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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.9 n.17 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

Causalidade, relações funcionais e contextualismo: algumas indagações a partir do behaviorismo radical1

 

Causality, functional relations and contextualism: some questions rising from radical behaviorism

 

 

Kester CarraraI

Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” de Bauru. Faculdade de Ciências. Departamento de Psicologia.
Universidade Estadual Paulista “Julio de Mesquita Filho” de Marília. Faculdade de Filosofia e Ciências.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo caracteriza-se como estudo teórico acerca das possibilidades identificadas nos instrumentos conceituais do contextualismo de Stephen C. Pepper para subsidiar a ampliação do foco de análise das interações sociais por analistas do comportamento. Examina-se o conceito de metáforas-raiz, a idéia de ato ou comportamento-no-contexto e o papel distintivo das relações funcionais priorizadas pelo Behaviorismo Radical em contrapartida à opção clássica da causalidade linear. Resultam cogitações, embasadas na literatura dos últimos quinze anos sobre relações contextualismo-behaviorismo, quanto a algumas características científica e socialmente relevantes e capazes de sinalizar para novas reflexões teóricas e para consolidação de programas de pesquisa orientados para aampliação de vínculo ao compromisso ético-social dessa abordagem psicológica.

Palavras-chave: Análise do comportamento, Relações funcionais, Contextualismo, Compromisso social; Behaviorismo radical.


ABSTRACT

This article is characterized as a theoretical study about the possibilities identified in the conceptual instruments of Stephen C. Pepper’s contextualism to subsidize the broadening of focus of the analysis of social interactions carried out by analysts of behavior. The concept of root metaphors is examined, as well as the idea of act or behavior-in- context and the distinctive role of the functional relations prioritized by the Radical Behaviorism in opposition to the classic option of linear causality. The results are assumptions, based in the literature of the last fifteen years on contextualism-behaviorism relations, about some characteristics, scientific and socially excellent, which are capable of signaling new theoretical reflections and the consolidation of research programs guided for magnifying the bond to the ethical-social commitment of this psychological approach.

Keywords: Behavior analysis, Functional relations, Contextualism, Social commitment, Radical behaviorism.


 

 

Está no terreno fronteiriço entre a Psicologia e a Filosofia a maior parte das questões tratadas neste ensaio, o que contraria, uma vez mais, o argumento corrente de que a Psicologia, oriunda da Filosofia, dela se desvinculou definitivamente para constituir-se como ciência auto-suficiente. Os objetivos centrais aqui enunciados circunscrevem-se às possíveis contraposições entre os conceitos de causalidade e de relações funcionais, bem como às eventuais implicações de derivativos teóricos do contextualismo pepperiano na Análise do Comportamento. Espera-se também que, como objetivo subsidiário ao tema central, revele-se defensável a idéia de que, por definitivo, não possa a Psicologia (ou a Análise do Comportamento, se da Psicologia um dia for desvinculada), em tempo algum, prescindir de pressupostos filosóficos essenciais, não dados pela realidade empírica, todavia assegurados pela via conceitual.

Conjeturar acerca das questões sediadas nessa fronteira exige professar culto à parcimônia científico-filosófica. Ao menos em função dessa circunstância, este texto orienta-se por um otimismo contido quanto à adequação dos pressupostos científicos do Behaviorismo Radical, e por um ceticismo razoável quanto ao contexto epistemológico em que se insere sua filosofia de ciência, uma vez pretender consonância com o que bem recomenda o professor J.A.D. Abib em seu artigo Psicologia é ciência?, publicado na revista Psicologia: Teoria e Pesquisa em 1993.

Tal otimismo contido faz antecipar a ressalva de que, ao fim dos argumentos, não se alimenta pretensão de sequer sugerir a adoção de qualquer alteração substantiva no paradigma behaviorista. No máximo, pode-se apontar especulações interessantes que aproximam o contextualismo de Pepper (1942/1984) do Behaviorismo de Skinner (1945). Nada mais, mesmo porque não há qualquer consenso sobre a pertinência de uma eventual leitura pepperiana do Behaviorismo Radical, como se pode acompanhar desde Staddon (1993) e Shull e Lawrence (1993).

De qualquer modo, essa já constitui tarefa suficientemente árdua e espinhosa. O tema escolhido (especialmente no que respeita à questão da causalidade), se tomado ao pé da letra, por si exigiria anos de incessantes reflexões, geraria intérminas e inconclusivas discussões e produziria suficientes justificativas para entender que: 1) não constitui tarefa para uma única pessoa; 2) vem mobilizando seres humanos, cientistas ou não, filósofos ou não, há alguns milhares de anos, sem definitiva solução.

