a criança prover suas expectativas de continuidade. Assim, pertencer a uma família, ou seja, ser considerado suporte de um discurso, oferece ao aparelho psíquico em vias de formação um alicerce, uma verdade inicial que sustenta o ingresso do sujeito na história. Esta, por sua vez, gera a vivência de ser amado e reconhecido, e de ocupar um lugar em um mundo que o precede e o espera.

Esse discurso familiar contém enunciados de identificação quelocalizam a criança no mundo. É no seio da família que a criança identifica, identifica-se e se constitui única, embora traga consigo “compromissos” oriundos de uma geração anterior. Portanto, o discurso que antecede a chegada de um filho contém tanto as expectativas dos pais como a das gerações que o precederam. São estas expectativas que, até certo ponto, criam o script a ser seguido, assim como designam o lugar, a posição e a função da criança no cenário da vida em família.

De acordo com a afirmação de Freud em Nuevas lecciones introductorias al psicoanálisis (1933), o superego edifica-se a partir de um superego parental: preenche-se com o mesmo conteúdo, torna-se portador da tradição, de todos os valores à prova do tempo, os quais são perpetuados, desta maneira, de geração a geração. Para ele, a humanidade nunca viverá somente o presente – na formação do superego o passado continua a existir.

Neste sentido, todo sujeito cumpre uma dupla função em sua existência. Ainda de acordo com Freud, em seu Estudo sobre o narcisismo (1914), destacamos duas características dessa duplicidade, as quais consideramos fundamentais: a primeira é a de que o indivíduo existe com um fim para si mesmo e como um elo em uma corrente, a qual servirá independente de sua vontade. A segunda é a de que os filhos são a revivescência e reprodução do próprio narcisismo primário dos pais e que, portanto, são portadores dos seus desejos não realizados.

De acordo com esta lógica, cada sujeito precisa cumprir no mundo uma pauta narcísica, que indica uma missão destinada a cada membro para dar continuidade à geração que o precedeu. Isto significa contribuir para manter a identidade familiar, transmitindo os enunciados históricos e familiares, de modo a fortalecer o narcisismo do grupo. Para tanto é necessário que haja investimento narcísico do grupo em cada membro responsável por esta continuidade. Essa missão designa um lugar que é oferecido ao sujeito, e significado pelo conjunto das vozes que, antes de sua existência, conservaram um discurso conforme o mito fundador. Esse discurso inclui os ideais, os valores, transmite a cultura e as crenças do conjunto social que unirá o novo membro ao ancestral fundador. Desta forma, cada sujeito deverá, de certo modo, retomá-lo.

Dentre as funções do aparelho psíquico familiar, destacamos a de transmissão na sucessão de gerações, que “remete à maneira pela qual cada família dará à criança as chaves de acesso ao mundo” (André-Fustier e Aubertel, 1998, p. 133). Cada família lhe transfere sua forma de entender e apreender o mundo externo, assim como de organizar o mundo interno. É a partir desses dispositivos psíquicos que a criança, por meio de suas interpretações, erigirá seu mundo interno, enriquecido por suas próprias fantasias. Neste mundo interno do sujeito é preciso considerar também uma dimensão intragrupal, atual, e uma dimensão histórica constituída a partir de sucessivas gerações. Podemos dizer assim que não nascemos com um manual de instruções, mas com um script, um tanto já elaborado. Evidentemente cada um fará sua própria interpretação do script familiar, o que significa dizer que uns irão se aprisionar nele, enquanto outros poderão tomá-lo como instrumento de libertação.

Podemos agora indagar quais são os conteúdos que são transmitidos. De acordo com a concepção de Kaës:

...o que se transmite são as configurações de objetos psíquicos: afetos, representações, fantasias, isto é, objetos munidos de seus vínculos, incluindo os sistemas de relação de objeto [...] O que se transmite seria preferencialmente aquilo que não se contém, aquilo que não se retém, aquilo de que não se lembra: a falta, a doença, a vergonha, o recalcamento, os objetos perdidos e ainda enlutados. Tais são as configurações de objetos e de seus vínculos intersubjetivos transportados, projetados, depositados, difratados nos outros, em mais de um outro: eles formam a matéria e o processo da transmissão [...] O que se transmite não é só o negativo, é também aquilo que ampara e assegura as continuidades narcísicas, a manutenção dos vínculos intersubjetivos, a conservação das formas e dos processos de conservação e de complexidade da vida: ideais, mecanismos de defesa, identificações, certezas, dúvidas (1998, p. 9).

