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Interações

versão impressa ISSN 1413-2907

Interações v.9 n.17 São Paulo jun. 2004

 

ARTIGOS

 

O psicólogo nas unidades básicas de saúde: formação acadêmica e prática profissional1

 

Psychologists at basic health units: professional training and practice

 

 

Isabel Fernandes de Oliveira*I; Candida M. Bezerra Dantas, Ana Ludmila F. Costa*II; Fabiana L. Silva*III; Alex R. de Alverga*IV; Denis B. de Carvalho*V; Oswaldo H. Yamamoto*VI

*Universidade Federal Do Rio Grande do Norte. Departamento de Psicologia.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do estudo foi caracterizar a formação e a atuação do psicólogo vinculado às Unidades Básicas de Saúde de Natal–RN. Uma entrevista semiestruturada foi aplicada a 28 profissionais dos 4 distritos sanitários. Os resultados mostram que 93% são do sexo feminino, 46% têm idade entre 30–40 anos, 89% se graduaram na UFRN fazendo estágio em clínica (69%), 89% buscaram estudos pós–graduados, 54% realizam unicamente psicoterapia e 46% aliada a outras atividades. São discutidas a marcante presença da atividade psicoterapêutica na prática do psicólogo; a desvinculação do trabalho dos princípios do SUS; a dificuldade de ultrapassar as concepções individualistas e psicologizantes dos problemas sociais em virtude da cultura profissional do psicólogo. A não adoção do conceito de saúde que implicaria uma concepção e atenção diferenciadas, equânimes e preventivas, dificulta as ações que diferem do modelo assistencial–curativo, reinante no ordenamento das políticas e nas ações de saúde.

Palavras–chave: Formação do psicólogo, Prática profissional do psicólogo, Psicologia no Brasil, Psicologia no Rio Grande do Norte, Unidades Básicas de Saúde.


Abstract

We characterized the professional training and practice of psychologists in Basic Health Units in Natal–RN. A semi–structured interview was conducted with 28 psychologists in 4 sanitary districts. 93% of the psychologists were females, 46% were between 30–40 years old, 89% studied in UFRN, with supervised training in clinical activities (69%), 89% have been involved in post–graduate studies, 54% used only psychotherapy and 46% associated it with other activities. The prevalence of psychotherapy, the gap between the psychologist’s work and the principles of the Brazilian Unified Health System, and the difficulty of attaining a psychological practice that surpasses the individualistic and psychologically biased views of social problems are discussed. The non–adoption of a differentiated, egalitarian and preventive conception and practice of health is a barrier to the development of actions that differ from the assistential–curative model that prevails in the propositions both of health politics and actions.

Keywords: Psychologist´s professional training, psychologist´s professional practice, Psychology in Brazil, Psychology in Rio Grande do Norte, Basic Health Units.


 

 

O período da transição democrática foi marcado por uma série de mudanças no padrão de intervenção do Estado com relação ao trato da questão social, após mais de duas décadas de regime autocráticoburguês, no qual se consolidou o padrão assistencial–privatista de definição das políticas no campo social (Mendes, 1996).

Em um cenário de crise generalizada em conseqüência da falência do modelo econômico e do esgotamento do projeto do Estado de Segurança Nacional, reorganiza–se o movimento sindical e dos trabalhadores, que apoiados pela intelectualidade orgânica e por partidos políticos progressistas, clamam por um país mais justo, menos violento e mais sensível aos problemas da grande população.

A pressão por mudanças nas políticas sociais brasileiras tornou–se um dos objetivos da luta dos trabalhadores, e o setor de saúde, dentre outros, mereceu destaque pela amplitude das alterações propostas, que implicavam um novo Sistema Nacional de Saúde, uma nova estrutura na concepção dos serviços e na assistência à saúde (Gerschman, 1995). Além disso, os ganhos no campo sinalizavam, do ponto de vista do trabalhador, uma conquista de direitos e uma valorização do contingente assalariado do país, que fora explorado exacerbadamente na ditadura em nome do crescimento e desenvolvimento nacionais (Cohn, 1997).