Por essa razão, pelo menos, é preciso assegurar mais alguns cuidados preliminares ao enunciar certos conceitos presentes neste ensaio. Isso implica: 1) estar consciente de que é absolutamente impossível tratar de modo exaustivo da questão da causalidade em ciência, dada a amplitude do problema e a incontestável complexidade que a rede de variáveis que determina sua compreensão conceitual apresenta; parte do assunto, especialmente no que diz respeito à causalidade no Behaviorismo, foi muito bem tratada no trabalho de Barba (2003); 2) considerar que a incipiente formação deste autor permite apenas especular sobre parte das questões que o tema exige; a esse aspecto acrescenta-se a convicção de que filósofos da ciência, físicos, biólogos e representantes de diversas áreas do conhecimento certamente precisariam ser sempre ouvidos quando se trata de assunto que diz respeito à ciência de modo geral; 3) levar em conta as preocupações recentes de analistas do comportamento como Morris (1988, 1993, 1994), que ten-tam compreender um pouco melhor as questões das causas, das relações funcionais e, particularmente, do contextualismo na Análise do Comportamento, se bem que o título aqui indicado seja muito genérico, e que talvez uma das incumbências deste autor, nestas reflexões, seja a de apresentar um conteúdo que ao final corrija, reduzindo abrangência, o próprio título aqui apresentado; 4) considerar que o exercício da teorização em Psicologia é essencial à boa formação dos nossos alunos, sejam de graduação, sejam de pós; a própria questão da causalidade em Psicologia continua constituindo objeto de polêmicas intermináveis, porque é a partir desse conceito central que qualquer corrente ou abordagem teórica adquire (ou perde) sentido; 5) compreender que, para minorar um pouco o nosso sofrimento com a amplitude do tema, e para que se possa, no texto, disseminar de modo mais confortável algumas provocações sem assumir ostensivamente a responsabilidade por elas, o que se fará, na prática, é estabelecer diversos limites teóricos e práticos como entorno para o texto e argumentos que o compõem; 6) implica ainda, para facilitar a concretização dessa aventura, pedir ao leitor que imagine, construa uma imagem, naturalmente fictícia, mental, do mundo... do mundo inteiro... Simples? Certamente, não. Impossível, provavelmente: a metáfora exige um exercício muito amplo, complexo e difuso. Certamente, é mais prático imaginar “recortes”, “pedaços”, reduções da realidade. De qualquer modo, imagine-se então apenas o nosso planeta, e que dentro desse pedaço do mundo existam pessoas aos milhões. Imagine-se que pessoas vivem interagindo nesse e com esse mundo, e assim constituem sua experiência. Experiência é indissociável de conhecimento. Imagine-se que conhecimento se viabiliza pela aprendizagem. E que o aprender consistentemente, verdadeiramente, como prescreveria Hume, se dá por meio da compreensão das causas dos fenômenos. E quais perguntas coerentes com a busca desse conhecimento empregariam as interrogações como? e por quê?. Imagine-se que a ciência está interessada em responder a essas questões, do como e do por quê. E que a Psicologia pretende ser considerada uma ciência. E que, para constituir-se como ciência, a grande questão da Psicologia é saber de que maneira lidar com a busca de explicações convincentes sobre os fenômenos que estuda. Imagine-se, ainda, que existe, entre tantas alternativas para as maneiras pelas quais se pode buscar explicações em Psicologia, uma que se viabiliza pela Análise do Comportamento, cuja filosofia preambular é dada pelo Behaviorismo Radical. Imagine-se, também, que apesar de razoavelmente estabelecida e consensual a idéia de que essa abordagem estuda as interações entre organismo e ambiente, por meio da análise de relações funcionais, ainda existem muitas indagações, dúvidas e discrepâncias acerca da maneira pela qual analistas do comportamento buscam compreender os organismos vivos.

Finalmente, imagine-se que nossos críticos (críticos da Análise do Comportamento, seja Experimental, Aplicada ou Conceitual) nos acusam de estarmos confinados em uma pequena ilha (no que, talvez, eles tenham razão), esquecidos da nossa condição de náufragos da Psicologia, sobrevivendo de um modelo teórico incompatível com a moda ocidental pós-moderna (no que, talvez, eles não tenham razão). Pois bem! É exatamente a partir dos dilemas teóricos que encontramos nessa pequena ilha, que para nós, ao contrário de representar isolamento constitui parte significativa do mundo enorme do conhecimento imaginado no início, que a subseqüente análise é conduzida. Por isso, parece importante que o leitor centre o foco de seu microscópio nas questões particulares da causa, das relações funcionais e do papel do contextualismo no Behaviorismo Radical, embora ciente de que tal esforço não é suficiente para desvincular tais questões aqui privilegiadas do contexto mais amplo (e difuso) que cerca a “ilha”. Com esse comportamento, talvez se possa visualizar mais de perto e com maior precisão (talvez, apenas, com maior verticalidade) o que se passa nessa lâmina recortada das relações entre organismo e ambiente. Entretanto, tomemos muito cuidado. Não nos esqueçamos de que nosso microscópio, nossa banqueta, nossa mesa, nossa prancheta de anotações e nós próprios, bem como nossa suposta ilha, estamos irremediavelmente inseridos no imensurável mundo que tivemos dificuldade de imaginar a princípio.

Pelas razões já expostas, e embora o tema seja tão amplo, esclareça-se que este ensaio se conduzirá a partir das discussões induzidas pelos escritos de dois autores behavioristas destacados na literatura científica dos últimos anos. Trata-se dos professores Edward K. Morris, do Departamento de Desenvolvimento Humano da Universidade de Kansas, com pesquisas em Desenvolvimento Humano, em História e Sistemas e em Filosofia da Psicologia; e da professora Mecca Chiesa, que atuou como professora conferencista da Universidade de Paisley, Escócia, e tem estado ultimamente vinculada à University of Kent. A partir de 1988, por um bom período de tempo, Morris liderou estudos e reflexões acerca das implicações do contextualismo pepperiano na Análise do Comportamento (Morris, 1988, 1993, 1994, 1997). Chiesa tem vários estudos e publicações interessantes sobre natureza e características teóricas do Behaviorismo Radical como filosofia de ciência. Entre outros, publicou análises valiosas sobre os paralelos e dicotomias de abordagem mecanicista versus relacional (1992), as questões da causalidade, explicação e teoria na ciência do comportamento (1996), da presença do dualismo e do mecanicismo nos fundamentos da Psicologia e suas implicações (1998). Mais recentemente, além de suas ocupações com supervisão de pesquisas e orientações relacionadas a questões de procedimentos de ensino, também se ocupou de questões éticas no behaviorismo (2003). Esses autores constituem fontes iniciais na análise que se segue. Por isso, embora possivelmente relevantes, não serão feitas referências a vários outros autores de temas correlacionados, a respeito das quais os leitores possam estar interessados.

Um dos pressupostos essenciais do Behaviorismo Radical é o de entender que a ciência que ele sustenta, a Análise do Comportamento, tem como objeto de estudo eventos dados dentro de uma realidade natural, que possuem um estofo físico e que, portanto, podem ser acessados mediante instrumental da mesma natureza que aquele usado nas demais chamadas ciências empíricas ou fatuais. Em decorrência, considera-se que o comportamento, público ou privado, constitui o elemento privilegiado a ser observado, uma vez que constitui a própria interação do organismo com seu ambiente.