Em se tratando das relações intergeracionais, é fundamental considerar a formação inconsciente do herdeiro e as repercussões no processo de subjetivação dos conteúdos transmitidos. No processo de transmissão, a herança supõe a existência de um espaço de retomada e de transformação. Esse tipo de herança é formado de conteúdos psíquicos que foram elaborados, como as fantasias, imagos parentais, identificações etc. Essas vivências organizam uma história, individual e grupal.

A cadeia de transmissão entre gerações pressupõe elementos distintos para a sua formação. Pode se organizar a partir de um conteúdo dissimulado, negado por outras gerações, ou por segredos de gerações anteriores, ou ainda por violências vividas e não elaboradas. Em outros termos, por não terem sido elaborados pelas gerações antecedentes, esses conteúdos rompem fronteiras, adquirindo for-mas e sentidos na vida psíquica dos sujeitos de uma nova geração. Vale salientar, mais uma vez, que não são apenas o negativo e as falhas que são transmitidos – diferentes afetos, mitos e desejos de gerações anteriores também fazem parte das transmissões.

Segundo Rojas e Sternbach (1997), a transmissão de significados é uma das questões da repetição na família. Todo grupo familiar trans-mite a seus descendentes um argumento; cada geração, ao recebê-lo, deverá adequá-lo a suas experiências de vida. Porém, quando se transmitem crenças que constituem um código inquestionável, este dificilmente é transformado e, desta forma, se descontextualiza em torno do meio que a família está vivendo.

Esses significados não contextualizados podem funcionar como significados cristalizados. Desta forma, ao nos impossibilitar uma saída, os mesmos são repetidos, ou seja, enquanto se apresentam como significados a serem simbolizados, aparecem como discursos de vida que repercutem na realidade psíquica compartilhada da família. Realidade psíquica que se constitui nos vínculos de aliança, por meio dos contratos que são firmados pelos membros do grupo e que são mantidos, de acordo com as posições que cada um ocupa diante do outro.

Vê-se, portanto, que o suceder da vida psíquica ocorre na trama das alianças estabelecidas, as quais nos antecedem, e nas quais nosso lugar está, de certo modo, predestinado.

 

Finalizando...

Finalizar aqui não significa concluir um debate que, sem dúvida, jamais será encerrado. Significa apenas contribuir com uma pequena síntese dos achados que até o momento conduzem as investigações sobre a transmissibilidade psíquica. Estes achados revelam as diferenças entre os indicadores de transmissão, vistos sob a ótica da abordagem sistêmica e da abordagem psicanalítica de família. Evidentemente o grande diferencial entre os dois modelos está no enfoque do inconsciente que marca o modelo psicanalítico. A abordagem sistêmica parece reconhecer que a transmissão não é uma simples reprodução, tampouco repetição por aprendizagem, mas algo que atravessa uma realidade psíquica não acessível à consciência, mas não incide seu foco em uma realidade psíquica inconsciente, como faz a psicanálise da família.

Embora ambas as perspectivas trabalhem com idéias muito próximas a respeito do material que se transmite e mesmo do processo que determina a transmissão – aspectos não elaborados ou mesmo recusados em gerações anteriores –, ambas interpretam diferentemente os achados, o que significa que terão distintas repercussões na clínica psicanalítica e na clínica de orientação sistêmica.

Nossas intenções aqui se limitaram a mostrar algumas nuances diferenciais entre estas abordagens e estimular as investigações que deverão prosseguir, contornando uma e outra vertente, mas também abrindo as fronteiras para permitir melhor visualização das interfaces implícitas ao processo de transmissibilidade psíquica.

 

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Endereço para correspondência
Ivone Placoná Bertin
R. Alexandre Coppio Ramos, 125 – Jardim Aquarius
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Maria Consuêlo Passos
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E-mail: mcpassos@uol.com.br

Recebido em 07/03/03
Aprovado em 29/04/03

 

 

1 Mestre em Psicologia (Universidade São Marcos); Psicoterapeuta de família.
2 Doutora em Psicologia Social; Professora da PUC-SP e da Universidade São Marcos.