Os profissionais de saúde, principalmente aqueles ligados aos serviços públicos, sindicatos profissionais e entidades corporativas, desencadearam um debate sobre os rumos da saúde do país, e desenvolveu–se uma articulação entre setores populares, partidos políticos, entidades civis e sindicatos, politizando o debate da saúde como questão nacional. Essa articulação era decorrente do movimento sanitário, que propunha a necessidade urgente de reforma. Esse movimento surgiu na sociedade civil e se inseriu no Estado, com a definição de um projeto de saúde para o país, nas instituições, a partir de seus militantes, na tentativa de atuar dentro dos Estados, reorganizando as práticas institucionais (Bock, 1999; Vasconcelos, 1997).

O novo projeto implicava, entre outras coisas, uma reformulação dos conceitos de saúde e práticas assistenciais. A atenção integral era o novo objetivo e trazia implícita a necessidade de incorporação de novos profissionais ao atendimento. Esse conceito, ao impor o acesso igualitário de todos aos serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde, colocou como uma das questões fundamentais da política pública a integralidade da atenção à saúde e a participação social, reconhecendo a imprescindibilidade das ações realizadas pelos diferentes profissionais de nível superior.

Nesse cenário de crise do modelo assistencial–privatista, e de passagem para uma nova forma no fazer saúde, a psicologia encontrou espaço em um campo no qual, até então, contava apenas com ações pontuais em ambulatórios e hospitais, especialmente os psiquiátricos. Na realidade, ao se inserir no contexto de luta dos movimentos sociais, a psicologia advogou em causa própria, defendendo a profissão como parte do espectro do campo da saúde (Bock, 1999). Essas reivindicações aconteceram no momento em que a retração do mercado para o profissional liberal impulsionava um contingente expressivo de psicólogos para agências institucionais, e os ecos da reforma psiquiátrica já soavam em terras brasileiras, trazendo uma proposta que incluía psicólogos em papel de destaque junto às novas formas de abordagem ao usuário dos serviços de saúde mental. A difusão da psicanálise e a cultura psicologizante adjacente, ao proporcionar uma disseminação da psicologia no país, findaram por contribuir para o ingresso de psicólogos nos serviços públicos de saúde (Dimenstein, 1998; Vasconcelos, 1999).

As Ações Integradas de Saúde (AIS) podem ser consideradas uma via privilegiada de acesso dos psicólogos às instituições de saúde. Eixo de organização para uma atenção integral por meio de uma rede de serviços hierarquizados e regionalizados, as diretrizes desse programa passaram a nortear a prática da Divisão Nacional de Saúde Mental (DINSAM), e é possível que a iniciativa mais significativa, a partir dessas mudanças, tenha sido a instalação de um serviço de Saúde Mental na rede de centros de saúde da Secretaria Estadual de São Paulo. Para a efetivação plena do serviço, uma equipe mínima – constituída por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais – era condição imprescindível. O documento Proposta de Trabalho para Equipes Multiprofissionais em Unidades Básicas e em Ambulatório de Saúde Mental, elaborado pela Divisão Ambulatorial de Saúde Mental do Estado de São Paulo, serviu como base não só para a estruturação deste, como também de vários outros serviços ambulatoriais de saúde mental em todo o Brasil, inclusive em Natal (RN). Nele, definem–se as ações de saúde mental nas unidades básicas como de atenção primária, integrando profilaxia e tratamento. Seus princípios norteadores são: utilização de psicoterapia e outros recursos terapêuticos, além do uso de psicofármacos; treinamentos; e super–visão e avaliação qualitativa periódica do trabalho. Esse documento pioneiro tornar–se–ia referência nas reflexões posteriores acerca da atenção integral à saúde.

A VIII Conferência Nacional de Saúde, em 1986, e a elaboração do texto constituinte, em 1998, propuseram e aprovaram as mudanças na saúde que já vinham sendo gestadas pelo movimento sanitário. Sem dúvida, o termo “Constituição Cidadã” aplicou–se com justiça, em virtude das concessões e propostas extremamente inovadoras, racionalizadoras, e principalmente universalizantes no acesso à saúde e na concepção do sujeito. O Sistema Único de Saúde foi criado refletindo em seus princípios e diretrizes os avanços democráticos defendidos pelos setores políticos de esquerda, bem como pelos movimentos sociais organizados na sociedade civil (Pereira, 1996).