O que se mencionou nesses últimos tópicos já seria suficiente para uma longa e interminável discussão, uma vez que residem aí inúmeras polêmicas. Entretanto, estamos só de passagem nesse local da nossa “ilha”. Vamos apenas esclarecer, ainda que grosso modo, algumas expressões utilizadas: 1) fica claro que estamos usando o empírico no sentido de sua equivalência a fatos da natureza que tenham existência material, física e que possam ser captados ou percebidos pelos senti-dos ou instrumentos a eles associados, direta ou indiretamente. Por oposição, supõe-se a existência de ciências não empíricas, as chamadas ciências formais ou abstratas, e que constituem áreas importantes do conhecimento, mas cujo objeto não dispõe de existência física, como são os casos da Matemática e da Lógica, por exemplo. Por outro lado, deve ficar claro que a Análise do Comportamento não pretende incluir-se entre as Ciências Sociais ou as Ciências Humanas única e tão somente quando com essas expressões se quer dizer que seu objeto de estudo não é o comportamento, e que esse mesmo objeto tem natureza de tal modo particular e idiossincrática que não pode ser estudado via instrumental das ciências naturais, exigindo a elaboração de instrumental próprio, diferenciado, de outro estofo que não o físico (cf. Skinner, 1950; Carrara, 1994); 2), quando se fala que o comportamento pode ser avaliado, estimado, medido mediante instrumentos de natureza semelhante ao das demais ciências naturais, não se deve pensar em uma clonagem de instrumentos nem de medidas, mas da natureza dos mesmos, ou seja, por exemplo: não é possível tomar de um metro (mesmo que seja o mais preciso possível: há alguns anos, o que foi confeccionado em platina e está depositado no museu do Louvre constituía o padrão universal do metro; hoje, talvez se tenha uma medida mais precisa com o uso do laser, por exemplo) e com ele medir o comportamento de ler; por outro lado, continuamos interessados, sempre, em alguma dimensão física do comportamento, quer seja sua duração, freqüência, intensidade, topografia, proximidade com um modelo e assim por diante. Nada que exija a existência de um outro estofo que não seja a mesma realidade física do restante da natureza humana. O comportamento, nesse sentido, é parte da natureza geral e isso implica uma visão monista e fisicalista de mundo; 3) decorrente questão é a de que, por certo, somos sempre obrigados a elaborar instrumentos específicos e até mesmo especiais de observação e coleta de nossos dados, mas isso não significa que estejamos convencidos de uma idiossincrasia do comportamento humano que inviabilize a busca de regularidades nas ações dos organismos vivos em sua interação com o ambiente; 4) provisoriamente, outra observação refere-se ao que estamos chamando de ambiente: embora a expressão se refira a eventos de estofo único e material, não se pode incorrer na confusão do pensar que por ambiente – em decorrência da orientação do Behaviorismo Radical – se esteja designando apenas os eventos que estão fora do organismo ou que tenham natureza inanimada; também estão incluídos como parte do ambiente, obviamente, eventos de natureza química (que, em última análise, se reduz à Física), além de partes do organismo sob e sobre a pele do nosso próprio corpo, bem como e sobretudo as demais pessoas (via inúmeros comportamentos), com as quais nos relacionamos. Ou seja, o sentido da expressão ambiente implica todo o contexto com o qual interagimos enquanto estamos vivos, tenha esse contexto conotação físico-química, biológica ou social. Estudar sistematicamente tais interações constitui objetivo da Análise do Comportamento.

É provável que, ao tentar fazer estes esclarecimentos, tenham sido criadas ou despertadas outras dúvidas, perguntas e discordâncias do leitor. Renove-se, portanto, o pedido de paciência para com a utilização de um recorte de realidade a que este autor obriga-se por escolher tratar do assunto com superficialidade pensada, demandando deixar de lado algumas entrelinhas, para seguir na busca dos objetivos essenciais desta exposição.

A literatura tem mostrado inúmeros equívocos com relação ao Behaviorismo Radical. Um deles, retomado por Chiesa e Morris, é a metáfora do pensamento mecanicista. Ao entender, erroneamente, que o behaviorismo skinneriano é uma psicologia estímulo-resposta, de paradigma S-R (estímulo-resposta), a crítica tem associado essa concepção a uma visão mecanicista do homem, em que se faria uma interpretação equivocada de causalidade, isto é, o Behaviorismo Radical defenderia que a cada alteração em alguma peça da máquina corresponderia uma alteração no seu funcionamento geral. Da mesma maneira, o suposto conserto da peça quebrada corresponderia a uma volta à normalidade. Nada mais equivocado. O paradigma do Behaviorismo Radical não é o S-R mas, no máximo, um...R-Sr, em que as respostas ocorrem em um contexto (composto por estímulos discriminativos e outras condições precedentes na forma de eventos e/ou operações estabelecedoras) e são seguidas de eventos cujo efeito é genérico para uma classe de respostas e se dá mediante um processo de seleção pelas conseqüências. Note-se que estamos começando a usar a expressão contexto, em um sentido bem próximo ao que Morris e outros autores estão analisando. Chegaremos a esse ponto logo mais.

É concepção vigente no cotidiano leigo e mesmo entre muitos psicólogos, a crença que o comportamento é um indicador, uma manifestação ou a expressão de algo subjacente, quer sejam pensamentos, sentimentos, mecanismos neurais ou fisiológicos, instintos, personalidade, inteligência, motivação ou estados mentais. Considera-se que o comportamento é: 1) uma indicação de processos que ocorrem dentro da pessoa ao comportar-se (por exemplo, processos fisiológicos ou neurológicos ou, ainda, processos mentais como codificação de informações, armazenamento e recuperação de memória, tomada de decisões, escolhas, atribuição de causalidade, atitudes e outros); 2) uma manifestação de outras classes de eventos que ocorrem dentro do organismo, como expectativas, desejos, intenções e sentimentos; 3) uma expressão de um si mesmo essencial, um núcleo do ser, uma personalidade; nessa perspectiva, o que o indivíduo faz é de importância secundária, sendo que o mais importante é o que ele é (ainda que, quando se indaga sobre os referenciais empíricos a que essas expressões remetem, faltem respostas consistentes). Nesse sentido, a variável dependente é o comportamento, mas a variável independente é uma dessas instâncias do si mesmo.

Essa concepção vigente tem uma conseqüência predominante e importante na cultura ocidental, que leva a uma rejeição a um (supostamente) trivial e superficial interesse pelo comportamento, em contrapartida a uma aproximação e interesse por algo mais, que não estaria no ambiente, mas estaria no próprio indivíduo e seria constituído de suas intenções, desejos e propósitos. Em todos esses casos, o comportamento (“o que a pessoa faz”, as atividades do organismo) seria um apêndice de outro sistema e constituiria somente evidência indireta desse outro sistema causal.

