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Interações

versión impresa ISSN 1413-2907

Interações v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

RESENHAS

 

Sociedade de consumo: perdas e ganhos

 

 

Fárima Milnitzky1

Universidade São Marcos. Programa de Pós-graduação em Psicologia

Endereço para correspondência

 

 

CROSS, Gary. An all consuming century: why commercialismwon in modern America. New York: Columbia University Press, 2000. 320p. ISBN 0-231-11312-9.

Gary Cross, professor de história na Penn State University, é autor de numerosos artigos e oito livros, incluindo Kid’s Stuff: toys and the changing worlds of american childhood, Time and money: the making of consumer culture, A quest for time: the reduction of work in Britain and France e American society. Em todas as obras o historiador estuda o consumo no século XX e sua incidência sobre os conflitos de interesses, tanto no espectro da vida doméstica, familiar e subjetiva, como no da vida do Estado, empresas e corporações; contribui assim para adensar a pesquisa histórica a respeito daquilo que conhecemos por cultura de consumo.

Em An all consuming century: why commercialism won in modern America (Um século inteiro consumindo: por que o comercialismo venceu na América moderna?), de saída confronta-nos com uma constatação repleta de conseqüências: o exame dos totalitarismos do século XX – nazifascismo e comunismo – mostra que a vitória não foi de nenhum deles, e sim do consumismo. Ao observar que a sociedade de consumo não tem produzido pessoas passivas, alienadas de seu self verdadeiro, como a crítica tradicional postula, o autor defende a tese central de que o consumismo providenciou uma ideologia da vida pública mais dinâmica, popular e menos destrutiva que a maioria dos sistemas de crenças políticas do século XX. O livro explora porque e como o consumismo foi o ismo vencedor no século XX, indo ao encontro das necessidades dos americanos, e porque ele pode não responder às necessidades atuais.

Os capítulos iniciais exploram os anos 1900 até 1960, e os finais, de 1960 até 2000. Entre esses blocos, situa-se um capítulo intermediário sobre a questão da crítica ao consumismo. Em parte, o livro conta a história das novas tecnologias, negócios e realidades econômicas, e faz uma análise dos modos com os quais os americanos lidaram com os bens de consumo que encontraram disponíveis ao longo do século XX.

Os dois primeiros capítulos mostram como uma sociedade de consumo distinta emergiu nos Estados Unidos entre os anos 1900 e 1930, e como se consolidou durante os transtornos sócio-econômicos dos anos 30 e 40 – anos de guerra – e da aparente placidez dos anos 50. Durante esse período, os americanos encontraram um dramático novo mundo de roupas prontas, cosméticos, doces (balas, bombons, chocolates) e carros. Essas ofertas de bens de consumo eram também oferta de identificação com/em grupos, já que as antigas associações de famílias e de bairros não mais funcionavam para tais fins. Consumidores prolongavam, aumentavam, estendiam suas personalidades por meio de sensações físicas de gosto, velocidade, atmosfera, encantamento, controle e conforto. O complexo apelo dos novos bens de consumo prevaleciam sobre o aparente fracasso do capitalismo nos anos 30, estabelecendo a base para uma ideologia da democracia do consumo em grande escala, vigente após a Segunda Guerra Mundial.

O capítulo seguinte mostra como a cultura do consumidor nunca deixou de suscitar críticas. Os Estados Unidos são o lar tanto do último materialismo moderado, como da mais agressiva crítica do consumo. Um lar que abriga essas tendências reflete como elas se complementam. Cross aponta, como conseqüência de tal complementaridade, o fato de que, quando o desejo foi liberado em uma orgia de gastar (durante a década de 20), os americanos declararam o álcool ilegal, controlaram a mídia e apregoaram a cultura da simplicidade pessoal. Essas regulações eram justificadas por um horizonte de consumo em expansão, e pelo fato de que ele estabelecia limites. A cultura da moderação tentou providenciar uma linguagem comum de limites e escolhas. Embora nesse trajeto a tradição crítica flutuasse entre obrigar e providenciar alternativas ao consumismo, o autor considera que a crítica falhou no decorrer do século porque os conservadores contemporâneos não repensaram o dogma do livre mercado, assim como a esquerda não repensou sua doutrina de radical discurso livre, a fim de estabelecer um balanço.

Nos dois últimos capítulos, descreve-se a ascensão e a queda dos movimentos de racionalização e restrição do consumo. Os anos 60, assim como os anos finais da década de 80, produziram movimentos de oposição, tanto da esquerda como da direita, que removeram os limites remanescentes da cultura do consumidor. O anticonsumismo “radical” dos anos 60 forjou suas críticas a partir da preocupação com a igualdade e com a preservação do meio ambiente, focalizando-as sobre o desperdício e a cultura encharcada de propaganda. Entretanto, essas críticas não impediram o crescimento da cultura do consumidor. Ao contrário, o desafio contracultural ao gastar de forma conformista dos anos 50 abriu um novo canal de desejo, por romper com as restrições da geração pós-guerra. Já no fim dos anos 80 e começo dos 90, a abertura de mercados irrestritos resultou em um consumismo que subitamente tomou direções antisociais, lembra-nos Gary Cross.

O livro se encerra com a discussão de um dilema, pois o autor avalia que, com o fim do século XX, o consumismo já não enfrenta limites concretos. O fracasso da cultura de limites e a falta de vontade da cultura da celebração em lidar seriamente com a necessidade de restrição deixaram o mercado sem regras e sem leis. A divisão cultural entre direita e esquerda dificultou qualquer tipo de reforma e avaliação, embora “a história de consumo de todo nosso século sugira possibilidades de novos pensamentos e ações, a partir de uma apreciação do sentido dos bens de consumo na vida das pessoas, nas margens e no desenvolvimento de uma consciência da necessidade de reformar e reviver a porção ainda válida da cultura de restrição” (p. 251).

A relevância deste ensaio de Cross aumenta na medida em que não tenta dirimir as tensões entre direita/esquerda, e nos lembra que é preciso aprender com a história. Se a história do século XX ensina que falhou em dar atenção a uma política de restrição ao consumismo, a aposta deve ser na possibilidade de criar habilidades de negociação nas margens da sociedade de consumo, a fim de estabelecer limites racionais para um sistema que “naturalmente” não os tem. Uma sociedade que reduz tudo a uma questão de mercado inevitavelmente divide-se entre aqueles que podem e os que não podem comprar, diminuindo o sentido de responsabilidade coletiva, e com isso a tão estimada democracia. Perseguir um compromisso realista com a necessidade de pôr em prática uma política de restrição deve promover “pontes” ideológicas entre antigas divisões. O mérito maior do estudo em questão é, pois, a agudeza de uma crítica não tendenciosa.

 

 

Endereço para correspondência
Fátima Milnitzky
E-mail: fatimamil@terra.com.br

 

 

1 Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo; Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.