Justificando as diretrizes para a formulação de uma nova política de recursos humanos para o SUS, a Resolução nº 218 do Conselho Nacional de Saúde, de 6 de março de 1997, reconheceu como profissionais de saúde de nível superior os assistentes sociais, os biólogos, os profissionais de educação física, os enfermeiros, os farmacêuticos, os fisioterapeutas, os fonoaudiólogos, os médicos, os veterinários, os nutricionistas, os odontólogos, os psicólogose os terapeutas ocupacionais.

Portanto, a partir de uma nova visão sanitária surgida no país nos anos 1980, as Unidades Básicas de Saúde criadas na década de 1930 passaram a ter como objetivo a recuperação, promoção e prevenção de saúde, obtidas por meio do atendimento integral às pessoas (Jackson e Cavallari, 1991). Um dos objetivos desse atendimento integral seria a realização de uma nova “consciência sanitária”, compreendida como uma visão sócio–ecológica do processo saúde–doença, que os serviços deveriam transmitir à comunidade. Para a psicologia, o trabalho em instituições desse nível revelou–se um desafio em virtude das dificuldades na adequação e no modelo proposto para o trabalho, do tipo de clientela atendida, e mais ainda, da necessidade de se pensar em uma ação diferenciada daquelas às quais estavam acostumados os profissionais.

O Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região, fundamentado no trabalho de Silva (1988), realizou o primeiro levantamento a respeito da prática do psicólogo em Unidades Básicas de Saúde, embora restrito aos estados de sua abrangência. O relatório que apresentou esse levantamento (Jackson e Cavallari, 1991) assinala que as atividades psicológicas de maior ocorrência nas Unidades são: psicoterapia de adulto, psicodiagnóstico, ludoterapia, orientação a gestante e a hipertensos. A psicanálise apareceu como a orientação teórica mais citada, e os recursos técnicos utilizados são a entrevista, a psicoterapia individual, testes, psicoterapia breve, observação lúdica, psicoterapia grupal, observação, dinâmica de grupos e grupos operativos.

Em Natal, a partir de meados da década de oitenta – quando foi criada a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) – iniciou–se um processo de transferência dos profissionais lotados na Secretaria Estadual de Educação para a rede de saúde. Nesse momento, as Unidades Básicas de Saúde tornaram–se municipais, fazendo com que a SMS–Natal passasse a oferecer os serviços de atenção primária. Houve, portanto, uma expansão da oferta de serviços psicológicos para a população mais carente, principalmente com a ampliação do quadro de psicólogos da Secretaria Municipal de Saúde de Natal, advinda da contratação de profissionais concursados no início da década de noventa (Carvalho e Yamamoto, 1999; Paiva, 2003).

O objetivo do presente trabalho é caracterizar e analisar a situação do profissional de psicologia que atua nas Unidades Básicas de Saúde da cidade de Natal, no que tange aos aspectos relativos à sua formação acadêmica e à sua prática profissional.

 

Materiais e métodos

Foram entrevistados 28 psicólogos dos 63 atuantes em unidades de saúde dos quatro Distritos Sanitários do município de Natal durante os anos de 2001 e 2002. A amostra, composta intencionalmente, respeitou o critério de distribuição geográfica dos Distritos: 9 do Norte, 6 do Leste, 8 do Oeste e 5 do Sul.

Utilizou–se um roteiro de entrevista semi–estruturada, com questões gerais abrangendo aspectos relativos à formação acadêmica (graduação e pós–graduação), características da atividade atual – incluindo o referencial teórico que orienta o trabalho – e a população–alvo dos serviços psicológicos.

As entrevistas foram gravadas em áudio, com a autorização dos entrevistados, e posteriormente transcritas integralmente para análise.

 

Resultados

Os dados são apresentados em três blocos, relativos às informações gerais dos psicólogos, à formação acadêmica e à prática profissional. Entretanto, ao discuti–los, certamente lançaremos mão de informações variadas, intercalando–as de maneira a tentar estabelecer algumas correlações interessantes.

 

Dados gerais dos psicólogos que atuam nas UBS

A Tabela 1 apresenta os dados gerais dos psicólogos entrevistados que atuam nas UBS de Natal quanto ao sexo, idade e estado civil.