A posição filosófica de Skinner não separa a pessoa do comportamento. As pessoas se definem por seu comportamento sem nenhuma outra entidade limitada ao interior do indivíduo. Skinner rejeita a idéia de um metafórico homúnculo que, desde o nosso interior, determinaria, explicaria ou explicitaria nosso fazer. Em lugar de buscar mecanismos ou entidades subjacentes à conduta, a pergunta básica é “como determinada pessoa se relaciona com seu ambiente?”. As explicações causais, na sua abordagem, são consideradas em termos de relações interativas (funcionais) entre pessoa e ambiente. O comportamento é qualquer coisa que a pessoa faça, e sua identificação pauta-se mais por verbos de ação do que por substantivos. Por isso, inclui pensar, sentir, recordar, falar, andar, “agir inteligentemente”, “agir agressivamente”, ouvir, concordar... acordar, transitar pela metafórica “ilha” ou sair “ilha” afora.

Se o comportamento humano for considerado idiossincrático, espúrio e irregular, resistindo à formulação de leis, paradigmas e sistemas teóricos, nada há que se possa fazer em favor da busca sistemática de explicações generalizáveis acerca das atividades humanas. Freqüentemente aparecem três argumentos em favor dessa espécie de indeterminismo, quais sejam: 1) o argumento da individualidade (dado que cada indivíduo é único, diferente de qualquer outro, fica impossibilitada qualquer predição e generalização); 2) o argumento da complexidade (o comportamento humano é tão complexo e intrincado que isso impede a descrição de relações causais como em outras ciências naturais); 3) o argumento do propósito (dado que o comportamento é dirigido para o futuro, não está controlado por eventos antecedentes e, por isso, não está sujeito às leis causais da ciência). Creio desnecessário argumentar longamente para refutar esses três pontos. Entretanto, sinteticamente: 1) quanto à individualidade, é claro que cada um de nós é único em seus comportamentos, daí o conceito de classe; do mesmo modo, árvores, flores, cadeiras e prefeitos de São Paulo são eventos únicos, o que não impede, absolutamente, que se descrevam, categorizem e generalizem propriedades comuns que favorecem a compreensão de todos eles a partir de um conjunto de características típicas; 2) quanto à complexidade; a crítica do indeterminismo tem razão em dizer que o comportamento humano é complexo, mas sua razão vai só até aí; daí a dizer que, por isso, não pode ser estudado cientificamente, é um disparate; todas as áreas do conhecimento, em todos os tempos, começaram da descrição simples de eventos e seguiram gradativamente para a formulação de leis e teorias; aceitar o limite da complexidade é acreditar que tudo o que já se descobriu sobre o comportamento não constituiu qualquer deslocamento do patamar inicial do conhecimento; 3) no caso do argumento do propósito, é conveniente lembrar que embora sempre pareça que nosso comportamento é controlado por metas, e que nos dirigimos a elas, nossas escolhas sempre se dão a partir da história individual de interações similares das pessoas com seu ambiente; estuda-se Psicologia com o objetivo (futuro e a médio prazo, naturalmente), de obter um diploma, um emprego, o reconhecimento da família, dos amigos, independência profissional etc; isso é parcialmente correto.A explicação apenas se completa na medida em que nos lembramos que esse emprego, essa independência etc., são valores (ou potenciais reforçadores) cujo efeito identificamos em função da nossa experiência passada (direta ou mediada) com eventos ou situações similares.

Bem, parece que temos claro que as explicações causais são básicas para uma Psicologia que pretenda o status de ciência. O conceito de causalidade implica um ponto de vista determinista do objeto de estudo da ciência, uma suposição de que absolutamente nada acontece espontaneamente ou por acidente. Nada acontece em função de um acaso entendido no sentido fatalista. Acaso, aqui, pode ser configurado como um conjunto de causas (momentaneamente, tecnologicamente) desconhecidas. Jogo um dado, um dado pequeno, honesto, e sei que a probabilidade de dar a face 6 é 1/6 a cada lançamento. Mas não sei exatamente, de antemão, o que vai dar naquela jogada específica. Até por isso trata-se de um jogo: desconheço as variáveis que determinam o que vai dar exatamente nesta jogada, porque não tenho controle sobre as variáveis que causam o fato de o dado dar a face 6 agora. Notem que desconheço as variáveis. Mas se eu mudar a situação e pegar um dado gigante, passo a ter um controle ampliado sobre as variáveis que determinam a jogada: a localização visível da face 6, a força a ser empregada para que o dado role até a face 6 etc., ou seja, o que antes parecia resultado de um acaso inexplicável, agora parece um acaso constituído de causas que estou desvelando, com a ajuda de um dado ampliado. Isso apenas parece mar tranqüilo que está em volta da “ilha”. Mas, como já disse, ainda existe muita gente que nega a aplicabilidade dos princípios metodológicos das ciências naturais ao estudo do comportamento (até porque muitos não acreditam que devamos estudar o comportamento, mas o que está por trás dele ou subjacente a ele e, de modo algum – heresia –, o que ocorre antes e depois dele).

Apenas para complementar a idéia do determinismo causal, é bom lembrar que ele se refere sempre, na análise comportamental sustentada pelo Behaviorismo Radical, a um determinismo probabilístico e não a um determinismo absoluto. Por certo, é impossível determinar, fora de qualquer dúvida, a causa exata de qualquer fenômeno, uma vez que é empiricamente impossível precisar exatamente todos os valores das variáveis independentes, estranhas ou dependentes em jogo. Não só, mas até por isso, é que quando se usam testes estatísticos encontram-se expressões mais ou menos como: “com 95% de confiança, podemos afirmar que... ou: não podemos rejeitar a hipótese tal...”. Em última análise, isso implica um determinismo probabilístico. Em outras palavras, tudo se passa como se disséssemos que de 100 pesquisas que fazemos, 5 são absoluto equívoco... Mas aqui estamos de novo precisando corrigir nossa escapada pelos mares que banham a “ilha”, uma vez que o modelo escolhido pela Análise do Comportamento não inclui testes estatísticos além das comparações meramente descritivas de freqüência oferecidas pelos delineamentos de sujeito único. Para evitar gratuidade exemplificativa, retornemos à dicotomia causa-relações funcionais.

O conceito de causa sofreu e vem sofrendo inúmeros retoques ao longo da história. Mas houve momentos importantes, como foi o da análise de David Hume, que fundamentalmente residiu em descartar a noção de força causal ou de agente causal que antes rondava o conceito de causa. Por certo, a idéia de força, de energia e de construtos hipotéticos similares esteve presente por muito tempo, e continua presente na concepção de alguns quando buscam explicações sobre a natureza. Apesar da influência positivista nessa questão, ainda hoje persistem explicações equivalentes ao estado “metafísico” comtiano, com a suposição de energias intermediando as relações causa-efeito. Mesmo Russel nota que Newton insiste na idéia de força como causa das mudanças de movimento. A lei da gravitação universal, na época, apenas ensaia uma fuga em direção ao chamado estado positivo: dizia que “dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e na razão inversa do quadrado das distâncias que separa seus centros de gravidade”. O que importa, neste momento da discussão, é que desde a análise de Hume, as noções de agente, força ou necessidade de conexão são supérfluas para entender ou descobrir as relações causais.

O conceito moderno de causa tem substituído a noção de força pela de relações funcionais, e as equações científicas se referem a eventos como uma função de outros eventos, mais do que em termos de A exercendo força sobre B. E isso não é apenas um problema semântico ou superficial, como se poderá ver adiante. Permita o leitor que sejam abertos novos parênteses para fazer outro indicativo neste roteiro: não passou despercebido o uso da expressão positivismo aqui. Na passagem antes mencionada, ele apenas se refere à busca original comtiana de elevação das ações humanas à condição de objeto da ciência, obedecidas certas regras, como a prevalência da observação, mediante o ver para prever. Entretanto, é notório que o assunto é extremamente polêmico e há na literatura inúmeras discussões importantes sobre a questão do positivismo. Todavia, é preciso retomar o alinhamento do assunto com a idéia de causa e relações funcionais para garantir o encaminhamento dos argumentos.

Outra característica do pensamento causal que foi revisada é a noção de cadeia causal. É uma idéia popular e é bastante compreensível logicamente pensar em cadeias causais, de modo que entre um evento inicial e um evento final seja suposta uma série de elos que os interliga e que fazem o papel de causas intermediárias. Mais ou menos assim: você administra uma droga qualquer e espera que ela termine com uma dor intensa. Entre uma coisa e outra, acontecem mudanças na constituição sangüínea, que se seguem de mudanças na atividade das terminações nervosas, que se seguem da redução da dor (e pode haver centenas de outros eventos intermediários, sendo essa mais uma questão intrincada, porque: 1) ou o pesquisador se atém a medidas do início e fim da cadeia – e aí é acusado de lidar com o fenômeno como se ignorasse as entranhas humanas, como na metáfora da caixa preta; 2) ou o pesquisador passa a medir cada elo e daí tem os problemas de serem ou não acessíveis à observação e de perder-se na própria busca de o que causa o quê, dentro da linearidade e infinitude da cadeia causal). A idéia de cadeia causal pode até ser útil, quando permite a identificação de elos com sobeja clareza, mas a idéia de linearidade é falsa para analisar o comportamento, porque a rede de relações que nos é dada pela natureza não é do tipo um-a-um.

A maneira com que diferentes áreas do conhecimento podem lidar com o mesmo fenômeno é, por vezes, confundida dentro da idéia de cadeias causais e redes teóricas. Imaginem que a nossa ilha tem uma cabana, que tem uma janela, que é envidraçada. Uma pedra atinge a vidraça, que se quebra. Seria possível levar para a ilha uma equipe de cientistas de várias disciplinas, incluindo a física, a química, a biologia, a antropologia, a sociologia, a economia e a psicologia (aliás, para mais animada confusão, com psicólogos de diferentes abordagens). Na ausência de definições prévias do aspecto a ser estudado, uma vez que cada qual desejaria estudar um aspecto do fenômeno, teríamos tantas explicações para a vidraça quebrada quantas disciplinas estivessem presentes (a pedra era muito grande, o vidro não era de boa qualidade, o menino que jogou a pedra pensou ter visto o semblante de um conhecido e corrupto político por trás da vidraça...). Não é preciso acentuar que o jargão utilizado também variaria tipicamente conforme a formação profissional de cada envolvido. Os fenômenos da natureza, portanto, são certamente complexos, mas a delimitação daquilo que temos interesse em compreender em cada fenômeno é que nos sugere o método de acesso a ele. Na Análise do Comportamento, o interesse fundamental está no comportamento, constituído pelas interações entre organismos vivos e ambiente.

Vamos agora pensar mais detidamente nas causas tal como compreendidas no Behaviorismo Radical. Sabemos que Skinner identificou-se muito com os escritos de Ernst Mach, um físico do século XIX preocupado tanto com a física experimental, quanto com as bases filosóficas e pressupostos da ciência. Mach (1896/1905; 1915/1960) questionou vários supostos e definições da física newtoniana, inclusive seu compromisso com a força causal, a definição de massa e de tempo absoluto de Newton. Mach afirmava que quando estudamos uma suposta relação de causa e efeito, não fazemos mais que descobrir relações funcionais entre eventos. Dizia Mach, genericamente, que “não existe nenhuma causa na natureza; a natureza tem somente uma existência individual; a natureza é simples”. Mach substituiu o conceito de causa pelo de relações funcionais, sendo tarefa do cientista oferecer uma descrição completa de tais relações. Em poucas palavras, agora para Skinner (1974): “descrever é explicar e funções causais são substituídas por relações funcionais”. Uma causa é substituída por uma mu-dança na variável independente e um efeito é substituído por uma mudança na variável dependente. Portanto, causa-efeito se substitui por relações funcionais entre variáveis.

Isso nos leva a pensar em determinação múltipla, ou “causalidade” múltipla. O termo tem um significado especial na análise do comportamento verbal de Skinner: 1) a força de uma resposta única pode ser função de mais de uma variável; 2) uma só variável regularmente afeta mais de uma resposta. Na prática, seria impossível oferecer uma explicação completa do fenômeno que incluísse todos os fatores que para isso convergem.