Tabela 1. Dados gerais dos psicólogos entrevistados (n=28)

Dos psicólogos entrevistados, 93% correspondem ao sexo feminino, 46% têm idade entre 30 e 39 anos e 57% são casados. Apesar de não se prestar a generalizações, o perfil encontrado reproduz em pequena escala os dados mais freqüentemente encontrados em estudos anteriores acerca do profissional de psicologia, tanto locais quanto nacionais, principal–mente no que diz respeito à predominância do sexo feminino na profissão (Mello, 1975; Sindicato dos Psicólogos no Estado de São Paulo [SPESP] e Conselho Regional de Psicologia–6ª Região [CRP–06], 1984; Yamamoto et al, 1997; Castro e Yamamoto, 1998; Yamamoto et al, 2001).

 

A formação acadêmica dos psicólogos

A Tabela 2 apresenta os dados referentes à formação dos profissionais no nível de graduação.

Tabela 2. Formação acadêmica dos psicólogos (graduação) (n=28)

No tocante à formação, 89% dos entrevistados concluíram seus cursos na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e tiveram a clínica (49%) como principal área de direcionamento do currículo, seguida da psicologia hospitalar com 21% das preferências. Se unirmos a opção “infantil”, que aparece com 4% de escolha, à clínica, a proporção eleva–se a 53%. Ao se falar no local escolhido para o estágio curricular, a opção pela clínica aparece com 69% das preferências. Esse resultado não surpreende, apenas reafirma a tendência curricular e/ou opção dos docentes voltada para a clínica, que não aparece como disciplina específica na grade curricular, ao contrário de hospitalar, organizacional ou escolar, referida na literatura. A “clínica” está diluída por toda a formação, e se constitui muito mais em uma base técnica e teórica do que em um espaço de atuação. Até mesmo aqueles que transitaram por outros campos parecem sentir que em um momento mais decisivo, como é o estágio curricular para os alunos, a clínica é a opção que gera menos expectativas, mais segurança, e certamente atenderá ao que dela se espera.

Outro dado significativo é que 79% dos entrevistados concluíram a graduação durante a década de 80, momento em que os estágios curriculares em psicologia concentravam–se na área clínica. Temos como exemplo disso o fato de que 68% dos sujeitos desenvolveram seu estágio na psicologia clínica, enquanto que 18% dividiram–se entre as áreas escolar e organizacional. O único caso que foge às áreas tradicionais foi um estágio desenvolvido na área comunitária, em uma universidade de outra região do país. Ainda com relação ao estágio, destacamos o predomínio da psicanálise como enfoque teórico preferido por 39% dos entrevistados, seguidos da Abordagem Centrada na Pessoa (18%) e da Psicomotricidade Relacional (7%). No caso da UFRN, ressaltamos que a grande concentração da área clínica, e mais especificamente da clínica psicanalítica, reflete a grande influência e concentração de docentes na área naquele momento, além dos reflexos que a expansão da psicanálise provocou na psicologia.

Um aspecto significativo dos resultados diz respeito à busca por estudos em pós–graduação (89%), seja na forma de especialização (46%), cursos de formação (11%) e/ou mestrado/doutorado (5%). Os estudos em clínica (52%) ainda são os mais procurados, seguidos dos de saúde (27%). O interessante é que embora a clínica perpasse toda a formação universitária, e o trabalho no campo da saúde proponha ações que têm em sua base uma perspectiva diferente da utilizada pela clínica tradicional, é nela que os psicólogos se apóiam ao sentir as dificuldades de trabalho nesse novo local. As especializações em saúde geralmente são oferecidas pela própria Secretaria Estadual/Municipal de Saúde, revelando não uma procura espontânea ou uma necessidade dos profissionais se atualizarem na área de saúde pública, mas uma espécie de atividade obrigatória. O real interesse de investimento profissional, contudo, parece residir na área clínica, que se configura como o segundo local de trabalho para a grande maioria desses psicólogos.

* Respostas múltiplas admitidas.
Tabela 3. Formação acadêmica pós–graduada dos psicólogos (n=28)

 

A prática profissional dos psicólogos

O quadro apresentado pode limitar as possibilidades de outros modelos, mais voltados para os princípios preconizados pelo SUS de atenção básica, quais sejam: prevenção e promoção de saúde da população. Entretanto, atribuir unicamente à formação acadêmica a responsabilidade por uma atuação predominantemente clínica, e até mesmo pela preferência desta, é no mínimo uma análise superficial. Se boa parte dos psicólogos graduou–se na década de 1980, há um intercurso de aproximadamente 20 anos entre a graduação e a atividade atual, fato que por si não permite estabelecer uma relação direta entre a formação acadêmica e o exercício profissional.