Uma questão decorrente do modelo de relações funcionais é o abandono aos modelos mecanicistas. No modelo mecanicista leva-se em conta a metáfora da cadeia causal em que, como uma máquina, as relações causais sejam contíguas em termos de tempo e espaço, e na qual quaisquer vácuos entre causa e efeito sejam preenchidos. Por exemplo, se a aspirina alivia a dor de cabeça é porque ela age, encadeadamente, por meio de uma série de estruturas e mecanismos até aliviar a dor. Internamente, seria satisfeito o requisito da contiguidade e cada peça interna, se funcionar inadequadamente, é mecanicamente responsável pelo resultado final negativo. O Behaviorismo Radical, embora suponha a existência de uma estrutura orgânica intermediando as condições ambientais e o comportamento, não se vale da suposição de estruturas mentais internas como necessárias ou auxiliares para explicar o comportamento. Em algumas versões do cognitivismo deparamo-nos com a suposição de um sistema complexo de memória, um sistema de processamento de informação, um mapa cognitivo, um sistema de manipulação de símbolos, uma rede semântica e assim por diante. A diferença entre o que o Behaviorismo Radical supõe como interno e o modo como outras abordagens o fazem é o estofo de que são constituídas essas estruturas, já que o Behaviorismo é monista e fisicalista, enquanto algumas outras mantêm explicações dualistas.

Além disso, o Behaviorismo Radical adota um modelo de seleção pelas conseqüências, focalizando relações funcionais do comportamento com o ambiente (recorda-se o leitor do clássico exemplo de Isaacs, Thomas e Goldiamnond, publicado em 1966, sobre um paciente psiquiátrico hospitalizado por 19 anos e que era totalmente não-verbal, e em cujo caso o analista fez uso de um procedimento de reforçamento diferencial por aproximações sucessivas). O analista não tem que inferir que o reforçador atuou em uma estrutura interna do paciente (embora, por óbvio, não negue a existência de uma estrutura orgânica intermediária) e acaba atuando em função do próprio comportamento. Um observador externo, não familiarizado com a história de reforçamento daquele paciente, poderia facilmente fazer inferências (apropriadamente exemplificadas por Chiesa, 1994), como: “o paciente, obviamente, gosta do terapeuta” ou “o paciente se sente suficientemente seguro para falar somente na presença do experimentador”. A cada mudança gradual (observada em cada sessão terapêutica), usando reforçadores, o terapeuta identifica uma mudança confiável em direção ao comportamento esperado.

Nessa perspectiva, para Skinner (1984) há três níveis fundamentais de seleção pelas conseqüências: 1) seleção filogenética, na área da Biologia; 2) seleção ontogenética, na área da Psicologia; e 3) seleção cultural, na área da Antropologia. A seleção ontogenética “se parece com um milhão de anos de seleção natural ou cem anos de evolução de uma cultura, comprimidos em um período de tempo muito curto” (p. 484). As relações funcionais entre comportamento e suas conseqüências se fazem, portanto, segundo um modelo não-causal, de modo que cada comportamento se fortalece, se mantém ou se extingue em função das conseqüências e de eventos estabelecedores.

Feitas as ponderações acerca da opção behaviorista radical pelas relações funcionais, em detrimento do conceito de causa, passemos a descrever, abreviadamente, que espécie de contextualismo está sendo aqui considerada, para fazer alguma articulação com a Análise do Comportamento e o Behaviorismo Radical. Trata-se da versão contextualista proposta por Stephen Coburn Pepper por volta de 1942, quando ele escreveu o livro World Hypotheses: a study in evidence. O autor faz um estudo analítico de seis tipos de metáforas-raiz ou, propriamente, mo-delos paradigmáticos de explicação dos eventos da natureza: animismo, misticismo, formismo, mecanicismo, organicismo e contextualismo. Seus trabalhos foram mais centrados na filosofia moral, intelectual e estética e, embora tivesse convivido com psicólogos (inclusive Tolman), sua pretensão explicativa não se estendia originalmente ao campo da Psicologia. O contextualismo, portanto, constituiria uma metáfora de interpretação teórica da natureza, entre outras possíveis. É uma espécie de paradigma filosófico-científico que leva em conta uma rede de condições sob as quais os fatos acontecem.

Por outro lado, a literatura recente, especialmente a publicada pelo professor Edward K. Morris, tem reconhecido características contextualistas na Análise do Comportamento. Quando falamos em relações funcionais, ao invés de causas estamos reconhecendo implicitamente a existência de um contexto ambiental em que se dá o comportamento. Ou seja, existe um conjunto de condições, todas materiais, todas de natureza física, química, biológica ou social, que servem de moldura para o fluxo do comportamento. Nessa perspectiva de análise dos fatores determinantes do comportamento, está sempre presente a idéia de classe de respostas e de multideterminação. Uma Análise Comportamental Contextualista implica procedimentos que tentam sempre aproximar o seu objeto de estudo de um verbo, mais que de um substantivo. Em outras palavras, analisa-se o estar fazendo, o estar realizando, o estar agindo, o que representa uma característica dinâmica em contrapartida a um ato dado como pronto e estático: nesse sentido figurado, a maioria dos verbos não permite uma análise monolítica, mas relacional e, por isso, contextual (quem vai, vai a algum lugar; quem realiza, realiza algo; quem verbaliza, verbaliza sobre...). Recentemente exemplos começam a ser encontrados na literatura tentando mostrar na prática como se ampliaria a ênfase contextualista (cf. Odom e Haring, 1995).

Em uma Análise Comportamental Contextualista, o contexto organiza-se em contexto histórico e contexto corrente, cada qual servindo a funções diferentes. A função do contexto histórico (seja filogênico, seja ontogênico) seria a de estabelecer quais funções de estímulo e de resposta são passíveis de ocorrência naquela espécie com aquela história particular. A função do contexto corrente, incluindo privação, instruções, dimensão física, social e biológica das condições presentes quando da interação organismo-ambiente, seria a de possibilitar efetivamente a ocorrência de certos comportamentos específicos.