De fato, a psicologia clínica não está mais retida aos consultórios; ela serve como referência para atividades mais recentes ou mesmo tradicionais, independentemente do local onde são realizadas. Além disso, o trabalho em instituições públicas de saúde apresenta–se mais como uma possibilidade de relativa segurança financeira, que permite ao psicólogo alçar vôos mais amplos na atividade que realmente o satisfaz profissionalmente: o consultório particular. As discussões há muito travadas sobre a relevância social da profissão parecem ter permanecido no seio das entidades representativas e em instituições acadêmicas, sem terem sido difundidas ou conseguido propiciar efetivamente uma alteração nos padrões de atuação dos psicólogos.

Tabela 4. As atividades e orientações teóricas atuais dos psicólogos (n=28)

Embora não constitua uma novidade, o bloco referente às atividades desenvolvidas nas instituições de saúde pública, ou referenciadas por elas, oferece bases para uma discussão interessante a respeito da interface entre a demanda que chega nesses locais, o tipo de serviço prestado e a relação de adequação entre estes e as principais diretrizes do SUS. Cerca de 46% dos psicólogos entrevistados realizam psicoterapia aliada a outras atividades como palestras, visitas a escolas, visitas domiciliares, supervisão a outros profissionais e planejamento da equipe. O atendimento clínico individual como atividade exclusiva é mencionado por 33% dos entrevistados, enquanto 21% afirmam prestar atendimento psicoterapêutico individual e em grupo. Ao agregarmos as duas principais formas de atendimento citadas – a psicoterapia individual e grupal –, o contingente de profissionais que têm como única atividade nas UBS alguma modalidade de psicoterapia representa 54% do total de entrevistados.

Várias são as possíveis interpretações para esse quadro. Se analisarmos conjuntamente a opção pelos cursos de formação e capacitação em clínica já mencionadas, não nos parece desarrazoado supor que o serviço prestado pelo psicólogo seja compatível com a formação que buscou e obteve. Apesar das justificativas – inexistência de local adequado não permite outras práticas, falta de credibilidade das práticas psicológicas diferentes das tradicionalmente estabelecidas e ausência de preparo para atender “demandas sociais” – serem pertinentes, é preciso considerar que não há um direcionamento do profissional para ações em saúde pública, ou mesmo uma constatação da necessidade de práticas que ultrapassem os limites estabelecidos pelo settingterapêutico.

É fato que a clínica tradicional continua sendo a principal referência para o trabalho do psicólogo. A constatação de que novos saberes e novas práticas de atenção são necessários também não é assunto novo. A questão que se coloca é que a despeito do reconhecimento de que o modelo atual não é suficiente para atender à demanda crescente por serviços psicológicos – e aqui nem se menciona a eficácia e a resolutividade, mas apenas o acesso –, não se conseguiu avançar na construção de um corpo de conhecimentos que permita à psicologia transitar com tranqüilidade e segurança em esferas fora das quatro paredes de seus consultório2. Além disso, a cultura psicologizante, consolidada na década de 1970 com a expansão da psicanálise no Brasil, ainda exerce um efeito potencial nos profissionais e até mesmo no direcionamento de seus currículos já na graduação. A idéia de “sujeito psicológico” autônomo e independente, ausente de vínculos e determinismos econômicos e culturais ainda é a concepção de sujeito mais utilizada. A preferência em massa pela psicanálise (67%) como abordagem teórica norteadora dos conceitos e técnicas psicológicas revela que de fato não há uma nova forma de trabalho com indivíduos que durante muito tempo não faziam parte dos chamados “analisáveis”. Hoje os mais variados referenciais teóricos sofrem adaptações, que mais se configuram com uma transposição de local do que uma mudança nas bases teóricas e técnicas, como se a existência de psicólogos e/ou psicanalistas em serviços públicos garantisse por si, e independentemente da clientela, uma democratização da psicologia ou uma ação psicológica de bases transformadoras.

Se analisarmos a atuação psicológica relacionada às diretrizes do SUS, veremos que os princípios de universalidade, eqüidade e integralidade não se aplicam à psicologia. São muito freqüentes os casos de “tratamento” que se prolongam por anos, e são muitas as queixas – de profissionais e usuários – da demanda crescente e não atendida. O interessante é que para os psicólogos essa demanda reprimida é sinal de sucesso no trabalho, de aceitação, e não de ineficiência quanto à acessibilidade. Por outro lado, o sistema de procedimentos referenciado pelo SUS prevê e remunera de maneira diferenciada os atendimentos individuais, que no caso da psicologia são sinônimos de psicoterapia. Atividades educativas e/ou palestras são previstas nos procedimentos, mas não são remuneradas, havendo um processo de retroalimentação: os psicólogos fazem o que mais gostam, aquilo em que se sentem melhor preparados, tendo como suporte as direções do próprio sistema, além de manterem sua remuneração por produtividade nos patamares mais elevados. No interior das UBS vários profissionais de outras áreas reafirmam também a necessidade de contratação de mais psicólogos, mas não sabem expressar o que se espera deles, tampouco conhecem outro tipo de ação desse profissional que não seja a psicoterapia. Isso revela uma crença em uma capacidade potencial e nunca revelada que a psicologia é necessária em vários espaços, mas não há parâmetros para julgar atuação ou para estabelecer diretrizes acerca desse trabalho.

Com relação à integralidade, talvez seja um dos princípios mais difíceis de execução na rede. Embora a VIII CNS tenha resgatado a proposta de alteração na concepção do indivíduo, e conseqüentemente na forma de cuidar de sua saúde, ainda é o modelo liberal, particularizante que está nas bases das ações do SUS. Dos profissionais entrevistados, 64% afirmaram não desenvolver trabalho em conjunto com a equipe das UBS; trabalham de forma independente e no máximo recebem encaminhamentos. Outros 36% afirmaram desenvolver algum trabalho com a equipe da unidade em que está lotado. Dessa forma, o trabalho em equipe não passa de alguns encaminhamentos, solicitação de laudos e/ou pareceres ou esparsas ações conjuntas, quando há um direcionamento específico para que elas aconteçam, como é o caso de serviços alternativos de saúde mental ou atendimento aos portadores de HIV. Mesmo assim, a idéia de trabalho conjunto é bem diferente do que se imagina em uma equipe multiprofissional.

Tabela 5. As relações dos psicólogos com a equipe de trabalho (n=28)

Na perspectiva da autonomia do trabalho, o psicólogo ocupa uma posição extremamente privilegiada na rede. Ele não precisa reportar–se a outro profissional ou técnico para exercer suas atividades. Seleciona e agenda seus clientes, controla a duração das sessões e a alta do processo psicoterápico. Grande parte da demanda que chega a ele não vem referenciada por outro profissional, tampouco é fruto de uma discussão conjunta sobre a melhor conduta para os casos. Dimenstein (2000) e Vasconcelos (1999) afirmam que há uma certa parcialidade na triagem das pessoas que se submetem às ações dos psicólogos na rede pública. Essa seleção privilegia casos não tão cronificados – que em tese seriam de melhor manejo, ou pelo menos não dependeriam de uma ação integrada com outros profissionais – e pessoas de nível de renda não tão baixo, que permitiria a real adesão ao tratamento pela viabilidade econômica do comparecimento às sessões, e auxiliaria no próprio processo psicoterapêutico. No presente estudo a clientela atendida nos serviços psicológicos é predominantemente de baixa renda, com exceção das Unidades Básicas de Saúde que se localizam em bairros do Distrito Sanitário Sul, onde os entrevistados afirmam atender usuários da classe sócio–econômica média, como profissionais qualificados, funcionários públicos e estudantes universitários. Quanto ao gênero, 82% afirmam ter as mulheres como principais usuárias. Em relação à idade, enfatizam a grande demanda de crianças encaminhadas pelas escolas; no caso de adultos, a maioria chega ao profissional de psicologia por demanda espontânea.

Tabela 6. O perfil da clientela (sexo) (n=28)

 

Considerações finais

A partir dos dados apresentados neste estudo, são levantados alguns pontos de discussão acerca das possíveis relações entre aspectos da formação profissional, da atividade atual e dos direcionamentos do SUS que incidem sobre a prática dos psicólogos nas Unidades Básicas de Saúde.