Algumas das características básicas do contextualismo (cf. Hayes, 1988; Hayes e Hayes, 1992; Carrara, 1998; Carrara e Gonzalez, 1996), além da prioridade à multideterminação do comportamento, incluem sua rejeição à presença de componentes mecanicistas no conceito de causalidade. O mecanicismo, obviamente baseado na metáfora da máquina, atingiria parte do behaviorismo e parte do cognitivismo. No Behaviorismo estaria presente no Behaviorismo Clássico e no Metodológico. Traços típicos seriam as tentativas de definir estímulo e resposta, entre outros conceitos, mediante uma perspectiva atomista, elementarista, reducionista, em detrimento de uma visão funcional e relacional própria do Behaviorismo Radical. Também é típica a concepção de que as partes (ou peças) envolvidas na conduta humana têm significado em si mesmas (a consciência, a vontade, a memória, a mente) e que, sobretudo, teriam função causal.

Nessa perspectiva, algumas das características mais caras à orientação filosófica do contextualismo incluem a adoção inequívoca da multideterminação do comportamento: inúmeras variáveis, de campos diferentes (pessoal, social, cultural, educacional, político, ideológico, econômico, biológico, químico etc.) concorrem de modo geralmente entrelaçado e reticulado (e não linear) para a explanação causal do fenômeno comportamental.

Para exemplificar pelo óbvio, analisar o simples mover uma perna não é o mesmo que analisar o caminhar até uma loja para comprar presentes. No mínimo, porque: 1) os contextos podem ser significativamente diferentes; 2) para o primeiro comportamento não está especificada uma conseqüência; 3) para o segundo comportamento está especificado um objetivo, que não deve ser confundido como causa, no sentido teleológico; o que controla a probabilidade de ocorrência do comportamento é a história de reforçamento; 4) sobretudo, a análise, sob qualquer medida (freqüência, duração, intensidade, topografia), do simples movimento da perna, no caso, não assegura a compreensão do caminhar, porque omite-se a multideterminação contextual e seu complexo componente histórico.

Fica claro que a idéia de uma Análise Comportamental Contextualista implica considerar a unidade psicológica como indivisível e interativa, de modo que não é razoável tentar explicar o psicológico apenas mediante a análise de eventos particulares: é indispensável o passo seguinte de análise do todo significativo. Assim, o comportamento será sempre um comportamento-no-contexto e com-o-contexto e não pode, nessa perspectiva, ser compreendido com apelo a ações isoladas das partes ou mecanismos envolvidos na interação (glândulas, braços, cérebro, cognição, mente etc.).

Dois cuidados adicionais precisam ser tomados aqui: a) assumir a idéia do ato no e com o contexto sem apelo a explicações de mecanismos isolados não significa negação à influência de outros níveis de análise: uma análise comportamental contextualista não pode prescindir do biológico, do antropológico, do sociológico; b) assumir uma análise contextualista, em que a preocupação é o todo interativo e não as partes, não significa igualmente que ingenuamente se imagine possível visualizar todo o repertório comportamental durante todo o tempo e sob todas as circunstâncias somadas, o que, parcimoniosamente, refuta a crítica do reducionismo igualmente atribuída ao behaviorismo.

Reitere-se que devem ser aqui considerados os inevitáveis cortes temporais e históricos, mas que, no mínimo, constituem recorte com significado reconhecível: aplique-se aí a Navalha de Ockam, o princípio da parcimônia. Para dimensionar o tamanho de qualquer parte do contexto que possa ser analisada sem se perder de vista a idéia de significado, parece ser imprescindível a perspectiva de funcionalidade (o sentido comparativo entre o mover a perna e o caminhar até a loja para comprar presentes pode ser grosseiro exemplo). A análise de contingências, embora deva ganhar em horizontalidade, não deve prescindir do cuidado com a verticalidade.

Portanto, o que se apresenta aqui, a rigor, não constitui nenhuma novidade. Não há mudança conceitual efetiva nem na Análise do Comportamento nem no Behaviorismo Radical. Entretanto, há uma releitura com análise conceitual do contextualismo e redimensionamento da ênfase a ser dada na análise das relações entre organismo e ambiente, mediadas pelo comportamento. As pesquisas dos últimos 10 a 15 anos têm começado a mostrar essa preocupação, especialmente na área de controle de estímulo e relações de equivalência. Trabalhos de grupos como os de Sidman e De Rose exemplificam esse esforço. Por outro lado, a ampliação das análises e as pesquisas acerca dos conceitos de operações estabelecedoras, a partir de Jack Michael, conduzem-nos a explorar mais profundamente as implicações detalhadas do conjunto de condições sob as quais o comportamento humano ocorre.

Muitas das implicações de uma dinâmica contextualista da Análise do Comportamento são absolutamente desconhecidas. Apesar dos congressos que já se realizaram sobre o tema e do crescente envolvimento de analistas do comportamento em torno do assunto, nos últimos quinze anos, pouco existe de óbvio nesse campo. Dessa maneira, embora não se possa afirmar categoricamente a utilidade de sua adoção, torna-se razoável uma ampliação de informações a respeito: pesquisas e ensaios teóricos são o caminho para que a Análise do Comportamento defina-se por uma resposta positiva ou negativa ao contextualismo pepperiano. Antes dessa resposta ainda temos muito que pensar sobre a questão da causalidade. Entretanto, creio que já estamos em melhor estágio do que pudesse supor o Princípio da Incerteza (ou da Indeterminação), de Heisenberg. O princípio de Heisenberg, a partir de seus estudos sobre os quanta, menciona a impossibilidade, na física de partículas, de se determinar a um só tempo a localização física (posição) e a velocidade de pequenas partículas. Que a memória não me falhe, faz lembrar de um artigo, crônica ou similar, dos anos 60 ou 70, de autoria do eminente professor Rogério Cezar Cerqueira Leite, um dos físicos mais importantes do Brasil. O artigo intitulava-se A epistemologia do pudim de banana, e dizia respeito a essa grande dificuldade metodológica que, embora aponte a imprecisão necessária das medidas, não exclui, afortunadamente, a possibilidade do estudo das causas, para alívio mesmo dos racionalistas mais arraigados. Creio que a Psicologia está sempre às voltas com questões tão intrincadas quanto essa, com um agravante: ela não dispõe de um aparato metodológico que seja consensual. As divergências teórico-filosóficas entre os psicólogos são muito agudas e, com isso, muitas vezes temos grande dificuldade de enxergar qual será nosso (de preferência, consistente) argumento salvador. Ficamos diante de um auto-salvamento paradoxal como o relatado por Karl Friedrich Hieronymus, o Barão de Münchhausen, um soldado de fortuna alemão, senhor rural de Hanover nos anos 700, que era dado a contar aventuras impossíveis. Tendo ele entrado a cavalo em uma grande extensão de areia movediça, e não havendo ninguém em volta para salvá-lo, não teve dúvidas: respirou profundamente, e com as próprias mãos, segurando nos próprios cabelos, retirou-se (a si e ao cavalo), do imenso lodaçal.

A verdade é que a Análise do Comportamento, em suas aplicações práticas, precisa cada vez mais dar conta de um conjunto intrincado de variáveis que se combinam de modo reticular para explicar o comportamento. Imaginemos, na nossa suposta ilha, que existe agora uma escola, 30 alunos e um professor. Imaginemos que o ensino na ilha vai muito mal, que os alunos não aprendem, que o professor não consegue ensinar. Não bastaria um mero rearranjo das contingências limitadas ao método de ensino usado nessa sala de aula para tudo transcorrer às mil maravilhas, embora um rearranjo pontual também seja muito importante. Dado que as variáveis das relações interpessoais na família, das condições sócio-econômicas, das condições físicas da escola e tantas outras interferem no comportamento do aluno, a Análise do Comportamento precisa cada vez mais se preocupar com elas, como contexto complexo, como constituintes de uma rede de relações entre variáveis das quais o comportamento é função.

Imaginemos, por fim, para tomar como exemplo outro extremo, a análise de alguns operantes verbais e de alguns eventos privados, seguramente constituintes do contexto complexo sob o qual um sujeito admirável falou, escreveu e pensou. Um sujeito de fora da nossa ilha mas, em contrapartida, muito conceituado na nossa ilha. O leitor conseguirá, com facilidade, estimar pelo exemplo subseqüente quanto pode ser difícil explicar como e por quê alguns eventos privados ocorrem e são causados. É possível compreender como é complexo desvendar essa rede de relações que envolvem os encobertos, e quanto é longo o caminho da Psicologia e do Behaviorismo Radical em busca de um método que explique exaustivamente (e satisfatoriamente, porque nunca completamente) alguns comportamentos e o contexto onde eles se dão.

Vamos ao exemplo ilustrativo dessa complexidade. Um sujeito que viveu 47 anos, entre 1888 e 1935, chamado Fernando Antonio Nogueira Pessoa, poeta indubitavelmente dos mais brilhantes, apresentou um comportamento difícil de compreender e para o qual já foram aventadas inúmeras hipotéticas explicações, conhecido como o fenômeno da heteronímia. Segundo esse fenômeno, Fernando Pessoa escrevia como se fosse outras pessoas. Ele criou outros poetas, que não eram apenas meros pseudônimos, porque tinham uma biografia, caracteres físicos, traços de personalidade, formação cultural, profissão, ideologia. Os heterônimos perfeitos de Fernando Pessoa foram Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Muito se discute sobre o porquê desses heterônimos, quais as causas que os originaram, o que pretendia Fernando Pessoa com essa multiplicidade, mas nem seus biógrafos nem a Psicologia puderam, até agora, mais do que simplesmente especular sobre as possíveis causas. É prudente suspeitar que nem a Psicanálise, nem o Behaviorismo, nem o Contextualismo, jamais desvendarão inequivocamente todas as variáveis que determinaram tais comportamentos.

Em uma carta ao crítico Adolfo Casais Monteiro, em 1935, Fernando Pessoa descreve um pouco a maneira como vê seus próprios heterônimos. Diz ele:

...começo pela parte psiquiátrica. A origem de meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico ou se sou, mais propriamente, um histero-neurastênico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenômenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registro dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação... Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este, mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o imediatamente, espontaneamente, como sendo de um certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura – cara, estatura, traje e gesto – imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço, sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo... E tenho saudades deles (De Nicola e Infante, 1995, p. 23-25).

Mais tarde, no Livro do desassossego (1942/1986), atribuído a Bernardo Soares (que segundo Pessoa é um semi-heterônimo porque “não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afetividade”), escreve Fernando Pessoa:

Criei em mim várias personalidades. Crio personalidades constantemente.Cada sonho meu é imediatamente, logo ao aparecer sonhado, encarnado numa outra pessoa, que passa a sonhá-lo, e eu não. Para criar, destruí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que dentro de mim não existo senã o exteriormente. Sou a cena viva onde passam vários atores representand o várias peças.
... Meu Deus, meu Deus, a que assisto? Quantos sou? Quem é eu? O qu e é este intervalo que há entre mim e mim?

Espera-se que a dificuldade de análise implicada no exemplo seja suficiente para obter a anuência do leitor acerca da dimensão imensurável, ao menos a curto prazo, da tarefa que temos pela frente para compreender parte dos determinantes do comportamento humano. E, embora prevaleça uma expectativa positiva diante dessa tarefa insondável, complexa e desafiadora, crê-se coerente encerrar este ensaio reiterando uma postura científica de otimismo contido, como sabiamente recomenda o artigo do professor Abib. Afinal, a busca das causas do comportamento humano parece mesmo estar em terreno de fronteiras ainda sob litígio, de modo que há muito que se fazer para melhorar o estado incipiente/insipiente do conhecimento científico na área da Psicologia. Por certo, a leitura do Behaviorismo Radical que se projeta a partir do Contextualismo Pepperiano é apenas resultado interessante desse esforço adicional de ampliar as possibilidades conceituais de análise, mas está longe de constituir mudança decisiva que supere definitivamente as dificuldades epistemológico-metodológicas que temos pela frente.

 

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Endereço para correspondência
Kester Carrara
Rua Gerson França, 10-22 / 81 / Ed. Málaga – 17040-380 – Vila Mesquita – Bauru/SP
tel: (14) 3226-2699
e-mail: kester.carrara@uol.com.br

Recebido em 15/12/03
Aprovado em 18/06/04

 

 

Nota

I Professor Adjunto (Livre-Docente) do Departamento de Psicologia da Faculdade de Ciências da UNESP-Bauru; Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia (Área de Concentração: Ciência Cognitiva) da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP-Marília.
1 Este texto constitui adaptação de conferência proferida para alunos do Curso de Psicologia da UFSCar, em 17/4/2000.