Sem dúvida, a referência clínica que traz subjacente o modelo médico de atuação ainda perpassa de maneira expressiva a formação acadêmica dos psicólogos. Entretanto, tal tendência prolonga–se pela vida profissional por razões outras que não só a formação. A cultura profissional e psicologizante que permeia a prática psicológica conduz à idéia, tanto para a categoria quanto para o senso comum, de que a psicoterapia seja sinônimo de atuação psicológica. A ausência de inovações teóricas que se apliquem efetivamente no setor público de saúde recai sobre os psicólogos, que se isolam em suas salas, e diante da necessidade de responder a uma demanda crescente optam por fazer o que tradicionalmente se espera deles. Desta forma, não há grandes dilemas com relação à avaliação de sua prática, mas a crença de que esse trabalho é cada vez mais necessário, e novos profissionais devem ser contratados para que não haja tamanha demanda reprimida. Persistindo no modelo individualista, o psicólogo relega a um plano secundário aspectos importantes das condições materiais de existência daqueles que buscam os serviços psicológicos, mas cujos problemas estão além da perspectiva existencial. O modelo do SUS reforça a compartimentalização da concepção do sujeito e das ações quando estabelece procedimentos específicos, detalhados e desvinculados de elaboração de perfis epidemiológicos que mapeiem quem de fato é a população usuária do sistema, e o que ela precisa. As estratégias são estabelecidas de forma apriorista e o resultado é a exclusão dos indivíduos que mais necessitam. A possibilidade de realização de psicoterapia na atenção básica atrai a maioria dos psicólogos da rede para essa prática que, além de ser melhor remunerada, prescinde de trabalho em equipe. Isso exime os profissionais (de todos os campos) de um trabalho que, na maior parte das vezes, implica disputa de poder nas diferentes abordagens ao usuário, assim como mudanças nas concepções que norteiam sua prática.

Esse quadro da prática do profissional de psicologia caminha na contramão dos princípios universalistas do SUS, pois além de eleger uma pequena parcela de usuários, ferindo o princípio da universalidade, estabelece condições mínimas para o atendimento psicológico, contrariando o da eqüidade. A competição por poder e espaço de atuação entre os profissionais de nível superior, associada às definições limitadas do que seja a atuação psicológica, constituem um entrave para o desenvolvimento de atividades, além de comprometer a participação em equipes multiprofissionais, indo de encontro ao princípio da integralidade.

Com esses apontamentos não queremos afirmar que a saúde pública não seja lugar para a clínica ou para a psicoterapia; elas são possíveis e, eventualmente, necessárias. Entretanto, não se pode restringir o trabalho do psicólogo nesses locais aos atendimentos psicoterapêuticos, sob risco de fracasso no cumprimento dos princípios do SUS, de cronificação dos usuários e de impor um único modelo de ação para usuários extremamente diferenciados, que padecem de males os quais muitas vezes não têm relação com aspectos internos, inconscientes ou existenciais. É preciso ressaltar que a população que chega à rede básica tem na raiz de seus problemas as conseqüências de um modo de produção extremamente explorador, que a impossibilita de garantir as condições mínimas de sobrevivência, o que dirá de uma sobrevivência digna. A psicologia precisa pensar em novas formas de ação em saúde pública, que ultrapassem as fronteiras institucionais, resgatem a cidadania dos usuários e caminhem para um enfoque preventivo.

 

 

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Endereço para correspondência
Isabel Fernandes de Oliveira
Departamento de Psicologia – UFRN – Cx. Postal 1622 – 59078–970 – Natal/RN
tel: (84) 642–1036
e–mail: fernandes.isa@uol.com.br

 

recebido em 30/10/03
aprovado em 09/03/04

 

 

Notas

I Professora do Departamento de Psicologia UFRN; Doutoranda em Psicologia Clínica(USP); Bolsista CAPES.
II Graduanda em Psicologia (UFRN); Bolsista de Iniciação Científica/CNPq.
III Mestranda em Psicologia (UFRN); Bolsista CAPES.
IV Mestrando em Psicologia (UFRN); Bolsista CNPq.
V Doutorando em Psicologia Social (UFRN); Bolsista CAPES.
VI Professor do Departamento de Psicologia da UFRN; Doutor em Educação (USP); Coordenador do Grupo de Pesquisas Marxismo & Educação (Diretório CNPq); Bolsista CNPq.

1 Os autores agradecem ao CNPq e à CAPES pelo apoio para a realização da pesquisa que deu origem a este trabalho.
2 Vários profissionais entrevistados referem–se às unidades como seus “consultórios” ou seus “clientes”.